O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE E O CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS

THE FUNDAMENTAL RIGHT TO HEALTH AND THE JUDICIAL CONTROL OF PUBLIC POLICIES

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10050529


Raíssa Falcão Spencer Hartmann


RESUMO

O presente artigo tem como escopo verificar a importância de se atribuir caráter obrigatório à norma constitucional que consagra o direito fundamental à saúde, indissociável do direito à vida e à existência condigna, de modo a vincular a atuação dos Poderes Públicos na promoção e concretização satisfatórias das ações e dos serviços de saúde. Por outro lado, identifica-se uma tensão entre a necessidade de efetivação do direito social em apreço e o respeito, por parte do Poder Judiciário, ao juízo político discricionário do Poder Executivo, sob pena de vulnerar o princípio da Separação dos Poderes, pedra de toque do Estado Democrático de Direito. Nessa senda, busca-se harmonizar a coexistência de dois importantes bens jurídicos: a preservação do direito à saúde e o respeito às as escolhas metodológicas da Administração Pública, à luz dos parâmetros invocados pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do tema 698 de repercussão geral, com vistas a nortear e limitar o controle jurisdicional das políticas públicas e a evitar ingerências indevidas no mérito dos atos administrativos. Para perseguir o objetivo pretendido, utilizou-se o método hipotético-dedutivo, com base em revisões bibliográficas.

Palavras-chave: Direito fundamental à saúde. Princípio da Separação dos Poderes. Tema 698 de repercussão geral do STF.

ABSTRACT

The scope of this article is to verify the importance of attributing a mandatory character to the constitutional norm that enshrines the fundamental right to health, inseparable from the right to life and decent existence, in order to link the actions of Public Authorities in the promotion and satisfactory implementation of health actions and services. On the other hand, a tension is identified between the need to implement the social right in question and respect, on the part of the Judiciary, for the discretionary political judgment of the Executive Branch, under penalty of violating the principle of Separation of Powers, a cornerstone of touch of the Democratic Rule of Law. Along this path, we seek to harmonize the coexistence of two important legal assets: the preservation of the right to health and respect for the methodological choices of the Public Administration, in light of the parameters invoked by the Federal Supreme Court in the judgment on topic 698 of general repercussion, with a view to guiding and limiting jurisdictional control of public policies and avoiding undue interference in the merits of administrative acts. To pursue the intended objective, the hypothetical-deductive method was used, based on bibliographical reviews.

Keywords: Fundamental right to health. Principle of Separation of Powers. Topic 698 of general repercussion of the STF.

1 INTRODUÇÃO

Para além das liberdades civis e clássicas, como o direito à igualdade formal, à propriedade e à associação, o surgimento do Estado de Bem-Estar Social passou a exigir do Poder Público a entrega de prestações positivas aos cidadãos, com o intuito de corrigir assimetrias sociais e regionais, bem como consagrar a isonomia substancial.

A erradicação da pobreza e da marginalização e a promoção do postulado fundamental da dignidade da pessoa humana são princípios constitucionais que norteiam o caminhar de um Estado intervencionista, que atua, com limitações, nos domínios social e econômico, com o objetivo de concretizar os direitos de segunda dimensão.

 Por direitos de segunda dimensão ou geração entendem-se aqueles sociais, econômicos e culturais, assegurados em Estados dirigentes, como o brasileiro, a exemplo do direito à previdência, à moradia, à alimentação, à educação e à saúde.

O fenômeno da força normativa da Constituição, a sua centralidade e a filtragem de suas normas levou à expansão da jurisdição constitucional, levando ao átrio do Poder Judiciário a resolução de litígios relacionados à efetivação de políticas públicas, como as demandas de saúde, que comumente direcionam ao Poder Executivo o cumprimento de alguma obrigação.

Nesse ponto, emerge a tensão entre a importância do reconhecimento de um bem jurídico constitucionalmente tutelado – o direito à saúde – e a necessidade de preservação do princípio da separação de Poderes, instrumento de calibre da república e da democracia representativa.

