VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES: O OLHAR DA PSICOLOGIA SOB O VIÉS SOCIAL 

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch10202411080832


Thaís Araujo Navas
Alessandra Tozatto


RESUMO

Levando em conta que a violência sexual contra crianças e adolescentes para além dos danos emocionais e psicológicos constitui-se uma violação de direitos desse público, o presente estudo tem como objetivo apontar a atuação do psicólogo no atendimento psicossocial de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Dentre os objetivos específicos, apresentar conceitos referentes ao fenômeno da violência, destacando suas principais características, tipologia, estatísticas, a fim de evidenciar uma de suas formas, a violência sexual contra crianças e adolescentes; Identificar os danos psicológicos significativos do processo de violência sexual na infância e na adolescência; Apresentar as características da psicologia social enfatizando como se deu a inserção do psicólogo nos serviços de proteção social. A metodologia utilizada é de caráter bibliográfico, a partir da base de dados da Biblioteca Virtual em Saúde de Psicologia (BVS-Psi), além de fontes estatísticas, livros e documentos de orientação técnica ao profissional de Psicologia. Conclui-se que o olhar da psicologia sob o viés psicossocial demonstra que a atuação do psicólogo em casos de violência sexual contra crianças e adolescentes não se baseia tão somente no fenômeno psíquico, mas através do trabalho articulado com os Serviços de Proteção Social, o psicólogo busca entender as rupturas desses sujeitos e atender as suas necessidades através da abordagem psicossocial, bem como, por meio da implantação de estratégias que visam, minimizar os danos sofridos, restabelecer vínculos e prevenir ocorrências. 

Palavras-chave: Violência Sexual; Crianças e Adolescentes; Violação de direitos; Atendimento Psicossocial.

ABSCTRACT

Taking into account that sexual violence against children and adolescents in addition to the emotional and psychological damage constitutes a violation of this public duty, this study aims to point the psychologist in the psychosocial care of child and adolescent victims of sexual violence. Among the specific objectives, present concepts related to the phenomenon of violence, highlighting its main characteristics, type, statistics in order to highlight one of its forms, sexual violence against children and adolescents; Identify significant psychological harm of sexual violence process in childhood and adolescence; Characteristic of the social psychology emphasizing how was the insertion of psychologists in social protection services. The methodology is bibliographical, from the Virtual Library database in Health Psychology (BVS-Psi), in addition to statistical sources, books and technical guidance documents to professional psychology. It is concluded that the look of psychology under the psychosocial bias shows that the psychologist in cases of sexual violence against children and adolescents is not based solely on psychic phenomena, but through joint work with the Social Protection Service, the psychologist seeks to understand the breaks these subjects and meet their needs through psychosocial approach as well, through the implementation of strategies aimed at minimizing the damage suffered, restore ties and prevent occurrences. 

Keywords: Sexual Violence; Children and Adolescents; Violation of rights; Psychosocial Care.

INTRODUÇÃO

A violência é um fenômeno global presente em todos os países e grupos sociais. Em relação ao contexto, suas diferentes formas de manifestação podem ser identificadas em instituições, escolas, locais de trabalho, dentro das comunidades e na família. Quanto ao público, atinge crianças, adolescentes, homens, mulheres e idosos. Com relação aos tipos, ela pode se manifestar como violência física, sexual/abuso sexual, violência psicológica e/ou negligência (BRASIL, 2008). Especificamente quanto a violência sexual, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2018), estima-se que até 1 bilhão de crianças e adolescentes entre 2 e 17 anos tenham sofrido violência ou negligência sexual no último ano. Trata-se de um problema grave que afeta a saúde e o bem-estar psíquico dos indivíduos, podendo trazer consequências ao longo da vida. Partindo desse contexto, o presente trabalho dará enfoque à violência sexual contra crianças e adolescentes, a partir da abordagem psicossocial.

Para a OMS, a violência sexual inclui o contato sexual não consensual ou tentativa de contato sexual e atos de natureza sexual que não envolvam necessariamente contato; atos de tráfico sexual cometidos contra alguém incapaz de consentir ou recusar; e também a exploração sexual online (OMS, 2018). A violência sexual contra crianças e adolescentes pode ser agrupada em duas categorias: intrafamiliar e extrafamiliar. Sendo a primeira, caracterizada como aquela que ocorre dentro do ambiente familiar, em que normalmente o agressor mantém algum vínculo com a vítima, seja decorrente de laço afetivo ou consanguíneo. Já no ambiente extrafamiliar, o agressor não pertence ao núcleo familiar, sendo a violência perpetrada fora do ambiente doméstico (SILVA; GAVA, DELL’AGLIO, 2013). 

Apesar de serem escassas as pesquisas brasileiras e, consequentemente, dados estatísticos sobre a violência sexual contra a criança e o adolescente, registros divulgados pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) apontaram que em 2011, um total de 10.425 crianças e adolescentes sofreram violência sexual, sendo que mais de 80% das vítimas são do sexo feminino. Quanto a faixa etária, a maior incidência foi entre 10 a 14 anos (WAISELFISZ, 2012). Dados das Nações Unidas no Brasil (UNICEF, 2016) acrescentaram que em 2015, através do Disque 100, foram feitas quase 17.600 ligações denunciando casos de violência sexual contra crianças e adolescentes no país, o que equivale à média de dois registros/hora. Certamente, esses dados não refletem a atual realidade da situação, levando em conta que muitos casos são subnotificados. 

Contudo, independente da realidade estatística, a violência contra a criança e o adolescente é um problema de saúde pública grave, que pode ocasionar lesões físicas e ferimentos na vítima, em decorrência de lutas, agressões e até mesmo levá-la a morte. Pode impactar no desenvolvimento dos sistemas musculoesquelético, reprodutivo, imunológico e cognitivo, com consequências para toda a vida. Pode ainda levar a gravidez indesejada, abortos induzidos, problemas ginecológicos e doenças sexualmente transmissíveis, incluindo o HIV/AIDS (OMS, 2018). 

Dentre outros impactos, citam-se os danos emocionais, os problemas psicológicos, devido a maior probabilidade de desenvolver transtornos mentais como ansiedade, depressão e suicídio. Tende também a influenciar o comportamento, uma vez que, a criança e o adolescente vitimados sexualmente tornam-se um público substancialmente mais propenso a fazer uso do cigarro, álcool e drogas e ao desenvolvimento de comportamentos sexuais de alto risco (OMS, 2018). Dentre outras possíveis manifestações psicológicas, Florentino (2015) cita, o medo, o sentimento de culpa, a humilhação, a raiva que tendem a levar a rupturas no vínculo familiar, social e comunitário. 

Dessa forma, a violência sexual para além das consequências psíquicas é também um problema social, uma vez que, os danos causados configuram-se uma violação dos direitos humanos, “no sentido de abusar ou explorar do corpo e da sexualidade de crianças e adolescentes” (CARVALHO et al., 2018, p.8), infringindo a sua dignidade, a sua liberdade, o respeito e interferindo em seu convívio familiar e comunitário, conforme preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Essa realidade sinaliza para o debate da violência sexual sob o viés social que também é um campo de atuação do psicólogo, para que seja possível refletir sobre as ações psicossociais que são disponibilizadas pelos serviços públicos sociais e de saúde diante desses casos. Assim sendo, destaca-se a inserção do psicólogo nos Serviços de Proteção Social à Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência Sexual e suas Famílias, ofertados através do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e Casa de Abrigamento Institucional para crianças e adolescentes. Nesses espaços, o psicólogo não foca seu trabalho em uma investigação detalhada sobre as situações de violência, ele predominantemente “trabalha na reconstrução de relações e no fortalecimento das possibilidades de continuidade de um desenvolvimento saudável, apesar da violência vivida” (SANTOS et al., 2009, p. 66). 

Considerando que a violência sexual trata-se de um desafio para os profissionais da saúde que lidam diretamente com essa questão, o problema a ser investigado nesse estudo pretende esclarecer: Qual o papel do psicólogo no serviço de proteção social a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual?

O atendimento psicológico nos serviços de proteção social configura-se como uma atividade psicossocial que necessita estar comprometida com cada caso específico da criança e do adolescente, pois, estes sujeitos precisam de um espaço para serem ouvidos e tratados como tal.  Nesse sentido, “cabe ao psicólogo propiciar uma escuta atenta, oportunizando a emergência de significados ocultos ou inconscientes” (SANTOS et al., 2009, p. 61), de forma que as vítimas não se  sintam culpadas e/ou rejeitadas, mas, encontre uma possibilidade de superar seus traumas e reconstruir seus direitos que foram violados em consequência da violência sexual. 

