DIREITO COMO VALOR – POR UMA NOVA CONCEPÇÃO DA VALIDADE JURÍDICA

RIGHT AS VALUE – FOR A NEW CONCEPTION OF LEGAL VALIDITY

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202511122030


Daniel Roffé de Vasconcelos1


Resumo: Pretende-se aqui um estudo do direito, não como realidade, fato social, compreensível de forma objetiva através de métodos científicos, mas como valor, como instrumento de realização da finalidade que para nós o direito se destina. As ideias aqui expostas, embora sejam relativas e subjetivas, pretendem expressar uma racionalidade prática e universalizável. Afinal, para que nos serviria o direito, se não fosse para nos trazer benefícios, segurança jurídica e justiça? A nossa prática jurídica nos revela um excesso de decisões individualistas e utilitárias. É preciso agir juridicamente de modo mais racional, sem viés autoritário, com respeito a toda uma hermenêutica construída culturalmente, ao discurso dialético e nosso sentimento de justiça que procure atender a todos os interesses legítimos.

Abstract: What is intended here is a study of law, not as a reality, a social fact, understandable objectively through scientific methods, but as a value, as an instrument for achieving the purpose that law is intended for us. The ideas presented here, although they are relative and subjective, intend to express a practical and universalizable rationality. After all, what use would the law serve us if it were not to bring us benefits, legal certeinty and justice? Our legal practice reveals an excess of individualistics and utilitarian decisions. It is necessary to act legally in a more rational way, without authoritarian bias, with respect to a whole culturally constructed hermeneutic, to the dialectical discourse and our sense of justice that seeks to meet all legitimate interests.

Palavras-chave:   Direito como valor. Hermenêutica jurídica. André Comte-Sponville.  Justiça.

Keywords: Right as value. Legal hermeneutics. André Comte-Sponville. Justice

INTRODUÇÃO

Em artigos anteriores2 procurei combater nossas ideias ilusórias de uma ordem jurídica harmônica, coerente e completa, descrevendo o direito como fato, de forma objetiva, visando adotar critérios científicos para tanto. Concluí, então, que o direito é um conjunto de normas (regras, princípios, decisões), seja qual for seu conteúdo e extensão, emitidas pelas autoridades de determinado Estado, em sua atuação como órgão público.

Por outro lado, expus que o reconhecimento de um fenômeno como jurídico (direito), nada diz quanto ao seu valor, à sua justiça. Não é toda norma jurídica, comando emitido por uma autoridade estatal, que é justa e atenda aos interesses da sociedade.

Mas se o direito não é necessariamente justo, para que vale? Esta é aqui a questão fundamental para a filosofia do direito, cujo objeto de estudo não é definir o direito como realidade, fenômeno, estudado e melhor compreendido pela ciência, na medida em que pode ser submetido a testes de refutabilidade, mas sustentar ideias e caminhos para que as soluções jurídicas nos sejam benéficas, tenham-nos valor, e sejam aceitáveis por todos, por levar em consideração interesses universalizáveis.

Neste artigo procuro, então, sustentar posições e critérios que permitam decisões judiciais que possam ser universalmente aceitas, não por serem científicas ou objetivamente válidas, mas por tentar contemplar os desejos e interesses legítimos de todos, por suas consequências que reputo benéficas à nossa vida em sociedade.

A validade do direito não deve ser entendida de forma ilusória e reducionista, como uma estrutura lógico-formal decorrente de uma adequação ou conformidade de uma norma com a outra de hierarquia superior, até chegarmos a uma última fundamental.

Essa validade tem que ser pensada em sua inarredável realidade subjetiva e relativa, e de forma ampla, para que resulte de ideias e critérios que nos possam assegurar uma solução jurídica com consequências vantajosas, que atenda aos interesses universalizáveis, seja legítima, e nos proporcione igualdade de direitos.

Neste artigo exporei critérios que reputo relevantes, para que o direito nos tenha valor, e não seja mero ato arbitrário de uma autoridade estatal.

Começo tratando sobre o valor sob o aspecto filosófico. Depois abordo a compreensão do sentido e finalidade do direito, que justamente vai representar o valor que nos proporciona, considerando suas consequências práticas. Proponho em seguida uma racionalidade prática com efetivo respeito à dialética e imparcialidade. Também defendo uma interpretação menos autoritária, nas hipóteses de conflito entre valores, com base numa hierarquia relativa das diversas ordens, considerando o pensamento do filósofo francês André Comte-Sponville. Aqui ainda sustento uma ideia de justiça como ato em conformidade com a lei (sentido formal) e como igualdade de direitos (sentido material), combatendo as suas concepções utilitarista e liberal, apegadas a uma posição individualista; a justiça exige uma visão mais racional e universalizável. Por fim, trato dos juízos decisórios que ocorrem na prática jurídica (juízos de fato e de direito), e como devem se dar, atendendo aos princípios da dialeticidade, imparcialidade, separação dos poderes e segurança jurídica.

1. SOBRE O VALOR

Muito se discute a respeito do fundamento ou o que nos leva a um juízo de valor; o que nos faz valorar um objeto.

Para a concepção objetivista do valor, desejamos algo ou o consideramos bom pelo valor que ele possui. É a idealização do que se valoriza. Mas se o valor “intrínseco” de um objeto é imposto a todos, objetivamente, o que dizer daquele que não o valoriza, diferentemente de outros? Assim o faria por erro ou ignorância?

A nossa experiência mostra a incompatibilidade da ideia de valores absolutos. Afinal, quantos gostos e prazeres diferentes! E não decorre daí, necessariamente, nenhum erro ou ignorância, mas relações peculiares que cada um de nós temos com os objetos a nosso dispor e com os outros.

Daí porque filio-me à concepção subjetivista do valor, destacando como razão para tanto célebre passagem de Espinosa3:

“(…) É, portanto, evidente em virtude de todas essas coisas, que nos não esforçamos por fazer uma coisa que não queremos, não apetecemos nem desejamos qualquer coisa porque a consideramos boa; mas, ao contrário, julgamos que uma coisa é boa porque tendemos para ela, porque a queremos, a apetecemos e desejamos.”

É o desejo que temos por algo, portanto, que nos faz julgá-lo bom; da mesma forma que por não desejarmos um objeto os julgamos mal, ruim ou mesmo irrelevante.

Todo valor, assim, é relativo ao desejo que temos pelo objeto valorado.

Adeptos à teoria objetivista dos valores criticam essa concepção subjetivista, por entender que certos valores deveriam ser impostos ou valer a todos, como os de atributos morais. Quem poderia não valorizar ou considerar boa a justiça? E quem poderia considerar bom o genocídio?

Ora, o fato de haver valores que pretendamos universalizáveis (justiça, liberdade, fraternidade, amor ao próximo), de forma alguma transforma-os em absolutos, necessariamente válidos por todos. Se a justiça fosse valor absoluto, e não relativo, não haveria injustiça. Se o genocídio fosse um mal em si mesmo, ele não ocorreria, ou somente seria cometido por ignorância, sem intenção, o que quase sempre não é verdade.

Agir e valorar conforme nossa ideia de moral somente é possível se assim desejamos. É falso o argumento de que nem sempre devemos agir por mero desejo, mas também por alguma concepção moral, algum valor objetivo e universal. É desconsiderar a complexidade e multiplicidade de nossos desejos que muitas vezes levam em conta as consequências de nossas ações. Podemos agir por impulso, por algum desejo inconsciente; podemos agir visando um prazer imediato, nossos gostos, e por amor; mas também podemos agir movidos por desejo de “racionalidade”, por uma moralidade culturalmente disseminada, típico das nossas relações em sociedade. Mas são escolhas (ou impulsos), atos de vontade que fazemos, todas elas decorrentes de nossos desejos. Podemos até ter desejos contraditórios, mas que terminam num ato de vontade, em uma escolha.

A utilidade também não funda qualquer valor absoluto. Diz-se que uma faca seria objetivamente boa se atendesse à sua utilidade de cortar com eficiência. Mas a utilidade só surge do desejo que a precede. Tanto é assim que uma faca quebrada e cega pode ser valorizada quando se deseja e consegue usá-la de uma outra maneira, como substituta de uma ferramenta, por exemplo.

A utilidade também não é garantia do valor econômico de uma mercadoria. Na atribuição do preço se leva em consideração o desejo do lucro e a sua aceitabilidade do mercado.  “Um objeto, mesmo aparentemente inútil”, lembra Comte-Sponville4, “pode ter um grande valor se fortemente desejado por muitos; é o caso de uma pedra preciosa ou de uma obra de arte (não é por serem úteis que são desejadas, é por serem desejadas que parecem úteis, e de fato são)”.

Mas a relatividade dos valores decorrentes de nossos desejos não nos impede de propagar uma moral ou valor que reputemos universalizável. É verdade que temos nossas individualidades, idiossincrasias; mas também somos compostos por corpos com estruturas semelhantes, sensibilidades semelhantes, relações semelhantes. Daí porque tantos desejos e valores compartilhados.

E quando se trata de relações sociais, onde o Direto está inserido, torna-se ainda mais imprescindível a propagação de ideias, valores e interpretações universalizáveis, como se defenderá neste artigo.

Reconhecer que os valores são relativos nos alerta contra toda espécie de autoritarismo, mas não nos impede, respeitadas as individualidades legítimas, de defender uma moral ou uma interpretação jurídica que atenda valores razoáveis, universalizáveis.

2. O SENTIDO DO DIREITO ESTÁ NO VALOR QUE NOS PROPORCIONA

O sentido, segundo Comte-Sponville5, possui três definições: “como sensibilidade (sentido do olfato), como direção (o sentido de um rio) e como significado (o sentido de uma frase)”.

O sentido como objeto da hermenêutica corresponde ao significado. O sentido de uma frase, comunicação, norma, é aquilo que ela pretende informar, esclarecer, comandar, realizar. Nunca está nos próprios significantes, nas palavras, nas frases, mas naquilo que elas enunciam no processo de comunicação. “Não há sentido que seja puramente intrínseco, adverte Comte-Sponville6, e continua: “querer dizer ou querer fazer é sempre querer outra coisa que não si”.

É por isso que o sentido é sempre relativo, sempre subjetivo, sempre trabalhado, construído. Ele não está na vida, nas coisas, mas na relação entre o significante (um gesto, uma frase) e o significado (o que se pretende dizer ou fazer). Mas somente pode haver significação para o ser que sente e pensa, e ninguém pode fazê-lo em nosso lugar.  O sentido não é dado, e sequer é para ser almejado. O que deve ser alcançado é aquilo que nos faz sentido, ou melhor, o conhecimento ou desejo que o significante (linguagem) nos remete.

Peço permissão para externar o seguinte ensinamento de Comte-Sponville7:

“(…) Todo sentido, por natureza é relativo: não é uma substância nem um ser, é uma relação. É sempre a lógica da alteridade: tudo o que fazemos, que tem sentido, só vale a serviço de outra coisa, que não tem. Não é o sentido que devemos perseguir; é o que se persegue que faz sentido.”

Qual seria, então, o sentido, para nós, do direito, da norma jurídica? Evidentemente que a finalidade ou valor que para nós ela propaga, sendo para evitar ou estimular condutas, ou nos proporcionar algum benefício econômico-social ou ético.

Para Paulo Nader8, estabelecer o sentido de uma norma jurídica seria “descobrir a sua finalidade”, “por a descoberto os valores consagrados pelo legislador, aquilo que teve por mira proteger”.

Mas o sentido é uma criação, uma arte; e até mesmo o conhecimento é um processo ativo, e não meramente passivo, do pensamento. Seria, então mais apropriado, falar de sentido do direito, não como mera descoberta do que pretendia o legislador, muitas vezes difícil de ser almejado, mas como processo subjetivo de compreensão da finalidade que na ordem político jurídica enxergamos. E é com essa compreensão, aliada às considerações do contexto, das circunstâncias fáticas envolvidas, que poderemos melhor construir soluções jurídicas pretendidas.

A ideia de que o objetivo do intérprete seria tão somente expor o sentido pretendido pelo legislador não parece ser mais razoavelmente aceita, embora muitos conservadores ainda tenham essa ilusão.

Como compreender a real vontade do legislador? Ora por mais bem feita que seja a pesquisa do valor semântico das palavras utilizadas no texto normativo ou de elementos históricos, o fato é que esse processo não passa de uma suposição distante de qualquer evidência científica. Há alguns motivos principais para tanto.

