REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202512111144
Ana Laura Milhomem Martins
Jailson de Oliveira Alves Junior
Orientador: Prof. Dr. Caio Marco Berardo
RESUMO
O presente artigo realiza uma análise crítica e aprofundada da seletividade penal no Brasil, investigando-a como a lógica estrutural do sistema de justiça criminal e um mecanismo de perpetuação da exclusão social. O objetivo geral é demonstrar como o Direito Penal, sob o discurso de neutralidade, opera de forma discriminatória, direcionando seu rigor punitivo de maneira desproporcional contra grupos socialmente marginalizados, em especial a população negra e pobre, em afronta direta aos princípios constitucionais da isonomia e da dignidade da pessoa humana. A pesquisa fundamenta-se teoricamente na Criminologia Crítica (Zaffaroni, Baratta, Batista), no Garantismo Penal (Cirino dos Santos) e nos conceitos de Racismo Estrutural e Aporofobia. Adota-se uma metodologia qualitativa, com revisão bibliográfica e análise documental de dados estatísticos (INFOPEN/CNJ) e da jurisprudência dos Tribunais Superiores. Os resultados confirmam que o perfil da população carcerária (majoritariamente negra e pobre) é o produto da função oculta do Direito Penal. Essa seletividade se materializa na discricionariedade da Lei de Drogas, que impulsiona o encarceramento em massa, e na seletividade invertida na aplicação do princípio da insignificância, que pune o pequeno furto com rigor, enquanto crimes de colarinho branco gozam de complacência. Conclui-se que a superação da seletividade exige uma transformação paradigmática, com o fortalecimento das garantias processuais e a adoção de políticas de justiça restaurativa e de redução de danos.
Palavras-chave: Seletividade Penal. Criminalização da Pobreza. Criminologia Crítica. Função Oculta do Direito Penal. Encarceramento em Massa.
ABSTRACT
This article performs a critical and in-depth analysis of penal selectivity in Brazil, investigating it as the structural logic of the criminal justice system and a mechanism for perpetuating social exclusion. The general objective is to demonstrate how Criminal Law, under the discourse of neutrality, operates discriminatorily, directing its punitive rigor disproportionately against socially marginalized groups, especially the black and poor population, in direct violation of the constitutional principles of isonomy and human dignity. The research is theoretically based on Critical Criminology (Zaffaroni, Baratta, Batista), Penal Garantism (Cirino dos Santos), and the concepts of Structural Racism and Aporophobia. A qualitative methodology is adopted, involving a bibliographic review and documentary analysis of statistical data (INFOPEN/CNJ) and the jurisprudence of the Superior Courts. The results confirm that the profile of the prison population (mostly black and poor) is the product of the hidden function of Criminal Law. This selectivity materializes in the discretion of the Drug Law, which drives mass incarceration, and in the inverted selectivity in the application of the principle of insignificance, which punishes petty theft with rigor, while white-collar crimes enjoy complacency. It is concluded that overcoming selectivity requires a paradigmatic transformation, with the strengthening of procedural guarantees and the adoption of restorative justice and harm reduction policies.
Keywords: Penal Seletivity. Criminalization of Poverty. Critical Criminology. Hidden Function of Criminal Law. Mass Incarceration.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O sistema de justiça penal brasileiro, constitucionalmente incumbido de garantir a ordem jurídica e os direitos fundamentais, opera, na prática, como um mecanismo estrutural de controle social e repressão. Este fenômeno, vastamente analisado pela criminologia crítica, evidencia que o Direito Penal não cumpre seu papel de forma universal e imparcial, recaindo com intensidade e severidade desproporcional sobre os segmentos mais vulneráveis da população. A criminalização da pobreza no Brasil reflete, assim, a profunda desigualdade social, econômica e racial que marca a formação histórica do país.
O processo de seleção penal manifesta-se em todas as esferas: da abordagem policial violenta nas periferias à atuação acusatória do Ministério Público, culminando nas decisões judiciais e na execução penal. A chamada “guerra às drogas” e o racismo institucionalizado são vetores que potencializam um sistema que, faticamente, penaliza a própria condição de pobreza.
Diante deste cenário, que coloca o Brasil como detentor da terceira maior população carcerária do mundo, majoritariamente composta por indivíduos negros, pobres e de baixa escolaridade, emerge o problema de pesquisa: O sistema penal brasileiro opera de forma seletiva e discriminatória, criminalizando desproporcionalmente pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica, em afronta aos princípios constitucionais da isonomia e da dignidade da pessoa humana?