Para essa reflexão, o objetivo geral desse trabalho visa descrever sobre a atuação do psicólogo no atendimento psicossocial de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Dentre os objetivos específicos, apresentar conceitos referentes ao fenômeno da violência, destacando suas principais características, tipologia, estatísticas, a fim de evidenciar uma de suas formas, a violência sexual contra crianças e adolescentes. Identificar os danos psicológicos significativos do processo de violência sexual na infância e na adolescência. Apresentar as características da psicologia social enfatizando como se deu a inserção do psicólogo nos serviços de proteção social.

Apesar da violência apresentar subtipos, não se pode analisar a violência sexual de modo isolado, tendo em vista que, engloba, simultaneamente, a violência física e psicológica. Com isso, o problema sinaliza para o debate sobre a violência sexual e o papel dos profissionais de saúde, de modo particular, o psicólogo diante da demanda de tais casos.

Desse modo, a violência sexual contra crianças e adolescentes trata-se de um grave problema de saúde pública que tem se tornado cada vez mais corriqueiro nos diversos ambientes onde este público encontra-se inserido. Por outro lado, mesmo diante dos impactos e consequências vivenciados pelo público infanto juvenil, Serafim et al. (2011) enfatizam que são poucos os estudos nacionais que que tratam da temática, o que tende a dificultar a compreensão do assunto, o papel dos profissionais inseridos nesse contexto, bem como, as propostas de intervenção psicossocial adaptadas a essa realidade.

A partir desse contexto, justifica-se a escolha do tema por acreditar ser relevante analisá-lo sob o olhar da psicologia social, a fim de contribuir para a divulgação dessa área, bem como, auxiliar na orientação referente à demandas psicossociais de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual que podem ser trabalhadas no âmbito dos serviços de proteção social básica e especial. 

O presente estudo é de caráter bibliográfico e para o seu desenvolvimento foram realizadas buscas nas bases de dados SciELO, Lilacs, Psycinfo e IndexPsi, assim como, foram utilizados livros e documentos técnicos da Organização Mundial de Saúde, Ministério da Saúde, entre outros para verificar as pesquisas existentes em âmbito nacional acerca dos objetivos mencionados. 

A partir de então, foram contemplados três capítulos no estudo. O primeiro versa sobre a violência, destacando conceito e tipologia. No segundo capítulo, delimita-se o assunto – a violência sexual contra crianças e adolescentes, enfatizando as consequências psicológicas e comportamentais. No último capítulo descreve-se sobre a Psicologia Social destacando os espaços de atuação do psicólogo – CREAS, CRAS e Casa de Abrigamento Institucional.

1. DEFINIÇÃO DE VIOLÊNCIA: CONCEITO E TIPOLOGIA

A violência é um fenômeno global caracterizado como um problema de saúde pública que vem se acentuando desde o decorrer da última década. Há uma percepção comum de que atos violentos existem desde os primórdios da humanidade, sendo que, os seus reflexos podem ser mundialmente verificados de várias formas contra crianças, jovens, homens, mulheres e idosos (DAHLBERG; KRUG, 2007). Trata-se de um acontecimento humano, social e histórico que persiste na atualidade e se estende por todas as classes e segmentos sociais, atingindo qualquer indivíduo independente de gênero e idade (MINAYO, 2013). 

Abrange uma ampla gama de ações, indo além dos atos físicos e mortes, incluindo também ameaças e intimidações, danos psicológicos, privações dentre outras ações que comprometem o bem-estar de indivíduos, famílias e comunidades (MINAYO, 2013). De modo geral, a OMS define violência como:

O uso intencional de força ou poder físico, ameaçado ou real, contra pessoa, ou contra um grupo ou comunidade, que resulta ou tem uma alta probabilidade de resultar em ferimentos, morte, danos psicológicos, mau desenvolvimento ou privação (OMS, 2002, p.5).

Nesse sentido, a violência engloba diferentes formas e contextos. Para melhor exemplificá-los, a OMS (2002) caracteriza a violência em três categorias: a violência interpessoal, coletiva e autoinfligida. 

A violência interpessoal é aquela perpetrada por um indivíduo ou um pequeno grupo de indivíduos – subdivide-se em violência da família e de parceiro(a) íntimo(a) que inclui a violência contra crianças e adolescentes, violência entre parceiros, violência familiar como abuso de crianças e idosos, estupro e agressão sexual por estranhos; a violência comunitária relaciona-se a ambientes institucionais, tais como, escolas, trabalho, prisões (OMS, 2002). 

A violência coletiva é “o uso instrumental da violência por pessoas que se identificam como membros de um grupo contra outro grupo ou conjunto de indivíduos, a fim de alcançar objetivos políticos, econômicos ou sociais” (MARKLE et al., 2015, p. 343). Abrange uma variedade de formas, tais como, conflitos armados dentro ou entre estados; violência perpetrada pelo Estado, como genocídio, repressão e outros abusos dos direitos humanos; terrorismo; e crime organizado violento. Semelhante a outros tipos de violência, uma série de problemas de saúde, incluindo depressão e ansiedade, comportamento suicida, abuso de álcool e transtorno de estresse pós-traumático têm sido associados a violência coletiva (MARKLE et al., 2015).

Outra categoria associada à violência é a autoinfligida que subdivide-se em suicídio e o auto abuso. O primeiro tipo abrange o suicídio em si com a morte do indivíduo ou tentativas suicidas. Enquanto o auto abuso envolve atos como auto mutilação (OMS, 2017). 

De forma mais ampla, o Ministério da Saúde (BRASIL, 2008), caracteriza a violência de acordo com o público atingido – violência contra criança e adolescente; contra a mulher; contra o idoso, e conforme a natureza – de gênero, intrafamiliar, física, institucional, moral, patrimonial, psicológica e sexual.

A violência contra a criança e o adolescente, contra a mulher e contra o idoso, caracteriza-se como a ação ou ato omisso, contra esse público causando-lhe dano, humilhação, limitação física, sexual, moral, psicológica ou social, e até mesmo a morte. A violência de gênero é aquela cometida contra a mulher simplesmente pelo fato dela pertencer ao sexo feminino, independente de raça, condição socioeconômica, idade e religião (BRASIL, 2008).

A violência intrafamiliar é perpetrada pelos membros de uma família ou por pessoas que tem afinidade ou afetividade, que moram ou não no mesmo ambiente doméstico da vítima. Normalmente envolve agressões físicas, abuso sexual, abandono, maus tratos, entre outros (BRASIL, 2008). A violência física é toda ação utilizada para agredir uma pessoa, seja através de força física, arma ou quaisquer outros objetos (MINAYO, 2013). A violência institucional é aquela cometida em instituições públicas e privadas entre trabalhador e cliente, seja devido ao atendimento, discriminação, intolerância e outros. A violência moral é quando o indivíduo sofre calúnia, difamação ou injúria, seja este homem ou mulher. A violência patrimonial é toda ação que danifica, subtrai, destrói objetos, documentos, bens materiais e similares (BRASIL, 2008). 

A violência psicológica ocorre quando alguém faz ameaças e causa medo em uma pessoa mediante ações, como, por exemplo, agressão verbal, perseguição, ameaça de violência, abandono, destruição de bens pessoais; isolamento social (MINAYO, 2013). A violência sexual é quando uma pessoa é forçada e/ou submetida contra a sua vontade de participar do ato sexual. No entanto, não fica restrita somente a consumação sexual em si, envolve situações, como, por exemplo, beijar e acariciar a vítima, forçar uma pessoa a ver material pornográfico ou participar de filmagens pornográficas, expor propositadamente a pessoa ao HIV-AIDS ou outras doenças sexualmente transmissíveis (BRASIL, 2008).

Observa-se que a violência é um problema multifacetado associado a fatores comunitários, sociais e comportamentais, que encontra-se inserido em múltiplos setores da sociedade e inclui fatores de risco individuais e coletivos, afetando o comportamento de pessoas independente de gênero, raça, idade e condição social (OMS, 2002). Configura-se, portanto, como problema de saúde pública, por ser responsável pelos elevados índices de morbidade e mortalidade, que requer a intervenção de profissionais de saúde no auxílio às vítimas e, sobretudo, a implantação de ações proativas do Estado capazes de conduzir o país a um processo efetivo de democratização seja em relação à saúde, educação, moradia, enfim, é preciso reduzir as desigualdades e combater esse grave problema social (REICHENHEIM et al., 2011). 

2. O ABUSO E A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES

A violência sexual é caracterizada como o ato sexual, tentativa de consumação do ato sexual, e atos de natureza sexual que não envolvam necessariamente contato, cometidos contra alguém sem o seu consentimento, independentemente de sua relação com a vítima, e do ambiente em que deu-se o fato (OMS, 2018). É um problema social que ocorre em todas as culturas e acomete qualquer indivíduo. Especificamente em relação a crianças e adolescentes, a violência sexual define-se como, 

[…] o envolvimento destes indivíduos em atividades sexuais com um adulto, ou com qualquer pessoa um pouco mais velha ou maior, nas quais haja uma diferença de idade, de tamanho ou de poder, em que a criança é usada como objeto sexual para gratificação das necessidades ou dos desejos do adulto, sendo ela incapaz de dar um consentimento consciente por causa do desequilíbrio no poder ou de qualquer incapacidade mental ou física (SCUSSEL et al., 2012, p.3).