O legislador, como qualquer pessoa, não tem plena consciência de suas volições, desejos, que também são condicionadas de forma inconsciente pela nossa genética e ambiente em que vivemos. Nesse sentido expôs Carlos Maximiliano9:

24 – A lei não brota no cérebro do seu elaborador, completa, perfeita, como um ato de vontade independente, espontâneo. Em primeiro lugar, a própria vontade humana é condicionada, determinada; livre na aparência apenas. O indivíduo inclina-se, num ou noutro sentido, de acordo com o seu temperamento, produto do meio, da hereditariedade e da educação. Crê exprimir o que pensa; mas esse próprio pensamento é socializado, é condicionado pelas relações sociais e exprime uma comunidade de propósitos.

Ademais, a legislação, numa democracia, decorre da vontade, não de uma pessoa, mas de várias que compõem o Parlamento e o Poder Executivo. Portanto, a mesma lei pode ser votada e aprovada por mais de uma intenção pelos diversos sujeitos que contribuíram para a sua aprovação. Daí porque, também sob essa ótica, é insuficiente para a interpretação jurídica que se busque a vontade do legislador.

Mas tão pouco o sentido da norma está no mero texto normativo. Como expressão de uma finalidade, a norma nos remete a valores culturais que incorporamos. É ilusório acharmos que o sentido pode desconsiderar o sujeito que interpreta, pois a subjetividade lhe é inerente.

Mas embora só haja sentido ou valor para o sujeito, não há como negar que os incorporamos através de um processo de disseminação e desenvolvimento cultural. Sem cultura não poderíamos conviver socialmente, em colaboração, principalmente numa sociedade política e juridicamente organizada.

Daí porque o subjetivismo ou relativismo da interpretação, dos valores transmitidos e subtendidos, nunca foi empecilho ao processo de educação e desenvolvimento cultural; afinal, mesmo não havendo valores universais, nada impede que sejam ao menos universalizáveis, ou seja, que possam em tese ser aceitos por todos. Mas para que isso aconteça é importante que seja levado em consideração os interesses envolvidos, a liberdade, a dignidade, e respeito às diferenças.

Enfim, o sentido não está nem no Legislador nem no próprio texto normativo, mas nos valores que na norma vislumbramos, dentro de um processo cultural; e não de uma forma objetiva, dogmática, universal, mas subjetiva, em constante construção, embora com pretensão à universalização.      

Mas como podemos, então, construir o sentido da norma?

Como vimos, o sentido que conferimos ao direito, às normas jurídicas, está na finalidade prática que para nós almeja. Ao lermos um texto normativo, percebemos que nos remeterá a diversos questionamentos a respeito do que pretende em termos práticos; o que visa impedir ou promover.

E é somente com a compreensão dessa finalidade que poderemos definir o seu alcance, como, por exemplo, julgar se o texto deve ser interpretado de forma declarativa, restritiva ou extensiva. Afinal, o legislador quando legisla, assim o faz estabelecendo preceitos gerais, considerando circunstâncias que comumente ocorrem e demandam uma regulamentação. Contudo, é possível que outras circunstâncias, mesmo aliadas a fatos previstos em determinada norma, demandem a aplicação de outros preceitos, ou diversa solução jurídica, evitando uma consequência nociva, não desejada. Daí a necessidade de interpretações extensivas ou restritivas.

Nesse sentido, observamos os ensinamentos de Carlos Maximilian10:

“Ante a impossibilidade de prever todos os casos particulares, o legislador prefere pairar as alturas, fixar princípios, – estabelecer preceitos gerais, de largo alcance, embora precisos e claros. Deixa ao aplicador do Direito (juiz, autoridade administrativa, ou homem particular) a tarefa de enquadrar o fato humano em uma norma jurídica, para o que é indispensável compreendê-la bem, determinar-lhe o conteúdo. Ao passar do terreno das abstrações para o das realidades, pupulam os embaraços; por isso a necessidade da Interpretação é permanente, por mais bem formuladas que sejam as prescrições legais (2).”

 E é justamente por isso que a adoção de uma solução jurídica prevista numa norma deve considerar as circunstâncias fáticas envolvidas, e utilização de processo interpretativo que considere a finalidade da lei e as consequências práticas dessa aplicação.

Falaciosa é, portanto, a máxima in claris cessat interpretatio (quando a lei é clara, não é necessário interpretá-la).

Como vimos, inicialmente, todo sentido está fora ou além do significante (palavras, frases, textos normativos); ele está na relação com o significado que nos remete, ou seja, no que se quer dizer ou fazer; daí porque a interpretação da norma nunca está na suposta claridade do texto, em si mesmo.

Além disso, saber se um texto normativo é claro e deva ensejar uma interpretação declarativa, sem extensões ou restrições, é preciso justamente que antes seja interpretado. Assim defende Carlos Maximiliano11:

“44. Que é lei clara? É aquela cujo sentido é expresso pela letra do texto. Para saber se isto acontece, é força procurar conhecer o sentido, isto é, interpretar. A verificação da clareza, portanto, ao invés de dispensar a exegese, implica-a, pressupõe o uso preliminar da mesma (1). Para se concluir que não existe atrás de um texto claro uma intenção efetiva desnaturada por expressões impróprias, é necessário realizar prévio labor interpretativo (2).”

Adequado brocardo é o ensinado por Celso: Scire leges non hoc est, verba earurm tenere, sed vim ac potestatem – “saber as leis não é conhecer-lhes as palavras, porém a sua força e poder”, ou seja, o “sentido e o alcance respectivos”12.

Mas nenhum sentido, nenhuma finalidade do direito, da norma, é alcançada pela utilização de um raciocínio lógico-formal ou silogístico. Uma justificação interna, que “se refere à validação de uma inferência a partir de premissas dadas”13, no máximo pode nos ajudar a evitar conclusões incoerentes com os argumentos que as fundamentam. Contudo, de forma alguma, evita decisões inconsequentes e injustas.

Ademais, o estudo de como se dá um processo decisório pode até ser útil para a filosofia do direito, mas é insuficiente, pois ele somente vai refletir as posturas adotadas, não o seu valor. Se há decisões, interpretações que nos levam a resultados inconsequentes e injustos, como nos ater ao processo que o resultou? O que nos vale é justamente defender algum método que as evitem.

3. POR UMA HERMENÊUTICA QUE LEVE EM CONSIDERAÇÃO AS CONSEQUÊNCIAS PRÁTICAS DAS SOLUÇÕES JURÍDICAS – FINALIDADE DA NORMA

No processo interpretativo deve-se sempre evitar decisões que não levem em consideração as suas consequências práticas. Isso não quer dizer que se deva afastar uma norma jurídica, por se entender que uma posição pessoal poderia ser mais vantajosa para a sociedade; de forma alguma.

O fato é que as normas devem ser compreendidas como um meio de solução para algum problema social, nunca para ensejar uma consequência que seria desastrosa, considerando as circunstâncias fáticas envolvidas.

Por mais que uma norma possa não ser aquela que desejamos, não podemos deixar de reconhecer que ela tem a sua finalidade social, ou seja, visa impedir ou estimular alguma conduta considerada nociva ou benéfica.

A interpretação que nos tem valor, portanto, é aquela que consegue atender a finalidade que percebemos na norma, sem gerar uma consequência indesejada, levando em consideração todos os fatos envolvidos. Infelizmente não é incomum interpretações que geram esse tipo de consequência desconexa com a realidade, gerando efeitos nocivos, principalmente quando se adota uma postura monológica, consubstanciada abstratamente em princípios, como se possuíssem validade absoluta. 

A importância dessa concepção consequencialista sempre esteve presente em nossa cultura, tendo sido objeto de vários brocardos jurídicos, quais sejam:  “deve ser afastada a exegese que conduz ao vago, inexplicável, contraditório ou absurdo”14; “prefira-se a inteligência dos textos que torne viável o seu objetivo, ao invés da que os reduza à inutilidade” (commodissimum est, id accipi, quo res de que agitur, magis valeat quam pereat)15; e “ninguém está obrigado ao impossível” (ad impossibilita nemo tenetur)16.

É verdade que pode haver normas mal redigidas, que dificultam nossa interpretação. Contudo, como adverte Carlos Maximiliano17, ao invés de criticá-la, deve-se procurar “compreendê-la e nas suas palavras, confrontadas com outras do mesmo ou de diferente repertório, achar o Direito Positivo, lógico, aplicável à vida real”. Ou seja, a má redação de uma norma não deve impedir a sua razoável interpretação, que atenda aos fins sociais e ao bem comum (nesse sentido, confira-se o art. 5º da LINDB18).

Aqui vale também destacar a Lei 13.655, de 25/04/2018, que trouxe importantes inovações ao Decreto-Lei 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB), que visam de forma salutar direcionar a atuação interpretativa dos agentes públicos a fim de que decidam, não com base em meros valores jurídicos abstratos, mas também com a consideração de suas diversas consequências práticas, inclusive, na esfera judicial (artigos 20 a 22).

Embora tais considerações práticas pareçam expressar um direcionamento razoável, e até óbvio, há quem desaprove tais inovações.

Assim critica Paulo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho19:

“O que nos parece, porém, um evidente exagero é a exigência contida especialmente no art. 20, no sentido de que não se decidirá “com base em valores jurídicos abstratos” – afinal, o que seriam “valores jurídicos abstratos? Princípios? Cláusulas Gerais? Conceitos normativos? Postulados ou preceitos não densificados? – senão antevendo (todas) as consequências práticas.

Absurdo.

(…)

Imaginar que se devam antever, profeticamente, em uma decisão judicial ou administrativa todas as prognoses possíveis ou consequências derivadas do pronunciamento oficial é uma exigência surreal.

(…)

Ora, se o diploma alterado da LINDB pretendeu imprimir mais segurança jurídica às decisões, certamente não logrou êxito, tendo em vista a imprecisão dos seus próprios termos e conceitos, aliada a uma exigência estapafúrdia de antecipação genérica de efeitos futuros.

(…)

Vamos além.

Impedir, por exemplo, o magistrado de decidir com base em “valores jurídicos abstratos”, senão sob condicionamento de antever, genericamente, as consequências e os efeitos jurídicos do seu pronunciamento, coacta ou reduz a própria função jurisdicional, em evidente afronta à indispensável liberdade de convicção do julgador na perspectiva da garantia constitucional da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF).”

Com a devida vênia, a crítica acima exposta não parece razoável.

Primeiro, porque não é verdade que as normas contidas na LINDB exigem qualquer tipo de profecia ou futurologia, com o conhecimento de todas as consequências possíveis de suas decisões. O que se exige, evidentemente, nada mais é do que a consideração das consequências práticas de suas decisões, expostas pelos sujeitos processuais, ou por ele percebidas pelas circunstâncias do caso concreto. Absurdo e irracional é interpretar as alterações da LINDB como se exigissem o conhecimento e exposição de consequências imprevisíveis, não expostas no processo e não percebidas pelo magistrado.

E segundo, porque essas alterações da LINDB, em especial a que veda a fundamentação por mero valores jurídicos abstratos, é de fundamental importância para tentar impedir os abusos de nossos diversos órgãos estatais decisórios.

Valores jurídicos abstratos são aqueles expressos através de conceitos, princípios gerais ou específicos a algum ramo do direito e que devem ser considerados em uma generalidade de situações que demandem sua aplicação num processo decisório. Dado justamente seu caráter abstrato, é imprescindível, para que neles se fundamente, que haja a devida adequação através da medição das consequências da sua adoção ao caso concreto.

Observa-se que o art. 20 da LINDB não impede a fundamentação em “valores jurídicos abstratos”, conceitos ou princípios, mas que assim se faça necessariamente com a consideração das consequências práticas. Até porque, como aqui já foi dito, para que serviria o direito (princípios e regras), ou, então, que sentido teria, se não fosse para nos trazer uma utilidade prática, real?

A consideração das consequências práticas das decisões é um imperativo a meu que deveria ser indissociável a qualquer processo decisório.

A exigência não é aleatória e sem sentido. A fundamentação em meros princípios ou conceitos jurídicos abstratos é muto apropriada para a justificação de decisões arbitrárias, com baixo nível de legitimação. Isso é que não deve ser admitido, sob pretexto de garantir uma liberdade (ilimitada) de convicção do julgador, com pretenso fundamento no princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF).

Daí porque agiu bem o legislador ao promover as alterações dos artigos 20 a 22 da LINDB, através da Lei 13.655/2018.

