VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA EM MULHERES NEGRAS

OBSTETRIC VIOLENCE IN BLACK WOMEN

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7145428


Autoria de:
Olenir Nogueira Rodrigues
Luciane Lima Costa E Silva Pinto


RESUMO

A violência obstétrica pode ser compreendida como uma das possíveis causas da mortalidade materna. Através de pesquisas é possível obs ervar que os números de mortalidade materna estão vinculados ao acesso e à qualidade de serviços de saúde oferecidos, pois a eficiência da aplicação das políticas saúde pública poderia evitar essas mortes. Observando a saúde de mulheres negras sob a perspectiva étnico- social, é possível compreender a ligação do racismo como um determinante social que pode intervir diretamente no processo de saúde e doença. A população negra se torna mais vulnerável e tem mais chances de dificuldade no acesso aos serviços de saúde, por consequência da forma de organização das relações raciais no Brasil. O racismo mesmo sendo nas suas formas mais explícitas proibido por lei, ainda assim se manifesta de formas variadas na sociedade, formando o comportamento das pessoas por estar na estrutura dasociedade, e o racismo institucional “[…] possui uma forma sutil de manifestação e se encontra implícito no funcionamento das instituições”. Às necessidades de saúde da população negra são delimitadas desde a estruturação do Sistema Único de Saúde e na Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), oficializada em 2009. A PNSIPN reconhece a existência da relação entre racismo e vulnerabilidade em saúde da população negra, e ponta o racismo institucional na composição do cuidado e a carência de elaboração de ações.

Palavras-chave: Negras. Racismo. Violência Obstétrica. Vulnerabilidade.

ABSTRACT

Obstetric violence can be understood as one of the possible causes of maternal mortality. Through research, it is possible to observe that the numbers of maternal mortality are linked to the access and quality of health services offered, since the efficiency of the application of health policies could prevent these deaths. Observing the health of black women from an ethnic-social perspective, it is possible to understand the connection of racism as a social determinant that can directly intervene in the health and disease process. The black population becomes more vulnerable and is more likely to experience difficulties in accessing health services, as a result of the organization of racial relations in Brazil. Even though racism in its most explicit forms is prohibited by law, it still manifests itself in different ways in society, shaping people’s behavior by being in the structure of society, and institutional racism “[…] has a subtle form of manifestation. and is implicit in the functioning of institutions”. The health needs of the black population are delimited since the structuring of the Unified Health System and the National Policy for the Comprehensive Health of the Black Population (PNSIPN), made official in 2009. The PNSIPN recognizes the existence of the relationship between racism and vulnerability in the health of the population black, and institutional racism in the composition of care and the lack of elaboration of actions.

Keywords: Black women. Racism. Obstetric Violence .Vulnerability.

1 INTRODUÇÃO

O termo “violência obstétrica”, advindo do movimento de mulheres, atualmente é usado para tipificar e agrupar formas variadas de violência, agressões e omissões praticadas na gestação, no parto, no puerpério e no atendimento às situações de abortamento. Inclui maus tratos físicos, psicológicos e verbais, assim como procedimentos considerados na literatura médica como desnecessários e danosos, entre os quais a cesariana sem evidência clínica.

Outros termos, como violência institucional e de gênero, violência no parto e violência na assistência obstétrica, circulam no mesmo campo semântico para expressar as agressões e negligências durante o ciclo gravídico-puerperal.

Nesse sentido, é possível inferir que a violência obstétrica “representa a desumanização do cuidar e a perpetuação do ciclo de opressão feminina pelo próprio sistema de saúde”.

Os cuidados à mulher na gestação e no momento do parto sofreram intensas modificações no decorrer da história. Até meados do século XX, a grande maioria dos partos no Brasil ocorriam no ambiente domiciliar e era objeto de atenção das parteiras, ou comadres, na época.

Estas, não apenas detinham o conhecimento empírico a respeito da gravidez e do parto, mas sobre variados temas relacionados ao cuidado com o corpo, doenças venéreas e auxiliavam na pratica do aborto.

Dentre os procedimentos que incidam sobre o corpo da mulher, causando dor, sofrimento ou algum dano físico, os mais comuns são: a episiotomia (corte no períneo), compressões abdominais com as mãos (manobra de Kristeller), uso rotineiro de ocitocina para a aceleração do parto por conveniência médica e constantes e agressivos toques vaginais.

No entanto, apesar da ênfase crescente da medicina baseada em evidências de que muitos desses procedimentos usados não têm eficácia comprovada, ou são considerados ineficazes. Muitas dessas práticas continuam a ser comuns até mesmo, indicadores de uma boa assistência.

Para a realização do estudo utilizou-se o método de pesquisa bibliográfico, fazendo uso de doutrinas, bem como, a pesquisa de decisões judiciais e jurisprudências atinentes ao tema para esclarecimento e fundamentação.

