REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/dt10202511131941
Gabriel Mendonza dos Santos
Resumo
O presente artigo busca analisar a eutanásia sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento basilar do Estado Democrático de Direito brasileiro. A discussão envolve a colisão entre o direito à vida — tutelado constitucionalmente — e a autonomia individual, que abrange o direito de decidir sobre o próprio corpo e o próprio morrer. A pesquisa adota método dedutivo e abordagem qualitativa, fundamentada em doutrina, jurisprudência e instrumentos normativos. Ao final, conclui-se que, embora a eutanásia ainda seja juridicamente vedada no Brasil, há uma tendência de flexibilização ética e filosófica quanto à autonomia do paciente terminal, devendo o princípio da dignidade humana ser interpretado de forma ampla, contemplando não apenas o direito de viver, mas também o de morrer dignamente.
Palavras-chave: dignidade da pessoa humana; eutanásia; bioética; autonomia; direito à vida.
Abstract
This article aims to analyze euthanasia from the perspective of the principle of human dignity, a fundamental cornerstone of the Brazilian Democratic State of Law. The discussion involves the conflict between the right to life — constitutionally protected — and individual autonomy, which encompasses the right to decide over one’s own body and the manner of one’s death. The research adopts a deductive method and a qualitative approach, grounded in legal doctrine, case law, and normative instruments. In conclusion, although euthanasia is still legally prohibited in Brazil, there is an ethical and philosophical trend toward greater flexibility regarding the autonomy of terminal patients. The principle of human dignity should therefore be interpreted broadly, encompassing not only the right to live but also the right to die with dignity.
Keywords: human dignity; euthanasia; bioethics; autonomy; right to life.
1. Introdução
A eutanásia, entendida como o ato de abreviar a vida de um paciente em sofrimento extremo e irreversível, constitui um dos mais complexos dilemas éticos e jurídicos contemporâneos. A controvérsia reside na tensão entre dois valores fundamentais: o direito à vida e o direito à dignidade.
A Constituição Federal de 1988 consagra, em seu artigo 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Esse princípio assume função estruturante, irradiando-se sobre todo o ordenamento jurídico. No entanto, persiste a questão: a dignidade humana impõe a manutenção da vida a qualquer custo ou também confere ao indivíduo o direito de optar por uma morte digna, livre de sofrimento?
Diante desse contexto, o presente artigo busca examinar a eutanásia à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, explorando seus aspectos filosóficos, jurídicos e bioéticos, bem como suas implicações no ordenamento jurídico brasileiro e comparado.
2. Desenvolvimento
2.1. A dignidade da pessoa humana como princípio constitucional
A dignidade da pessoa humana é um valor intrínseco e inalienável, reconhecido como o núcleo axiológico da Constituição. Segundo Ingo Wolfgang Sarlet (2001), trata-se de um valor fonte que fundamenta os direitos e garantias fundamentais, sendo impossível concebê-los sem sua preservação. A dignidade, portanto, representa a essência da condição humana e o ponto de convergência de todo o sistema jurídico, servindo como critério de interpretação e aplicação das normas.
Mais do que um simples princípio jurídico, a dignidade é um valor moral e ético que confere sentido à existência humana e estabelece limites à atuação do Estado e da sociedade. Conforme ensina Alexy (1994), os direitos fundamentais derivam desse núcleo axiológico, o que significa que toda medida estatal ou privada deve respeitar e promover a dignidade do indivíduo em sua integralidade. Assim, não se trata apenas de garantir a vida como fato biológico, mas de assegurar uma vida digna, que compreende liberdade, autonomia, bem-estar e ausência de sofrimento degradante.
A dignidade humana, sob essa ótica, está intimamente relacionada à autonomia da vontade — o direito de cada indivíduo decidir sobre os rumos da própria existência, inclusive quanto ao momento e às condições de sua morte. Quando um paciente se encontra em estado terminal, submetido a dores intensas e irreversíveis, a manutenção artificial da vida pode se transformar em violação direta da dignidade que o ordenamento busca proteger.
