REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch10202512190613
Vanessa Souza Leal1
Orientador: Prof. Eternar Rodrigues da Silva2
RESUMO
O presente trabalho analisa a violência obstétrica no Brasil, buscando compreender por que os direitos da gestante, embora garantidos em âmbito constitucional e infraconstitucional, ainda não se efetivam no contexto da assistência ao parto. O estudo parte do problema central de identificar os fatores que dificultam a aplicação desses direitos e perpetuam práticas abusivas durante o ciclo gravídico-puerperal. O objetivo geral consiste em examinar como tais violações se manifestam e por que persistem nas instituições de saúde. A pesquisa adota abordagem qualitativa, com caráter bibliográfico e documental, fundamentada na análise de artigos científicos, legislações e documentos oficiais relacionados ao tema. Esse método permitiu estabelecer uma leitura crítico-teórica da realidade obstétrica brasileira, comparando o arcabouço jurídico às práticas cotidianas observadas nos serviços de saúde. Os resultados indicam que, apesar das normas que asseguram dignidade, autonomia e consentimento informado, a efetividade desses direitos é comprometida por fatores como naturalização de abusos, desigualdades sociais, formação profissional inadequada, falhas de fiscalização e baixa responsabilização institucional. Mulheres negras, jovens e usuárias do SUS aparecem como grupo mais vulnerável às violações. Conclui-se que a superação da violência obstétrica exige a transformação das práticas assistenciais, o fortalecimento de políticas públicas e o aprimoramento da educação em direitos reprodutivos. Pesquisas futuras podem aprofundar a atuação do Judiciário e os impactos psicológicos decorrentes dessas violências.
Palavras-chave: Violência obstétrica. Direitos da gestante. Humanização do parto.
ABSTRACT
The This study analyzes obstetric violence in Brazil and seeks to understand why the rights of pregnant women, although guaranteed in constitutional and infraconstitutional legislation, are still not effectively applied in childbirth care. The research addresses the central problem of identifying the factors that hinder the implementation of these rights and allow abusive practices to persist throughout the pregnancy and childbirth process. The general objective is to examine how such violations occur and why they remain within health institutions. A qualitative methodology was adopted, based on bibliographic and documentary research involving scientific articles, legislation, and official institutional documents. This approach enabled a critical-theoretical interpretation of the Brazilian obstetric scenario by comparing the normative framework with the reality observed in healthcare services. The findings indicate that, despite the existence of rights ensuring dignity, autonomy, and informed consent, their effectiveness is weakened by factors such as the normalization of abusive practices, social inequalities, insufficient professional training, inadequate oversight, and limited institutional accountability. Black women, young women, and users of the public health system emerge as the most vulnerable groups. It is concluded that overcoming obstetric violence requires transforming institutional practices, strengthening public policies, and expanding education on reproductive rights. Future research may further explore the role of the judiciary and the psychological impacts resulting from these violations.
Keywords: Obstetric violence. Pregnant women’s rights. Humanized childbirth.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A violência obstétrica representa uma violação direta dos direitos fundamentais das gestantes ao longo do ciclo gravídico-puerperal, configurando práticas que ferem a dignidade, a autonomia e a integridade física e psicológica da mulher. Essas agressões ocorrem quando profissionais e instituições de saúde, amparados em uma autoridade técnica e simbólica historicamente construída, impõem condutas sem consentimento ou em desrespeito à mulher, desconsiderando seu protagonismo e sua liberdade reprodutiva (ZANARDO et al., 2017). Tal violência decorre da naturalização de práticas abusivas amplamente difundidas na cultura obstétrica brasileira, sustentada por uma visão biologicista e interventiva, que reduz o corpo feminino a um objeto de manipulação médica e ignora sua autonomia reprodutiva (SENS; STAMM, 2019).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece que comportamentos como desrespeito, abuso, coerção, humilhações verbais, procedimentos dolorosos ou invasivos sem consentimento informado, restrição de acompanhante e cesáreas desnecessárias configuram formas de violência obstétrica que ferem a dignidade humana, produzem danos físicos, emocionais e sexuais e violam a integridade da paciente (OMS, 2014). No Brasil, tais práticas podem resultar em graves repercussões à saúde materno-infantil, incluindo traumas duradouros e risco aumentado de patologias associadas ao parto e ao puerpério (LEITE et al., 2024).
A Constituição Federal de 1988 garante expressamente o direito universal à saúde, assim como a proteção à dignidade da pessoa humana, à integridade física e psíquica e à igualdade, princípios que amparam, de forma ampla, os direitos das gestantes durante o parto (BRASIL, 1988). Contudo, apesar do arcabouço constitucional robusto, verifica-se uma distância alarmante entre a previsão normativa e sua concretização, resultando na ineficácia da aplicabilidade desses direitos no momento em que deveriam ser efetivamente resguardados (BRITO; OLIVEIRA; COSTA (2021).