Diante desse paradigma, o presente trabalho traz a disciplina constitucional do direito fundamental à saúde, as premissas teóricas e práticas de aplicabilidade do princípio da separação de Poderes, o conceito de mérito administrativo e a sua sindicabilidade pelo Poder Judiciário tão-somente no que se refere a estritos aspectos de legalidade.

Posteriormente, do cotejo entre autocontenção recíproca e reserva técnica da Administração, este artigo pondera acerca das balizas para a intervenção do Poder Judiciário na concretização dos direitos fundamentais, delineadas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do tema nº 698 de repercussão geral, a fim de se preservarem a igualdade material, a universalização dos direitos fundamentais e a segurança jurídica, pondo a salvo o princípio da separação dos Poderes de qualquer aplicação equivocada ou abusiva.

2 A IMPORTÂNCIA E A NECESSIDADE DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE

No contexto da Revolução Industrial do século XIX, emergiram reivindicações trabalhistas e assistenciais a servir de substrato fático para o surgimento dos direitos fundamentais de segunda dimensão.

Trata-se de direitos ligados à ideia de isonomia material, pautada na concepção de um Estado prestacionista, de Bem-Estar Social (Welfare State), que impõe ao Poder Público a obrigação de fazer, e não meramente um comportamento de abstenção.

A esse respeito, veja-se o ensinamento de Pedro Lenza (2020, p. 1346):

Assim, os direitos sociais, direitos de segunda dimensão, apresentam-se como prestações positivas a serem implementadas pelo Estado (Social de Direito) e tendem a concretizar a perspectiva de uma isonomia substancial e social na busca de melhores e adequadas condições de vida, estando, ainda, consagrados como fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, IV, da CF/88).

Nesse diapasão, a Primeira Guerra Mundial inspirou o reconhecimento de direitos sociais, culturais e econômicos, dentre os quais se incluem o direito à previdência, à educação e à saúde.

Como leciona LENZA (2020, p. 1171), alguns importantes documentos influenciaram e nortearam a evidenciação dos direitos fundamentais de segunda geração, como a Constituição do México (1917), a Constituição de Weimar (1919), na Alemanha, e o Tratado de Versalhes (1919).

Especificamente no tocante ao direito à saúde, objeto do presente estudo, a Constituição Federal de 1988 dedica disciplina normativa própria, a evidenciar a importância do direito fundamental em apreço, senão vejamos:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015).

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. (BRASIL, 1988)

É de se anotar, ademais, que o ordenamento constitucional vigente assenta a densidade normativa do direito à saúde, o qual não mais se qualifica, tão-somente, como vetor interpretativo, mas como comando de força obrigatória.

Portanto, sua observância e concretização, diferentemente de outrora, passaram a vincular os Poderes Públicos, conforme pontua BONAVIDES (APUD LENZA, 2020, p. 1171):

De juridicidade questionada nesta fase, foram eles remetidos à chamada esfera programática, em virtude de não conterem para sua concretização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos de liberdade. Atravessaram, a seguir, uma crise de observância e execução, cujo fim parece estar perto, desde que recentes Constituições, inclusive a do Brasil, formularam o preceito de aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais. 

Outro não é o entendimento no âmbito do Supremo Tribunal Federal, como se extrai do voto do Ministro Luís Roberto Barroso, em recente julgamento de embargos de declaração no Recurso Extraordinário nº 684.612/RJ:

A saúde é um bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve zelar o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Portanto, resta demonstrado o caráter vinculante das normas constitucionais que veiculam o direito à saúde. Cuida-se de comando normativo cuja efetiva implementação obriga as autoridades públicas, notadamente os agentes que compõem o Poder Executivo.

Diante disso, é crescente a judicialização em matéria de direito à saúde, de sorte que os cidadãos têm buscado o Poder Judiciário para obter provimentos tendentes à salvaguarda de seus direitos, como a realização de cirurgias, a entrega de medicamentos e a construção de hospitais públicos.