Partindo da premissa de que o sistema é intrinsecamente seletivo, este trabalho tem como objetivo geral analisar criticamente a atuação do sistema penal brasileiro na criminalização da pobreza, focando em sua função oculta de repressão a grupos socialmente marginalizados. Para tanto, busca-se: (a) Analisar o perfil socioeconômico da população carcerária e sua relação com a desigualdade no tratamento legal; (b) Comparar o tratamento dado a crimes patrimoniais cometidos por pessoas pobres e crimes de colarinho branco das elites; e apontar alternativas jurídicas e políticas para superar essa seletividade.
Esta pesquisa justifica-se pela urgência em desnudar as reais funções do Direito Penal na sociedade brasileira, fomentando o debate sobre alternativas ao punitivismo e contribuindo para a construção de uma justiça penal mais democrática e comprometida com os direitos humanos. A relevância acadêmica reside na aplicação e aprofundamento da Criminologia Crítica, integrando conceitos como Racismo Estrutural e Aporofobia à análise da seletividade. A relevância social e jurídica reside na contribuição para o debate sobre a reforma da política criminal e a efetivação do Garantismo Penal.
Para atingir o objetivo proposto, o presente artigo está estruturado em cinco seções principais, além desta introdução. A Fundamentação Teórica aborda a estruturação da seletividade penal, suas raízes históricas, o papel da mídia e a intersecção entre racismo e aporofobia. A metodologia de pesquisa, baseada na revisão bibliográfica e na análise documental e jurisprudencial. Os Resultados e Discussões apresenta a materialização da seletividade, analisando o perfil do encarceramento, a discricionariedade da Lei de Drogas e a seletividade invertida na aplicação do princípio da insignificância. Por fim, as Considerações Finais sintetizam as conclusões e aponta as alternativas jurídicas e políticas para a superação da seletividade.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: A ESTRUTURAÇÃO DA SELETIVIDADE PENAL NO BRASIL
A análise crítica da seletividade penal exige um referencial teórico que transcenda a dogmática jurídica tradicional, que se limita à análise da norma posta. O presente trabalho apoia-se na Criminologia Crítica e no Garantismo Penal, perspectivas que desnudam o funcionamento do sistema de justiça criminal, revelando seu caráter intrinsecamente seletivo e sua vinculação às estruturas de poder social e econômico.
A seletividade, longe de ser um desvio, é a lógica estrutural do sistema penal brasileiro, manifestando-se como um mecanismo de controle social que opera a partir de recortes de classe e raça.
A Criminologia Crítica, ao inverter o foco da análise do criminoso para o sistema que o define e pune, revela a função oculta do Direito Penal: a gestão e a repressão dos grupos sociais considerados “indesejados” ou “perigosos” pelas classes dominantes. Essa função se manifesta de forma aguda na intersecção entre a criminalização da pobreza e o racismo estrutural.
RACISMO ESTRUTURAL E APOROFOBIA COMO VETORES DA SELETIVIDADE
O perfil da população carcerária brasileira não pode ser compreendido apenas pela ótica da desigualdade econômica. Ele é o produto direto da simbiose entre a criminalização da pobreza e o racismo estrutural. O sistema penal, herdeiro de uma estrutura social escravocrata, direciona seu poder punitivo de forma desproporcional contra a população negra e parda, que historicamente ocupa as bases da pirâmide social.
O conceito de aporofobia (aversão ou medo da pobreza) complementa essa análise, evidenciando que a repressão não se dirige ao crime em abstrato, mas à própria condição de vulnerabilidade social. O indivíduo pobre, especialmente o negro e periférico, é préselecionado como o “inimigo” do Direito Penal, antes mesmo da prática de qualquer delito.
AS RAÍZES HISTÓRICAS DA SELETIVIDADE PENAL NO BRASIL: O LEGADO ESCRAVOCRATA
A seletividade penal brasileira não é um fenômeno recente, mas o resultado de um legado histórico profundamente enraizado na formação social do país. A transição da escravidão para a República não resultou na integração social da população negra e pobre, mas sim na sua criminalização. O Direito Penal pós-abolição (como o Código Penal de 1890) foi um instrumento de controle social que visava reprimir a vadiagem, a capoeira e outras condutas associadas aos ex-escravizados, consolidando a seletividade racial e social que perdura até hoje.
A persistência do racismo estrutural no sistema de justiça criminal é a prova de que o Direito Penal brasileiro, em sua gênese, foi concebido para gerir a desigualdade, e não para combatê-la.