4. POR UMA RACIONALIDADE JURÍDICA – RESPEITO À DIALÉTICA E IMPARCIALIDADE

No processo hermenêutico e decisório é sempre importante ter em mente a necessidade de se evitar o irracionalismo, gerando enorme insegurança jurídica e sentimento de injustiça.

O irracionalismo que critico aqui é aquele já combatido por Karl Popper20 e que, de forma consciente ou não, produz um ambiente propício a atos arbitrários, autoritários, parciais, que contribuem para a instabilidade e insegurança jurídica.

É verdade que a interpretação é sempre um ato individual e relativo, e na esfera político jurídica é através dela que procuramos compreender e fazer valer os interesses sociais e as finalidades que vislumbramos em nossa ordem jurídica. Mas essa relatividade e subjetividade não impedem que cada um de nós possa exercer um pensamento racional, como efetiva disposição à análise crítica das ideias (ato racional) e consideração do princípio da imparcialidade, que procure atender posições universalizáveis.

Aqui vale destacar Kant que já defendia uma racionalidade prática através de fórmulas de seu imperativo categórico, em especial a primeira e terceira21: 1ª) “Age de modo que a máxima de tua vontade possa valer sempre, ao mesmo tempo, como princípio de legislação universal”; e 3ª): “Age de modo que a vontade, com a sua máxima, possa ser considerada como universalmente legisladora em relação a si mesma”.

Raciocínio semelhante encontramos em John Rawls na sua idealização do “véu de ignorância”, onde defende que “devemos anular os efeitos das contingências específicas que colocam os homens em posições de disputas, tentando-os a explorar as circunstâncias naturais e sociais em seu próprio benefício”22. A ideia, então, seria procurar soluções políticas sem levar em consideração a nossa posição na sociedade, de forma que todos possam de alguma forma terem seus interesses legítimos atendidos.

É nessa ótica, de consideração dos interesses das partes antagônicas, de imparcialidade, que se torna indispensável o efetivo respeito à dialética, mas não como figura decorativa, tão somente formal, e que estaria assegurado com a mera oportunidade de manifestação, defesa e recurso num processo judicial, e, sim, como efetiva análise crítica judicial de todos os posicionamentos e opiniões opostas envolvidas.

A esse respeito, inclusive, é de elogiar o código de processo civil brasileiro em vigor, que em seu § 1º do artigo 489 considera não fundamentada e, portanto, nula qualquer decisão judicial que não enfrentar adequadamente todos os argumentos aduzidos, considerando efetivamente o caso concreto.

A dialética aqui defendida, como “a arte de raciocinar sobre opiniões opostas”23, contrapõe-se ao discurso monológico, fruto de um irracionalismo jurídico. 

É verdade que há quem toma logo partido por uma posição ou solução jurídica, fecham-se em suas opiniões e preconceitos, e depois procuram justificá-las monologicamente em sua decisão. Isso, contudo, nada diz quanto ao seu valor, e não nos autoriza a afirmar ser esse o método adotado por todos. Ao contrário, faz-nos perceber quão importante é o combate a esse irracionalismo jurídico. A ideia do racionalismo crítico defende que as melhores soluções somente advêm com uma abertura crítica do pensamento, passando por um procedimento efetivamente dialético, considerando-se as circunstâncias fáticas envolvidas, e findando, somente então, com uma solução com fundamentos que abranjam todos os argumentos levantados, seja para acolhê-los ou rejeitá-los justificadamente.

O princípio da racionalidade integra esse método racional como ideia de imparcialidade necessária à construção das soluções jurídicas. Por mais que nossas emoções sejam indispensáveis, e até mesmo inerentes, ao processo cognitivo e decisório, é possível pensarmos em termos mais amplos e universalizáveis, de modo a assegurar de forma mais efetiva e legítima a finalidade que extraímos da norma.     

É com essa postura que podemos contribuir para soluções jurídicas mais democráticas e menos apegadas à um irracionalismo autoritário e sem limites.

5. POR UMA INTERPRETAÇÃO MENOS AUTORITÁRIA – CONFLITO ENTRE VALORES – DISTINÇÃO E CONSIDERAÇÃO DAS ORDENS EM ANDRÉ COMTE-SPONVILLE

Vemos atualmente muitos fundamentos jurídicos baseados em princípios, e sequer sem a devida contextualização e dialética aqui defendida. Além do mais, há outros aspectos a serem considerados.

É importante ter em mente que o direito, ou a ordem político jurídica, é apenas uma dentre outras ordens que nos motivam a agir. Além do nosso dever de agir conforme à lei (sentido amplo), temos liberdade de agir em busca de nossos interesses econômicos; agir conforme nossos preceitos morais; e agir por amor.

Partindo da ideia de Pascal de que não se deve confundir as diversas ordens que nos motivam a agir, Comte-Sponville as dividem em quatro: 1ª) ordem técnico-científica e econômica, que trata do faticamente possível ou impossível, e interesses econômicos; 2ª) ordem político jurídica, que diz respeito aos atos e comandos praticados e emitidos pelas autoridades estatais; 3ª) ordem moral, que contempla os deveres que nos impomos a nós mesmos, que incorporamos e apreendemos de nossa cultura; e 4ª) ordem ética, que tem por objeto o que amamos, o que nos torna mais felizes.

Essas ordens precisam ser pensadas, cada qual, em sua estrutura ou lógica interna própria, diferentes e independentes umas das outras, e que movem nossas ações. Confundi-las seria, na terminologia de Comte-Sponville24 e Pascal, incorrer em ridículo, e quando se trata de exercício do poder, em tirania. “A tirania”, sustenta Pascal25, “consiste no desejo de dominação, universal e fora de sua ordem”. Seria, p. ex., aquele “que quer ser amado por ser forte, ou obedecido por ser sábio, ou temido por ser belo”26.

Essas ordens são divididas em termos hierárquicos de primado e primazia, num sentido de baixo para cima, ou de cima para baixo (hierarquia cruzada). Explico. Há o primado da 1ª ordem (técnico científica e econômica) sobre as demais, tendo em vista que não adianta querermos algo que esteja na esfera do impossível, nem exigir que uma moralidade anule nosso desenvolvimento ou bem-estar econômico. Também há o primado da 2ª ordem (político jurídica) às demais que lhe são superiores, pois a força da autoridade se impõe às nossas concepções morais e éticas; e finalmente há o primado da 3ª ordem (dever moral) sobre a ética (4ª ordem), pois quando nos falta amor, procuramos ao menos agir por dever moral.

Mas, embora haja o primado das ordens inferiores sobre as superiores, há a primazia no sentido inverso. Quem age por amor, não precisa agir por dever moral. Quem age por dever moral, assim o faz com a consciência tranquila e elevada, o que nenhuma ordem política tirana poderia desqualificar. E quem age conforme a lei, assim o faz de forma democrática, sem a “tirania dos especialistas”27 – “não são os mais competentes que decidem, numa democracia, mas os mais numerosos”28.

Comte-Sponville29 defende que a ordem hierárquica dos primados deve prevalecer para a coletividade ou grupo, enquanto a ordem hierárquica das primazias para os indivíduos. Mas, por que seria assim? Aqui faz-se necessário expor suas justificativas30:

“Vou poder repartir essa dialética do primado e da primazia, rapidamente, entre as minhas quatro ordens. Direi, por exemplo: primazia da política sobre as ciências, as técnicas, a economia. Para o indivíduo, a política é um valor mais elevado. Subjetivamente, é claro. Mas para o grupo, objetivamente, o que é mais importante? O que seria da política, o que seria do Estado, o que seria da nossa democracia, se de repente as técnicas parassem de funcionar? As usinas não produziriam mais eletricidade, as empresas não criariam mais riquezas, os agricultores não forneceriam mais alimentos… O que seria da nossa democracia? A resposta é de uma simplicidade cruel: acabaria. Suprimam o Estado, o que seria da economia? Não acabaria, claro: nos ramos dos seguros, da banca, tornaria as coisas bem difíceis; mas no da construção civil, da agroindústria, da agricultura, a fortiori do comércio de armamentos, continuaria havendo negócios a fechar… Aliás, se a economia não houvesse começado antes do Estado, nunca teria existido Estado. Passar do paleolítico ao neolítico, o que é uma das maiores revoluções por que a humanidade já passou (sem dúvida até, pensando bem, a mais importante de todas), não foi uma decisão política… Primazia da política, portanto, mas primado da economia. (…)

Posso dizer a mesma coisa: primazia da moral sobre a política. Para o indivíduo, a moral é um valor mais elevado. É melhor perder as eleições (ordem nº 2) do que perder a alma (ordem nº 3). Se quem popularizou essa fórmula viveu ou não em conformidade com ela, é problema dele, não meu, mas a fórmula é justa: para o indivíduo, subjetivamente, a moral é um valor mais elevado. Mas, para o grupo, objetivamente, o que é mais importante?

Por exemplo, o que restaria da moral sem o direito, sem a política, sem o Estado? Que moral, como se dizia no século XVIII, no estado da natureza, no estado sem Estado? Aqui também a resposta é de uma simplicidade cruel: no estado de natureza, pelo menos é o que penso com Hobbes, não há moral alguma. Primazia da moral, primado da política.

Posso dizer enfim: primazia do amor sobre a moral. Se é para agir bem, por assim dizer, mais vale agir bem por amor, alegremente, espontaneamente, do que por dever, o que supõe a coerção, a obrigação, uma forma de tristeza… (…). Mas, para o grupo, objetivamente, o que é mais importante? E, em particular, o que restaria do amor sem a moral? Minha resposta, no caso é a de Freud: não restaria nada. Sem a moral, só haveria a pulsão, só “isso”, como diz Freud, só o desejo, só a sexualidade. É unicamente na medida em que a pulsão se choca com o interdito – notadamente na forma da proibição do incesto – que o desejo se sublima, como diz Freud, em amor. Suprimam o interdito, suprimam a moral, e não haverá mais sublimação, não haverá mais amor: não haverá mais do que desejo. Primazia do amor, primado da moral.”

Feita essas considerações, podemos partir para um critério racional (racionalismo prático ou relativo, evidentemente), considerando a necessidade de respeitar a lógica ou estrutura interna de cada uma das ordens aqui elencadas, e suas relativas hierarquias.

É importante ter em mente que as hierarquias aqui defendidas não são de forma alguma absolutas. Deve-se evitar tanto a barbárie, que seria a tirania das ordens inferiores, quanto o angelismo, a anulação da ordem mais baixa pela mais alta. Explico.

Haveria a barbárie tecnocrata ou liberal, na medida em que a política fosse anulada, ou melhor, impedida de reger ou limitar o uso de novas tecnologias e a atividade econômica, em prejuízo do dever de garantir a saúde e integridade física das pessoas, e evitar o abuso do poder econômico.

Por outro lado, haveria um angelismo político e moral, se, p.ex., a ordem econômica fosse desconsiderada ou anulada, por restrições político jurídicas e morais.

Após essa visão filosófica mais ampla, cujo modelo foi construído para melhor refletirmos e pensarmos no que motivam nossas ações, dividi-las em ordens que possuam uma lógica própria, e evitar uma tirania entre elas, há de considerá-la no processo de interpretação jurídica.

A ordem político jurídica, onde está inserida a atividade direcionada à interpretação e soluções jurídicas, tem papel fundamental para o convívio social.

Não é de hoje que se ressalta a importância e utilidade, para o mínimo de convívio pacífico e proveitoso das pessoas em sociedade, da existência de uma estrutura de poder denominada Estado, responsável pela criação do direito.

Epicuro já externava essa utilidade e caráter contratualista na formação do Estado nos séculos IV e III antes de Cristo (342/341 a 270 ac), e Hobbes (1588 a 1679) a desenvolveu, embora ambos a expusessem em bases distintas: materialista e teleológica.

Muito se questionava, e ainda se questiona, a respeito do direito de resistência a comandos estatais que impusessem uma violência ou submetessem os súditos a um estado de indignidade31.

Mas o fato é que a ordem político jurídica, que vem sendo aperfeiçoada em várias regiões, mesmo com seus altos e baixos, e momentos de violência, foi uma das criações mais importantes para a humanidade, possibilitando de forma mais eficaz a cooperação entre os indivíduos e o desenvolvimento econômico-social.

Claro que não se deve tolerar tudo; há um aspecto moral que pode e deve nos impedir a agir conforme alguma ordem ou comando estatal por demais abusivo. Entretanto, evidentemente que essa não deve ser a regra, muito pelo contrário.