Desse cenário emerge a necessidade de delimitação da atuação judicial sobre as políticas públicas e a sua ingerência no mérito dos atos administrativos, sob pena de afronta ao princípio da Separação dos Poderes e da reserva técnica da Administração.

3 O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES

O princípio da Separação dos Poderes deita suas raízes teóricas nos escritos de Aristóteles, na Antiguidade grega. Para o filósofo, o poder soberano consubstanciava uma repartição funcional de atribuições, que englobavam, respectivamente, a elaboração das leis pelos governantes, sua gestão e aplicação no caso concreto e a solução de litígios resultantes da execução dessas normas.

As primeiras bases teóricas para a “tripartição de Poderes” foram lançadas na Antiguidade grega por Aristóteles, em sua obra Política, em que o pensador vislumbrava a existência de três funções distintas exercidas pelo poder soberano, quais sejam, a função de editar normas gerais a serem observadas por todos, a de aplicar as referidas normas ao caso concreto (administrando) e a função de julgamento, dirimindo conflitos oriundos da execução das normas gerais nos casos concretos. (LENZA, 2020, p. 563)

Posteriormente, a tese aristotélica foi aperfeiçoada por Montesquieu, quando este identificou que as três grandes funções estatais deveriam ser exercidas por órgãos distintos e independentes entre si, em contraposição aos ideais absolutistas de concentração de poder nas mãos do monarca. Tal concepção ia ao encontro dos pressupostos liberais aventados nas revoluções norte-americana e francesa. Nessa esteira é o ensinamento de LENZA (2020, p. 563):

Muito tempo depois, a teoria de Aristóteles seria “aprimorada” pela visão precursora do Estado liberal burguês desenvolvida por Montesquieu em seu O espírito das leis. O grande avanço trazido por Montesquieu não foi a identificação do exercício de três funções estatais. De fato, partindo desse pressuposto aristotélico, o grande pensador francês inovou dizendo que tais funções estariam intimamente conectadas a três órgãos distintos, autônomos e independentes entre si. Cada função corresponderia a um órgão, não mais se concentrando nas mãos únicas do soberano. Essa teoria surge em contraposição ao absolutismo, servindo de base estrutural para o desenvolvimento de diversos movimentos, como as revoluções americana e francesa, caracterizando-se na Declaração Francesa Dos Direitos do Homem e do Cidadão, em seu art. 16, como verdadeiro dogma constitucional.

Para além da formatação teórica do tema, impende ressaltar e precisar a utilidade prática da separação de Poderes, com sua finalidade aplicável à realidade concreta.

Nessa linha de raciocínio, é de se pontuar que o instituto em comento possui o nítido escopo de evitar o exercício individual ou oligárquico do poder político, impedindo a concentração das instâncias executórias e decisórias na mesma pessoa.

Ora, o exercício do poder distribuído em órgãos estatais distintos dotados de forte independência e autonomia minimiza consideravelmente os riscos de abusos e excessos. Parte-se da premissa de que a tomada das decisões governamentais exige a atuação concertada e colaborativa entre as várias autoridades dos três Poderes da República, sem que nenhum deles se imiscua ou suplante a esfera de atuação do outro.

Busca-se, assim, neutralizar a ocorrência de circunstâncias que impliquem dominação e subordinação institucional, garantindo a harmonia e a independência dos Poderes no livre desempenho de suas missões constitucionais.

Como bem aponta Lenza (2020, p. 564), existe um liame entre a divisão do poder e a liberdade individual. De um lado, a separação de poderes institui as balizas de cooperação entre os agentes públicos na tomada de suas decisões. De outro, prescreve meios de autocontenção recíproca entre os poderes estatais, à luz da doutrina norte-americana dos freios e contrapesos (checks and balances).