Essa ineficácia jurídica deriva de múltiplos fatores estruturais, dentre os quais se destacam: a insuficiente fiscalização da assistência obstétrica, a carência de políticas efetivas de humanização, a falta de formação adequada de profissionais de saúde, a ausência de legislação federal específica sobre violência obstétrica e a
limitação do acesso à informação pelas gestantes (MARTINS et al., 2022). Quando direitos não são conhecidos, reivindicados ou respeitados, cria-se um ambiente de vulnerabilidade feminina, marcado pela submissão às decisões médicas, muitas vezes sem respaldo científico e sem consentimento (AGUIAR, 2010).
Outro elemento relevante é a desigualdade social, racial e econômica, que intensifica e direciona os impactos da violência obstétrica. Estudos apontam que mulheres negras, jovens, de baixa renda e usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS) sofrem maiores índices de desrespeito, abandono, negligência e maus-tratos quando comparadas às mulheres de camadas sociais mais privilegiadas, revelando uma articulação entre violência, gênero e racismo estrutural (ASSIS, 2022).
A prevalência dessas violências também é influenciada por uma cultura institucional que frequentemente silencia denúncias e legitima práticas autoritárias como se fossem protocolos de cuidado. Tais condutas reforçam o imaginário de que “o médico sempre sabe o que é melhor”, reduzindo a mulher a um papel passivo no parto e enfraquecendo sua autonomia decisória (MARQUES, 2023). Em muitos casos, procedimentos invasivos ou decisões clínicas são justificadas como indispensáveis, mesmo contrariando recomendações científicas baseadas em evidências (AGUIAR, 2010).
O debate sobre violência obstétrica ganhou maior repercussão após o fortalecimento do movimento de humanização do parto. Entretanto, essa mobilização enfrenta resistência institucional, exemplificada pela orientação do Ministério da Saúde, em 2019, para evitar o uso do termo “violência obstétrica”, decisão amplamente criticada por entidades da saúde e de direitos humanos por representar retrocesso no reconhecimento do problema (ASSIS, 2022).
Embora normas como a Lei nº 10.778/2003 determinem a notificação de violências contra a mulher e políticas públicas como a Rede Cegonha se proponham a garantir assistência adequada, a realidade demonstra que tais instrumentos não asseguram proteção plena. Isso ocorre em razão da inexistência de regulamentação específica, da ausência de monitoramento constante e da dificuldade de responsabilização dos profissionais envolvidos (LEITE et al., 2024). Tal fragilidade normativa contribui para que práticas abusivas continuem sendo naturalizadas e pouco denunciadas (BRITO; OLIVEIRA; COSTA, 2021).
Diante desse cenário, torna-se fundamental analisar a efetividade dos direitos da gestante, possibilitando uma compreensão crítica acerca das razões pelas quais o ordenamento jurídico não tem sido capaz de garantir sua plena aplicabilidade na assistência obstétrica no Brasil.
O problema central deste estudo consiste em responder à seguinte questão: quais fatores contribuem para a ineficácia dos direitos da gestante na prevenção e combate à violência obstétrica no Brasil?
O objetivo geral é analisar a violência obstétrica sob o enfoque dos direitos fundamentais assegurados às gestantes, destacando os obstáculos que persistem em sua efetivação. Como objetivos específicos, busca-se:
a) conceituar e contextualizar a violência obstétrica e suas formas de manifestação;
b) apresentar o ordenamento jurídico que protege a gestante durante o parto;
c) identificar os fatores que tornam esses direitos ineficazes na prática;
d) apontar caminhos possíveis para a garantia de assistência humanizada.
A metodologia adotada fundamenta-se na pesquisa qualitativa, bibliográfica e documental, baseada no estudo de artigos científicos, legislações e documentos oficiais relacionados ao tema, buscando compreender a problemática por meio de análises crítico-teóricas que conectam assistência obstétrica e direitos fundamentais (MARQUES, 2023).
Justifica-se o presente estudo pela relevância social e jurídica da temática, considerando que o parto representa um momento singular na vida da mulher e deve ser vivenciado com segurança, respeito e autonomia. A persistência de práticas violentas demonstra que o Estado ainda falha em garantir direitos já consagrados, tornando urgente o fortalecimento de políticas públicas e a conscientização social para o enfrentamento do problema (SENS; STAMM, 2019).
Por fim, destaca-se que, para aprofundar a compreensão dos aspectos que envolvem a temática, o presente artigo desenvolve, na seção seguinte, a fundamentação teórica que analisa os principais conceitos, bases legais e discussões acadêmicas referentes à violência obstétrica, estabelecendo conexões entre a teoria jurídica e a realidade prática vivenciada pelas gestantes no Brasil.
Por fim, importa destacar que, para aprofundar a compreensão dos aspectos que envolvem a temática, o presente artigo desenvolve, na seção seguinte, uma fundamentação teórica que analisa os principais conceitos, bases legais e discussões acadêmicas referentes à violência obstétrica, estabelecendo conexões entre a teoria jurídica e a realidade prática vivenciada pelas gestantes no Brasil.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 Conceito e Caracterização da Violência Obstétrica
A violência obstétrica é reconhecida como uma forma de violência institucional e de gênero que afeta mulheres durante o ciclo gravídico-puerperal. Essa prática se manifesta quando profissionais e instituições de saúde se apropriam do corpo e dos processos reprodutivos da mulher, exercendo uma autoridade técnica e simbólica historicamente construída, que reduz a gestante à condição de objeto e viola direitos fundamentais, como a dignidade, a autonomia e a integridade física e emocional (ZANARDO et al., 2017).