Por mais que não concordemos com determinadas decisões políticas transformadas em direito, o fato é que interpretações que desvirtuem do seu sentido por posicionamentos individuais, passam a gerar instabilidade, insegurança jurídica e sentimentos de injustiça. Além do mais, esse desvirtuamento da ideia contratualista do Estado causa, não apenas instabilidade institucional, com consequências nocivas à paz social, como também grande prejuízo econômico pela enorme estrutura montada para absorver o excesso de demanda judicial que é gerada.

Interpretações solipsistas ou que se afastem demasiadamente do texto normativo vêm, contudo, sendo pretensamente baseadas em princípios constitucionais ou em princípios gerais do direito, o que é compreensível, pela necessidade de se conferir pretensa legitimidade a atos arbitrários. Afinal, se não há a devida preocupação de se contextualizar os princípios e suas finalidades relativas a partir das regras jurídicas envolvidas no caso concreto, tudo pode ser justificado.

Robert Alexy procura conferir uma racionalidade na aplicação dos princípios. O “conflito entre princípios” seria solucionado mediante a utilização do sobejamento, técnica de verificação de prevalência de um ou outro no caso concreto, considerando as máximas da adequação, necessidade e ponderação32.

Alexy33 sustenta que “quanto maior for o grau de não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da satisfação do outro” (lei do sobejamento). Mas como fazer essa avaliação, sem pensar uma escala hierárquica, embora relativa, dos valores que representam?

Antes de sustentar um critério racional e hierárquico para solução de conflito entre valores, vale destacar que a técnica de sobejamento deve ser pensada em todo e qualquer ato de interpretação das normas jurídicas, e não apenas quando há “conflito entre os princípios”.

Ora, toda norma, seja regra ou princípio, tem sua finalidade. A construção da solução jurídica, portanto, sempre deve considerar a sua adequação com essa finalidade que extraímos da norma.

O mesmo ocorre com as máximas da necessidade e da ponderação.

A solução jurídica deve ser pensada de forma a não gerar consequências por demais danosas àqueles com interesses contrapostos. Deve-se buscar resultados menos gravosos a outros interesses legítimos; afinal, há necessidade de se impor tamanha restrição ou gravame, quando se pode construir soluções que mais compatibilizem os interesses envolvidos?  

Da mesma forma se deve considerar a máxima da ponderação. Todo valor e interesse juridicamente protegido é relativo, pois sempre se refere a situações e circunstâncias concretas, pois outras podem demandar proteção de interesses distintos. Nem a vida, o maior bem de todos, tem valor absoluto. Tanto é assim que aquele que mata outrem não comete crime, quando o faz em estado de necessidade, legítima defesa ou estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito (art. 23 do CPP).

A ponderação, portanto, é das diversas ordens de valores e interesses juridicamente protegidos, mas que se revelam em conflito em certas circunstâncias, e que serve para evitar decisões totalitárias, arbitrárias. Não se discute a existência de margens de discricionaridade nas soluções jurídicas, mas a ponderação poderá ao menos evitar atos abusivos.

Toda ordem de valores, como a liberdade, p. ex., é relativa, pois outra deve limitá-la, evitando-se situações indesejadas, e criando um ambiente de colaboração e segurança jurídica, tão eficientes para nosso progresso econômico e social. A plena liberdade causaria a tirania dos mais fortes, ou do mercado, provocando a barbárie liberal, como diria Comte-Sponville34.  

Mas como esse pensamento filosófico poderia nos ajudar na interpretação jurídica, mais especificamente no processo de ponderação?

É importante ter em mente que a ideia de Comte-Sponville de considerar o conflito apenas entre as diferentes ordens se dá pela perspectiva do sujeito, restrito a um conflito interior. Mas como utilizá-la, quando se trata de conflito de interesses entre duas ou mais pessoas, que possuem interesses econômicos distintos e concepções morais relativamente diversas?

Pois bem. Como vimos, o sentido da norma não está em si mesmo, mas nos diversos interesses e finalidades que propaga, tanto de ordem econômica, moral, e até mesmo político jurídica na medida em que as autoridades também devem respeitar as leis e a Constituição, e suas hierarquias (ideia de Estado de Direito). Assim, é perfeitamente possível, pensarmos no processo interpretativo a consideração das ordens aqui referidas, que nos movem e são também juridicamente protegidas, sem que as confundamos, e quanto à hierarquia relativa dos primados e primazias, evitando-se soluções tirânicas e totalitárias.

Pensar a distinção das ordens aqui elencadas, sua lógica interna, hierarquia, relatividade e limitações, impõe-nos uma maior compreensão das circunstâncias fáticas ou contexto que envolve o fato ou ato jurídico. Somente assim podemos raciocinar de forma mais legítima e menos autoritária, ao invés de expor fundamentação baseada em princípios abstratos que faz prevalecer o irracionalismo jurídico e, consequentemente, um estado de corrupção e insegurança jurídica.

Aqui vou tentar contextualizar apenas duas situações em que seria importante distinguir as ordens com ponderação adequada, tentando evitar decisões totalitárias e inconsequentes.

A primeira diz respeito ao direito constitucional à saúde, previsto no seu art. 196. Na realidade, a saúde tem mais a ver com nossas escolhas, comportamentos (esfera do nosso poder) e com o progresso da medicina, do que com o Direito. O que o Direito pode com aqueles que se comportam de maneira pouco saudável, e com as limitações técnicas da medicina? Não pensar essa distinção seria cair no ridículo, por confundir a ordem fática (1ª ordem) com a ordem político jurídica (2ª ordem).

Mas evidentemente que a finalidade da nossa Constituição não foi tipificar a doença como um ilícito (seria ridículo), nem impedir doenças e mortes decorrentes (isso depende da medicina). O que se pretende, para não cair em totalitarismo, é garantir tratamento de saúde universal, a todos que vivem no Brasil, sem desconsiderar a nossa ordem jurídica como um todo, onde é preciso respeitar os órgãos técnicos que regulamentam o tratamento do SUS e os limites orçamentários para tanto.

Interpretação jurídica totalitária fundamentaria decisão que impusesse ao Estado todo e qualquer esforço e meio necessário para garantir a saúde ao cidadão, desconsiderando todas as regulamentações dos órgãos técnicos competentes para tanto e limitações orçamentárias. Seria típico caso de angelismo político ou jurídico, onde se anula as restrições técnicas e econômicas (a saúde depende de cada um de nós e avanços da medicina, e o orçamento público é limitado) para impor de forma absoluta o direito a tratamento de saúde.

Decisões nesse sentido não são incomuns, gerando um aumento descontrolado dos gastos públicos, com prejuízo dos demais serviços e obras públicas35.

Outra ponderação a se considerar é em relação aos princípios do acesso à justiça e da dignidade da pessoa humana, garantidos nos incisos XXXV do art. 5º e III do art. 1º, ambos da Constituição, com o princípio da Separação dos Poderes (art. 2º da Constituição). Este último não pode ser anulado, de forma a ampliar a competência do Poder Judiciário para autorizá-lo a rever o mérito administrativo, cuja decisão política cabe ao Poder Executivo.

Somente de forma excepcional, quando o ato do Executivo contraria expressa previsão constitucional e legal, é que ele deveria ser anulado pelo Judiciário. E não simplesmente desconsiderado, quando o Julgador entende que o correto seria adotar uma outra solução, com base em suas convicções pessoais, com pretenso fundamento nos princípios do acesso à justiça e dignidade da pessoa humana. Aqui haveria um angelismo moral, onde a ordem político jurídica consubstanciada na ideia do Estado Democrático de Direito e Separação dos Poderes seria anulada em nome de uma moral particular do Julgador.

6. A IDEIA DE JUSTIÇA  

A justiça talvez seja a virtude ou valor mais complexo a ser compreendido. Afinal, se ela significa dar a cada um o que é seu, que critérios devemos utilizar para considerar algo devido a alguém? Existem fundamentos objetivos e absolutos para essa qualificação?

Alguns autores elencam alguns elementos que fundamentariam direitos. Chaïm Perelman36 destaca os seguintes: 1) a cada qual a mesma coisa; 2) a cada qual segundo seus méritos; 3) a cada qual segundo suas obras; 4) a cada qual segundo suas necessidades; 5) a cada qual segundo a sua posição; 6) a cada qual segundo o que a lei lhe atribui. Já David Schmidtz37 elenca as seguintes categorias básicas: merecimento; reciprocidade; igualdade e necessidade.

Algumas correntes de pensamento utilizam-se de bases específicas que fundamentariam a criação de direitos: o utilitarismo; o liberalismo; e o igualitarismo.

O utilitarismo sustenta que a justiça estaria na maximização da utilidade ou bem-estar, que segundo Micheal Sandel38, corresponderia à “máxima felicidade para o maior número de pessoas”.

Mas será que a utilidade para o maior número de pessoas pode justificar tudo? E o direito das minorias? Estariam estas submetidas a todo tipo de opressão em nome de alguma utilidade para as maiorias?

Alerta Sandel39 que “ao basear os direitos individuais em considerações utilitaristas, deixamos de considerar a ideia segundo a qual a violação dos direitos de alguém inflige um mal ao indivíduo, qualquer que seja seu efeito no bem-estar geral”.

Evidentemente que não se desconsidera que a política está aí, com o respectivo ordenamento jurídico, para trazer utilidade aos homens, como melhor qualidade de vida e paz social. Mas essa utilidade em si não poderia fundar nosso sentimento de justiça.

Já na abordagem liberal, segundo Sandel40, a justiça estaria baseada no respeito à “liberdade de escolha – tanto as escolhas reais que as pessoas fazem em um livre mercado (visão libertária), quanto às escolhas hipotéticas que as pessoas deveriam fazer na posição original de equanimidade (visão igualitária liberal)”.

O problema da visão meramente liberal é sua limitação, pois não consideram outros aspectos e circunstâncias que exigem políticas públicas voltadas para uma maior igualdade de oportunidades, que cultivam a virtude e garantam o bem comum. Assim adverte Sandel41:

“(…) Não se pode alcançar uma sociedade justa simplesmente maximizando a utilidade ou garantindo a liberdade de escolha. Para alcançar uma sociedade justa, precisamos raciocinar juntos sobre o significado da vida boa e criar uma cultura pública que aceite as divergências que inevitavelmente ocorrerão.”

Há, finalmente, a abordagem igualitária da justiça, mas que, evidentemente, não deve pretender impor igualdades de fato aos indivíduos. Como poderia? Afinal, indaga Comte-Sponville, “seria justo dar a todos as mesmas coisas, quando eles não têm as mesmas necessidades nem os mesmos méritos? Exigir de todos as mesmas coisas, quando eles não têm nem as mesmas capacidades nem os mesmos encargos?”.

A justiça como equidade (abordagem igualitária) precisa ser pensada sob a perspectiva de uma outra ideia: a do “contrato social”, que procura legitimar a existência do Estado, e, consequentemente, a ordem jurídica, expressão do próprio poder estatal.

A justiça, então, como corolário da ideia do contrato social, possui um aspecto formal, como o agir em conformidade com a lei, emitida pelo Estado. É injusto, e deve ser reparado, o ato que contraria disposição legal. Como o poder estatal é emanada do povo, através de seus representantes, seria injusto agir em desconformidade com a lei. Deve-se, portanto, dar a cada um o que é seu segundo o que a lei lhe atribui. Aqui a igualdade está na ideia de que todos devem se submeter igualmente ao Direito.

Mas há também outra ideia de justiça que não se restringe ao seu aspecto estritamente formal. Afinal, uma lei pode também ser considerada injusta. A justiça, assim, deve também ser pensada em sua concepção material.

Desde a antiguidade, a justiça como valor moral, ou seja, em seu aspecto material, vem sendo definida como uma ideia de igualdade.

Protágoras42 já sustentava que a compreensão da justiça e honra, dada aos homens por Hermes a mando de Zeus, deveria ser igualmente distribuída a todos.

Essa concepção foi depois desenvolvida, tendo Aristóteles percebido que a distribuição dos bens, da riqueza, e de um modo geral, do direito, não necessariamente deve ser assegurada igualmente a todos, mas de forma proporcional.  A dificuldade está, entretanto, em saber quais elementos deverão ser considerados para a atribuição proporcional da justiça. Particularmente, não vejo faticamente possível essa ideia de proporcionalidade geométrica da justiça ou que esta possa assegurar mesmas condições materiais a todos.