A violência sexual contra crianças e adolescentes categoriza-se em duas formas: abuso sexual ou exploração sexual (LIBÓRIO, 2013). Conforme a Organização Internacional do Trabalho (OIT), no Brasil, estima-se que em média ocorrem anualmente, 100 mil casos de violência sexual contra esse público, envolvendo abuso e exploração sexual (BRASIL, 2014). 

O abuso sexual configura-se como a prática de qualquer ato de conotação sexual contra a criança ou o adolescente. É quando esses sujeitos encontram-se envolvidos em ato sexual para a qual não têm a capacidade de fornecer consentimento ou não consentem com o mesmo. Estes atos podem incluir masturbação diante de um menor e/ou fazê-lo se masturbar, bem como, a consumação do ato sexual, carícias ou exibicionismo. Nesse sentido, são formas de abuso sexual, o contato físico com ou sem consumação do ato sexual, incluindo nesse contexto, carícias, toques e/ou manipulação das partes íntimas, beijos forçados e abusivos. O abuso sexual é configurado também sem o contato físico, tais como, exibição de órgãos sexuais, agressões verbais relacionadas a assuntos sexuais, voyeurismo (observar pessoas nuas, órgãos sexuais, a prática sexual e/ou atos íntimos de outras pessoas); exposição de materiais pornográficos (BRASIL, 2016). De acordo com Lavareda e Magalhães (2015, p.9):

Abuso sexual é a violação sexual homo ou heterossexual praticada por um adulto ou alguém mais velho em relação a uma criança ou a um adolescente, com o intuito de satisfazer-se sexualmente, valendo-se de poder ou autoridade, envolvendo-os em quaisquer atividades sexuais, tais como palavras obscenas, exposição dos genitais ou de material pornográfico, telefonemas obscenos, sexo oral, vaginal ou anal. A criança ou o adolescente vive uma experiência sexualizada que está além de sua capacidade ou de consentir ou entender, baseada na extrapolação do limite próprio, no abuso de confiança e poder.

Segundo Baptista et al. (2008), o abuso é comumente observado com maior incidência no ambiente intrafamiliar da vítima, independente de sua condição social. Nesse caso, os principais abusadores são, pai, padrasto, tio, avô, ou quaisquer outros indivíduos que tem certa intimidade com a família. Florentino (2015) acrescenta que o abuso sexual pode ser praticado por uma ou mais pessoas, e não se limita somente ao ambiente familiar da criança e do adolescente. Dessa forma, quando ocorre no espaço extrafamiliar o abusador é aquele que não tem nenhum vínculo de parentesco com a vítima.  

Contudo, independente do espaço – se intra ou extrafamiliar, os abusadores geralmente agem manipulando as vítimas para não relatarem sobre o abuso sexual. Com frequência, o abusador usará sua posição de poder sobre a vítima para coagir ou intimidá-la. Eles podem tentar convencer a criança ou o adolescente que aquela atividade sexual é normal, ou ainda, fazer ameaças se a vítima se recusar ou contar para a pessoa sobre o ocorrido. O abuso sexual infantil não é apenas uma violação física; é uma violação a dignidade e a integridade da vítima, trata-se, portanto, de uma condição que tende a gerar vulnerabilidades físicas, psíquicas e também sociais as crianças e adolescentes (BRASIL, 2012).

Lavareda e Magalhães (2015) ressaltam que grande parte dos casos de abuso sexual ocorre no ambiente intrafamiliar, o que gera ainda mais danos emocionais, comportamentais e rupturas de laços familiares e sociais, sobretudo, pelo fato da vítima ser abusada por um sujeito de sua confiança, bem como, por viver sob constante ameaça para não revelar o caso para outras pessoas. Por outro lado, apesar de menos habitual, o abuso sexual extrafamiliar também gera danos as suas vítimas. Mas, de modo geral, o abuso sexual vai além de classes e etnia e o que tem agravado ainda mais as consequências, é que muitas vítimas com medo de represálias guardam para si todo o fato, enquanto outras, sentem-se culpadas pelo ocorrido, além dos casos em que as vítimas são frequentemente abusadas. 

Enquanto a exploração sexual é a utilização de crianças e adolescentes para fins sexuais mediante lucro financeiro, objetos e/ou quaisquer outros elementos de troca. Essencialmente, envolve crianças e jovens que recebem algo – por exemplo, dinheiro, drogas, presentes, entre outros. As vítimas podem ser induzidas a acreditarem que estão em um relacionamento amoroso e consensual. Acrescenta-se ainda que a violência, força física, coerção e intimidação são práticas comuns entre os exploradores (CARVALHO, 2018). 

A Organização Internacional do Trabalho considera a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, uma violação dos direitos humanos e uma forma de exploração econômica semelhante à escravidão e ao trabalho forçado, o que também implica crime por parte dos exploradores (MELLO; FRANCISCHINI, 2010). São práticas de exploração sexual: prostituição, pornografia, tráfico e turismo com finalidade sexual e comercial.

A prostituição infanto-juvenil ocorre por meio da exposição e uso de crianças e adolescentes em atividades sexuais remuneradas em dinheiro ou em espécie, nas ruas ou em ambientes fechados, em lugares como bares, hotéis, bordeis, restaurantes. Normalmente, ocorre por meio de aliciadores e/ou facilitadores que tiram proveito financeiro da exploração sexual.  No entanto, ressalta-se que a prostituição pode ocorrer também sem o intermédio de outras pessoas (CARVALHO, 2018). 

Já a pornografia infantil é quando materiais visuais, tais como, fotos, desenhos e vídeos de partes íntimas ou de atos sexuais envolvendo crianças e adolescentes são produzidos, expostos, distribuídos, comercializados, adquiridos, publicados e/ou divulgados. Quando a exploração sexual acontece online, as vítimas podem ser persuadidas ou forçadas a enviar ou postar imagens sexualmente explícitas de si mesmos, participar de atividades sexuais por meio de uma webcam ou celular, ter conversas sexuais por texto ou online. Os abusadores podem ameaçar enviar imagens, vídeos ou cópias de conversas aos amigos e familiares do jovem. Imagens, vídeos e demais materiais pornográficos podem continuar a ser compartilhados por muito tempo após o abuso sexual ter parado (MELLO; FRANCISCHINI, 2010). 

O tráfico com finalidade sexual é quando indivíduos promovem ou facilitam o itinerário de crianças e adolescentes no território nacional, a fim de que estes pratiquem ou sejam submetidos a prostituição e demais situações que envolvam exploração sexual. Enquanto o turismo sexual ocorre quando crianças e adolescentes são explorados por turistas estrangeiros ou nacionais, comumente através de pessoas intermediárias ou estabelecimentos comerciais que promovem a prostituição (CARVALHO, 2018). 

Apesar da faixa etária em relação a exploração sexual de crianças e adolescentes variar entre 10 a 19 anos, sendo mais incidente entre o sexo feminino, sobretudo, em relação as meninas provenientes de classe econômica baixa (FIGUEIREDO, 2018), vale mencionar que a violência sexual de modo geral, pode ser cometida por qualquer pessoa, seja qual for a faixa etária e classe econômica da vítima, além de ocorrer em contextos diferentes, como na escola, na rua, em público ou através dos meios tecnológicos como a exposição de fotos e vídeo na internet.

Trata-se, portanto, de um problema social grave, complexo e evidente na sociedade brasileira, além de ser um ato cruel e criminoso, que pode causar sequelas não somente no corpo, mas também, na saúde psíquica da vítima, trata-se ainda de uma das formas mais evidentes de violação de direitos dessas pessoas que, devem ser resguardadas de todo e qualquer tipo de violência (FIGUEIREDO, 2018). 

2.1 Consequências psicológicas e comportamentais de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual 

Todas as formas de violência sexual são uma violação dos direitos humanos das crianças e adolescentes, conforme especifica a lei penal brasileira, bem como, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Muito além da condição legal, caracteriza-se como grave problema de saúde pública, devido à sua alta incidência e às consequências físicas, psicológicas e comportamentais (BRASIL, 2014).