As formas de manifestação incluem agressões verbais, infantilização da parturiente, omissão de analgesia, intervenções sem consentimento, práticas desatualizadas — como a manobra de Kristeller e a episiotomia de rotina — e a restrição do(a) acompanhante, direito garantido pela Lei nº 11.108/2005 (SENS; STAMM, 2019). Esses comportamentos refletem a persistência de um modelo obstétrico hierarquizado e medicalizado, no qual o saber da mulher é secundarizado e prevalece o controle institucional do parto (AGUIAR, 2010).
A Organização Mundial da Saúde alerta que tais práticas, sobretudo quando naturalizadas por profissionais e usuários do sistema, convertem o ambiente hospitalar em um espaço de risco emocional e físico, capaz de gerar danos imediatos e repercussões tardias à saúde física e mental da mãe e do recém-nascido (OMS, 2014; LEITE et al., 2024).
No Brasil, os índices identificados são expressivos. Uma revisão narrativa publicada em 2024 apontou que cerca de 33% das mulheres atendidas sofreram ao menos um ato de violência obstétrica, revelando que uma em cada três parturientes vivencia situações de desrespeito ou abuso no processo de parto (SANTOS et al., 2024). Em estudo desenvolvido pelo Instituto de Medicina Social da UERJ, verificou-se prevalência entre 18,3% e 44,3%, com variações regionais significativas (HENRIQUES, 2021). Esse cenário evidencia que fatores socioeconômicos, raciais, estruturais e geográficos influenciam diretamente a probabilidade de ocorrência da violência obstétrica, além de apontar desigualdades entre o atendimento público e o privado.
Ambas as pesquisas ressaltam ainda a alta subnotificação. Muitas mulheres não reconhecem que sofreram violência, justamente porque procedimentos abusivos são socialmente aceitos como práticas normais ou justificáveis “para o bem do bebê” (SANTOS et al., 2024; HENRIQUES, 2021). Assim, os índices disponíveis representam apenas uma parcela da realidade.
Os dados também demonstram que a violência obstétrica incide de maneira desproporcional sobre mulheres negras, jovens, de menor renda e escolaridade, evidenciando a interseção entre desigualdades estruturais, racismo institucional e práticas abusivas no contexto obstétrico (MARTINS et al., 2022). Esses marcadores sociais aumentam a vulnerabilidade da mulher e contribuem para um atendimento desumanizado, permeado por discriminações e negligências.
Além das consequências imediatas, a violência obstétrica ocasiona impactos emocionais de longo prazo, podendo resultar em traumas psicológicos, depressão pós-parto, ansiedade, estresse pós-traumático, medo de futuras gestações e dificuldades no estabelecimento do vínculo afetivo entre mãe e bebê (AGUIAR, 2010). Desse modo, não se limita ao momento do parto, afetando todo o percurso reprodutivo e familiar da mulher.
Portanto, a violência obstétrica caracteriza-se como um problema estrutural e multifacetado, que viola direitos humanos, reforça desigualdades de gênero e evidencia falhas sistêmicas na assistência obstétrica brasileira. A compreensão desse fenômeno exige a articulação entre saúde, direitos humanos e políticas públicas, a fim de promover práticas respeitosas e garantir autonomia, segurança e dignidade às gestantes (ZANARDO et al., 2017; SANTOS et al., 2024).
2.2 Aspectos Históricos da Medicalização do Parto no Brasil
Historicamente, o parto era um evento doméstico, comunitário e protagonizado pelas mulheres, sendo assistido majoritariamente por parteiras tradicionais que detinham conhecimentos empíricos, transmitidos de geração em geração. Esse saber, construído a partir da observação e da vivência cotidiana, valorizava o corpo feminino e os processos fisiológicos da gestação e do nascimento (MARTINS et al., 2022). Até meados do século XX, portanto, o parto ocorria em ambiente familiar, com acolhimento e protagonismo materno.
A partir da década de 1940, o Brasil iniciou um processo gradual, porém acelerado, de hospitalização do parto. Esse movimento foi justificado pelos avanços da medicina moderna, pelo controle de infecções e pela difusão de práticas cirúrgicas e farmacológicas que passaram a simbolizar progresso e modernidade (AGUIAR, 2010). O que antes era compreendido como um evento fisiológico passou a ser interpretado como procedimento de risco, demandando vigilância e controle institucional.
Esse processo ganhou força com a implementação de políticas sanitárias, como o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), criado em 1983, que, embora representasse avanço na saúde reprodutiva, reforçou a centralização do parto no ambiente hospitalar como estratégia de redução da mortalidade materna e infantil, contribuindo para o fortalecimento do modelo tecnocrático de assistência obstétrica no Brasil (BRITO; OLIVEIRA; COSTA, 2021). Com a Constituição Federal de 1988 e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), o Estado assumiu a responsabilidade pela assistência obstétrica universal, incentivando ainda mais a consolidação do modelo hospitalocêntrico (BRASIL, 1988).