O DIREITO PENAL DO INIMIGO E A CONSTRUÇÃO DO “PERIGOSO”
A teoria do Direito Penal do Inimigo (DPI), popularizada por Günther Jakobs, embora controversa, oferece um prisma para entender a intensificação da seletividade. O DPI propõe a distinção entre o cidadão (que comete crimes e deve ser punido dentro das garantias) e o inimigo (que representa um perigo e deve ser neutralizado, mesmo que com a mitigação de direitos).
No contexto brasileiro, o DPI se manifesta de forma informal e seletiva. O “inimigo” não é o terrorista internacional, mas o jovem negro e pobre da periferia, rotulado como “traficante” ou “ameaça à ordem pública”. O sistema penal, ao aplicar penas mais severas, restringir garantias processuais (como a presunção de inocência) e promover o encarceramento em massa desses grupos, opera uma política de neutralização que se alinha à lógica do DPI, mas com um recorte de classe e raça.
O PAPEL DA MÍDIA NA CONSTRUÇÃO DO ESTEREÓTIPO CRIMINAL
A Criminologia Midiática demonstra que a mídia hegemônica desempenha um papel crucial na manutenção da seletividade penal. Ao focar a cobertura criminal em delitos violentos e associar o “criminoso” a um estereótipo específico (jovem, negro, periférico), a mídia reforça o medo social e legitima a repressão estatal contra esses grupos.
Essa espetacularização do crime desvia o foco dos crimes de colarinho branco e da corrupção, que causam danos sociais e econômicos muito maiores, mas cujos autores não se encaixam no estereótipo construído. A mídia, ao atuar como um agente de rotulação e estigmatização, contribui para a aceitação social do encarceramento em massa e da mitigação de garantias para o “inimigo” construído.
O GRANDE FUNIL SELETIVO E A INVISIBILIDADE DOS CRIMES DO PODER
O primeiro indicativo da seletividade penal é a análise de quem o sistema efetivamente pune. Os dados do INFOPEN (DEPEN) são alarmantes e consistentes ao longo dos anos, revelando que mais de 65% dos presos no Brasil são negros ou pardos, e a maioria possui renda familiar ínfima e baixa escolaridade.
Este não é um dado aleatório, mas o resultado de um processo que Eugenio Raúl Zaffaroni descreve como um “grande funil seletivo”. O sistema penal filtra preferencialmente as condutas das camadas marginalizadas, enquanto os delitos praticados pelos grupos dominantes são sistematicamente “invisibilizados”. Nilo Batista corrobora essa análise, afirmando o viés classista do Direito Penal brasileiro, que aplica seu rigor máximo aos “delitos típicos das classes populares”, como pequenos furtos e o tráfico de varejo.
O TRATAMENTO DESIGUAL: CRIMES PATRIMONIAIS VS. CRIMES DE COLARINHO BRANCO
A discrepância no tratamento penal torna-se explícita quando se compara a repressão aos crimes patrimoniais comuns com os chamados crimes de colarinho branco (financeiros, tributários, corrupção).
Vera Malaguti Batista destaca o papel da mídia na construção social do “criminoso”, associado invariavelmente ao jovem negro da periferia. Essa estigmatização legitima a repressão violenta e o encarceramento em massa como política de gestão da pobreza. Em contrapartida, os crimes de colarinho branco, embora causem danos sociais exponencialmente maiores, não recebem a mesma atenção punitiva, beneficiando-se de mecanismos processuais complexos, prescrições e uma maior tolerância do sistema.
Alessandro Baratta sustenta que o Direito Penal não é neutro, sendo utilizado para criminalizar os comportamentos das classes subalternas enquanto protege as elites. A função do sistema não é punir o crime, mas punir certas pessoas.
GARANTISMO PENAL COMO LIMITE AO PUNITIVISMO SELETIVO
Enquanto a Criminologia Crítica diagnostica a função oculta do sistema, o Garantismo Penal, nos moldes de Juarez Cirino dos Santos, propõe um modelo de contenção do poder punitivo. O Direito Penal deve ser a ultima ratio (última instância), preservando rigorosamente os direitos fundamentais. O punitivismo exacerbado e o Direito Penal simbólico, que visam apenas dar respostas midiáticas, agravam a exclusão social e o encarceramento seletivo.