A violência sexual pode exercer efeitos sobre a saúde física de várias maneiras. Dentre essas, relatos na literatura indicam que as vítimas podem sentir dores crônicas, dores de cabeça, além de correrem risco de gravidez, abortos e doenças sexualmente transmissíveis (SCUSSEL et al., 2012). A violência sexual pode também levar o agressor a matar crianças e adolescentes após estes sujeitos serem abusados, ou também, provocar ferimentos graves, tendo em vista que, as vítimas tendem a sofrer lesões por causa de lutas físicas com o abusador (OMS, 2018). 

A exposição à violência em idade precoce pode prejudicar o desenvolvimento cerebral e danificar outras partes do sistema nervoso, bem como, os sistemas endócrino, circulatório, musculoesquelético, reprodutivo, respiratório e imunológico, com consequências ao longo da vida. Como tal, a violência contra as crianças pode afetar negativamente o desenvolvimento cognitivo e resultar em prejuízos educacionais. Esses sujeitos têm maior probabilidade de abandonar a escola, de ter dificuldade em relaciona-se com outras pessoas, de encontrar e manter um emprego na vida adulta e correm ainda, maior risco de vitimização (OMS, 2018).

Baptista et al. (2008) relataram que crianças e adolescentes abusados sexualmente tendem a consequências psicológicas que comumente manifestam-se na forma de medo, tristeza, sentimento de culpa, raiva e humilhação. Valença et al (2013), afirmam que a violência sexual encontra-se relacionada a maior probabilidade de desenvolvimento de transtornos mentais, distúrbios do sono e suicídio.

Normalmente, grande parte da violência sexual contra crianças e adolescentes é cometida por um membro da família. Nesse caso, a vítima sente-se envergonhada, desprotegida, preocupada e com medo do que pode acontecer com a divulgação do caso. Por isso, muitas vezes, mantém segredo por ser ameaçada e coagida, para não denunciar o abuso (SERAFIM et al., 2011). 

Porém, de acordo com Borges; Dellaglio (2008), guardar para si a violência sexual sofrida, é um dos fatores de risco mais comumente associados a depressão e ansiedade nas vítimas. Dentre outros aspectos psicológicos e comportamentais, Serafim et al. (2011), citam o isolamento e o comportamento erotizado. Cogo et al. (2011), acrescentam que é também muito comum observar aversão da vítima em relacionar-se com o sexo oposto, apresentando medo excessivo de adultos, principalmente, indivíduos do sexo masculino. 

Outra consequência da violência sexual é que as vítimas abusadas em idade precoce muitas vezes se tornam hipersexualizadas ou sexualmente reativas. Questões com promiscuidade e baixa autoestima são, infelizmente, reações comuns ao abuso sexual precoce. Cogo et al. (2011, p. 135), realizaram um estudo com um grupo de psicólogos para averiguar os efeitos físicos e psicológicos observados em crianças abusadas sexualmente, conforme observa-se em relatos de alguns desses profissionais: 

Existem casos muito sérios do não controle dos esfíncteres, casos de crianças perturbadas que tiveram que frequentar a APAE por algum tempo, eu já atendi crianças em estado de choque, crianças que não falavam, que tinham delírios […]. 

[…] mais tarde começam os sentimentos de inferioridade, baixa autoestima, dificuldade na escola, medo. Dificuldade no contato com outros, dificuldade em se relacionar, medo de ficar com pessoas diferentes.

[…] voltam a falar errado, tem enurese e encoprese.

Ligação afetiva com uma só pessoa, dificuldade em falar sobre o assunto e sobre sua própria sexualidade, pois parece que fica sempre um tabu na frente, é como se ignorasse, se fechasse, não dando abertura pra tocar no assunto. 

[…] na maioria dos casos as crianças têm uma regressão no comportamento. 

Há os traumas também, que são terríveis. Eles choram muito, são crianças que se não tratadas, vão carregar essa cicatriz do medo, da insegurança pelo resto da vida. 

Os sintomas físicos, psicológicos e comportamentais podem ser graves e duradouros. Geralmente, as situações que envolvem violência sexual com penetração, ou seja, consumação do ato sexual; quando o abusador é alguém próximo da criança e/ou do adolescente; diante da frequência e da longa duração da violência e perante o uso de força física, são situações consideradas mais propensas a desencadear um maior número de sintomas psíquicos e comportamentais (BORGES; DELLAGLIO, 2008). 

No entanto, é preciso considerar que nem todas as vítimas de abuso sexual na infância apresentam transtorno, mas, geralmente quando esses indivíduos são inicialmente assintomáticos, podem desenvolver transtornos mentais graves anos após o trauma. De modo geral:

[…] a maioria dos pesquisadores concorda que o abuso sexual infantil é facilitador para o aparecimento de psicopatologias graves, prejudicando a evolução psicológica, afetiva e social da vítima. Os efeitos do abuso na infância podem se manifestar de várias maneiras, em qualquer idade da vida. Os adultos que sofreram abuso na infância estão por toda parte, sofrendo ou fazendo sofrer outras pessoas (CAPITÃO; ROMARO, 2008, p. 10). 

Portanto, nenhuma criança ou adolescente, está preparado para vivenciar, nem tampouco, lidar com as sequelas a curto ou longo prazo, tanto emocionais quanto comportamentais, decorrentes da violência sexual. Por isso, o atendimento psicológico desses sujeitos, o acolhimento e a escuta da vítima (SANTOS et al., 2009), são extremamente relevantes e o psicólogo precisa levar em conta a singularidade de cada caso, bem como, as variáveis que podem ser mediadoras em relação as consequências da violência sexual, como, por exemplo, o tipo de violência cometida, vínculo da vítima com o abusador, existência de ameaça, exposição, agentes estressores, entre outros fatores (BORGES; DELLAGLIO, 2008).

3. PSICOLOGIA SOB O VIÉS SOCIAL: ESPAÇOS DE ATUAÇÃO PROFISSIONAL 

A psicologia no sentido etimológico é definida como o estudo científico da mente humana e da forma como os indivíduos se comportam (GERGEN, 2008). De acordo com Lopes (2017), é o estudo da mente humana e suas amplas funções e influências, que busca compreender a emoção humana, personalidade, inteligência, memória, percepção, cognição, atenção e motivação, bem como, os processos que impulsionam essas funções e comportamentos humanos. Como profissão, a psicologia não apenas estuda o pensamento e o comportamento humano, mas coloca esse conhecimento em prática para auxiliar as pessoas, as famílias, as comunidades e a sociedade em geral.

No Brasil, o reconhecimento legal da psicologia como profissão deu-se através da Lei 4.119, de 27 de agosto de 1962. Desde então, várias áreas de especialidade e subcampos surgiram. Algumas delas incluem a psicologia clínica, cognitiva, do desenvolvimento, educacional, forense, social, dentre outras. Diante desse contexto, levando em conta que a psicologia lida com a condição humana, é pertinente que os psicólogos se envolvam também com as questões sociais. Sob esse enfoque, o Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2009, p. 29) ressalta que:

4. PSICOLOGIA SOB O VIÉS SOCIAL: ESPAÇOS DE ATUAÇÃO PROFISSIONAL 

A psicologia no sentido etimológico é definida como o estudo científico da mente humana e da forma como os indivíduos se comportam (GERGEN, 2008). De acordo com Lopes (2017), é o estudo da mente humana e suas amplas funções e influências, que busca compreender a emoção humana, personalidade, inteligência, memória, percepção, cognição, atenção e motivação, bem como, os processos que impulsionam essas funções e comportamentos humanos. Como profissão, a psicologia não apenas estuda o pensamento e o comportamento humano, mas coloca esse conhecimento em prática para auxiliar as pessoas, as famílias, as comunidades e a sociedade em geral.

No Brasil, o reconhecimento legal da psicologia como profissão deu-se através da Lei 4.119, de 27 de agosto de 1962. Desde então, várias áreas de especialidade e subcampos surgiram. Algumas delas incluem a psicologia clínica, cognitiva, do desenvolvimento, educacional, forense, social, dentre outras. Diante desse contexto, levando em conta que a psicologia lida com a condição humana, é pertinente que os psicólogos se envolvam também com as questões sociais. Sob esse enfoque, o Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2009, p. 29) ressalta que:

A Psicologia como profissão não nasceu em um vácuo social, mas como produto de uma história política, econômica e social da modernidade, quando as noções de individualidade e singularidade criaram a necessidade de uma ciência que desse conta disso. 

Nesse contexto, a psicologia sob o viés social pode ser entendida como o estudo científico de como os fatores pessoais e sociais, influenciam nas emoções e no comportamento de indivíduos e (membros de) grupos sociais. Em outras palavras, é o estudo da relação dinâmica entre os indivíduos e as pessoas ao seu redor, ou seja, a psicologia social é basicamente o estudo da situação social, o processo pelo qual outras pessoas influenciam os pensamentos, sentimentos e comportamentos alheios (MYERS, 2015).