Como destaca Luís Roberto Barroso (2010), a dignidade humana não pode ser confundida com o simples prolongamento da vida a qualquer custo. Viver de forma digna pressupõe o exercício da liberdade e o reconhecimento do ser humano como sujeito de escolhas. Dessa forma, a imposição da vida biológica sem qualidade — desprovida de consciência, autonomia ou possibilidade de gozo existencial — configura afronta à própria ideia de humanidade e transforma o corpo em objeto de tutela estatal.
Nesse sentido, o princípio da dignidade atua como parâmetro de ponderação entre o direito à vida e o direito à autodeterminação. Se, de um lado, o Estado deve proteger a vida como bem jurídico fundamental, de outro, não pode compelir o indivíduo a suportar sofrimento desumano em nome de uma moral abstrata. A proteção da vida deve caminhar lado a lado com o respeito à liberdade individual e à compaixão — elementos indispensáveis de uma sociedade ética e humanista.
Portanto, compreender a dignidade da pessoa humana em sua plenitude implica reconhecer que o ser humano é um fim em si mesmo, e não um meio para a preservação de valores externos. Obrigar alguém a viver em condições que negam sua própria humanidade significa, em última análise, desvirtuar o sentido constitucional da dignidade e esvaziar o conteúdo moral do direito à vida. Assim, a discussão sobre a eutanásia deve ser pautada não apenas por critérios legais, mas também por uma reflexão ética mais profunda sobre o que significa viver — e morrer — com dignidade.
2.2. Conceito e modalidades de eutanásia
O termo eutanásia deriva do grego eu (bom) e thanatos (morte), significando literalmente “boa morte”. Desde a Antiguidade, o conceito é objeto de reflexão filosófica, embora seu debate ético e jurídico tenha ganhado maior relevância a partir do século XX, com o avanço da medicina moderna e das tecnologias de prolongamento artificial da vida. A eutanásia, em seu sentido contemporâneo, refere-se à prática — por médico ou terceiro — de provocar ou abreviar a morte de uma pessoa acometida por doença incurável, com sofrimento físico e psíquico extremo, mediante consentimento expresso e informado.
Na bioética moderna, distingue-se a eutanásia ativa, quando há uma ação direta que causa a morte do paciente (por exemplo, administração de substância letal), e a eutanásia passiva, caracterizada pela omissão intencional de procedimentos que apenas prolongariam a agonia (como a retirada de respiradores, hidratação ou alimentação artificiais). Existe ainda o suicídio assistido, no qual o próprio paciente realiza o ato final, mas com auxílio médico ou farmacêutico, sob acompanhamento ético e técnico. Essa distinção, embora aparentemente técnica, possui profundas implicações jurídicas e morais, pois define os limites entre o dever médico de preservar a vida e o dever humanitário de aliviar o sofrimento.
Segundo Beauchamp e Childress (2019), a reflexão bioética sobre a eutanásia deve ser orientada pelos princípios da autonomia, beneficência, não maleficência e justiça. O princípio da autonomia sustenta que o paciente tem o direito de decidir sobre o próprio corpo e o curso do tratamento, inclusive sobre o encerramento da vida em circunstâncias de sofrimento irreversível. Já o princípio da beneficência impõe ao médico o dever de agir visando ao bem estar do paciente, e o da não maleficência, de evitar causar-lhe dano desnecessário. Nesse sentido, prolongar a vida de forma artificial e dolorosa pode representar uma forma de crueldade médica, contrariando o próprio juramento hipocrático, cujo núcleo é “não causar dano”.