O Estado que estabelece a separação dos poderes evita o despotismo e assume feições liberais. Do ponto de vista teórico, isso significa que na base da separação de poderes encontra-se a tese da existência do nexo causal entre a divisão do poder e a liberdade individual. A separação de poderes persegue esse objetivo de duas maneiras. Primeiro, impondo a colaboração e o consenso de várias autoridades estatais na tomada de decisões. Segundo, estabelecendo mecanismos de fiscalização e responsabilização recíproca dos poderes estatais, conforme o desenho institucional dos freios e contrapesos.

Na mesma linha é a orientação consagrada no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Veja-se:

A essência do postulado da divisão funcional do poder, além de derivar da necessidade de conter os excessos dos órgãos que compõem o aparelho de Estado, representa o princípio conservador das liberdades do cidadão e constitui o meio mais adequado para tornar efetivos e reais os direitos e garantias proclamados pela Constituição. (BRASIL, 2000)

Assentadas a bases teóricas e a relevância prática da separação de Poderes, cumpre agora destrinchar a ideia de controle jurisdicional das políticas públicas à luz da (in)sindicabilidade do mérito administrativo, a fim de delimitar a legitimidade da interferência do Poder Judiciário nas escolhas alocatícias do Poder Executivo, e fornecer os parâmetros para sua atuação.

4 A FISCALIZAÇÃO JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS E O MÉRITO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS

O mérito consiste no espaço de discricionariedade conferido pelo legislador ao agente estatal para que este aprecie a conveniência e a oportunidade dos motivos dos objetos a serem escolhidos quando da edição dos atos administrativos. 

Cuida-se, enfim, da margem de apreciação subjetiva de que dispõe o administrador, quando se tratar da feitura de um ato administrativo discricionário. Nesse sentido, explica Rafael Oliveira (2019, p. 327):

O mérito é a liberdade conferida pelo legislador ao agente público para exercer o juízo de ponderação dos motivos e escolher os objetos dos atos administrativos discricionários. É possível afirmar que o mérito é o núcleo dos atos administrativos discricionários. Não há mérito na edição de atos vinculados.

No que toca especificamente ao controle jurisdicional dos atos administrativos, calha registrar que a interferência do Poder Judiciário somente pode ocorrer quando pautada em requisitos de legalidade. A contrario sensu, resta vedado ao magistrado avaliar o mérito do ato, isto é, apreciar a conveniência e a oportunidade de sua edição, uma vez que este juízo se insere na discricionariedade política dos Poderes Executivo e Legislativo, dentro do desenho institucional de suas funções típicas à luz da tripartição dos poderes:

O controle jurisdicional sobre os atos oriundos dos demais Poderes (Executivo e Legislativo) restringe-se aos aspectos de legalidade (juridicidade), sendo vedado ao Poder Judiciário substituir-se ao administrador e ao legislador para definir, dentro da moldura normativa, qual a decisão mais conveniente ou oportuna para o atendimento do interesse público, sob pena de afronta ao princípio constitucional da separação de Poderes. Portanto, o Judiciário deve invalidar os atos ilegais da Administração, mas não pode revogá-los por razões de conveniência e oportunidade. (OLIVEIRA, 2019, p. 327)

Nessa esteira de entendimento é que se insere o tema da judicialização das políticas públicas, notadamente o controle jurisdicional da implementação do direito à saúde, objeto do presente artigo. 

A esse respeito, convém destacar o interessante precedente do STF, quando se entendeu pela possibilidade de decisão judicial obrigar a Administração a manter estoque mínimo de medicamentos.

No caso concreto, a Suprema Corte asseverou inexistir violação ao princípio da separação dos Poderes, uma vez que a determinação judicial não adentre no mérito dos programas e metas a serem escolhidos pelo Poder Executivo para a concretização do direito à saúde, mas tão-somente controlar a legalidade dos atos e serviços da Administração.