A substituição do trabalho das parteiras tradicionais pelo atendimento médico especializado também foi reforçada por normas profissionais e curriculares que priorizaram o conhecimento tecnocientífico da obstetrícia. Como consequência, o saber feminino e comunitário foi marginalizado, contribuindo para a desvalorização das parteiras e para a centralização da autoridade médica no processo de nascimento (ASSIS, 2022). Nesse cenário, a mulher passou a ocupar papel secundário em seu próprio parto, enquanto o médico obstetra se consolidou como figura central (SENS; STAMM, 2019).
A partir da década de 1990, observou-se um aumento expressivo das cesarianas, impulsionado por fatores como conveniência médica, interesses econômicos, rotinas institucionais e crenças equivocadas sobre a segurança desse procedimento. O Brasil tornou-se um dos países com maiores taxas de cesarianas no mundo, muitas vezes realizadas sem indicação clínica, o que evidencia a consolidação de um modelo altamente intervencionista e distante das bases fisiológicas do parto (LEITE et al., 2024).
Somente em 2011, com a criação da Rede Cegonha, políticas públicas passaram a enfatizar novamente o protagonismo da mulher. Essa iniciativa buscou promover práticas humanizadas, incentivo ao parto normal, presença do(a) acompanhante e respeito ao plano de parto, propondo uma ruptura com o paradigma hospitalocêntrico (MARTINS et al., 2022). No entanto, sua implementação enfrenta resistência, especialmente em instituições que mantêm estruturas hierarquizadas e forte influência da cultura biomédica.
Compreende-se, assim, que a violência obstétrica é resultado de um processo histórico que transformou o nascimento em evento médico-hospitalar, reduzindo a autonomia da mulher e naturalizando intervenções desnecessárias. Conhecer esse percurso permite identificar as bases estruturais que sustentam a persistência de práticas abusivas e a ineficácia da proteção jurídica das gestantes no Brasil (ZANARDO et al., 2017).
2.3 Formas de Manifestação da Violência Obstétrica
A violência obstétrica manifesta-se de formas diversas e frequentemente simultâneas, o que dificulta seu reconhecimento imediato. Embora possa ser classificada em categorias teóricas distintas, sua ocorrência prática revela um conjunto de práticas que retiram da mulher sua autonomia e sua capacidade de participar das decisões sobre o próprio corpo durante o parto (SENS; STAMM, 2019).
De acordo com a Cartilha de Violência Obstétrica (Ministério Público, 2021), tais manifestações incluem desde agressões verbais — como insultos, humilhações, repressões e constrangimentos — até intervenções médicas desnecessárias ou realizadas sem explicação e consentimento. Assim, a violência obstétrica ultrapassa os limites do abuso físico e abrange aspectos psicológicos, sexuais e institucionais, configurando uma violação grave dos direitos humanos das mulheres.
A violência física ocorre quando são empregados procedimentos invasivos sem necessidade clínica ou sem o devido consentimento, como a pressão exagerada sobre o abdômen, a imobilização da gestante, toques dolorosos e episiotomias não justificadas. Tais práticas, muitas vezes justificadas como medidas para agilizar o parto ou facilitar o trabalho da equipe, evidenciam uma lógica institucional centrada na burocracia e no controle médico, e não no bem-estar da parturiente (ZANARDO et al., 2017).
A violência psicológica, por sua vez, está presente nas situações em que a gestante é submetida a desqualificação, medo ou coerção. Frases ofensivas, julgamentos, ameaças e a deslegitimação da dor reforçam relações de poder em que a palavra da mulher é silenciada. Essa forma de violência possui efeitos profundos e duradouros, podendo gerar traumas emocionais, depressão pós-parto e distúrbios de ansiedade (AGUIAR, 2010).
A violência sexual, embora menos denunciada, é igualmente grave. Ela ocorre quando há toques vaginais repetitivos sem justificativa, procedimentos realizados sem permissão ou exposição da intimidade da gestante de maneira inadequada. São práticas que ferem diretamente a dignidade da mulher e são frequentemente encobertas pelo discurso da necessidade técnica (LEITE et al., 2024).
A violência institucional decorre das estruturas e rotinas dos serviços de saúde. Ela se manifesta por longas esperas, falta de analgesia quando clinicamente indicada, recusa de atendimento, demora em procedimentos essenciais e ausência de acompanhante, embora este seja um direito garantido por lei desde 2005. Nesses casos, o próprio sistema de saúde atua como agente de violência, restringindo o acesso da gestante a um parto humanizado (MARTINS et al., 2022).
Essas manifestações podem ocorrer tanto de forma direta, quando há ação explícita de força, omissão ou abuso profissional, quanto de maneira indireta, quando a violência é praticada por meio da negligência, da falta de informação adequada ou de condições estruturais precárias. Ambas as formas configuram violações profundas, pois comprometem o direito da gestante de participar das decisões e vivenciar um parto seguro, digno e respeitoso (OMS, 2014).