O dilema ético central, portanto, está em determinar quando a manutenção da vida deixa de ser um ato de beneficência e passa a constituir uma agressão à dignidade humana. Diego Gracia (2003), renomado bioeticista espanhol, sustenta que “a eutanásia pode ser compreendida, em determinadas circunstâncias, como um exercício legítimo da liberdade e da compaixão, quando a vida perdeu seu conteúdo humano essencial”. Assim, o que se busca não é negar o valor da vida, mas reconhecer que a vida humana digna é aquela que comporta autonomia, consciência e ausência de sofrimento intolerável.
É importante ressaltar que a autonomia do paciente não se confunde com o individualismo absoluto. O exercício da autonomia requer condições de informação, discernimento e consentimento livre, de modo que a decisão pela eutanásia ou suicídio assistido deve sempre ser fruto de reflexão consciente e amparada por equipe médica e ética. Por isso, em países que legalizaram tais práticas, como Holanda, Bélgica e Canadá, os procedimentos seguem protocolos rigorosos de controle, evitando abusos e garantindo a legitimidade da escolha.
Dessa forma, a eutanásia se apresenta como uma questão que transcende o campo médico, alcançando dimensões filosóficas, jurídicas e sociais. Quando a vida se converte em um fardo insuportável e o sofrimento elimina toda perspectiva de dignidade, permitir o descanso do paciente pode ser compreendido não como negação da vida, mas como afirmação da humanidade. Trata-se, enfim, de uma escolha que reflete o respeito à autonomia e à compaixão — valores fundamentais de uma sociedade verdadeiramente ética e democrática.
2.3. A eutanásia no ordenamento jurídico brasileiro
No Brasil, a eutanásia não possui previsão legal específica e, portanto, é considerada crime à luz do Código Penal. A conduta, ainda que movida por compaixão ou piedade, é enquadrada no tipo de homicídio simples, previsto no artigo 121 do Código Penal, podendo apenas haver redução da pena quando o crime for cometido por “motivo de relevante valor social ou moral”, nos termos do §1º do referido dispositivo. Essa atenuante, no entanto, não descaracteriza a ilicitude da ação, apenas reflete o reconhecimento do Estado de que, em tais casos, o agente não atua com crueldade ou dolo perverso, mas movido por sentimento humanitário.
Assim, no ordenamento jurídico brasileiro, a eutanásia ativa — aquela em que se provoca a morte do paciente por meio de ação direta — permanece vedada e punível, ainda que envolva o consentimento do enfermo. Isso decorre do entendimento de que o direito à vida é indisponível e de interesse público, não podendo ser objeto de renúncia ou disposição voluntária. O Estado, nesse sentido, assume a posição de guardião da vida, entendendo que mesmo a morte consentida fere o bem jurídico protegido.
Por outro lado, o avanço da bioética e das discussões médicas impulsionou a construção de alternativas intermediárias, especialmente no campo da ortotanásia e dos cuidados paliativos. A Resolução nº 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina (CFM) constitui um marco nesse processo. O texto estabelece que é eticamente aceitável a suspensão de tratamentos ou procedimentos desproporcionais, que apenas prolonguem o sofrimento do paciente em fase terminal, desde que haja consentimento informado do próprio enfermo ou de seu representante legal.
A ortotanásia — diferentemente da eutanásia ativa — não busca antecipar a morte, mas permitir que o processo natural de morrer ocorra sem intervenções artificiais e dolorosas. O foco recai sobre o respeito à autonomia do paciente, ao direito de recusar tratamento e à garantia de conforto e dignidade na etapa final da vida. Essa prática, reconhecida pelo CFM, vem sendo amplamente aceita pela jurisprudência e pela doutrina brasileira como conduta ética e juridicamente legítima, desde que observados os parâmetros médicos e legais.
Em julgados recentes, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e tribunais estaduais têm se posicionado favoravelmente à ortotanásia, enfatizando o direito de o paciente recusar tratamento fútil e o dever do Estado de assegurar o bem-estar e a dignidade até o fim da vida. Essa tendência demonstra um amadurecimento jurídico e social em torno da morte digna, mesmo sem alteração legislativa expressa.