A vida humana é complexa e dinâmica, e provavelmente somos levados mais pelas circunstâncias que nos apresentam, imprevisíveis, do que pelos nossos próprios desejos conscientes e virtudes. Os elementos que consideramos para assegurar direitos, como o mérito, a obra, a necessidade, nunca poderão ser asseguradas numa ilusória proporção entre os homens. E mesmo que fossemos capazes de conhecer e avaliar cada pessoa, a consideração de suas proporções demandaria praticamente uma legislação para cada ser humano, o que é impraticável.

A justiça não é sentida pelas nossas diferenças, inerente a nossas particularidades, mas, sim, pela forma como somos tratados jurídica ou moralmente. É a igualdade de direitos, e não de fato, que nos faz julgar um ato como justo ou não. Assim esclarece com propriedade Comte-Sponville43:

“O princípio” (da justiça)”, “portanto, é mesmo a igualdade, como vira Aristóteles, mas antes de mais nada e sobretudo a igualdade dos homens entre si, tal como resulta da lei ou tal como é moralmente pressuposta, pelo menos em direito e ainda que contra as desigualdades de fato mais evidentes, mais bem estabelecidas (inclusive juridicamente), quando não mais respeitáveis. A riqueza não dá nenhum direito particular (ela dá um poder particular, mas o poder, precisamente não é justiça). O gênio ou a santidade não dão nenhum direito particular. Mozart tem de pagar seu pão, como qualquer um. E são Francisco de Assis, diante de um tribunal verdadeiramente justo, não teria nem mais nem menos direitos do que qualquer outro. A justiça é a igualdade, mas a igualdade dos direitos, sejam eles juridicamente estabelecidos ou moralmente exigidos.”

Essa posição não difere da propagada por Karl Popper44, segundo o qual:

 “O igualitarismo propriamente dito é a exigência de que os cidadãos do estado sejam tratados imparcialmente. É a exigência de que o nascimento, as ligações de família ou a riqueza não influenciem aquêles que administram a lei para os cidadãos. Em outras palavras, não reconhece qualquer privilégios naturais, embora os cidadãos possam conferir privilégios àqueles em que confiam.”

Consideramos justo ou conforme nosso sentimento de justiça, portanto, não apenas o ato em conformidade com a lei ou alguma outra regra estabelecida, mas também a igualdade de direitos ou ausência de privilégios.

Mas uma igualdade absoluta de direitos, como ideia de justiça, somente seria adequada se todos os cidadãos partissem da mesma posição social e econômica, ou se até mesmo tivessem as mesmas necessidades e interesses. Somente assim poderíamos supor uma concordância absoluta a respeito dos princípios e regras que nos governam.

Foi daí que John Rawls passou a pensar a justiça a partir de uma ideia hipotética de contrato social, onde todos possam se beneficiar com a ordem político jurídica, apesar das nossas diferenças. Afinal, quem aceitaria se submeter ao Estado se não para também dele se beneficiar?

Rawls formula, então, dois conceitos para sustentar seu princípio da igualdade: o da “posição original de igualdade” e o do “véu da ignorância”.  O primeiro seria “o status quo inicial apropriado para assegurar que os consensos básicos nele estabelecidos sejam equitativos”45. Mas essa situação de igualdade inicial não existe de fato, daí porque devemos pensar os consensos sob o “véu da ignorância”. Como bem percebe Sandel46, Rawls “parte do pressuposto que todos sejamos motivados apenas pelo interesse próprio na vida real”. Pede, então, que, sob o véu da ignorância, procuremos abstrair nossa posição social, interesses particulares, “nossas convicções morais e religiosas”, para adotarmos uma posição racional que atenda aos interesses de todos, colocando-nos no lugar daqueles de posições sociais, econômicas, e de convicções distintas. Se estivéssemos na posição do outro, aceitaríamos aquela solução jurídica adotada?

Partindo disso, Rawls sustenta dois princípios racionais da igualdade47:

“Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras.

Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos.”

O primeiro princípio nos alerta para o fato de que não pode haver igualdade de direitos sem o respeito às liberdades básicas dos cidadãos, como a liberdade de expressão e de conduzir a própria vida, desde que, evidentemente, assim o faça de forma compatível com as liberdades dos outros.  

E o segundo nos permite aceitar desigualdades jurídicas que beneficiem os “menos favorecidos de uma sociedade”48, quando isso importar numa vantagem a todos na medida em que transponham barreiras socioeconômicas e garantam uma maior igualdade de oportunidades. É preciso aqui ficarmos alertas às políticas meramente populistas e eleitoreira, onde os privilégios jurídicos propostos somente criam uma dependência econômica dos beneficiários, e que apenas visam a permanência do governante no poder, sem eficácia socioeconômica.

Daí, parece-me mais acertada a definição de justiça, tanto em seu sentido formal como ato em conformidade com a lei, quanto em seu sentido material como igualdade de direitos, mas com as devidas ressalvas já bem defendidas por Rawls.

Mas essa ideia de justiça nos leva ainda a outras considerações fundamentais para a sua adequada compreensão.

Por mais que se possa discordar das concepções igualitárias de Rawls, ainda assim há de se pensar a justiça de forma mais racional.

A ideia do “contrato social” tem por finalidade justificar a legitimação do exercício do poder estatal. E é justamente essa legitimidade que nutre nosso sentimento de justiça, fazendo com que geralmente respeitemos as normas emitidas pelo Estado, por mais que delas discordemos. Daí porque nenhuma justiça subsiste à corrupção da ordem jurídica.

Assim, por mais que uma disposição legal nos pareça moralmente injusta, por conferir privilégio indevido, ou que para nós não atenda de forma adequada uma utilidade pública, a sua correção somente deve advir de duas possibilidades: até certo limite, através de uma interpretação jurídica, com utilização de regras hermenêuticas culturalmente construídas; ou através do legítimo processo legislativo, pelos Poderes Executivo e Legislativo.

Deve-se ter em mente que não há espaço para justiça dentro de uma concepção individual do que seria certo ou errado, ou politicamente útil ou nefasto. A justiça somente deve ser pensada pelo homem no seu convívio social, sempre com respeito às regras democráticas e legítimas.

Assim, num sistema tripartite, não cabe ao Judiciário, sob pretexto de corrigir uma indevida solução jurídica instituída pelos demais Poderes, modificar a ordem jurídica estabelecida. Evidentemente que poderá conferir o controle da constitucionalidade das leis ou legalidade dos demais atos administrativos, porém, nunca simplesmente modificar as políticas públicas estabelecidas pelos Poderes Executivo e Legislativo.

É verdade que nossa constituição e até outros diplomas legais possuem princípios e normas com conceitos genéricos. Além do mais, não há limites claros e precisos que possam frear de forma mais adequada o Judiciário.

Daí que a ideia de justiça deve ser pensada como freio a eventuais atos autoritários, que visem sobrepor à ordem jurídica legitima e democraticamente estabelecida.

Na obra “Como as democracias morrem”, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt49, assim adverte para a necessidade de auto contensão pelos Poderes do Estado:

“Nem mesmo constituições bem-projetadas são capazes, por si mesmas, de garantir a democracia. Primeiro, porque constituições são sempre incompletas. Como qualquer conjunto de regras, elas têm inúmeras lacunas e ambiguidades. Nenhum manual de operação, não importa quão detalhado, é capaz de antecipar todas as contingências possíveis ou prescrever como se comportar sob todas as circunstâncias.

Regras constitucionais também estão sempre sujeitas a interpretações conflitantes. (…)

(…) Porém, duas normas se destacam para o funcionamento de uma democracia: tolerância mútua e reserva institucional.

A TOLERÂNCIA MÚTUA diz respeito à ideia de que, enquanto nossos rivais jogarem pelas regras institucionais, nós aceitaremos que eles tenham direito igual de existir, competir pelo poder e governar. (…)

A SEGUNDA NORMA crucial pra a sobrevivência da democracia é o que chamamos de reserva institucional. Reserva significa “autocontrole paciente, comedimento e tolerância, ou “a ação de limitar o uso de um direito legal”. Para os nossos propósitos, a reserva institucional pode ser compreendida como o ato de evitar ações que, embora respeitem a letra da lei, violam claramente o seu espírito. Quando as normas de reserva são robustas, políticos não usam suas prorrogativas institucionais até o limite, mesmo que tenham o direito legal de fazê-lo, pois tal ação pode pôr em perigo o sistema existente.”

A autocontenção dos Poderes, é bom que se diga, não é exatamente uma mera liberalidade, e, principalmente, no Brasil, onde a constituição e legislação, de uma maneira geral, é bastante analítica, pormenorizada. Ela é um dever inerente aos princípios do Estado Democrático de Direito e da independência e harmonia entre os Poderes, previstos nos artigos 1º e 2º da Constituição Federal.

Não há de se confundir, e aqui é importante destacar, o legítimo exercício de interpretação das normas pelo Judiciário, tanto ao levar em consideração as consequências práticas das soluções jurídicas, de forma imparcial e racional, com adoção de critérios hermenêuticos culturalmente construídos (ver tópicos 3 a 5), com o ativismo judicial tão nocivo à nossa democracia, segurança jurídica, que gera uma sensação constante de injustiça.

Podemos sentir aqui no Brasil um excesso de ativismo judicial, facilmente percebido pelo alto índice de judicialização, principalmente nas causas de direito público. Afinal, a quantidade de demandas judiciais vai aumentando à medida que se percebe cada vez mais a volatividade com que o Judiciário vem decidindo as lides. Os textos normativos e decisões políticas dos demais poderes não mais vem servindo como limite às buscas de soluções jurídicas mais criativas e que tragam alguma utilidade percebida e particularmente defendida pelo magistrado. E aqui se forma um círculo vicioso, onde os magistrados atribuem a excessiva litigiosidade aos cidadãos que buscam a justiça e cujo acesso é universal, quando tal excesso é por demais alimentado pela insegurança jurídica que propagam.

É importante aqui comentar o que se sustenta a respeito do direito do Poder Judiciário de errar por último, a partir do discurso do então senador Ruy Barbosa (1923-1949) contra aqueles que vinham criticando o ativismo do Supremo Tribunal Federal já naquela época. Assim expressamente se manifestou50:

“Em todas as organizações, políticas ou judiciais, há sempre uma autoridade extrema para errar em último lugar. O Supremo Tribunal Federal, não sendo infalível, pode errar. Mas a alguém deve ficar o direito de errar por último, a alguém deve ficar o direito de decidir por último, de dizer alguma coisa que deva ser considerada como erro ou como verdade.”

Celso de Mello e Carlos Ayres Brito, ex-ministros do Supremo Tribunal Federal também vêm defendendo essa prerrogativa do Poder Judiciário, até para evitar instabilidade política e institucional. É preciso aqui, entretanto, interpretar de forma adequada esse discurso. Ora, da mesma forma que se espera do Judiciário a autocontenção do seu poder, assim também se exige dos demais Poderes Executivo e Legislativo. Estes não devem, assim, interferir na atuação do Poder Judiciário, a não ser nos exatos limites autorizados pela constituição, pela nossa ordem jurídica. Se não temos previsão constitucional de algum controle das decisões judiciais pelo parlamento, evidentemente que a última decisão vigente será do Poder Judiciário. Isso, contudo, não diminui, muito pelo contrário, só aumenta a necessidade de autocontrole pelos magistrados.

Concluímos, assim, que a justiça não poderia advir de uma posição individual do que se deveria dar a cada um. Afinal, como advertia Pascal51, o eu “é injusto em si, fazendo-se centro de tudo”. Daí a exigência de uma concepção de justiça universal, ou melhor, universalizável, ao menos em seu princípio, como defende Comte-Sponville52. E é por isso que uma ideia mais racional da justiça, como ato em conformidade com a lei e como equidade, com respeito às liberdades individuais e igualdade de direitos, deve prevalecer à sua concepção utilitarista que infelizmente vem sendo dominantemente adotada pela nossa cultura jurisdicional.

7. JUÍZOS DECISÓRIOS NAS DEMANDAS JUDICIAIS

Aqui, para finalizar, passaremos a examinar o processo judicial decisório na prática, propondo sua condução de maneira a melhor atender os nossos sentimentos de justiça e racionalidade.

Primeiro, trataremos a respeito dos juízos de fato (análise fático-probatória), para em seguida tratarmos dos juízos de direito.

7.1 JUÍZOS DE FATO NO DIREITO: COMPONENTE VALORATIVO

Pensar uma questão jurídica demanda, antes de tudo, o conhecimento dos fatos que o envolve. Afinal, toda norma jurídica visa regular uma dada situação fática, procurando atender a uma finalidade, com soluções a problemas reais específicos, concretos.