A Administração Pública pode ser obrigada, por decisão do Poder Judiciário, a manter estoque mínimo de determinado medicamento utilizado no combate a certa doença grave, de modo a evitar novas interrupções no tratamento.

Não há violação ao princípio da separação dos poderes no caso. Isso porque com essa decisão o Poder Judiciário não está determinando metas nem prioridades do Estado, nem tampouco interferindo na gestão de suas verbas. O que se está fazendo é controlar os atos e serviços da Administração Pública que, neste caso, se mostraram ilegais ou abusivos já que, mesmo o Poder Público se comprometendo a adquirir os medicamentos, há falta em seu estoque, ocasionando graves prejuízos aos pacientes.

Assim, não tendo a Administração adquirido o medicamento em tempo hábil a dar continuidade ao tratamento dos pacientes, atuou de forma ilegítima, violando o direito à saúde daqueles pacientes, o que autoriza a ingerência do Poder Judiciário.

STF. 1ª Turma. RE 429903/RJ, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 25/6/2014 (Info 752)

Desta feita, resta evidente a orientação jurisprudencial dos Tribunais Pátrios e concluir pela legitimidade da fiscalização exercida pelo Poder Judiciário, desde que sob o prisma da legalidade.

A corroborar esse entendimento, em contrapartida, é abusiva a interferência judicial quando pretende substituir-se ao administrador na escolha e ponderação das metas e prioridades a serem seguidas pela Administração, pois somente a esta incumbe o juízo político de discricionariedade. 

Segundo a doutrina majoritária e a jurisprudência dos Tribunais Superiores, nessas hipóteses, o Poder Judiciário deve assumir uma postura de deferência, uma vez que a definição do conteúdo imediato dos atos administrativos, quando discricionários, é norteada pela capacidade institucional e pela expertise técnica, as quais são insuscetíveis de avaliação jurisdicional.

Nessa senda, vale colacionar precedente do STJ que reafirma o entendimento aqui esposado:

A interferência judicial para invalidar a estipulação das tarifas de transporte público urbano viola a ordem pública, mormente nos casos em que houver, por parte da Fazenda estadual, esclarecimento de que a metodologia adotada para fixação dos preços era técnica.

Segundo a “doutrina Chenery”, o Poder Judiciário não pode anular um ato político adotado pela Administração Pública sob o argumento de que ele não se valeu de metodologia técnica. Isso porque, em temas envolvendo questões técnicas e complexas, os Tribunais não gozam de expertise para concluir se os critérios adotados pela Administração são corretos ou não.

Assim, as escolhas políticas dos órgãos governamentais, desde que não sejam revestidas de reconhecida ilegalidade, não podem ser invalidadas pelo Poder Judiciário.

STJ. Corte Especial. AgInt no AgInt na SLS 2240-SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 7/6/2017 (Info 605).

Portanto, o controle jurisdicional das políticas públicas, notadamente em matéria de ações e serviços de saúde, é importante mecanismo de legitimação da autocontenção recíproca dos Poderes da República, com o fito de corrigir abusos, excessos e distorções na concretização desse direito a cargo do Poder Executivo.

No entanto, não se pode perder de vista a definição dos exatos contornos em que esse controle deve ser exercido, sob pena de subverter a função precípua da divisão funcional de Poderes e de vulnerar a capacidade institucional e técnica dos órgãos pertencentes ao Poder Executivo, deixando ao arbítrio do Judiciário a indesejável formulação e implementação das políticas em substituição ao administrador.

A fim de atender à isonomia e à segurança jurídica, o Supremo Tribunal Federal, sob a sistemática da repercussão geral, traçou relevantes parâmetros para a definição da legitimidade da atuação do Poder Judiciário, que serão objeto de análise no próximo tópico.