Ainda assim, a ausência de regulamentação específica para a eutanásia revela a inércia legislativa brasileira diante de uma questão que envolve não apenas o Direito, mas também a ética, a religião, a filosofia e a medicina. Países como Holanda, Bélgica e Canadá já enfrentaram o tema mediante amplos debates públicos e elaboração de leis rigorosas, nas quais a prática é permitida sob critérios estritos e supervisão médica. No Brasil, contudo, o tema ainda é tratado com certa resistência moral e religiosa, o que dificulta a evolução normativa.
Em contrapartida, observa-se que a sociedade brasileira vem gradualmente aceitando a ideia de uma “morte com dignidade”, especialmente nos casos em que a manutenção artificial da vida causa dor insuportável e perda completa da autonomia. O desenvolvimento dos cuidados paliativos, aliado à crescente valorização da autonomia individual, reforça a necessidade de repensar os limites éticos e jurídicos da intervenção médica no fim da vida.
Portanto, embora a eutanásia ativa permaneça ilícita e criminalizada, o reconhecimento progressivo da ortotanásia e do direito de recusa ao tratamento demonstra que o Brasil caminha, ainda que timidamente, para uma compreensão mais humanista e compassiva do direito à vida — não apenas como dever de existir, mas como direito de viver e morrer com dignidade.
2.4. Experiências internacionais e tendências
Em países como Holanda, Bélgica, Luxemburgo e Canadá, a eutanásia e o suicídio assistido são práticas legalmente reconhecidas, porém submetidas a critérios rigorosos que visam equilibrar a autonomia individual com a proteção da vida e o controle ético da medicina. Essas legislações representam uma mudança paradigmática na forma como o Estado e a sociedade compreendem a morte, deslocando o foco do simples prolongamento biológico da existência para o respeito à qualidade de vida e à autodeterminação do paciente.
Na Holanda, pioneira na legalização, a Lei de 2002 (Termination of Life on Request and Assisted Suicide Act) estabelece que a eutanásia é lícita quando o paciente expressa pedido voluntário e reiterado, está em sofrimento insuportável e sem perspectiva de melhora, e o médico segue um procedimento supervisionado por comissão estatal independente. A decisão deve ser comunicada às autoridades de saúde, que avaliam se os critérios legais foram cumpridos, garantindo transparência e controle social.
Na Bélgica, a legislação de 2002 ampliou o alcance do direito à morte assistida, permitindo inclusive que menores de idade, em casos excepcionais e sob estrito acompanhamento médico e psicológico, possam solicitar a eutanásia. O ordenamento belga valoriza a autonomia como expressão da dignidade humana, reconhecendo que o sofrimento intolerável — físico ou psíquico — pode justificar a decisão de antecipar a morte.
O Luxemburgo seguiu caminho semelhante, adotando legislação em 2009 com critérios semelhantes aos belgas e holandeses. Já o Canadá, por meio da Medical Assistance in Dying Act (MAiD), de 2016, passou a permitir tanto a eutanásia quanto o suicídio assistido para pacientes com doenças graves e irreversíveis, sob acompanhamento médico e psicológico, mediante consentimento livre e esclarecido. Em 2021, o país expandiu o acesso ao MAiD para incluir também pessoas com sofrimento psicológico crônico e incurável, demonstrando a consolidação de uma cultura jurídica voltada ao reconhecimento da autonomia existencial.
Essas experiências revelam que a legalização da eutanásia não conduz ao abuso ou banalização da vida, como muitas vezes se teme, mas sim à criação de protocolos éticos e transparentes, que asseguram tanto a liberdade do paciente quanto a responsabilidade do profissional de saúde. O controle estatal e a supervisão médica são essenciais para garantir que a prática não seja motivada por coerção, negligência ou discriminação.