O estudo presente trata-se de uma revisão integrativa de literatura, desenvolvido com a finalidade de reunir e sintetizar achados de estudos realizados, mediante diferentes metodologias, com o intuito de contribuir para o aprofundamento do conhecimento relativo ao tema investigado. A partir desse conceito, realizou-se aanálise de artigos por meio das plataformas eletrônicas de dados Scientific Eletronic Library Online (SciELO).

  1. BREVE HISTÓRICO: ORIGENS DO TEMA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

2.1 VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA NO BRASIL

No Brasil, o tema já vinha sendo abordado em trabalhos feministas, na academia e fora dela. O pioneiro Espelho de Vênus, do Grupo Ceres 5, na década de 1980, fazia uma etnografia da experiência feminina, descrevendo explicitamente o parto institucionalizado como uma vivência violenta. Esse grupo de pesquisadoras ativistas publicou depoimentos demonstrando que:

Não é apenas na relação sexual que a violência aparece marcando a trajetória existencial da mulher. Também na relação médicopaciente, ainda uma vez o desconhecimento de sua fisiologia é acionado para explicar os sentimentos de desamparo e desalento com que a mulher assiste seu corpo ser manipulado quando recorre à medicina nos momentos mais significativos da sua vida: a contracepção, o parto, o aborto.1

A violência obstétrica já era tema também das políticas de saúde ao final da década de 1980: o Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), por exemplo, reconhecia o tratamento impessoal e muitas vezes agressivo da atenção à saúde das mulheres. Porém, ainda que o tema estivesse na pauta feminista e mesmo na de políticas públicas, foi relativamente negligenciado, diante da resistência dos profissionais e de outras questões urgentes na agenda dos movimentos, e do problema da falta de acesso das mulheres pobres a serviços essenciais. Mesmo assim, a violência obstétrica esteve presente em iniciativas como as capacitações para o atendimento a mulheres vítimas de violência, como nos cursos promovidos a partir de 1993 pelo Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde e pelo Departamento de Medicina Preventiva da USP. A partir deste projeto, foi publicado um pequeno manual sobre o tema2.

Já neste século, numerosos estudos no país documentam como são frequentes as atitudes discriminatórias e desumanas na assistência ao parto, nos setores privado e público2. O interesse acadêmico se ampliou e a produção dos últimos anos inclui pesquisas sobre a formação dos profissionais e, mais recentemente, dados de base populacional, como a pesquisa de Venturi e colaboradores. Este último trabalho, a segunda rodada da pesquisa nacional “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”, contribuiu de forma inédita para a visibilidade do tema da violência obstétrica, despertando surpreendente interesse da grande mídia3.

2.2 DEFINIÇÕES E TERMOS ACERCA DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

No Brasil, como em outros países da América Latina, o termo “violência obstétrica” é utilizado para descrever as diversas formas de violência ocorridas na assistência à gravidez, ao parto, ao pósparto e ao abortamento.

Outros descritores também são usados para o mesmo fenômeno, como: violência de gênero no parto e aborto, violência no parto, abuso obstétrico, violência institucional de gênero no parto e aborto, desrespeito e abuso, crueldade no parto, assistência desumana/ desumanizada, violações dos Direitos Humanos das mulheres no parto abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto, entre outros. Em 1993, a Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento (ReHuNa) em sua carta de fundação, parte do reconhecimento das circunstâncias da violência e constrangimento em que se dá a assistência4.

No entanto, a organização deliberadamente decidiu não falar abertamente sobre violência, favorecendo termos como “humanização do parto”, “a promoção dos direitos humanos das mulheres”, temendo uma reação hostil dos profissionais sob a acusação de violência.

Um conjunto de definições de violência obstétrica tem sido proposto, sendo a da Venezuela6, a pioneira em tipificar esta forma de violência:

Entende-se por violência obstétrica a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por profissional de saúde que se expresse por meio de relações desumanizadoras, de abuso de medicalização e de patologização dos processos naturais, resultando em perda de autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seu corpo e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres.

Nos últimos anos, diversos autores propuseram tipificações e classificações sobre a violência obstétrica, inclusive a OMS, mais recentemente. Entre diversas tipificações da violência obstétrica, a síntese de Bowser e Hill sobre as formas de abuso e desrespeito tem se mostrado bastante explicativa, enumerando as principais categorias verificáveis nas instituições de saúde5.

2.3 HISTÓRICO SOCIAL DA POPULAÇÃO NEGRA

Quatro dos estudos abordam o histórico social da população negra como fatores que contribuem para a violência obstétrica em mulheres negras eles reúnem opiniõese achados relacionados ao tratamento de mulheres negras ser negligenciado devido o passado escravocrata do país, a atual construção social e racismo institucional.6

Curi, Ribeiro e Marra, afirmam que especialmente no caso brasileiro, o Estado juntamente com a medicina e a igreja forjaram um dito “modelo de mulher”, que é embasado na anatomia e fisiologia, porém junto com interesses morais, políticos, populacionais e econômicos, o que resultou em formas diferentes de olhar os corpos femininos, pois, corpos brancos e negros sempre foram vistos de formas diferentes nesse país com histórico de escravidão.7

A natureza racial implícita que faz uma sugestão de racismo institucional e o sexismo moldam uma rede de complexidades que tem noespaço das unidades de saúde uma dinâmica cheia de conflitos.8

Para Curi, Ribeiro e Marra, a ciência, teve e tem a até os dias atuais participação ativa na construção do racismo no Brasil, criando a ideia de superioridade e inferioridade de raças, sendo as mulheres negras as mais estereotipadas, excluídas, aquelas que sempre “suportam mais dor”, de acordo com princípios racistas disfarçados em princípios científicos, são as que mais sofrem violências, por suportarem mais, não recebem anestesia ou recebem demais, são as que mais morrem.