5 PARÂMETROS FIXADOS PELO STF NO TEMA 698 DE REPERCUSSÃO GERAL

A fiscalização jurisdicional de políticas públicas não é imune a críticas. Todavia, o entendimento firmado pelo STF é no sentido de que não se pode negar a necessidade pontual e justificada de intervenção judicial na consecução de direitos fundamentais, sob pena de tornar letra morta a norma que assegura a efetividade dos direitos sociais, em indesejável violação ao princípio da vedação ao retrocesso. Sobre o tema, confira-se a lição de Márcio Cavalcante (2023):

A atuação do Poder Judiciário em matéria de concretização de direitos sociais é permeada por complexidades e críticas. Contudo, em cenários em que a inércia administrativa frustra a realização de direitos fundamentais, não há como negar ao Poder Judiciário algum grau de interferência para a implementação de políticas públicas. Negar a possibilidade de atuação jurisdicional nessa matéria equivaleria a negar a própria efetividade do direito social constitucionalmente assegurado, retornando à ultrapassada ideia de que tais direitos seriam normas meramente programáticas ou principiológicas. 

Nessa conjuntura, e atento à necessidade de compatibilizar a efetividade do direito à saúde com a margem de discricionariedade do administrador, o Supremo Tribunal Federal definiu e elencou parâmetros para a atuação legítima e concertada do Poder Judiciário.

O primeiro parâmetro é a imprescindibilidade de comprovação de ausência ou grave deficiência na prestação do serviço público. De acordo com o STF, deve-se estar diante de um quatro de inércia ou mora irrazoável do Poder Público. Nesse sentido, discorre Márcio Cavalcante (2023):

Em primeiro lugar, é necessário que esteja devidamente comprovada nos autos a ausência ou grave deficiência do serviço público, decorrente da inércia ou excessiva morosidade do Poder Público. Quando os Poderes Legislativo e Executivo descumprem seus deveres institucionais, o Poder Judiciário estará autorizado a servir de alerta para que estes exerçam suas atribuições.

A segunda premissa é a possibilidade de universalização da providência pleiteada no caso concreto pelo autor da demanda. É dizer, ao apreciar a viabilidade de acolhimento do pleito autoral, o órgão jurisdicional deve ponderar acerca da exigibilidade da observância da mesma obrigação a cargo do Estado devedor em casos análogos, diante da existência ou não de recursos financeiros faticamente disponíveis para o cumprimento da determinação judicial: 

Em segundo lugar, no atendimento dos pedidos formulados pelo autor da demanda, deve-se observar a possibilidade de universalização da providência a ser determinada, considerados os recursos efetivamente existentes, que são finitos e insuficientes ao atendimento de todas as necessidades sociais, impondo ao Estado a tomada de decisões difíceis. Assim, o órgão julgador deverá questionar se é razoável e faticamente viável que aquela obrigação seja universalizada pelo ente público devedor. (CAVALCANTE, 2023)

O terceiro critério consiste na definição, pelo órgão julgador, da finalidade a ser atingida pela execução da política pública, vedada a determinação dos meios a serem utilizados pelo gestor para o alcance do fim visado.

Assim, o Poder Judiciário definirá o objetivo a ser perseguido, mas incumbe privativamente à Administração a escolha discricionária das medidas e dos métodos a serem manejados. 

Nessa linha de raciocínio, ensina Márcio Cavalcante (2023):

Em terceiro lugar, cabe ao órgão julgador determinar a finalidade a ser atingida, mas não o modo como ela deverá ser alcançada, privilegiando medidas estruturais de resolução de conflito. Estabelecida a meta a ser cumprida, diversos são os meios com os quais se pode implementá-la, cabendo ao administrador optar por aquele que considera mais pertinente e eficaz. 

Trata-se de um modelo “fraco” de intervenção judicial em políticas públicas, no qual, apesar de indicar o resultado a ser produzido, o Judiciário não fixa analiticamente todos os atos que devem ser praticados pelo Poder Público, preservando, assim, o espaço de discricionariedade do mérito administrativo. 