| CATEGORIA TIPO EXEMPLOS COMUNS |
| Física | Direta | Episiotomia sem consentimento; Manobra de Kristeller; Realização de cesariana sem indicação clínica. |
| Física | Indireta | Negligência no manejo da dor; Falta de suporte em complicações; Ausência de boas práticas clínicas. |
| Psicológica | Direta | Gritos; Humilhações; Ameaças. |
| Psicológica | Indireta | Desinformação deliberada; Manipulação de riscos; Desconsideração do plano de parto. |
| Sexual | Direta | Toques sem permissão ou por excesso de profissionais; Comentários constrangedores sobre o corpo da parturiente. |
| Sexual | Indireta | Exposição desnecessária da intimidade; Ausência de proteção à privacidade. |
| Institucional | Direta | Negar acompanhante; Desrespeitar protocolos humanizados previstos em norma. |
| Institucional | Indireta | Falta de estrutura; Superlotação; Filas que comprometem o atendimento. |
Essas formas de violência são sustentadas por elementos históricos, culturais e estruturais presentes no modelo biomédico. A cultura patriarcal e a hierarquização das relações profissionais na obstetrícia contribuem para naturalizar o controle institucional sobre o corpo feminino. Nesse contexto, a mulher deixa de ser sujeito do processo reprodutivo e torna-se paciente passiva, abrindo espaço para abusos revestidos de normas, rotinas ou protocolos (COELHO; ANDRADE; ALMEIDA, 2020).
Dessa maneira, a violência obstétrica não pode ser compreendida como ato isolado de um profissional, mas como expressão de um problema sistêmico, marcado pela formação tecnicista, pela insuficiência de políticas públicas, pela falta de conhecimento dos direitos das gestantes e pela ausência de responsabilização efetiva (MARTINS et al., 2022).
2.4 Direitos da Gestante no Ordenamento Jurídico Brasileiro
O ordenamento jurídico brasileiro assegura proteção ampla à gestante durante o ciclo gravídico-puerperal, fundamentada em dispositivos constitucionais e infraconstitucionais que visam garantir atendimento seguro, digno e humanizado. A Constituição Federal de 1988 estabelece a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III) e assegura a inviolabilidade da integridade física e psíquica, o direito à igualdade de gênero e o direito universal à saúde (art. 6º e art. 196). Esses pilares formam o principal fundamento para a proteção jurídica das mulheres na assistência obstétrica (BRASIL, 1988).
A legislação brasileira também prevê que toda gestante tem direito ao respeito, à autonomia sobre seu corpo e à tomada de decisões informadas acerca do parto e do nascimento. Isso inclui acesso a informações claras e compreensíveis, participação ativa no processo decisório, consentimento livre e esclarecido para qualquer procedimento e possibilidade de recusar intervenções consideradas desnecessárias (CARTILHA DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA, 2021). A ausência de consentimento informado constitui violação ética e jurídica, atentando contra princípios fundamentais da bioética e da medicina baseada em evidências (ZANARDO et al., 2017).
O direito à saúde, previsto no art. 196 da Constituição, impõe ao Estado o dever de criar políticas que reduzam riscos, danos e agravos à saúde, garantindo acesso universal e igualitário aos serviços de saúde. Nesse contexto, a violência obstétrica se apresenta como clara afronta aos princípios da legalidade, da dignidade humana e da proteção integral, uma vez que subverte a finalidade constitucional da assistência materna (BRASIL, 1988).
O Sistema Único de Saúde (SUS), instituído em 1990, organiza a assistência obstétrica a partir das diretrizes de integralidade, equidade e humanização. Políticas prévias e posteriores, como o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), criado em 1983, e a Rede Cegonha, instituída em 2011, buscaram aprimorar o cuidado materno-infantil, fortalecendo direitos relacionados ao acolhimento humanizado, ao protagonismo da mulher, ao direito ao acompanhante e ao incentivo ao parto normal (MARTINS et al., 2022).
Entre os direitos específicos da gestante, destaca-se a Lei nº 11.108/2005, que garante a presença de um acompanhante de escolha da parturiente durante o trabalho de parto, o parto e o pós-parto imediato. A violação desse direito caracteriza forma de violência institucional e contraria recomendações internacionais sobre o cuidado centrado na mulher (LEITE et al., 2024).
A Lei nº 10.778/2003, por sua vez, tornou compulsória a notificação dos casos de violência contra a mulher atendidos em serviços de saúde, públicos ou privados. Embora não mencione diretamente a violência obstétrica, sua abrangência inclui abusos praticados durante a assistência ao parto, reforçando a necessidade de vigilância e responsabilização (AGUIAR, 2010).
No campo dos direitos reprodutivos e da autonomia corporal, o consentimento livre e esclarecido constitui elemento essencial. Todas as intervenções devem ser explicadas e autorizadas pela gestante de forma voluntária, consciente e informada. A manipulação de informações, a omissão deliberada ou a realização de procedimentos sem autorização configuram grave violação dos direitos fundamentais da mulher e dos protocolos ético-legais vigentes (ZANARDO et al., 2017).
Assim, embora o Brasil disponha de um robusto arcabouço normativo destinado a garantir a integridade, a autonomia e o bem-estar da gestante, tais garantias ainda não se traduzem plenamente na prática. A persistência de condutas abusivas, associada à fragilidade dos mecanismos de fiscalização, à insuficiência de políticas públicas eficazes e à limitada responsabilização institucional, revela a distância entre a previsão normativa e a realidade da assistência obstétrica.