A superação da seletividade exige, portanto, não apenas o rigor jurídico, mas políticas públicas que ataquem as causas estruturais da criminalização, como o racismo e a desigualdade de renda. Propõe-se o fortalecimento da Defensoria Pública, a descriminalização de condutas de baixo potencial ofensivo e o investimento em práticas de justiça restaurativa.
O primeiro indicativo da seletividade penal é a análise de quem o sistema efetivamente pune. Os dados do INFOPEN (DEPEN) são alarmantes e consistentes ao longo dos anos, revelando que mais de 65% dos presos no Brasil são negros ou pardos, e a maioria possui renda familiar ínfima e baixa escolaridade.
Este não é um dado aleatório, mas o resultado de um processo que Eugenio Raúl Zaffaroni descreve como um “grande funil seletivo”. O sistema penal filtra preferencialmente as condutas das camadas marginalizadas, enquanto os delitos praticados pelos grupos dominantes são sistematicamente “invisibilizados”. Nilo Batista corrobora essa análise, afirmando o viés classista do Direito Penal brasileiro, que aplica seu rigor máximo aos “delitos típicos das classes populares”, como pequenos furtos e o tráfico de varejo.
GARANTISMO PENAL E ALTERNATIVAS À SELETIVIDADE
Enquanto a Criminologia Crítica diagnostica a função oculta do sistema, o Garantismo Penal, nos moldes de Juarez Cirino dos Santos, propõe um modelo de contenção do poder punitivo. O Direito Penal deve ser a ultima ratio (última instância), preservando rigorosamente os direitos fundamentais. O punitivismo exacerbado e o Direito Penal simbólico, que visam apenas dar respostas midiáticas, agravam a exclusão social e o encarceramento seletivo.
A superação da seletividade exige, portanto, não apenas o rigor jurídico, mas políticas públicas que ataquem as causas estruturais da criminalização, como o racismo e a desigualdade de renda. Propõe-se o fortalecimento da Defensoria Pública, a descriminalização de condutas de baixo potencial ofensivo e o investimento em práticas de justiça restaurativa.
METODOLOGIA
Para atingir os objetivos propostos e investigar a função oculta do sistema penal, esta pesquisa adotou uma abordagem qualitativa, de natureza exploratória e crítica. Os procedimentos metodológicos foram divididos em duas frentes principais:
Revisão Bibliográfica e Documental: Realizou-se uma revisão aprofundada das obras de autores centrais da Criminologia Crítica e do Garantismo Penal (Zaffaroni, Baratta, Batista, Cirino dos Santos). Concomitantemente, procedeu-se à análise documental de dados estatísticos oficiais, notadamente os relatórios do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN/INFOPEN) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para traçar o perfil da população carcerária e identificar os tipos penais de maior incidência.
Análise Jurisprudencial: Foram examinadas jurisprudências de tribunais superiores (STF e STJ) focadas em dois eixos de seletividade: (a) a aplicação da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006), especificamente a distinção entre usuário e traficante; e (b) a aplicação do princípio da insignificância em crimes patrimoniais e sua contraposição ao tratamento de crimes de colarinho branco.
A análise do material coletado seguiu a técnica de análise de conteúdo, buscando identificar os padrões de práticas discriminatórias e os discursos institucionais que legitimam a repressão penal seletiva.
RESULTADOS E DISCUSSÕES: A MATERIALIZAÇÃO DA SELETIVIDADE
A análise dos dados e da jurisprudência confirma a hipótese central: o sistema penal opera uma função oculta de controle social dos indesejados. Os resultados da investigação, baseada na metodologia proposta, evidenciam como essa seletividade se materializa, expondo a contradição entre o discurso de um Direito Penal garantista e a prática de um sistema punitivo que reforça a desigualdade.
O PERFIL DO ENCARCERAMENTO E A SELETIVIDADE RACIAL E SOCIAL
Os dados mais recentes do Sistema Nacional de Informações Penais (SISDEPEN/INFOPEN) continuam a corroborar o diagnóstico da Criminologia Crítica. Em junho de 2024, a população carcerária brasileira ultrapassava 663 mil pessoas, com um perfil majoritariamente jovem, negro ou pardo, e de baixa escolaridade.
A persistência desses números, apesar das décadas de crítica acadêmica, demonstra que a seletividade não é um mero desvio, mas um elemento estrutural do sistema. O Direito Penal, ao invés de proteger a sociedade como um todo, atua como um instrumento de gestão da miséria e da exclusão social, confirmando a tese da função oculta.