De acordo com Gergen (2008, p. 475) “a psicologia é usualmente definida como ciência do comportamento humano e a psicologia social como aquele ramo dessa ciência que lida com a interação humana”. Segundo Ribeiro; Guzzo (2014, p.88), a psicologia social “visa o desenvolvimento e promoção social da população com o intuito de lidar com as sequelas advindas da questão social”. 

Ressalta-se que a inserção dos psicólogos no campo social foi impulsionada no final da década de 1970 e início de 1980, diante do agravamento das demandas sociais que levou o surgimento de vários movimentos populares de caráter reivindicatório que culminaram com a Reforma Sanitária (BRIGAGÃO et al., 2011). Movimento de cunho político e social na luta pela criação de um sistema de saúde público eficiente e democrático (PAIVA; TEIXEIRA, 2014).

Nessa direção, tanto o movimento popular quanto das categorias profissionais como a psicologia, foram indispensáveis para ampliar o debate sobre a reforma da saúde, das políticas sociais e dos direitos dos cidadãos, contribuindo para a aprovação em 1988 da Constituição Federal do Brasil. No texto constitucional, a saúde foi especificada como “direito individual e deu origem ao processo de criação de um sistema de saúde público, universal e descentralizado, alterando a organização da saúde pública no país” (PAIVA; TEIXEIRA, 2014, p. 15). 

Em 1993, o governo brasileiro criou a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), aprovada por meio da Lei nº 8.742/1993 onde a assistência social passou a ser caracterizada como política social pública, de dever do Estado e direito do cidadão. Passou a especificar a proteção social como indispensável a garantia da vida, à redução de danos e à prevenção da incidência de riscos sociais. Segundo Oliveira et al. (2011, p. 140):

A Constituição de 1988 e a LOAS apresentaram avanços na garantia dos direitos sociais como nunca antes vistos no país. Paralelamente a saúde, a Assistência Social também foi exemplo dessas mudanças no texto constitucional. Historicamente vinculada à caridade, ao assistencialismo e ao clientelismo, a Assistência Social passou por um novo ordenamento de suas políticas, principalmente com a criação do Sistema Único da Assistência Social (SUAS), em 2004. 

A partir da criação do SUAS, os serviços de proteção social básica passaram ser espaços privilegiados de participação e de atuação do psicólogo, demonstrando um avanço na consolidação dos ideais políticos e a garantia dos direitos sociais dos cidadãos brasileiros. As principais ações dos psicólogos no SUAS dizem respeito aos atendimentos individuais e em grupo, atendimento psicossocial, trabalho interdisciplinar e participação política (RIBEIRO; GUZZO, 2014). 

A prática do psicólogo no SUAS foge dos padrões tradicionais da psicologia, pois o foco do trabalho é psicossocial destinado a indivíduos e famílias que tiveram seus direitos violados e demandam proteção social. Contudo, quando fala-se em violação de direitos, a mesma relaciona-se também as consequências que determinada situação, como, por exemplo, a violência sexual implica para os indivíduos, seja tanto em relação aos danos emocionais, quanto no que diz respeito aos impactos nos vínculos pessoais, familiares, sociais e comunitários desses sujeitos (LIMA; SCHNEIDER, 2018). De acordo com o Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2009, p.32): 

Nos contextos da assistência social, o psicólogo tem de ter toda cautela para não contaminar as novas práticas profissionais com modelos assistencialistas, tutelares e adaptacionistas, centrados em uma ação individualizada, que desconectam o sujeito da sua realidade e contribuem para a legitimação de modos maquiados de exclusão social. Isso não significa que devemos desconsiderar a singularidade e a experiência subjetiva de cada indivíduo, especialmente daqueles que apresentam sofrimento psíquico, mas nosso olhar deve fazer a leitura da realidade sempre de forma contextualizada.

Assim sendo, a atuação do psicólogo sob o viés social rompe com a ótica tradicionalista subjetiva em relação à compreensão do fenômeno psi, tendo em vista que, apesar do sofrimento vivenciado pelo sujeito em sua individualidade, seu contexto também é social (LIMA; SCHNEIDER, 2018). Portanto, a participação do psicólogo, especificamente nos serviços de proteção social, “articula-se aos compromissos éticos e políticos da profissão com a construção de atuação profissional que contribua para assegurar direitos às pessoas e à coletividade” (CFP, 2009, p. 14). 

Nesse sentido, o psicólogo é também um profissional da política social que deve estar envolvido com as questões sociais e também com a transformação da realidade de sujeitos – crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Assim sendo, conhecendo a realidade dessas vítimas, o psicólogo pode atuar também na formulação de políticas públicas que além do direito ao atendimento psicossocial as vítimas e suas famílias que encontram em risco e vulnerabilidade social, possam estar voltadas também para a prevenção desses casos (LIMA; SCHNEIDER, 2018).

4.1 Atuação Profissional 

Para relatar sobre os serviços ofertados a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, faz-se indispensável demonstrar que a trajetória do atendimento destinado a esses sujeitos, deve-se em parte, a articulação dos profissionais da saúde, dentre esses, o psicólogo, na luta pela efetivação dos direitos sociais.  

Nesse contexto, até o final do século XIX, crianças e adolescentes vivam sob total responsabilidade da família, ou seja, observava total soberania paterna/familiar e omissão do Estado quanto a proteção social de crianças e adolescentes, uma vez que, não existia sistema legal, nem tampouco, políticas públicas destinadas a esse público (TORRES et al., 2011). As crianças eram vistas como “pequenos adultos” e o atendimento a estes sujeitos era realizado principalmente pela Igreja ou através de instituições de caridade. Existiam espaços de Acolhimento Infantil que recebiam crianças carentes, abandonadas pela família que vivem em situações de rua, vítimas de maus tratos e aquelas consideradas “delinquentes”. Era um ambiente precário, onde crianças e adolescentes viviam amontoados e em péssimas condições de moradia, saúde e alimentação (SANTOS, 2011).

No século XX, relevantes categorias profissionais como a medicina, a psicologia e o direito “contribuíram para a formação de uma nova mentalidade de atendimento à criança, abrindo espaços para uma concepção de reeducação, baseada não somente nas concepções religiosas, mas também científicas” (OLIVEIRA, 2014, p. 343). Surgiram também nesse período, os debates em torno dos serviços de proteção social de crianças e adolescentes que ocorreram em um cenário de grandes transformações políticas e sociais (TORRES et al., 2011). O país vivenciava a luta pelo “deslocamento de poder e domínio da Igreja articulado com setores privados e públicos, para o domínio do Estado, que passaria a regulamentar e subsidiar ações da causa da infância” (PEREZ; PASSONE, 2010, p. 653). 

A história da atenção à infância no Brasil registra, nos anos 1970 e 1980, uma mudança conceitual importante que passou a influenciar o olhar de profissionais da saúde, educadores, leigos, técnicos, legisladores, formuladores e gestores de políticas sociais, qual seja: o rompimento com as categorias “menor carente,” “menor abandonado” e a constituição do conceito de “crianças e adolescentes sujeitos de direitos”. A construção dessa nova concepção foi atribuída à emergência de novos atores sociais (os programas alternativos) e à organização de um amplo movimento em defesa dos direitos da criança e do adolescente, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, no contexto de redemocratização do país (TORRES et al., 2011, p. 28).

Nessa direção, a organização da sociedade contra a ditadura e em favor da liberdade e da democracia, contribui para a promulgação em 1988 da Constituição Federal do Brasil que assim estabeleceu:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Acrescenta no § 4º do artigo supracitado que a “lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”. Quanto a proteção social, o art. 203 da Constituição Federal estabelece que “a assistência social será prestada a quem dela necessitar e tem, dentre os objetivos:  a proteção à infância e à adolescência”.

A partir da Constituição Federal de 1988 pode-se notar um novo olhar no que diz respeito a proteção social de crianças e adolescentes no Brasil, sendo que estes indivíduos deixaram de ser vistos como “objetos” de atuação da Igreja, da sociedade e do Estado, e passaram a ser considerados cidadãos de direitos, ou seja, portadores de direitos especiais por demandarem atenção e cuidados específicos (FERREIRA, 2013). 

Importante marco em relação ao direito do público infanto-juvenil ocorreu na década de 1990 com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, através da Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990 que passou a dispor sobre a proteção integral à criança e ao adolescente, considerando-os sujeitos de direitos e especificando nos arts. 86 e 87:

Art. 86. A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.

Art. 87. São linhas de ação da política de atendimento:

I – políticas sociais básicas;

II – serviços, programas, projetos e benefícios de assistência social de garantia de proteção social e de prevenção e redução de violações de direitos, seus agravamentos ou reincidências;

III – serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão;

IV – serviço de identificação e localização de pais, responsável, crianças e adolescentes desaparecidos;

V – proteção jurídico-social por entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente.