Portanto, para sabermos qual solução jurídica devemos adotar, primeiramente é indispensável conhecermos todos os fatos envolvidos e juridicamente relevantes.

Numa relação contratual ou prática de um ato jurídico qualquer devemos antes de tudo pensarmos no que pretendemos, e como queremos agir (situações de fato, inclusive volitivas), pois somente então teremos condições de analisarmos e julgarmos juridicamente o que podemos ou não estipular como cláusula contratual ou fazer.

Da mesma forma, existindo uma lide, um conflito jurídico estabelecido entre pessoas (pretensão resistida), deve o jurista ou julgador, primeiramente, compreender bem as circunstâncias fáticas relevantes envolvidas.

Esse conhecimento, contudo, não é totalmente prévio à análise das normas que lhes regeriam. Há, num primeiro momento, um conhecimento bruto dos fatos, e na medida que passamos a pesquisar e ler as normas que os disciplinariam, surge a necessidade de perquirir a existência das situações específicas que seriam relevantes para o caso concreto, e que poderiam nos levar para uma ou outra solução.

Nesse sentido, sustenta Karl Larenz53:

“O jurista, que deve julgar um caso jurídico, parte, na maioria das vezes, de uma <<situação de facto em bruto>>, que lhe é apresentada na forma de um relato. Neste relato encontram-se, antes de mais, ocorrências singulares e circunstâncias que são irrelevantes para a apreciação jurídica e que, por isso, o julgador separará, no decurso das suas ponderações, da situação de facto definitiva (enquanto enunciado).”

E mais adiante completa54:

“Desse modo, o relato originário, a <<situação de facto em bruto>>, será por ele” (jurista)” em parte encurtado e em parte complementado, até que a situação de facto definitiva contenha apenas os elementos, mas todos eles, do evento real que sejam relevantes face às normas jurídicas eventualmente aplicáveis. A situação de facto (definitiva) é assim o resultado de uma elaboração mental, em que a apreciação jurídica foi já antecipada.”

O conhecimento dos fatos juridicamente relevantes vai nos proporcionar, juntamente com a leitura das normas pertinentes, uma melhor reflexão a respeito da decisão mais legítima e razoável a ser adotada, considerando suas consequências para as partes envolvidas.

As normas jurídicas são criadas levando em consideração certas circunstâncias e relações específicas, cujas soluções adotadas visam evitar um dano ou permitir ou estimular uma conduta benéfica. O que é preciso é compreender bem o caso concreto em discussão, pois só assim teremos melhores condições de procurar no nosso ordenamento jurídico uma solução mais adequada e razoável, sempre considerando as suas consequências.

Mas é preciso ter em mente que essa busca pela compreensão dos fatos tem seus limites pelas nossas restrições cognitivas. É normal numa lide que haja narrativas conflitantes, além do que cada uma das partes vai enfatizar e trazer aqueles aspectos fáticos que lhes convêm.

Habermas55 procura desconstruir o significado objetivo da verdade, considerando-a como resultado de um processo dialético e construída com base nas argumentações desenvolvidas pelos sujeitos cognoscentes. Segundo sua teoria discursiva, “um enunciado é verdadeiro, quando, nas exigentes condições de um discurso racional, resiste a todas as tentativas de refutação”.

O importante para a consideração de fatos como verdadeiro não é a opinião de um sujeito com base na sua percepção subjetiva, mas como resultado de um procedimento dialético construído por argumentos racionais.

Particularmente, alinho-me à corrente que faz distinção entre verdade e conhecimento. A verdade seria a própria realidade, “o objeto ao menos possível de um conhecimento”, como define Comte-Sponville56. Toda verdade é objeta, todo o conhecimento é subjetivo e relativo. É possível que um conhecimento seja verdadeiro ou até que se aproxime mais da verdade, mas nenhuma demonstração racional é capaz de atestar sua veracidade. É como também observou Karl Popper ao se convencer da teoria objetivista de Tarski. Aqui peço licença para colacionar a seguinte passagem de Popper57:

“ (…) É possível mostrar que todas as teorias subjetivistas da verdade almejam um critério desse tipo: tentam definir a verdade em ternos das fontes ou origem de nossas crenças …, em termos de nossas operações de verificação, em termos de um conjunto de regras de aceitação ou simplesmente em termos da qualidade de nossas convicções subjetivas. Todas dizem, mais ou menos, que a verdade é aquilo que é justificável acreditarmos ou que é lícito aceitarmos, de acordo com algumas regras ou critérios sobre origens ou fontes de nosso conhecimento, sobre confiabilidade, estabilidade, êxito biológico ou força de convicção, ou ainda por ser impossível pensar de outra maneira.

A teoria objetivista da verdade leva a uma atitude muito diferente, o que se pode perceber pelo fato de que ela nos permite fazer afirmações como esta: uma teoria pode ser verdadeira mesmo que ninguém acredite nela e não tenhamos razão para aceita-la ou para acreditar que é verdadeira; outra teoria pode ser falsa, apesar de termos razões comparativamente boas para aceita-la.

(…)

Uma afirmação similar, que a teoria objetivista da correspondência tornaria muito natural, é a seguinte: mesmo quando encontramos uma teoria verdadeira, em geral estamos apenas fazendo conjecturas e talvez seja impossível saber que ela é verdadeira.

(…)

Talvez eu possa prescindir dela (teoria objetivista da verdade), até certo ponto, em minha teoria do progresso científico. Desde Tarsk, porém, já não vejo razão para tentar evita-la. E, se quisermos esclarecer a diferença entre ciência pura e ciência aplicada, entre busca do conhecimento e busca do poder ou de instrumentos poderosos, não podemos prescindir dela. Eis a diferença: na busca do conhecimento procuramos teorias verdadeiras ou, pelo menos, teorias que estejam mais próximas da verdade do que outras, ou seja, que correspondam melhor aos fatos; na busca de teorias que sejam meros instrumentos de poder para determinados fins somos muito bem servidos, em números de casos, por teorias sabidamente falsas.

Portanto, uma grande vantagem da teoria da verdade objetiva ou absoluta é que ela nos permite dizer – com Xenófanes – que buscamos a verdade, mas podemos não saber quando a encontramos. Não dispomos de um critério da verdade. Mesmo assim, somos guiados pela ideia da verdade como um princípio regulador (como diriam Kant ou Peirce). Embora não existam critérios gerais que nos permitam reconhecer a verdade – com exceção, talvez, da verdade tautológica -, existe algo que se poderia chamar de critério de progresso em direção à verdade (como explicarei adiante).

Vimos, portanto, que embora toda verdade seja absoluta, o seu conhecimento não o é.

O reconhecimento dessa relatividade e subjetividade do conhecimento é importante para compreendermos que um juízo de fato, na atuação jurídica, por exigir uma definição conclusiva, não se compatibiliza com a livre percepção ou apreciação probatória do julgador. Ora, se a utilização de puro método científico já não garante a veracidade da conclusão de uma tese, dada as circunstâncias limitadoras que as envolve, muito menos garante o julgador, restrito que está aos escassos e frágeis elementos de prova constantes dos autos. E é justamente por isso que existem uma série de prescrições jurídicas, presunções e regras de experiências indispensáveis para uma definição mais legítima dos fatos a serem considerados verdadeiros.

Para melhor compreender essa questão, faz-se necessário expor algumas considerações a respeito da prova, aqui entendida, não como um fato que bastaria para atestar a verdade de outro fato58, mas como qualquer meio ou elemento que contribua “para a formação da convicção do juiz a respeito da existência de determinados fatos”59, que sejam juridicamente relevantes.

Através do conhecimento das provas, o juiz deverá formar suas convicções a respeito dos fatos considerados como ocorridos. É importante ter em mente que essas considerações não passam de probabilidades, cuja demonstração inequívoca de veracidade é impossível, até mesmo para as denominadas provas diretas60.

Não há método seguro, indutivo, onde uma prova direta demonstraria de forma absoluta a existência de um fato. David Hume e Karl Popper bem compreenderam as limitações da indução, já que por mais observações que se faça de um fenômeno, não necessariamente se segue uma conclusão lógica e universalmente válida. Toda teoria é uma mera dedução, e, muito embora possa ser submetida a testes empíricos de falseabilidade, não passa de uma hipótese ou probabilidade.

Daí porque, independentemente da nossa aderência à corrente subjetivista ou objetivista da verdade, é de fundamental importância que a definição dos fatos tido por verdadeiros não decorram de uma livre apreciação da prova (juízo meramente hipotético, provável, e sempre incerto), mas do resultado de procedimento dialético e imparcial, com efetivo respeito à garantia da ampla defesa e contraditório, e às normas que trazem uma série de regramentos quanto aos ônus das provas, presunções legais e judiciais, e exigências quanto aos documentos indispensáveis à prova de determinados fatos, pois resultam da nossa experiência histórica e visam tentar impedir que prevaleçam circunstâncias facilmente suscetíveis às mentiras, simulações e fraudes.

Nesse sentido, fez bem o novo código de processo civil brasileiro de 2015 ao excluir a expressão que indicava o princípio da livre apreciação da prova pelo juiz (art. 131 do CPC de 197361), que vinha e infelizmente ainda vem sendo utilizado pelos magistrados para tentar legitimar arbitrariedades, em nome da sua “verdade”.  

Assim, da mesma forma que Popper propôs o seu método de investigação científica através de testes de falseabilidade para ao menos tentar aproximar uma teoria da verdade, numa discussão jurídica, o método ou procedimento de investigação dos fatos que respeite as regras e princípios jurídicos é indispensável, não para garantir o conhecimento de uma verdade material, impossível de ser demonstrada, mas para assegurar uma lisura necessária a evitar uma série abusos e manipulações.

Se mesmo com o respeito às normas jurídicas, ainda houver dúvida sobre os fatos a serem considerados como verdadeiros, é importante que se utilize raciocínios lógicos na análise das provas (presunções judiciais), e se atente para as regras de experiência comum, a partir do senso comum em que o fato a ser demonstrado está inserido.

Vejamos aqui exemplos de análises ou juízos de fato emblemáticos.

Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça62 consolidou o entendimento de que para a prova de segurado especial do Regime Geral de Previdência Social – aquele que exerce atividade rural, de seringueiro e pesca artesanal, em regime de economia familiar, necessário a ter direito a benefício previdenciário, sem pagamento de contribuição previdenciária, bastaria meras declarações do próprio autor, completadas pela prova testemunhal.

Ora, como se sabe, declarações por qualquer documento somente prova a ciência de determinado fato pelo declarante; nunca o fato em si, declarado, não apenas por razões óbvias, mas também por força do parágrafo único do art. 408 do CPC.

A justificativa do Superior Tribunal de Justiça para afastar arbitrariamente norma jurídica pertinente seria a dificuldade que essas pessoas sem instrução teriam de comprovar sua condição de segurado especial pelos meios exigidos.

Ora, com esse entendimento, não é difícil imaginar o acréscimo exponencial de benefícios rurais concedidos judicialmente a partir de então, de forma desproporcional: primeiro, pela diferença de exigências entre a análise administrativa e judicial, pois enquanto a administração pública segue as regras legais e regulamentares que disciplinam os documentos hábeis à comprovação da atividade rural (arts. 106 da LBPS e 47 da IN INSS 77/2015), com preocupação de se evitar fraudes, os magistrados, em regra aceitam qualquer documento que expresse mera declaração da profissão de agricultor do segurado, completado pela prova testemunhal; e segundo, com essa facilidade na esfera judicial, pessoas passaram a ser orientadas a constar em documentos públicos ou particulares a profissão de agricultor, justamente para conseguirem facilmente um benefício previdenciário, sem ao menos terem contribuído para tanto, e mesmo que não tenham efetivamente exercido a atividade rural no período exigido para o recebimento do benefício.

Não é à toa que num período de pouco mais de 10 (dez) anos, entre 2003 e 2017, o déficit da previdência rural cresceu a uma taxa de 3,3% ao ano, passando de R$ 38,6 bilhões para R$ 110,7 bilhões63. E embora a população residente em área rural acima de 55 anos fosse de 6,2 milhões, em 2015, o número de benefícios rurais emitidos nesse mesmo ano foi superior, de 9,3 milhões64.