O quarto standard é o reconhecimento de que o órgão jurisdicional não dispõe dos conhecimentos técnicos necessários à formulação e à implementação das políticas de saúde. Ao revés, a legítima detentora da capacidade institucional e da expertise técnica sobre o tema é a Administração Pública.

Por essa razão, como mecanismo de compensação, o provimento jurisdicional deve estar lastreado em manifestações técnicas de órgãos competentes, a subsidiar e fundamentar a determinação realizada pelo Poder Judiciário.

Cuida-se de parâmetro tendente a preservar a repartição funcional de Poderes e a prestigiar o controle judicial deferente, sem arbítrios e com rigor técnico. Mais uma vez, vale trazer à baila as considerações feitas por Márcio Cavalcante (2023):

Em quarto lugar, há que se considerar a ausência de expertise e capacidade institucional da atuação judicial na implementação de política pública. O Judiciário não domina o conhecimento específico necessário para instituir políticas de saúde, de modo que, para atenuar isso, a decisão judicial deverá estar apoiada em documentos ou manifestações de órgãos técnicos, que podem acompanhar a petição inicial ou compor a instrução processual. No caso dos autos, por exemplo, deveria ter sido pensado em um plano para correção das irregularidades no Hospital Municipal Salgado Filho, que garantisse um mínimo existencial para o atendimento da população, respeitando, assim, o direito à saúde e à dignidade humana e, ao mesmo tempo, considerasse a situação das demais unidades de saúde sob responsabilidade do Município, para as quais os recursos orçamentários e esforços administrativos também devem ser orientados. O plano poderia ser elaborado diretamente pela Administração Pública Municipal – e, posteriormente, homologado pelo Tribunal de Justiça local – ou desenvolvido em conjunto entre os dois Poderes.

Por fim, o quinto parâmetro de atuação é a abertura, sempre que possível, à participação da sociedade civil organizada. Característica marcante da Administração Pública dialógica ou consensual, a conversação institucional ameniza a crise de litigiosidade no âmbito do Poder Público, além de reforçar a legitimidade democrática e a efetividade das decisões judiciais.

Nessa ordem de ideias, o STF assinalou a importância do amicus curiae, modalidade de intervenção de terceiros no processo, por meio da qual órgãos, pessoas e entidades com representatividade adequada contribuem para o enriquecimento do debate e para a solução da controvérsia de forma técnica e consentânea com os anseios da sociedade.

Além do auxílio institucional fornecido pelo amicus curiae, a Suprema Corte destacou a possibilidade de designação de audiências públicas, com a participação não apenas das partes do processo subjetivo, como também dos mais diversos segmentos da sociedade civil organizada. Segundo o STF, trata-se de relevante mecanismo de construção cooperada e concertada da decisão, superando a ideia de imposição unilateral da Administração e se aproximando da concepção de solução fruto de diálogo institucional entre autoridades e cidadãos.

Em quinto lugar, sempre que possível, o órgão julgador deverá abrir o processo à participação de terceiros, com a admissão de amicicuriae e designação de audiências públicas, permitindo a oitiva não apenas dos destinatários da ordem, mas também de outras instituições e entidades da sociedade civil. Tais providências contribuem não apenas para a legitimidade democrática da ordem judicial como auxiliam a tomada de decisões, pois permitem que o órgão julgador seja informado por diferentes pontos de vista sobre determinada matéria, contribuindo para uma visão global do problema. Além disso, uma construção dialógica da decisão favorece a sua própria efetividade, uma vez que são maiores as chances de cumprimento, pelo Poder Público, de determinações que ele próprio ajudou a construir.

Diante dos contornos delineados no julgamento do tema nº 698 de repercussão geral, o STF deu importante passo na uniformização e sistematização de seu entendimento em matéria de controle jurisdicional de políticas públicas, ao fixar as seguintes teses:

1. A intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, não viola o princípio da separação dos Poderes.

2. A decisão judicial, como regra, em lugar de determinar medidas pontuais, deve apontar as finalidades a serem alcançadas e determinar à Administração Pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado;

3. No caso de serviços de saúde, o déficit de profissionais pode ser suprido por concurso público ou, por exemplo, pelo remanejamento de recursos humanos e pela contratação de organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP).