VI – políticas e programas destinados a prevenir ou abreviar o período de afastamento do convívio familiar e a garantir o efetivo exercício do direito à convivência familiar de crianças e adolescentes;

VII – campanhas de estímulo ao acolhimento sob forma de guarda de crianças e adolescentes afastados do convívio familiar e à adoção, especificamente inter-racial, de crianças maiores ou de adolescentes, com necessidades específicas de saúde ou com deficiências e de grupos de irmãos. 

O Estatuto atualmente em vigor reafirma o que já estabelece a Constituição Federal que é dever de todos (Estado, família e sociedade) livrar e proteger a criança e o adolescente de toda forma de violência e exploração. Pontua ainda que “Art. 70. É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente”.

A partir do Estatuto da Criança e do Adolescente, destacam-se a institucionalização do Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente – Condeca –, em 1991, dando continuidade à regulamentação das disposições da Constituição e do Estatuto; a Lei Orgânica de Assistência Social – Loas –, em 1993, que priorizou o atendimento à criança e à adolescência previsto nas ações de atendimento às políticas municipais da criança e do adolescente, por meio da assistência social (PEREZ; PASSONE, 2010, p. 667). 

Dando continuidade a proteção social de crianças e adolescentes, o governo federal criou em 2000 o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil. Importante avanço foi dado em 2005 quando foi criado o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), com o propósito de substituir a prática tradicional do assistencialismo e a fragmentação de ações, por acesso a serviços, projetos e programas de cunho sócio assistencial, conforme estabelecido através da Lei nº 12.435, de 6 de julho de 2011. Nesse contexto, o SUAS formaliza dois níveis de proteção: Proteção Social Básica e Proteção Social Especial.

No nível de Proteção Social Básica são ofertados projetos, serviços e programas voltados para “prevenir situações de vulnerabilidades e riscos pessoais e sociais, por violação de direitos, por meio do desenvolvimento de potencialidades e do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários” (BRASIL, 2011, p. 17). Enquanto no nível de Proteção Social Especial (PSE) são ofertados os serviços, programas e projetos dentro de um contexto especializado, que tem como propósito auxiliar tanto as famílias como pessoas individualmente a superar e/ou prevenir o agravamento de situações de risco social e social decorrentes da violação de direitos, tais como: violência sexual, situação de rua, trabalho infantil, afastamento do convívio familiar, dentre outras (BRASIL, 2011). 

Especificamente em relação às crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, estes são atendidos no âmbito de atuação do PSE de Média Complexidade através do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). Conforme dispõe a Lei nº 12.435/2011, trata-se de uma instituição pública inserida na política de Assistência Social, que destina-se ao atendimento de famílias e pessoas em situação de risco social que tiveram seus direitos violados. 

Segundo Brasil (2017), o país conta atualmente com 2.292 CREAS formados por uma equipe multidisciplinar composta por psicólogo e assistente social, advogado, coordenador e auxiliares administrativos. De acordo com Florentino (2014), o exercício profissional do psicólogo junto ao CREAS é articulado junto as vítimas e familiares envolvidos nos casos de violência sexual infanto-juvenil, cujo foco baseia-se no atendimento psicossocial desses sujeitos.

4.1.1 Centros de Referência da Assistência Social (CRAS)

Os serviços de Proteção Social Básica são ofertados através dos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) que tem como propósito fortalecer as relações familiares e comunitárias de pessoas e famílias em vulnerabilidade e risco social, através do desenvolvimento de “serviços, programas, projetos e ações que, articulados com a rede local, garantam a proteção social básica” (CREPOP, 2009, p.18). 

Nesse sentido, a Política Nacional de Assistência Social disponibiliza que a “segurança da vivência familiar ou a do convívio é uma das necessidades a ser preenchida pela assistência social. Isto supõe a não aceitação de situações de reclusão e de perda das relações” (PNAS, 2004, p. 32). Assim sendo, no CRAS são ofertados o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF) e o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV). 

No PAIF os atendimentos são iniciados através da acolhida que pode ser feita em grupo ou particularizada (com uma família, uma pessoa da família ou responsável ou alguns membros da família), onde é feito um cadastro contendo informações sobre a família, homem, mulher, esposo e, filho(s), dentre outras pessoas que porventura também moram no ambiente domiciliar. Essa acolhida pode ser feita na própria instituição CRAS ou através de visita domiciliar. Normalmente, a acolhida domiciliar é feita para aquela família que não procura o CRAS e/ou não atende o convite para comparecer até a instituição (BRASIL, 2012). 

Assim sendo, quando necessário, os profissionais fazem visitas domiciliares para analisar e avaliar a situação inlocus, bem como, realizar entrevistas, coletar dados, prestar orientações a família e proceder as medidas cabíveis, bem como, encaminhar em casos necessários, as famílias para outros programas/serviços que também são de responsabilidade do governo federal (SOARES, 2016).

No PAIF também são realizadas oficinas e ações comunitárias. Junto à comunidade, os profissionais realizam palestras, promovem eventos e campanhas para tirar dúvidas e orientar a comunidade e os sujeitos a buscarem soluções para as situações do cotidiano, tais como, violência contra criança e adolescentes, trabalho infantil, exploração sexual, abuso sexual, dentre outros fatores. Junto às famílias, os profissionais do CRAS realizam também um trabalho de prevenção de casos envolvendo violência sexual de crianças e adolescentes, pois, através de palestras e campanhas a família é orientada sobre identificar situações de riscos, tais como, não deixar a criança e/ou adolescente em casa na companhia de outro homem, mesmo que este seja da própria família; bem como, orienta a família a identificar sinais de violência sexual, observando mudanças comportamentais na criança e adolescente, hábitos inadequados, sobretudo brincadeiras de cunho sexual, isolamento social, aversão ao sexo oposto, medo de algum adulto, dentre outras situações (BRASIL, 2012). 

O PAIF é pedra fundamental e se caracteriza como eixo basilar para a “nova” política de assistência social que vem sendo construída no Brasil desde a publicação da PNAS em 2004, ou seja, como política pública, dever do Estado e direito de cidadania. Política que se propõe a superar a tradição histórica assistencialista, clientelista, segmentada, de modo a ultrapassar a lógica dos “favores ou afilhados” para alcançar o entendimento da prestação de serviços públicos no campo dos direitos socioassistenciais. Ao contrário, garante direitos aos cidadãos. Política que além de enfrentar riscos sociais, propõe-se a prevenir as situações de vulnerabilidade social. Nesse contexto, o PAIF inova ao materializar a centralidade do Estado no atendimento e acompanhamento das famílias, de modo proativo, protetivo, preventivo e territorializado, assegurando o acesso a direitos e a melhoria da qualidade de vida (BRASIL, 2012, p.5). 

Percebe-se que como parte integrante dos serviços socioassistenciais, o PAIF busca não somente a proteção de famílias em vulnerabilidade social visa, acima de tudo implantar medidas preventivas para assegurar que os direitos dos cidadãos não sejam violados, condição está que é responsabilidade do Estado, bem como, dos profissionais que atuam na prestação desses serviços públicos (SOARES, 2016). Dentre o público alvo do CRAS também estão: 

As crianças de 0 a 6 anos, onde as atividades são desenvolvidas visando o fortalecimento dos vínculos familiares, o direito de brincar, ações de socialização e de sensibilização para a defesa dos direitos das crianças, bem como, os serviços socioeducativos para crianças, adolescentes e jovens na faixa etária de 6 a 24 anos, visando sua proteção, socialização e o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários (PNAS, 2004, p. 36).

Especificamente o atendimento a este público é realizado através do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), serviço complementar ao PAIF desenvolvido em grupo, cujo foco baseia-se na prevenção de situações consideradas de risco. Tendo como público alvo crianças e adolescentes, são desenvolvidas ações sociais, culturais, educativas e esportivas, que além de conferir a este público o direito de brincar, reforça também a importância da defesa dos seus direitos. Dessa forma, através das atividades são abordados temas como a violência sexual, violação de direitos do público infanto-juvenil, exploração sexual, dentre outras temáticas com o intuito de aproximar e ampliar as experiências, o conhecimento e as trocas, despertando em cada indivíduo a sua própria identidade, além de reforçar as relações familiares, a socialização e a vivência em comunidade. 

Os profissionais do CRAS também realizam campanhas junto às escolas para orientar e conscientizar as crianças e adolescentes sobre os riscos da violência sexual, bem como, como é possível evitar a situação e ainda, destacar a importância de comunicar a família qualquer tentativa de violência sexual, fazendo denúncias e buscando ajuda e orientação nos programas sociais de forma que as medidas sejam tomadas e que o problema possa ser evitado (SOARES, 2016). 