A observação comparativa desses sistemas demonstra uma tendência global de humanização das práticas médicas, em que o morrer deixa de ser tratado como tabu e passa a integrar o continuum da vida com respeito, empatia e compaixão. O direito à autodeterminação é compreendido como parte inseparável da dignidade humana: assim como o indivíduo tem o direito de escolher como viver, também deve ter o direito de escolher como e quando encerrar sua existência, especialmente em contextos de dor irreversível.
No cenário brasileiro, essas experiências internacionais têm servido de inspiração e provocação. Diversos projetos de lei já foram apresentados ao Congresso Nacional — como o PL 236/2012 (novo Código Penal) e o PL 125/1996 — propondo a descriminalização ou a regulamentação da eutanásia e do suicídio assistido, sempre sob condições rigorosas. Apesar de ainda não aprovadas, essas iniciativas indicam que o tema vem ganhando maturidade política e filosófica, aproximando o Brasil do debate internacional sobre o direito de morrer com dignidade.
Em síntese, os países que legalizaram a eutanásia não o fizeram em desprezo à vida, mas em reconhecimento à sua dimensão ética e existencial, compreendendo que viver dignamente inclui também o direito de não sofrer desumanamente. Tais modelos reforçam a necessidade de repensar, no Brasil, a relação entre dignidade, autonomia e vida, à luz de uma ética do cuidado e da liberdade responsável.
2.5. O conflito entre o direito à vida e a autonomia individual
O direito à vida, previsto no artigo 5º, caput, da Constituição Federal, constitui um dos pilares do Estado Democrático de Direito e é tradicionalmente considerado um direito fundamental inalienável e inviolável. Tal direito, no entanto, não deve ser compreendido em sua dimensão puramente biológica, mas sim em sua dimensão existencial e qualitativa. Conforme ensina Luís Roberto Barroso (2013), a proteção constitucional à vida não se dá de modo absoluto, pois a própria Constituição estabelece um sistema de princípios que convivem em harmonia, entre os quais se destacam a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a autonomia individual.
Nesse sentido, afirmar que o direito à vida é inegociável em sua essência não significa que o indivíduo deva ser compelido a viver em condições de dor e sofrimento incompatíveis com a dignidade humana. O que a Constituição protege é a vida digna, não a mera sobrevivência biológica. A manutenção artificial da existência, quando acompanhada de sofrimento extremo, perda de consciência e ausência de autonomia, desvirtua o sentido ontológico do direito à vida, transformando-o em instrumento de opressão e não de proteção.
Ingo Wolfgang Sarlet (2001) ressalta que a dignidade humana é um valor-fonte que dá substância a todos os direitos fundamentais, inclusive ao direito à vida. Assim, uma vida desprovida de dignidade e liberdade deixa de cumprir o propósito constitucional que a sustenta. A eutanásia, nesse contexto, não representa negação à vida, mas afirmação de um valor maior: o respeito à condição humana e à liberdade de escolha.
A visão tradicional que concebe a vida como valor absoluto encontra suas raízes em concepções religiosas e morais que, embora respeitáveis, não podem impor-se como parâmetro único em um Estado laico e pluralista. O Estado Democrático de Direito deve garantir o direito de cada cidadão viver — e morrer — conforme suas próprias convicções éticas, espirituais e filosóficas. Kant (1785), ao definir o ser humano como fim em si mesmo, já sustentava que a dignidade consiste na capacidade racional de autodeterminação. Negar essa autonomia é tratar o indivíduo como objeto, e não como sujeito de direitos.
A eutanásia, portanto, desafia o paradigma de sacralização da vida, propondo uma nova perspectiva: a de que a qualidade da existência deve prevalecer sobre sua mera extensão temporal. Esse entendimento não banaliza a vida, mas a eleva a um patamar ético mais elevado, no qual o valor existencial supera a simples vitalidade orgânica. Como observa Luigi Ferrajoli (2002), a vida é bem jurídico apenas na medida em que serve à liberdade; quando a vida se converte em sofrimento intolerável, a proteção cega à sua continuidade torna-se violadora dos próprios direitos fundamentais.