STF. Plenário. RE 684.612/RJ, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, redator do acórdão Min. Roberto Barroso, julgado em 01/7/2023 (Repercussão Geral – Tema 698) (Info 1101).

Portanto, a importância de concretização dos direitos fundamentais, em especial o direito social à saúde, atrai a necessidade de compatibilização desse bem jurídico com o princípio da separação de Poderes, delimitando-se as exatas balizas de atuação do Poder Judiciário.

Em grande avanço na formatação e na organização dos parâmetros definidores da intervenção jurisdicional, o STF, em sede de repercussão geral, sintetizou relevantes critérios, o que contribui sobremaneira para a coerência, estabilidade e integridade das decisões judiciais, além de conferir isonomia e segurança jurídica para o tratamento da matéria em toda a jurisdição do território brasileiro.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante o exposto, verifica-se que o reconhecimento da máxima efetividade dos direitos fundamentais confere ao direito à saúde o status de norma constitucional dotada de eficácia normativa, não ostentando a simples condição de promessa de governo.

Trata-se, com efeito, de bem jurídico ao qual a Constituição outorgou proteção e atenção especial, o que denota a vinculação das autoridades públicas à consecução inexorável das políticas que visem a sua promoção e proteção.

E não poderia ser diferente, na medida em que o direito à saúde é faceta inerente ao direito fundamental à vida e à existência condigna, dentro da ideia de patamar mínimo civilizatório, integrando o conjunto prerrogativas jurídicas do cidadão oponíveis ao Estado.

Não obstante, como foi demonstrado, é preciso realizar um juízo de ponderação de limites no que tange à concretização desse direito, e até que ponto o Poder Judiciário poderia interferir, em caso de inércia ou violação do núcleo essencial da saúde por parte do Executivo.

Em primeiro lugar, tendo em vista o princípio da separação dos Poderes, cânone essencial do Estado Democrático de Direito, corolário da liberdade individual e cláusula pétrea, o controle exercido a cargo do Judiciário deve ser pautado em critérios de legalidade.

Em segundo lugar, considerando a capacidade institucional típica do Poder Executivo, quando inexistir exercício ilegítimo ou abusivo, ao magistrado incumbe adotar uma postura de deferência, em observância à discricionariedade técnica e às escolhas metodológicas da Administração. 

De acordo com o que foi decidido pelo STF no tema 698 de repercussão geral, para além de assegurar a independência e a harmonia dos Poderes da República, a atuação judicial no bojo da execução de políticas públicas viabiliza a identificação e a correção de alguns problemas estruturais.

Nesse diapasão, a judicialização do direito à saúde permite que o magistrado identifique a omissão do Poder Público ou a grave deficiência na prestação do serviço. Ademais, confere ao órgão jurisdicional a possibilidade de estender a mesma solução do caso concreto a situações análogas, universalizando a garantia do direito, em prol da isonomia material. Por fim, viabiliza a participação da sociedade civil, por meio da realização de audiências públicas e de outros mecanismos de controle social, para reforçar a legitimidade democrática das decisões estatais e para melhor atender aos anseios da população.

Por conseguinte, a promoção do direito constitucional à saúde, inclusive com a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, pode conviver harmonicamente com a divisão funcional dos Poderes, sem qualquer prejuízo de seu resguardo e aplicabilidade, observadas as balizas delineadas pela doutrina e pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, notadamente aquelas invocadas pelo STF no julgamento objeto do presente trabalho.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, CF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Informativo 1101 STF. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/d871c387c0f0eac2c553c7c4d59796f9?categoria=1>

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 24. ed. São Paulo. Saraiva. 2020.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo.  7. ed. São Paulo. Editora Método. 2019.