O foco dos serviços de proteção social básica é garantir o fortalecimento dos vínculos sociais e afetivos, prevenir situações de risco social a exemplo da violência sexual, minimizar sofrimentos e a cronificação de casos de vulnerabilidade social, além de evitar a violação de direitos das crianças e adolescentes levando em conta as demandas da comunidade, das famílias e de cada sujeito individualmente (GOMES et al., 2015). Para tanto, 

É essencial que os profissionais do CRAS estejam em constante contato com a equipe especializada e trabalhem de forma articulada com o CREAS, no intuito de haver referência e contra-referência, ou seja, que os casos suspeitos ou confirmados de violação de direitos observados pelos CRAS sejam referenciados ao CREAS e que este equipamento possa contar com as equipes de atenção básica para contatar as famílias, que em geral se encontram mais próximas dos CRAS, ou para continuar seu acompanhamento caso cesse a violação de direitos (FERREIRA, 2013, p. 57).

Pelo exposto, os serviços públicos relacionados aos direitos socioassistenciais são prestados de forma integrada e articulada, sendo responsabilidade dos profissionais garantirem a efetividade da assistência social como política pública, prevenir situações de vulnerabilidade social, bem como, fazer encaminhamentos de acordo com cada situação e caso analisado.

4.1.2 Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS): atuação do psicólogo no atendimento psicossocial de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual 

O CREAS como parte do serviço especializado de proteção social objetiva restabelecer/restaurar os direitos violados do público infanto juvenil pela violência, mediante atendimento contextualizado, integrado em uma rede articulada e multiprofissional. Nessa rede, a atuação do psicólogo encontra-se “menos focada no fenômeno psíquico em si e busca analisar as conexões com a vida concreta e seus efeitos na vida das pessoas” (MACEDO; CONCEIÇÃO, 2017, p. 133), neste caso, crianças e adolescentes em situação de violência sexual. 

Dessa forma, considerando a relação entre a psicologia com as questões sociais, o psicólogo no CREAS é responsável pelo atendimento psicossocial desses sujeitos. Conforme o CFP (2009, p. 49):

O atendimento psicossocial é um instrumento fundamental para a garantia dos direitos de crianças e adolescentes, que tem como referência básica os princípios de prioridade absoluta, por serem sujeitos de direitos e em condição peculiar de desenvolvimento. Configura conjunto de atividades e ações psicossocioeducativas, de apoio e especializadas, desenvolvidas individualmente e em pequenos grupos (prioritariamente), de caráter disciplinar e interdisciplinar, de cunho terapêutico – não confundir com psicoterapêutico –, com níveis de verticalização e planejamento (início, meio e fim), de acordo com o plano de atendimento desenvolvido pela equipe. 

Assim sendo, quando uma criança ou adolescente vítima de violência sexual chega ao CREAS, é feito todo levantamento social e, posteriormente, é o encaminhamento para o psicólogo e então, iniciado o atendimento por meio das entrevistas psicológicas. A nível individual, a entrevista de anamnese pode ser realizada tanto com as vítimas, bem como, com familiares e/ou responsáveis, na tentativa de colher dados acerca das reações e danos emocionais vivenciados pela criança ou adolescente em função da violência sexual. Vale ressaltar que a entrevista com os responsáveis é fundamental para auxiliar também na investigação da história de vida das vítimas, os relacionamentos pessoais, familiares, sociais e comunitários (CFP, 2009).

Durante o atendimento psicossocial, os sujeitos que sofreram violência sexual precisam sentir confiança no psicólogo de forma que tenham liberdade em relatar os fatos, sem contudo, sentirem-se culpados, vitimados, rejeitados ou então com medo de serem punidos pelo profissional que os escuta. Nas situações onde o psicólogo perceba que a vítima não consegue verbalizar os fatos de violência de sexual, recomenda-se o uso de uma linguagem sexual clara para que a criança ou o adolescente perceba que tem liberdade para expor o que sofreu e ao mesmo tempo, sentir-se mais seguro para detalhar a situação. A utilização de recursos lúdicos, desenhos, dinâmicas e testes também podem auxiliar no esclarecimento dos fatos e avaliação psicológica (FLORENTINO, 2014).

O psicólogo deve considerar que “os sujeitos em situação de violência sexual geralmente se encontram bastante fragilizados, podendo apresentar dificuldade de confiar em outras pessoas” (CFP, 2009, p. 58). Por isso, segundo Macedo; Conceição (2017, p. 141), “a escuta empática, acolhedora e a abstenção de julgamentos morais são fundamentais para o atendimento subsequente”. 

Desse modo, nas entrevistas iniciais que podem durar semanas e até meses para que a criança e/ou adolescente relate com detalhes o fato, é preciso considerar a individualidade e respeitar o tempo da vítima. Durante essas entrevistas, o psicólogo faz também a avaliação psicológica do indivíduo para que consiga entender a situação da violência e averiguar os danos causados tanto a vítima, como a sua família. Por isso, o atendimento inicial demanda muito cuidado e cautela, pois, é a partir dele que o psicólogo define o diagnóstico de acordo com cada caso analisado (CFP, 2009).

Após finalizar o diagnóstico, o psicólogo faz a entrevista devolutiva e o planejamento das ações voltadas a trabalhar os danos, conflitos e quadros emocionais identificados. Nesse sentido, o profissional normalmente realiza um trabalho focado na “autoestima, no processo de percepção, valores e a identidade de si mesma e em relação ao adulto, a fim de minimizar o impacto e os efeitos negativos do acontecimento traumático” (GUZZO et al., 2012, p. 42). Durante o atendimento psicossocial a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual não cabe ao psicólogo “categorizar, patologizar e/ou objetificar as pessoas atendidas, mas compreender e intervir sobre os processos e recursos psicossociais, respeitando as particularidades e circunstâncias em que ocorrem” (CREPOP, 2007, p.17).

O Conselho Federal de Psicologia destaca que o atendimento psicológico realizado no CREAS não constitui processo de psicoterapia. Nessa direção, orienta que, embora o atendimento psicossocial, sem dúvida, tenha efeitos terapêuticos, o mesmo difere da psicoterapia tanto pela abordagem quanto pelos objetivos propostos. Diante desse contexto, Macedo; Conceição (2017) evidenciam que as consequências em relação à saúde mental desses indivíduos é um fator subjetivo, uma vez que, enquanto algumas vítimas não sofrem tais efeitos, outras podem  vivenciar algum tipo de transtorno mental. Com isso, o CFP (2009), acrescenta que é importante observar que nem todas as crianças e adolescentes atendidos no CREAS, necessariamente sofrem de transtorno mental decorrente da violência sexual. Porém, em casos que o psicólogo observar tal condição, deve-se então indicar a psicoterapia como forma de intervenção.

Além do atendimento psicossocial a nível individual, os sujeitos podem ser encaminhados também para o atendimento a nível grupal. O atendimento em grupo configura-se uma opção privilegiada de escuta em que as pessoas podem falar de seus medos, suas emoções, seus sentimentos, questionamentos, angústias e conflitos. Sob responsabilidade prioritária do psicólogo, os grupos de apoio destinados a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual e/ou família, devem ser realizados, pelo menos, uma vez por semana. Esse trabalho em grupo é fundamental para que o profissional possa auxiliar os indivíduos a fortalecer e/ou reestabelecer as relações sociais, familiares e comunitárias, contribuindo também para o aumento da autoestima e o resgate do desenvolvimento emocional, afetivo e também social. Para a formação dos grupos é importante levar em conta alguns fatores, tais como, separá-los conforme a faixa etária dos participantes, bem como, atender no máximo oito pessoas em cada grupo. Outra condição relevante é que o mesmo seja organizado de acordo com o tipo de violência sexual das vítimas (CFP, 2009).

Portanto, a atuação do psicólogo diante dos casos de violência sexual infanto juvenil, seja a nível individual ou em grupo, não se limita em tão somente auxiliar esses sujeitos a superar ou tentar reparar as consequências e danos emocionais oriundos da situação. Sua atribuição sob o viés psicossocial implica auxiliar na reorganização pessoal, familiar, comunitária e social desses sujeitos, recaindo também na relevância do fortalecimento e/ou reestabelecimento dos vínculos familiares, afetivos e demais direitos que foram violados em consequência da violência sexual (FLORENTINO, 2014). 

Todavia, nota-se que o foco do trabalho desenvolvido no CREAS é direcionado para as vítimas como também para a família. Primar pela família é condição indispensável, sobretudo, quando se trata de crianças e adolescentes, pessoas em desenvolvimento, segundo preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente. Por outro lado, a família enquanto instituição social e como parte integrante da vivência desses sujeitos, é responsável em “assegurar-lhes, com absoluta prioridade, a efetivação dos seus direitos”. Ademais, a família também tende a ser influenciada pelos danos causados a criança e o adolescente, e, por isso, deve ser inserida no atendimento psicossocial.