Portanto, a análise da legislação aplicável ao parto e aos direitos da gestante evidencia a existência de um conjunto sólido de normas protetivas. No entanto, a permanência da violência obstétrica demonstra a necessidade de compreender como a discrepância entre o texto legal e a prática cotidiana compromete a efetividade desses direitos, questão aprofundada na seção seguinte deste estudo (BRASIL, 1988; BRITO; OLIVEIRA; COSTA, 2021).
2.5 Ineficiência da Aplicabilidade dos Direitos Garantidos
Embora o ordenamento jurídico brasileiro assegure um conjunto robusto de direitos às gestantes durante o ciclo gravídico-puerperal, a efetivação dessas garantias ainda é limitada na prática. A distância entre o que está previsto nas normas e o que se concretiza nos serviços de saúde revela falhas estruturais que contribuem para a persistência da violência obstétrica no país (BRITO; OLIVEIRA; COSTA, 2021).
Um dos principais obstáculos à efetividade desses direitos é o desconhecimento das mulheres acerca das garantias legais que lhes assistem. Muitas gestantes ignoram direitos como a presença do acompanhante, o consentimento livre e esclarecido, o acesso a informações adequadas e o direito ao parto humanizado. Esse cenário reduz a capacidade de reivindicação e amplia a vulnerabilidade frente a violações (SANTOS et al., 2024). A falta de campanhas educativas e de políticas de promoção da saúde reforça essa desinformação, sobretudo entre mulheres em situação de maior desigualdade social (MARTINS et al., 2022).
Outro fator determinante é a fragilidade dos mecanismos de fiscalização e responsabilização dos casos de violência obstétrica. A burocratização das denúncias, a baixa efetividade das ouvidorias, a falta de preparo institucional e a morosidade judicial contribuem para um contexto de impunidade (AGUIAR, 2010). Mesmo quando reconhecem a violência sofrida, muitas mulheres encontram barreiras para denunciar ou temem represálias, o que dificulta o enfrentamento do problema.
A naturalização de práticas abusivas e desatualizadas nas maternidades também compromete a aplicabilidade dos direitos. Procedimentos sem respaldo científico continuam sendo tratados como rotinas hospitalares e justificados por uma suposta necessidade técnica. A autoridade médica permanece, em diversos contextos, como elemento incontestável, o que limita a autonomia da gestante e perpetua um modelo assistencial hierarquizado (ZANARDO et al., 2017).
Além disso, a ineficácia na proteção dos direitos das mulheres está profundamente relacionada a desigualdades sociais, raciais e econômicas. Mulheres negras, jovens, pobres e usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS) são as que mais enfrentam negligência, maus-tratos e intervenções não consentidas, demonstrando que a violação dos direitos reprodutivos possui caráter seletivo e reproduz desigualdades históricas (HENRIQUES, 2021). Assim, embora o direito à saúde seja universal em lei, sua materialização é desigual na prática.
A subnotificação dos casos é outro elemento que dificulta o enfrentamento institucional. Muitas violências não são registradas, seja pela dificuldade de reconhecimento da gestante, seja por medo, vergonha ou falta de acolhimento para a denúncia. Dessa forma, os dados oficiais representam apenas uma fração da realidade, o que compromete o planejamento de políticas públicas eficazes (SANTOS et al., 2024).
Por fim, a resistência institucional à implantação de práticas humanizadas evidencia o choque entre a legislação vigente e o modelo biomédico dominante.
Apesar das diretrizes nacionais que enfatizam o respeito, a autonomia e o protagonismo da mulher, muitos hospitais ainda reproduzem rotinas intervencionistas, hierarquizadas e pouco sensíveis às recomendações legais e científicas (LEITE et al., 2024).
Dessa forma, a ineficiência na proteção dos direitos da gestante decorre de um conjunto de falhas sistêmicas e multidimensionais que envolvem aspectos legais, culturais, institucionais e sociais. Compreender esses entraves é fundamental para que o país avance no enfrentamento da violência obstétrica e na consolidação de uma assistência que respeite a integridade, a autonomia e a dignidade das mulheres (BRITO; OLIVEIRA; COSTA, 2021).
3. METODOLOGIA
O presente estudo caracteriza-se como uma pesquisa qualitativa, de caráter bibliográfico e documental, desenvolvida a partir da análise de produções acadêmicas, legislações e documentos institucionais relacionados à violência obstétrica no Brasil. Essa escolha metodológica justifica-se pela necessidade de compreender a temática sob uma perspectiva crítico-teórica, identificando as bases legais que garantem os direitos das gestantes e os obstáculos enfrentados para a efetivação dessas garantias na assistência obstétrica (AGUIAR, 2010).
A abordagem qualitativa foi adotada por possibilitar uma análise aprofundada das implicações sociais, culturais, institucionais e jurídicas da violência obstétrica, permitindo interpretar os significados das condutas profissionais e das práticas assistenciais que resultam em violações dos direitos fundamentais da gestante (BRITO; OLIVEIRA; COSTA, 2021). A ênfase recai sobre a compreensão interpretativa do fenômeno, com foco na relação entre os dispositivos legais que protegem a mulher e sua efetividade prática no contexto obstétrico brasileiro.