É verdade que esses benefícios rurais de um salário mínimo vêm contribuindo para a redução de desigualdades econômico-sociais. Contudo, não é através de estímulos a fraude e sem incutir uma cultura de responsabilidade que vamos nos desenvolver como nação. Além do mais, como justificar esse privilégio em detrimento daquelas outras pessoas que vivem em situações semelhantes de informalidade no meio urbano? O mais justo seria excluir da previdência todos que não contribuem, ampliando, por outro lado, a cobertura da assistência social aos que vivem na informalidade e programas que visem o efetivo acesso ao mercado de trabalho ou progresso econômico na agricultura, e que possibilitem o ingresso na previdência social pelo pagamento de contribuição.

De qualquer forma, a figura do segurado especial é prevista em lei e devemos respeitar. Entretanto, o que se deve exigir do analista e magistrado é que ambos possam apreciar o conjunto probatório necessário à concessão de benefício da previdência nos mesmos termos exigidos pela lei e regulamentos, para que sua conclusão a respeito não advenha de uma livre apreciação da prova, mas de um procedimento legítimo.

A situação que mais evidencia o componente intrinsicamente valorativo dos juízos de fato no direito é o da desconsideração das provas obtidas por meios ilícitos, mormente no direito penal (art. 157 do CPPB65).

Mesmo que as provas possam refletir uma verdade real, se elas forem obtidas por meios ilícitos, não podem ser consideradas; nem mesmo aquelas, que embora fossem produzidas licitamente, foram derivadas das ilícitas66.

Essa vedação é importante para que se evite abusos cometidos pelas autoridades policiais ou vítimas de crime, em desrespeito aos direitos e garantias individuais previstos na constituição e demais normas da ordem jurídica. Solução diversa seria ineficaz, dada a máxima dos “fins justificarem os meios”. Afinal, há quem preferiria produzir prova ilícita mesmo que lhe pudesse causar uma punição, se resultasse na condenação do réu.

Não se discute, evidentemente, que a busca da verdade é o que se pretende para a formulação do juízo de fato no direito. Contudo, pelas razões aqui expostas, isso não deve ser motivo para se desrespeitar ou desconsiderar os diversos limites probatórios, exigências, presunções legais e regras de experiências necessários para a definição dos fatos ocorridos.

Definidos os fatos, que como vimos, exige procedimentos e conclusões legítimas, há a necessidade de se dar uma solução jurídica ao caso em análise.

No próximo tópico, falaremos justamente sobre como devemos formular o juízo de direito.

7.2 JUÍZOS DE DIREITO

Determinados os fatos considerados verdadeiros no processo judicial, passa-se à análise da correspondente solução jurídica, através do que denominamos juízos de direito.

As questões meramente de direito devem ser analisadas independentemente das alegações das partes, em razão do próprio conhecimento jurídico pelo magistrado (iura novit curia). Daí o aforismo “da mihe factum, dabo tibi ius”, qual seja, “dá-me os fatos que te darei o direito”.

Enquanto os fatos dependem de prova, salvo se incontroversos, notórios, ou se há alguma presunção legal a respeito (art. 374 do CPC), a sua apreciação jurídica depende “tão só de ponderação e decisão judiciais”67.

A qualificação jurídica do fato ocorrido, ou até mesmo a valoração da prova68, quando disciplinada por lei e regulamento, é considerada questão de direito.

Essa distinção é importante, principalmente, para a condução do processo judicial, tanto para definir preclusões, quanto para fins de admissibilidade recursal.

Exemplo disso é o art. 1.014 do CPC, segundo o qual “as questões de fato não propostas no juízo inferior poderão ser suscitadas na apelação, se a parte provar que deixou de fazê-lo por motivo de força maior”. Assim, no recurso de apelação somente cabe alegar fato não suscitado anteriormente, se demonstrar que não o fez antes por algum impedimento alheio à sua vontade.

Aqui vale destacar, contudo, que os princípios da dialeticidade e devolutividade do recurso de apelação não impedem o Tribunal local de o conhecer e julgar o mérito das questões de direito não tratadas na sentença, nem anteriormente, desde que, obviamente, sejam pertinentes à lide e capazes de anular ou revogar, no todo ou em parte, a decisão recorrida69.

Questões processuais mais comuns que exigem a separação de juízos de fato e de direito são, por exemplo, as de hipóteses de admissibilidade do recurso de revista (art. 896 da CLT), recurso especial (art. 105, III, da CF) e recurso extraordinário (art. 102, III, da CF). Neles são apenas possibilitadas as análises estritamente jurídicas, não se admitindo os reexames fático-probatórios, nos termos das súmulas 126 do TST70, 7 do STJ71 e 279 do STF72.

A uniformização de nossa jurisprudência a respeito de interpretações jurídicas em determinadas circunstâncias fáticas, devidamente delimitadas, é bem vinda para que haja a tão salutar segurança jurídica, com diminuição da litigiosidade. Com a recente previsão constitucional do requisito da relevância das questões de direito federal infraconstitucional para o cabimento do recurso especial (§ 2º do art. 105 da CF), embora ainda pendente de regulamentação, aliado ao rito processual do art. 1.036 do CPC (recurso em demandas repetitivas), passamos a ter importantes instrumentos que visam assegurar uniformidade de interpretação pelos nossos magistrados. Vale lembrar também uniformizações semelhantes no âmbito dos tribunais locais, como as previstas nos arts. 948 (incidente de assunção de competência) e 976 (incidente de resolução de demandas repetitivas – IRDR) do CPC.

Tais instrumentos, infelizmente, ainda estão sendo pouco utilizados, não refletindo ainda na redução satisfatória das demandas judiciais. Parece haver certa resistência na sua utilização, pois queira ou não, tal uniformização limita a autonomia e, consequentemente o poder dos magistrados e tribunais locais, considerando-se nossa cultura ainda autoritária e individualista.

De qualquer forma, dada a força vinculante desses precedentes (art. 927 do CPC), é preciso que sejam julgados com a devida contenção, em respeito à independência entre os Poderes. O julgamento das questões de direito não autoriza o Judiciário a alterar o que foi decidido politicamente pelos demais Poderes, a não ser por alguma inconstitucionalidade evidente.  

A lógica da jurisprudência é solucionar uniformemente questões jurídicas, cujas circunstâncias possam gerar controvérsia interpretativa. Não deve, contudo, servir para corromper a ordem jurídica com decisões que mudem a solução adotada pelo parlamento e Poder Executivo, para prevalecer alguma utilidade diversa.

Assim, embora seja de grande valia a previsão de precedentes vinculantes, para garantir maior segurança jurídica, seria mais adequado que houvesse certo controle dessas decisões pelos demais Poderes.

Evidentemente que esse controle seria restrito às questões meramente de direito, quando o Poder Executivo e Legislativo entender que a decisão judicial com força vinculante teria contrariado a lei, ou seja, teria dado interpretação incompatível com o texto normativo.

A nossa Constituição regulamenta de forma razoavelmente adequada o controle e interdependência entre os Poderes Legislativo e Executivo, com divisão de atribuições, competência de um e outro para iniciar certos projetos de lei, previsão de veto pelo Executivo e derrubada de veto pelo congresso, dentre outros mecanismos. Contudo, nenhum controle é previsto para as decisões judiciais fora do Poder Judiciário, particularmente quando a decisão se restringe às questões de direito. No meu entender há nisso uma falha que torna nosso Poder Judiciário um verdadeiro Poder moderador, com nítida prevalência desarrazoada sobre os demais Poderes.

Talvez isso venha de uma inadequada e ilusória visão de que o Poder Judiciário seria um órgão eminentemente técnico, sem interferência nas políticas públicas previstas nos textos normativos, pois lhe caberia tão somente fazer valer a norma já emitida pelos demais Poderes.

Isso não é o que sempre se vê, contudo, na realidade.

Hoje temos ao menos um instrumento que poderia ser utilizado para melhor garantir um certo equilíbrio entre os Poderes, com resguardo da segurança jurídica.

Interpretação do Poder Judiciário diferente daquela adotada pelo Executivo deveria ter efeitos não retroativos, ex nunc, modulados nos termos dos arts. 23, 24, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657/1942) e 2º, XIII, da Lei 9.784/1999.

Essa medida, entretanto, não vem sendo adotada pelos nossos Tribunais Superiores. Ao contrário, essas modulações estão cada vez mais sendo utilizadas em prejuízo à administração pública, o que configura verdadeira inversão de valores, com grave prejuízo à segurança jurídica, ao princípio da separação dos poderes e ao erário.

Exemplo disso foi a modulação dos efeitos prevista no Tema 97973 do Superior Tribunal de Justiça, que mesmo adotando interpretação semelhante à já adotada pela administração pública, de forma inadequada, modulou seus efeitos em prejuízo ao erário e à segurança jurídica, anulando-se inúmeros atos administrativos de cobrança, mesmo considerados “válidos”.

Além desse importante mecanismo de limitação dos efeitos das decisões judiciais no tempo, quando utilizadas adequadamente, seria salutar mudança constitucional para assegurar que nos precedentes judiciais vinculantes, exista a possibilidade de controle, ou melhor, revisão pelo Parlamento.

Essa possibilidade estaria respaldada na doutrina dos diálogos institucionais74 que busca um equilíbrio de forças entre os Poderes Judicial e Legislativo.

Da mesma forma que há um controle recíproco entre o Legislativo e o Executivo na formação da lei, parece-me adequado que o Legislativo possa revogar um precedente vinculante dos Tribunais Superiores, quando entender que contraria ou extrapola o sentido do texto normativo. Vale destacar que estamos aqui apenas tratando de questões estritamente de direito e para além do caso concreto, e não de reexame fático-probatório.

Apenas as questões eminentemente constitucionais decididas pelo Supremo Tribunal Federal ficariam de fora dessa possibilidade de revogação pelo Parlamento. Afinal, nessas situações há o próprio controle de constitucionalidade do ato expedido pelo Poder Legislativo ou Executivo.

8. CONCLUSÃO

O direito não deve apenas ser compreendido como fato, fenômeno social, de forma objetiva, através de métodos científicos75, mas também pensado e realizado como valor: como interpretá-lo de modo a nos trazer benefícios e atender nosso sentimento de justiça?

É verdade que o valor de um objeto não é algo que lhe seja intrínseco. Como bem percebeu Espinosa, não desejamos algo por sê-lo bom, mas ao contrário, consideramo-lo bom porque o desejamos.

Mas mesmo sendo todo desejo relativo, assim como o valor que dele decorre, nada impede de defendermos uma moral ou interpretação jurídica que atenda valores universalizáveis. Afinal de contas, possuímos corpos e relações semelhantes: como, então, não seriam semelhantes diversos desejos e vontades, expressas em nossas ordens político jurídicas, morais e ética, culturalmente construídas?

Para buscarmos um direito como valor é preciso, antes de tudo, criar um sentido da norma jurídica de forma a atender ao fim social que para nós ela se destina, levando em consideração nossa cultura.         

No processo interpretativo, devemos ter em mente os ensinamentos a seguir.

Deve-se levar em consideração as suas consequências práticas, afastando-se aquelas desconexas com a realidade e que geram efeitos por demais prejudiciais e obrigações impossíveis.

Deve-se refletir, na medida do possível, uma razão prática, uma solução imparcial, resultante de um processo dialético do pensamento, não devendo o julgador e intérprete se imiscuir com posições meramente pessoais, através de discursos monológicos.

É importante evitar decisões tirânicas e autoritárias, compreendendo que agimos movidos por diversas ordens autônomas e interdependentes, como a ordem técnico-científica e econômica (1ª); ordem político jurídica (2ª); ordem moral (3ª); e ordem ética (4ª). O ideal seria que tais ordens estivessem na mesma direção, mas nem sempre isso é possível. E é por isso que devemos pensar em soluções através da utilização do sobejamento (prevalência de um ou outro interesse no caso concreto), considerando-se as máximas da adequação, necessidade e ponderação.

A solução jurídica deve ser adequada à finalidade que extraímos da norma jurídica.

A necessidade nos conduz à solução jurídica menos gravosa e que possa se compatibilizar com outros interesses legítimos.

Na ponderação deve-se ter em mente que todo valor e interesse juridicamente protegido é relativo, pois se refere a situações e circunstâncias concretas. Assim, quando há conflito entre as diversas ordens de valores e interesses, deve-se buscar soluções que as pondere, evitando-se aquelas totalitárias e arbitrárias que anulam valores e interesses legítimos em detrimento de outros. Aqui vale destacar que para a coletividade, como é o caso da atividade jurisdicional, as ordens de valores de hierarquia inferior devem prevalecer relativamente sobre as superiores (a 1ª sobre a 2ª; a 2ª sobre a 3ª, e assim sucessivamente). Daí porque a ordem jurídica (a norma emitida pela autoridade estatal competente, de 2ª ordem) deve prevalecer, em princípio, sobre a ordem moral (3ª) e ética (4ª) particular do julgador.