Outra questão que deve ser observada pelo psicólogo que atua no CREAS é que diante de casos de violência sexual intrafamiliar, e mesmo o agressor sendo penalizado judicialmente, essa condição não impede que o mesmo também receba atendimento psicossocial. Embora, muitas vezes, seja um desafio para o psicólogo trabalhar com as duas vertentes de um mesmo caso, ele jamais poderá atuar com o agressor de forma punitiva e/ou acusatória. Respeitando os princípios éticos que regem a profissão, o psicólogo não pode deixar que sua condição emotiva pessoal se sobreponha diante da possibilidade dele trabalhar também junto ao agressor (FLORENTINO, 2014). 

Por isso, é relevante frisar que “o cotidiano desses serviços é composto por múltiplos elementos e pelas relações que se estabelecem entre eles. Assim, para que as ações que o psicólogo desenvolve estejam articuladas” (BRIGAGÃO et al. 2011, p. 209), com o que se propõe o atendimento psicossocial, é primordial não ignorar a responsabilidade do Estado em assegurar os direitos, a proteção e a justiça social a todos os segmentos da sociedade e, sobretudo, garantir também o  restabelecimento dos direitos humanos de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. 

3.1.3 Casa de Abrigamento Institucional para crianças e adolescentes

A Casa de Abrigamento Institucional trata-se de um espaço destinado a crianças adolescentes que devido à violação de direitos e, por ordem judicial, encontram-se sob medida protetiva, ou ainda, acolhe esses sujeitos devido a abandono e/ou negligência familiar, diante de situações em que a família não tem possibilidade ou não consegue cumprir o seu dever em relação ao cuidado e proteção. Como serviço, o abrigamento visa acolher o público infanto juvenil no menor tempo possível, na tentativa de restabelecer de forma breve, o retorno ao ambiente familiar, de preferência na família biológica e, em situações excepcionais, em família substituta conforme previsão legal. O serviço visa também preservar e fortalecer o convívio social desses indivíduos (BRASIL, 2015). Conforme estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente no art. 92:

Art. 92. As entidades que desenvolvam programas de acolhimento familiar ou institucional deverão adotar os seguintes princípios

 I – preservação dos vínculos familiares e promoção da reintegração familiar;

II – integração em família substituta, quando esgotados os recursos de manutenção na família natural ou extensa;

III – atendimento personalizado e em pequenos grupos;

IV – desenvolvimento de atividades em regime de co-educação;

V – não desmembramento de grupos de irmãos;

VI – evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidades de crianças e adolescentes abrigados;

VII – participação na vida da comunidade local;

VIII – preparação gradativa para o desligamento;

IX – participação de pessoas da comunidade no processo educativo

Diante dos critérios estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o Ministério do Desenvolvimento Social (BRASIL, 2015) formaliza que o Abrigamento Institucional classifica-se em duas modalidades: abrigo – que acolhe de forma provisória o quantitativo máximo de vinte crianças e adolescentes. Com infraestrutura similar a de uma residência, o abrigo deve ser situado na zona residencial da comunidade e proporcionar ao público um espaço digno, acolhedor e em condições adequadas de moradia. A outra modalidade é a casa-lar – diferente do abrigamento institucional, acolhe provisoriamente o quantitativo máximo de dez crianças e adolescentes, contudo em uma unidade residencial sob responsabilidade de pelo menos uma pessoa ou um casal que presta cuidados a esses indivíduos que estão fora do convívio familiar. Importante frisar que a unidade residencial não é o mesmo local de moradia dos prestadores de cuidados.

No entanto, independente do tipo de acolhimento, se abrigamento e/ou casa-lar, o Estatuto de Criança e do Adolescente, enfatiza que a equipe multidisciplinar que atua nesses espaços, incluindo o psicólogo, deve atuar visando a garantia do cumprimento dos direitos desses sujeitos que foram violados. Nesse sentido, as ações desenvolvidas envolvem o “estudo psicossocial do caso; visitas domiciliares; formação de grupos interativos; encaminhamentos; acompanhamento após a reintegração (apoio terapêutico, bolsa de estudos, etc)” (BRASIL, 2009, p.20).

Observa-se que os casos de violência sexual envolvendo crianças e adolescentes configuram-se um problema grave e ao mesmo tempo complexo, pois além das consequências físicas e emocionais, esses sujeitos são privados de sua convivência familiar e comunitária, necessitando de todo um trabalho psicossocial, que além de tentar restabelecer esse convívio e garantir-lhes o cumprimento dos direitos sociais, deve atuar minimizando os riscos de culpabilidade e também de vitimização desses sujeitos. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo descreveu sobre a atuação do psicólogo no atendimento psicossocial de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Evidenciou-se que a violência sexual é um fenômeno complexo e multifacetado sendo associado, na maioria dos casos, ao próprio ambiente familiar da vítima. É notório que os danos emocionais e psicológicos são evidentes entre as vítimas, e ao mesmo tempo, configuram-se um problema de saúde pública.

Diante dessa realidade, o que não pode ser ignorado é que configura-se também uma violação dos direitos que leva a rupturas nos vínculos pessoais, familiares, sociais e comunitários, que por sua vez, precisam ser restabelecidos de forma que esses indivíduos consigam ter uma vida mais adaptativa e menos traumática, mesmo diante dos danos sofridos.

Assim sendo, a atual política social em consonância com o Estatuto da Criança e do Adolescente, deixa evidente que não se pode subestimar a condição desses indivíduos como seres biopsicossociais em desenvolvimento. Logo, os espaços sociais de atuação do psicólogo, tais como, CREAS e CRAS visam assegurar a proteção integral e os direitos dessas pessoas, onde são priorizados o atendimento em grupo e recomenda-se este seja formado de acordo com a violência sofrida e sejam espaços de diálogo, respeito, trocas, aprendizado e superação. 

Embora o foco de atuação nos Serviços de Proteção Social seja o atendimento em grupo, os atendimentos individuais permitem ao psicólogo coletar dados junto à vítima e a sua família, visando conhecer melhor a problemática e traçar as medidas interventivas conforme a necessidade específica da criança e do adolescente. E importante que no atendimento psicossocial com a vítima, a mesma não se sinta culpada e/ou rejeitada, mas, encontre uma possibilidade de superar traumas, reconstruir vínculos e ter seus direitos restabelecidos. Para tanto, dentro de um diálogo respeitoso, o psicólogo deve transmitir confiança para que ela possa sentir-se segura e detalhar o que ocorreu e, ao mesmo tempo, relatar as rupturas e danos vivenciados como consequência da violência sexual.

São também prioridade desses serviços as ações comunitárias que tem como propósito levar informações para que as pessoas reconheçam o comportamento de uma criança ou adolescente vítima de violência sexual e que, na maioria dos casos não relata o fato devido a ameaças do agressor, bem como, averiguar crianças e famílias em condição de vulnerabilidade social e, desenvolver ações preventivas.

Os Serviços de Proteção Social apesar de terem cunho terapêutico, nos casos onde o psicólogo perceba o desenvolvimento de transtornos mentais em decorrência da violência sexual, os sujeitos são encaminhados para os serviços correspondentes. Importante destacar que nesses espaços as famílias também são priorizadas, tendo em vista que assim como as vítimas, elas precisam ser ouvidas e também devem ser foco de intervenções, seja através de grupos, oficinas, atendimentos individuais ou ações na comunidade. 

Já na Casa de Abrigamento Institucional, o foco da intervenção é somente a vítima que se encontra nesse espaço por ordem judicial. Cabe ao psicólogo fazer as intervenções necessárias por meio do atendimento psicossocial e tentar prioritariamente recolocar o sujeito em sua família de origem. Quando essa condição não é possível, busca-se então a colocação em família substituta conforme determinação legal.

Nesse sentido, o olhar da psicologia sob o viés psicossocial demonstra que a atuação do psicólogo em casos de violência sexual contra crianças e adolescentes não se baseia tão somente no fenômeno psíquico, mas através do trabalho articulado com os Serviços de Proteção Social, o psicólogo busca entender as rupturas desses sujeitos e atender as suas necessidades através da abordagem psicossocial, bem como, por meio da implantação de medidas socioeducativas que visam minimizar os danos sofridos, restabelecer vínculos e prevenir novas ocorrências. 

Espera-se que o presente estudo tenha contribuído para melhor entendimento sobre a atuação do psicólogo nos espaços sociais, de forma específica em relação ao atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual e, também tenha deixado explícito que o campo de atuação da psicologia é amplo, mas que, sua essência é sempre pautada em compreender indivíduos e os grupos aos quais ele encontra-se inserido- tanto a nível familiar quanto social, visando assegurar o convívio e o bem-estar individual e da coletividade. 

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