A pesquisa bibliográfica incluiu artigos científicos, livros, teses, dissertações e publicações de organismos oficiais, selecionados com base em critérios de atualidade, relevância temática, qualidade teórica e credibilidade acadêmica. Para garantir rigor metodológico, as buscas foram realizadas em bases consolidadas como SciELO, Google Acadêmico, PubMed e repositórios institucionais. Foram utilizados filtros de idioma (português, inglês e espanhol), disponibilidade de acesso aberto e recorte temporal compreendido entre 2014 e 2024, período que contempla as diretrizes
internacionais da Organização Mundial da Saúde para um parto respeitoso e debates contemporâneos sobre violência obstétrica no Brasil. Obras anteriores a esse período foram incluídas apenas quando indispensáveis para contextualizar conceitos históricos ou estruturais (SANTOS et al., 2024).
As buscas foram realizadas por meio de palavras-chave isoladas e combinadas, com os seguintes termos: “violência obstétrica”, “direitos da gestante”, “parto humanizado”, “violência institucional”, “assistência obstétrica”, “autonomia da gestante” e “direitos fundamentais da mulher”. Esse procedimento permitiu identificar estudos convergentes e divergentes, ampliando a consistência da revisão teórica.
A pesquisa documental envolveu a análise da legislação brasileira aplicável à saúde da gestante, com destaque para a Constituição Federal de 1988, a Lei n. 10.778/2003, a Lei n. 14.737/2023, além de políticas públicas como o Sistema Único de Saúde (SUS), a Rede Cegonha e diretrizes da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde, relacionadas ao atendimento obstétrico e aos direitos reprodutivos. Tal investigação permitiu compreender a evolução normativa e os desafios para a efetivação das garantias previstas (BRASIL, 1988).
Foram incluidos no estudo:
a) artigo publicados em períodos científicos;
b) documentos técnicos, cartilhas e relatórios oficiais;
c) legislações, normas, portarias e diretrizes;
d) livros e capítulos relevantes ao tema.
O processo metodológico desenvolveu-se por meio de leitura exploratória, seguida de leitura analítica e posterior sistematização das informações, possibilitando a comparação entre o conteúdo teórico e a realidade prática vivenciada pelas mulheres na assistência obstétrica. A triangulação das fontes bibliográficas e documentais reforçou a robustez da análise e contribuiu para a compreensão dos fatores que explicam a ineficácia da aplicabilidade dos direitos da gestante na prevenção e no enfrentamento da violência obstétrica (LEITE et al., 2024).
4. RESULTADOS E DISCUSSÕES
A análise dos documentos, legislações e produções científicas permitiu identificar que o problema central deste estudo — a ineficácia da aplicabilidade dos direitos da gestante na prevenção da violência obstétrica — decorre de uma combinação de fatores estruturais, culturais e institucionais que se repetem em diferentes pesquisas e cartilhas consultadas (CARTILHA DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA, 2021). A distância entre os direitos previstos na legislação e sua efetivação prática constitui o eixo que articula os achados aqui apresentados.
Os resultados teóricos indicam que a violência obstétrica não surge apenas da conduta isolada de profissionais, mas é sustentada por um modelo assistencial historicamente marcado pela medicalização e pelo controle institucional do corpo da mulher. Mesmo diante das recomendações da Organização Mundial da Saúde, que defendem práticas baseadas em evidências e respeito à autonomia da gestante, procedimentos coercitivos e não recomendados continuam sendo aplicados, como a manobra de Kristeller e episiotomias de rotina. Essa persistência de práticas desumanizadas demonstra a fragilidade da fiscalização e revela que a cultura institucional permanece dissociada das normativas de humanização.
A partir da análise jurídica, constatou-se que as violações cometidas durante o parto contrariam diretamente princípios constitucionais, especialmente o da dignidade da pessoa humana, o direito à saúde e o direito à informação. Todavia, a ausência de uma legislação federal específica sobre violência obstétrica e a limitação dos mecanismos de responsabilização dificultam a concretização dessas garantias. Lei importantes, como a nº 11.108/2005 (direito ao acompanhante) e a nº 10.778/2003 (notificação compulsória), mostram baixo grau de efetividade no cotidiano das maternidades, reforçando o problema central da pesquisa: a desconexão entre norma e prática.
Outro achado relevante é a naturalização das práticas abusivas. Grande parte dos estudos analisados demonstra que procedimentos invasivos são apresentados como “necessários”, “rotineiros” ou “melhores para o bebê”, o que mascara sua natureza violenta e dificulta o reconhecimento da violação pela própria gestante. Essa naturalização reforça relações de poder desiguais e sustenta a submissão da mulher às decisões médicas, elemento central para compreender por que os direitos não se efetivam no cotidiano da assistência obstétrica.
A análise dos materiais também evidenciou que os marcadores sociais — raça, classe, idade e tipo de serviço de saúde — influenciam diretamente a experiência da mulher no parto. Pesquisas mostram que mulheres negras, jovens, pobres e usuárias do SUS sofrem mais intervenções sem consentimento, negligência e maus-tratos. Esse padrão confirma que a ineficácia dos direitos não é aleatória, mas seletiva, refletindo desigualdades estruturais e revelando uma dimensão interseccional da violência obstétrica.