“GUERRA ÀS DROGAS” COMO MOTOR DO ENCARCERAMENTO SELETIVO E A DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL
A análise dos dados do INFOPEN revela que o tráfico de drogas é o principal vetor de encarceramento no Brasil. Contudo, a análise jurisprudencial demonstra que a Lei nº 11.343/2006, ao deixar critérios vagos para a distinção entre usuário (art. 28) e traficante (art. 33), concede ao sistema (polícia e judiciário) um alto grau de discricionariedade.
Essa discricionariedade é exercida de forma seletiva: jovens negros e pobres, abordados em periferias com pequenas quantidades de entorpecentes, são rotineiramente classificados como traficantes, recebendo penas severas. Em contraste, indivíduos de classes sociais mais altas, encontrados em circunstâncias semelhantes, têm maior probabilidade de serem classificados como usuários. A “guerra às drogas” não combate o narcotráfico em larga escala; ela legitima a prisão em massa da população vulnerável, cumprindo sua função de controle territorial e social.
O impacto dessa política é particularmente devastador no encarceramento feminino. Uma parcela significativa das mulheres presas no Brasil está detida por crimes relacionados ao tráfico de drogas, muitas vezes atuando em funções periféricas e vulneráveis da cadeia do tráfico, como “mulas” ou transportadoras, motivadas pela pobreza e pela necessidade de sustento familiar. A Lei de Drogas, ao punir com rigor desproporcional essas condutas, contribui para a desestruturação familiar e a perpetuação do ciclo de pobreza e criminalidade.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) tem tentado balizar essa discricionariedade, mas a ausência de um critério objetivo (como a quantidade de droga) na lei permite que a seletividade social e racial continue a ser o fator determinante na tipificação da conduta. A condição de usuário, por exemplo, não exclui a de traficante, o que permite ao julgador considerar o contexto social e a aparência do réu como elementos de convicção, perpetuando o viés seletivo. A ausência de uma definição legal clara sobre a quantidade mínima para caracterizar o tráfico transfere o poder de seleção para o agente policial e para o juiz, tornando a cor da pele e o local da abordagem os verdadeiros critérios de distinção.
O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA E A SELETIVIDADE INVERTIDA: MÁXIMO PARA O MÍNIMO
A segunda frente de análise comparou o tratamento dos crimes patrimoniais e dos crimes de colarinho branco. A jurisprudência dos Tribunais Superiores sobre o princípio da insignificância (que afasta a tipicidade em lesões mínimas) é um exemplo claro de seletividade.
Embora o princípio seja aplicado, os tribunais (especialmente o STJ) criaram óbices como a reincidência ou a habitualidade delitiva, que impedem a absolvição em casos de furtos famélicos ou de valor irrisório (ex: furto de alimentos). Tais óbices atingem diretamente a população em situação de rua ou pobreza extrema, que recorre a pequenos delitos.
A jurisprudência do STF, embora mais flexível em alguns casos de reincidência, ainda exige a análise de quatro vetores (mínima ofensividade da conduta, ausência de periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica), que são aplicados de forma mais rigorosa contra o réu pobre. A criação de óbices como a reincidência ou a habitualidade delitiva, que impedem a absolvição em casos de furtos famélicos ou de valor irrisório, revela a face mais cruel da seletividade. O indivíduo que furta para saciar a fome, em um contexto de extrema vulnerabilidade, é visto como um criminoso habitual e perigoso, enquanto o criminoso de colarinho branco, que lesa o erário em milhões, é tratado como um “desviante” que pode ter sua punibilidade extinta mediante o pagamento do débito.
Essa disparidade de tratamento não é acidental. Ela reflete a proteção do sistema penal ao patrimônio simbólico da elite e a repressão ao patrimônio mínimo do pobre. A seletividade se inverte: o sistema é máximo para o mínimo e mínimo para o máximo.
Em contrapartida, nos crimes de colarinho branco (sonegação fiscal, evasão de divisas), a legislação e a jurisprudência oferecem diversas “portas de saída” que evitam a punição. Institutos como o pagamento do tributo a qualquer tempo (que extingue a punibilidade) ou as complexas estruturas dos acordos de colaboração premiada e de leniência, inacessíveis ao réu pobre, demonstram um Direito Penal que pune severamente a lesão a um patrimônio individual mínimo, mas é complacente com a lesão ao patrimônio público e coletivo praticada pelas elites. A seletividade se inverte: o sistema é máximo para o mínimo e mínimo para o máximo.