Desse modo, impor a continuidade da vida em sofrimento extremo é negar o núcleo da liberdade e reduzir o indivíduo à condição de objeto do próprio corpo, alienando-lhe o poder de decidir sobre sua própria existência. O Estado, ao recusar qualquer possibilidade de escolha, acaba por exercer uma forma de paternalismo jurídico incompatível com a dignidade humana, transformando o direito à vida em dever de viver.
Em contrapartida, reconhecer a autonomia do indivíduo para decidir sobre o fim de sua vida — quando comprovada a irreversibilidade do quadro clínico e o sofrimento insuportável — significa reafirmar o valor da vida como escolha consciente e não como imposição coercitiva. Assim, o verdadeiro respeito à vida reside no reconhecimento de que ela só tem sentido quando vivida com liberdade, consciência e dignidade.
3. Conclusão
A análise empreendida demonstra que a eutanásia constitui um dos mais complexos e sensíveis dilemas ético-jurídicos do século XXI, desafiando as fronteiras entre o direito à vida, a autonomia individual e a dignidade da pessoa humana. Trata-se de um tema que transcende o campo jurídico, alcançando dimensões morais, filosóficas, religiosas e sociais, e que exige do Estado e da sociedade uma reflexão madura e desprovida de preconceitos dogmáticos.
O princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República e núcleo axiológico do ordenamento constitucional brasileiro, impõe não apenas a proteção da vida como bem jurídico, mas também a valorização da liberdade de escolha e da autonomia existencial. Dignidade e vida não podem ser compreendidas de forma dissociada: viver dignamente significa poder exercer a própria liberdade, inclusive no instante final da existência. Forçar alguém a prolongar a vida em meio à dor, à dependência e à perda total de consciência é, em última instância, negar a própria essência da dignidade que a Constituição busca proteger.
Embora o ordenamento jurídico brasileiro ainda criminalize a eutanásia, observa-se um movimento gradativo de evolução ética e normativa em direção ao reconhecimento do direito de morrer com dignidade. A aceitação crescente da ortotanásia e a consolidação dos cuidados paliativos humanizados — respaldados pelo Conselho Federal de Medicina — revelam uma importante inflexão na forma como a sociedade e o Direito encaram o processo de morrer. Nessas práticas, o foco desloca-se da obstinação terapêutica para a preservação da autonomia e do conforto do paciente, marcando o início de uma nova compreensão sobre o fim da vida como parte do ciclo natural humano.
O respeito à dignidade da pessoa humana deve, portanto, abranger não apenas o direito de viver, mas também o direito de morrer com serenidade, autonomia e compaixão. Reconhecer o direito à morte digna não significa relativizar o valor da vida, mas sim compreender que a vida só possui sentido quando vivida com liberdade e humanidade. A verdadeira proteção jurídica da vida reside em permitir que cada indivíduo decida, de forma consciente e responsável, sobre os limites do seu próprio sofrimento e sobre o momento de cessar sua dor.
O desafio que se impõe ao legislador e à sociedade brasileira é romper com os paradigmas de um direito meramente punitivo e construir uma normativa ética, humanista e laica, capaz de equilibrar o valor da vida com o direito à autonomia individual. É necessário reconhecer que a compaixão e o respeito à liberdade humana são expressões da própria dignidade — e não sua negação. Assim, evoluir para uma legislação que contemple a morte digna é afirmar o Estado Democrático de Direito em sua dimensão mais nobre, em que o ser humano é reconhecido como sujeito de escolhas e portador de valor em todas as fases de sua existência, inclusive no ato de morrer.
Referências
• BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
• BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics. 8th ed. Oxford University Press, 2019.
• SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
• CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 1.995, de 9 de agosto de 2012.
• BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. • BRASIL. Código Penal Brasileiro. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