O intérprete do direito deve sempre ter em mente a justiça. Mas não com uma abordagem utilitarista ou liberal, de dar a cada um o que é seu segundo seu posicionamento particular. A justiça tem a ver com o ato em conformidade com a lei ou regra (sentido formal); afinal, num contrato social idealizado, deve-se antes de tudo respeitar as regras emitidas pelo Estado. E também tem a ver com a ideia de igualdade, mas não a igualdade de fato, irrealizável e nem sempre vantajosa para a sociedade como um todo, mas a jurídica, de direitos, que combate privilégios (sentido material).

É verdade que essa igualdade jurídica, como todo valor, também é relativa, admitindo-se certo tratamento desigual, quando for para beneficiar os menos favorecidos, para transpor barreiras socioeconômicas, garantindo maior igualdade de oportunidades.

De qualquer forma, uma concepção de justiça material não deve autorizar a desconsideração de uma norma jurídica. Ou se consegue evitar consequências danosas através da utilização de regras de hermenêuticas culturalmente construídas, ou se deve respeitar a norma, mesmo que dela discordemos, até que eventualmente possa vir a ser alterada através do legítimo processo legislativo. Afinal, não há justiça dentro de uma concepção individual, mas sempre com respeito às regras democráticas e legítimas.

Na prática judiciária observamos dois tipos de juízos decisórios: os juízos de fato (análise fático probatória) e os de direito.

A definição dos fatos juridicamente relevantes não deve decorrer da livre apreciação da prova pelo magistrado, mas, sim, do resultado de um procedimento dialético e imparcial, respeitando-se a ampla defesa, o contraditório e as normas que dispõem sobre os ônus das provas, presunções legais e judiciais, e exigências quanto aos documentos indispensáveis à prova de determinados fatos, pois resultam da nossa experiência histórica e visam impedir que prevaleçam circunstâncias suscetíveis às mentiras, simulações e fraudes. Ainda havendo dúvidas, deve-se utilizar raciocínios lógicos na análise das provas (presunções judiciais) e se atentar para as regras de experiência.

As questões de direito devem ser analisadas independentemente das alegações das partes, em face do próprio conhecimento jurídico do magistrado.

Os diversos instrumentos que temos para uniformização de nossa jurisprudência, como o recurso especial representativo da controvérsia, extraordinário com repercussão geral, o incidente de assunção de competência e incidente de resolução de demandas repetitivas, são de grande importância para garantir maior segurança jurídica.

Contudo, a fim de se evitar que o Poder Judiciário extrapole sua competência, modificando a própria norma jurídica editada pelos demais Poderes, seria mais adequado se o Legislativo pudesse revogar um precedente vinculante dos Tribunais Superiores, com exceção, das questões constitucionais decididas pelo Supremo Tribunal Federal.


2VASCONCELOS, Daniel Roffé de. Crítica ao pensamento jurídico como sistema. https://revistaft.com.br/critica-ao-pensamento-juridico-como-sistema/; VASCONCELOS, Daniel Roffé de. Por um conceito científico de direito. < https://revistaft.com.br/por-um-conceito-cientifico-de-direito/>       

3EPINOSA. Ética. In: Os Pensadores – Espinosa Vol. II. São Paulo: Nova Cultural, 1989, p. 118.

4COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. 1ª ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003, p. 617.

5Ibidem, p. 539.

6Ibidem, p. 541.

7Ibidem, p. 542.

8NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 38 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2016, p. 264.

9MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e interpretação do Direito. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 16.

10Ibidem, p. 11.

11Ibidem, p. 30-31.

12Ibidem, p.27.

13ATIENZA, Manuel. As razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. 3ª ed. São Paulo: Landy Editora, 2006, p. 40.

14MONTEIRO, Washington B. Curso de Direito Civil. Vol. I, p. 43.

15MAXIMILIANO, op cit, p. 203.

16Ibidem, p. 211.

17Ibidem, p. 33.

18“Art. 5o  Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”

19GAGLIANO, Paulo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rofolfo. Manual de Direito Civil – volume único. 3ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 65-66.

20ROSARIO, Fernando Ruiz. Racionalidade e verossimilhança segundo Karl Popper, 2018, p. 33. <https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/BUOS-B76FMZ/1/dssmestrado_fernandoruizrosario.pdf>: “Por racionalismo ele entende “uma atitude que procura resolver tantos problemas quanto for possível por meio de um apelo à razão, isto é, ao claro pensamento e à experiência, em vez de apelar para emoções e paixões” (POPPER, 1998, p. 232). Racionalismo é aqui entendido de uma maneira ampla, incluindo tanto os processos intelectuais quanto a experiência, abarcando tanto as vertentes racionalistas quanto as empiristas. Em oposição temos o irracionalismo que, em linhas gerais, não atribui à razão o protagonismo em certos processos a ela atribuídos, formulando explicações com base nas paixões ou sentimentos.”

21REALE, Giovanni; ANTISERI, Dário. História da Filosofia – vol. II. 3ª ed. São Paulo: Paulus, 1990, p. 912-913.

22RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 147.

23COMTE-SPONVILLE, 2003, p. 162.

24COMTE-SPONVILLE, André. O capitalismo é moral?. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005, p. 90.

25Ibidem, p. 90.

26Ibidem, p. 91.

27Ibidem, p. 95.

28Ibidem, p. 96.

29Ibidem, p. 132.

30Ibidem, p. 133-135.

31THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Tradução: Sérgio Karam. Porto Alegre: L&PM, 1997, p.5-6. <https://www.ufrgs.br/cdrom/thoreau/thoreau.pdf>

32Aqui prefiro o termo ponderação à “proporcionalidade em sentido estrito”, uma vez que este último pode causar uma falsa concepção de valores intrínsecos aos objetos, que poderiam ser objetivamente medidos.

33ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 5ª ed. São Paulo: Malheiros Editora Ltda, 2006, p. 167.

34COMTE-SPONVILLE, 2005, pág. 95.

35GARSCHAGEN, Bruno. Direitos máximos, deveres mínimos: o festival de privilégios que assola o Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2018, p. 159-160: “Num período de sete anos, o Ministério da Saúde viu a sua despesa aumentar 1.300% “´para cumprir decisões judiciais de compra de medicamentos e insumos para tratamento médicos”. Se em 2008 os gastos com a judicialização da saúde eram da ordem de R$ 70 milhões, em 2015 já eram de R$ 1 bilhão. A maior parte dessas despesas era destinada à compra de “remédios de alto custo, em alguns casos sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”.
Uma auditoria feita pelo Tribunal de Contas da União (TCU) mostrou “que de um total de R$ 2,7 bilhões gastos entre 2010 e 2015” pelo Ministério da Saúde para cumprir decisões judiciais, 54% do total foi destinado para a compra de “apenas três medicamentos, demandados para o cuidado de pacientes com doenças raras”: Naglazyme, Elaprase e Soliris.
Entre 2005 e 2010, houve um aumento de impressionantes 5.000% das despesas para atender decisões judiciais. Os gastos passaram de R$ 2,24 milhões para R$ 132,6 milhões em seis anos.
(…)
Não é, entretanto, o cofre do Governo Federal o mais afetado com a judicialização da saúde. O TCU revelou que os governos estaduais sofrem mais para cumprir as ordens judiciais solicitadas por quem precisa de tratamento não oferecido pelo SUS. As Secretarias de São Paulo, Minas Gerais e Santa Catarina, por exemplo, gastaram R$ 1,5 bilhão nos anos de 2013 e 2014 para atender decisões da Justiça. Cerca de 80% desse valor foi usado na compra de medicamentos.”

36PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 9.

37SCHMIDTZ, David. Os elementos da justiça. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 23.

38SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. 4ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 321.

39Ibidem, p. 65.

40Ibidem, p. 321.

41Ibidem, p. 322.

42POPPER, Sir Karl R.. A sociedade aberta a seus inimigos – 1º volume. 1974. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada, p. 80.

43COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. 1ª ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007, p. 78.

44POPPER, 1974, p. 109

45RAWLS, op cit., p. 19.

46SANDEL, op cit, p. 178.

47RAWLS, op cit., p. 19.

48SANDEL, op cit, p. 179.

49LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução Renato Aguiar. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 100-101; 103; 107.

50GAMA, William Ricardo Grilli. O direito de errar por último. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4204, 4 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31657. Acesso em: 6 jan. 2023.

51PASCAL, Blaise. Pensamentos. 4ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 150.

52COMTE-SPONVILLE, 2003, p. 335.

53LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 392.

54Ibidem, p. 393.

55HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação. São Paulo: Editora Loyola, 2004, p. 254.

56COMTE-SPONVILLE, 2003, p. 626.

57POPPER, KARL RAIMUND. Textos escolhidos/Karl Popper. In: Davi Miller (organização e tradução). Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010, p. 182-183.

58COMTE-SPONVILLE, 2003, p. 489.

59CÂMARA, Lições, v. 1, 2003, p. 393; GRECO FILHO, Direito, v. 2, 2000, p. 180.

60MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz, Prova e convicção. 5ª ed. São Paulo: Editora Thomson Reuters – Revista dos Tribunais, 2019, p. 115: “ Nesse sentido, quando o juiz, por meio da prova, percebe o fato a provar, a prova é dita direta. Mas, quando o objeto da percepção não é o objeto da prova, mas sim outro fato do qual o juiz pode deduzir o fato direto, a prova é indireta. Portanto, segundo CARNELUTII, na prova indireta há uma separação entre o objeto da prova e o objeto da percepção judicial.”

61Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que Ihe formaram o convencimento.

62REsp 637.437/PB, Rel. Ministra Laurita Vaz (DJ de 13/09/2004), REsp 603.202/RS, Rel. Ministro Jorge Scartezzini (Quinta Turma); REsp 439.647/RS Rel.Ministro Hamilton Carvalhido (Sexta Turma); EAR/SP 719, Rel. Ministro Hélio Quaglia Barbosa (DJ 24/11/2004) e AR 1.166/SP, Rel. Ministro Hamilton Carvalhido, (Terceira Seção).

63MARANHÃO, Rebecca Lima Albuquerque; VIERIA FILHO, José Eustáquio Ribeiro. Previdência Rural no Brasil. IPEA, 2018, p. 8.

64Ibidem, p. 9.

65 Art. 157.  São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)
§ 1o São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
§ 2o Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
§ 3o Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
§ 4o (VETADO) (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
§ 5º O juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão.  

66Nesse sentido, vale destacar o precedente do STJ: HC 301.488/MT, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 01/09/2016, DJe 06/09/2016.

67LARENZ, 2005, p. 433.

68AgInt no AREsp n. 2.024.873/RJ, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 8/8/2022, DJe de 15/8/2022: “A errônea valoração da prova que dá ensejo à excepcional intervenção do Superior Tribunal de Justiça na questão decorre de falha na aplicação de norma ou princípio no campo probatório, não das conclusões alcançadas pelas instâncias ordinárias com base nos elementos informativos do processo.”

69Nesse sentido, vale destacar o precedente do STJ: AgInt no REsp n. 1.848.104/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, relator para acórdão Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 20/4/2021, DJe de 11/5/2021.

70< https://jurisprudencia.tst.jus.br/?tipoJuris=SUM&orgao=TST&pesquisar=1>: Incabível o recurso de revista ou de embargos (arts. 896 e 894, “b”, da CLT) para reexame de fatos e provas.

71<https://www.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2005_1_capSumula7.pdf>: A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.

72< https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/seq-sumula279/false>: Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário.

73Devolução ou não de valores recebidos de boa-fé, a título de benefício previdenciário, por força de interpretação errônea, má aplicação da lei ou erro da Administração da Previdência Social.

74PEIXOTO, Ravi. A teoria dos precedentes e a doutrina dos diálogos institucionais: em busca de um equilíbrio entre o Poder Legislativo e o Poder JudiciárioCivil Procedure Review[S. l.], v. 9, n. 2, p. 41–74, 2018. Disponível em: https://www.civilprocedurereview.com/revista/article/view/171. Acesso em: 23 nov. 2024.

75Direito como conjunto de regras, seja qual for seu conteúdo e extensão, emitidas pelas autoridades de determinado Estado, atuando como tal (aparência de legitimidade), independentemente de sua validade, coerência e harmonia.

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1Procurador Federal – Advocacia-Geral da União.