Quanto aos profissionais de saúde, os documentos indicam deficiência formativa significativa. Persistem currículos centrados em técnicas intervencionistas, com pouca ênfase em direitos humanos, comunicação e práticas humanizadas. Essa lacuna na formação repercute diretamente na manutenção do modelo autoritário e no distanciamento entre o que a legislação prevê e o que ocorre nos serviços de saúde.
Por fim, as análises mostram que, embora existam políticas públicas como o Programa de Humanização do Parto e a Rede Cegonha, sua implementação encontra obstáculos, sobretudo pela ausência de monitoramento contínuo e pela resistência institucional à mudança de paradigma. Isso contribui para que tais políticas não atinjam plenamente seu propósito, reforçando o problema identificado pelo estudo: a falta de efetividade das garantias legais.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa permitiu aprofundar a compreensão sobre a persistência da violência obstétrica no Brasil e demonstrou que a principal dificuldade enfrentada pelas gestantes não reside na ausência de direitos, mas sim na ineficácia de sua aplicabilidade no contexto assistencial. O objetivo geral — analisar a violência obstétrica à luz dos direitos fundamentais da gestante — foi alcançado, uma vez que a investigação evidenciou a distância significativa entre a garantia normativa e a realidade vivida por milhares de mulheres durante o parto.
Os objetivos específicos também foram plenamente atendidos. A conceituação e contextualização da violência obstétrica permitiram reconhecer que se trata de uma prática multifacetada e estrutural, que ultrapassa a ação individual de profissionais e se manifesta por meio de abusos físicos, psicológicos, sexuais e institucionais. A análise dos direitos assegurados à gestante revelou que o Brasil dispõe de um arcabouço normativo sólido, ancorado na Constituição Federal e em legislações específicas, destinado a garantir autonomia, dignidade, informação e segurança no ciclo gravídico-puerperal. No entanto, a pesquisa demonstrou que tais garantias são sistematicamente enfraquecidas por fatores culturais, institucionais, sociais e estruturais, o que compromete a eficácia dos direitos fundamentais e expõe a fragilidade do sistema de proteção das mulheres.
Os principais achados confirmam que a violência obstétrica permanece enraizada em uma cultura biomédica hierarquizada, sustentada pela naturalização de práticas abusivas, pela perpetuação de estereótipos de gênero e pela desinformação das gestantes sobre seus próprios direitos. A literatura analisada evidencia ainda que o fenômeno está profundamente atravessado por marcadores sociais de desigualdade: mulheres negras, pobres e usuárias do SUS enfrentam maiores índices de desrespeito, negligência e maus-tratos, revelando que a violação dos direitos reprodutivos no Brasil possui caráter seletivo e discriminatório.
A relevância social e jurídica do tema torna-se evidente diante dos impactos físicos, emocionais e morais que a violência obstétrica produz. Ao violar direitos constitucionais como dignidade, integridade física e autonomia, essas práticas ferem princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito e colocam em risco tanto a saúde materna quanto o bem-estar familiar. Assim, o estudo reforça que a proteção da gestante não é apenas uma diretriz ética, mas uma obrigação estatal que demanda políticas públicas efetivas, mecanismos de responsabilização e ações educativas contínuas.
Neste sentido, este trabalho indica caminhos indispensáveis para o enfrentamento do problema. Entre eles, destacam-se: a ampliação da educação em direitos reprodutivos para gestantes; a capacitação permanente dos profissionais de saúde com foco em humanização, ética e comunicação; o fortalecimento dos protocolos institucionais baseados em evidências científicas; o estímulo ao uso do plano de parto; a ampliação da fiscalização sobre maternidades; e a criação de instrumentos normativos mais robustos de responsabilização. Tais ações não apenas reduzem a incidência de práticas abusivas como também favorecem a construção de um modelo assistencial mais democrático, respeitoso e centrado na mulher.
Por fim, recomenda-se que pesquisas futuras explorem, de maneira mais aprofundada, a atuação do Poder Judiciário nos casos de violência obstétrica, investiguem os impactos psicológicos de longo prazo sobre as vítimas e analisem a implementação de políticas públicas de humanização em maternidades brasileiras. Estudos de campo que observem práticas assistenciais in loco também podem ampliar a compreensão sobre a efetividade dos direitos da gestante e oferecer subsídios para intervenções mais precisas.
Em síntese, conclui-se que garantir a efetividade dos direitos da gestante exige não apenas a existência de leis, mas a transformação das estruturas culturais, institucionais e profissionais que moldam a assistência obstétrica. Somente assim será possível assegurar que as mulheres vivenciem o parto de forma segura, digna, humanizada e em plena conformidade com os princípios constitucionais que regem os direitos humanos das mulheres no Brasil.
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1Bacharelado em Direito, Faculdade Carajás, vanessaleal525@gmail.com;
2Mestranda pelo Programa de Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia (PDTSA), Especializada em Direitos Humanos, ambos pela UNIFESSPA; professora de Direito Processual Civil na Faculdade dos Carajás em Marabá -PA; advogada trabalhista e previdenciária. https://lattes.cnpq.br/7046710688351516; https://orcid.org/0009-0006-5711-3200; e-mail: etenar.silva@carajasedu.com.br