A CRÍTICA AO PUNITIVISMO E A NECESSIDADE DE ALTERNATIVAS
A constatação da seletividade estrutural do sistema penal brasileiro impõe a crítica ao modelo punitivista que domina a política criminal. O punitivismo, impulsionado pela mídia e pelo clamor social por “lei e ordem”, desvia o foco das causas estruturais da criminalidade (desigualdade, racismo, exclusão) e concentra-se na repressão e no encarceramento como solução mágica.
O resultado é o encarceramento em massa, que não apenas falha em reduzir a criminalidade, mas a retroalimenta, transformando a prisão em uma “escola do crime” e reforçando o ciclo de violência e exclusão. A crítica ao punitivismo, portanto, é indissociável da busca por alternativas que promovam a justiça social e a efetivação dos direitos humanos.
A superação da seletividade exige a adoção de políticas criminais que priorizem a Justiça Restaurativa, a descriminalização de condutas de baixo potencial ofensivo (como o porte de drogas para uso pessoal) e o fortalecimento da Defensoria Pública como instituição de garantia dos direitos dos mais vulneráveis. A efetivação do Garantismo Penal é o caminho para conter o poder punitivo e resgatar a legitimidade do sistema de justiça.
A BANALIZAÇÃO DO FURTO E A PROTEÇÃO DO GRANDE CAPITAL
A segunda frente de análise comparou o tratamento dos crimes patrimoniais e dos crimes de colarinho branco. A jurisprudência dos Tribunais Superiores sobre o princípio da insignificância (que afasta a tipicidade em lesões mínimas) é um exemplo claro de seletividade.
Embora o princípio seja aplicado, os tribunais (especialmente o STJ) criaram óbices como a reincidência ou a habitualidade delitiva, que impedem a absolvição em casos de furtos famélicos ou de valor irrisório (ex: furto de alimentos). Tais óbices atingem diretamente a população em situação de rua ou pobreza extrema, que recorre a pequenos delitos.
Em contrapartida, nos crimes de colarinho branco (sonegação fiscal, evasão de divisas), a legislação e a jurisprudência oferecem diversas “portas de saída” que evitam a punição. Institutos como o pagamento do tributo a qualquer tempo (que extingue a punibilidade) ou as complexas estruturas dos acordos de colaboração premiada e de leniência, inacessíveis ao réu pobre, demonstram um Direito Penal que pune severamente a lesão a um patrimônio individual mínimo, mas é complacente com a lesão ao patrimônio público e coletivo praticada pelas elites.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise desenvolvida ao longo deste artigo, aprofundada nas contribuições da Criminologia Crítica, do Garantismo Penal e dos conceitos de Racismo Estrutural e Aporofobia, permitiu validar e robustecer a hipótese inicial: o sistema penal brasileiro está longe de ser neutro e universal. Sua atuação é intrinsecamente estrutural e seletiva, operando uma função oculta de criminalização da pobreza e controle social de grupos historicamente marginalizados, sobretudo a população negra e parda.
Os objetivos da pesquisa foram plenamente atingidos. Demonstrou-se, com base em dados empíricos e na análise jurisprudencial, que a seletividade penal se materializa em duas frentes principais:
A “Guerra às Drogas”: Atua como o principal motor do encarceramento em massa, utilizando a discricionariedade da Lei nº 11.343/2006 para penalizar jovens pobres e negros das periferias, em um claro viés racial e social.
A Seletividade Invertida: Evidenciada pela aplicação rigorosa do Direito Penal aos crimes patrimoniais de baixo valor (furto famélico, por exemplo), em contraste com a complacência e as “portas de saída” oferecidas aos crimes de colarinho branco. A máxima de que o sistema é máximo para o mínimo e mínimo para o máximo resume a contradição sistêmica.
A política penal vigente não apenas falha em promover justiça, como reforça padrões históricos de exclusão, punindo a condição de pobreza e a cor da pele, em direta violação aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da isonomia. A seletividade, portanto, não é uma falha do sistema, mas sua lógica estrutural.
Diante do exposto, a superação dessa lógica exige mais do que reformas pontuais. Requer uma transformação paradigmática, com a adoção urgente de alternativas que promovam o Garantismo Penal como limite intransponível ao poder punitivo. As propostas incluem: o fortalecimento da Defensoria Pública como instituição de garantia; a revisão da política de drogas, com foco na descriminalização e na saúde pública; e o fomento à justiça restaurativa. A construção de uma justiça penal verdadeiramente democrática e comprometida com os direitos humanos passa, necessariamente, pelo desmantelamento da estrutura que criminaliza a pobreza e o racismo no Brasil.
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