Mulheres autodeclaradas brancas quando avaliam o atendimento obstétrico costumam sentir-se mais satisfeitas do que mulheres negras, afirmam Inigaki 9 e concluem que tal achado pode te relação com o histórico de desigualdade étnico-racial na assistência que é oferecida, onde mulheres não brancas são expostas a uma situação de vulnerabilidade, onde são violados o direito à saúde e acesso qualificado.

Estudos evidenciam que a violência obstétrica não atinge todas igualmente, mulheres de baixo poder aquisitivo, negras, menos escolarizadas, que se queixam, não muito colaborativas, e que não tem fácil acesso aos serviços de saúde tem maior exposição a comportamentos violentos profissionais de saúde.10

De acordo com Assis13 a resistência é parte intrínseca da identidade negra feminina, já que as experiências de desfavorecimento social, político, econômico e cultural vêm fazendo parte de seu cotidiano desde a travessia transatlântica. Sendo assim, a categoria mulher negra é histórica, e a luta contra as desigualdades que a permeiam é secular.

3 INTERSECCIONALIDADE, RACISMO INSTITUCIONAL E DIREITOS HUMANOS: IMPACTOS PARA AS MULHERES NEGRAS

O conceito interseccionalidade vem sendo empregado largamente para discussão em torno das especificidades das mulheres negras, principalmente entre as intelectuais negras dos EUA e do Brasil. Kimberlé Crenshaw, considerada uma das lideranças da teoria crítica ao racismo nos Estados Unidos, é uma das pioneiras a respeito de tal pensamento.

O conceito é proposto a partir do texto “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativa ao gênero” (2002), criado no contexto da III Conferência Mundial contra o Racismo realizada em Durban África do Sul no ano de 2001. O objetivo foi sugerir um protocolo provisório para melhor identificar as variadas formas de subordinação que refletem os efeitos interativos das discriminações de gênero e raça.14

A intenção de Crenshaw foi trazer à tona a necessidade de as instituições de direitos humanos assumirem a responsabilidade em lidar com as causas e consequências de tal discriminação. De acordo com ela, ao longo da década de 1990, os resultados do ativismo de mulheres, tanto nas conferências mundiais como no campo das organizações de direitos humanos, trouxeram um consenso de que os direitos humanos das mulheres não deveriam se limitar às situações onde seus problemas se parecessem aos vivenciados pelos homens.11

O presente artigo tem por objetivo sugerir formas de entendimento das experiências únicas de mulheres étnica e racialmente identificadas. Alerta que, muitas vezes, tais experiências são suplantadas nos discursos sobre direitos. Assim, propõe que as instituições se envolvam nos esforços de investigação das implicações acerca de gênero, racismo, xenofobia e outras formas de intolerância que contribuem para uma combinação de abuso de direitos humanos.12

[…] quando se fala dos direitos humanos, o primeiro que se aponta, quase de maneira automática, é a falta e a necessidade de proteção frente a violências multiformes e multicausais que, procedentes dos Estados ou dos particulares, negam os direitos mais elementares (à vida, à integridade física, à liberdade de movimento, à de expressão etc.) de amplos contingentes da população de países e regiões13.

Há dificuldades em identificar a discriminação interseccional em contextos nos quais as forças econômicas, culturais e sociais moldam uma estrutura onde as mulheres são atingidas por outros sistemas de subordinação. Para apreensão da discriminação como problema interseccional, Crenshaw afirma que as dimensões raciais ou de gênero, que são parte da estrutura, deveriam ser destacadas em primeiro plano, como fatores que contribuem sobremaneira para a produção da subordinação.

Desta forma, a autora define interseccionalidade como:

[…] uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou maiseixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento.14

3.1 VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E MULHERES NEGRAS

3.1.1 implicações da violência obstétrica para a morbidade e mortalidade maternas

A mortalidade materna constitui um importante problema social e de saúde pública e reflete diretamente a qualidade assistencial. De acordo com a OMS/UNICEF:19

A mortalidade materna representa um indicador do status da mulher, seu acesso à assistência à saúde e a adequação do sistema de assistência à saúde em responder às suas necessidades. É preciso, portanto, ter informações sobre níveis e tendências da mortalidade materna, não somente pelo que ela estima sobre os riscos na gravidez e no parto mas também pelo que significa sobre a saúde, em geral, da mulher e, por extensão, seu status social e econômico20.

A violência obstétrica tem implicações sobre a morbimortalidade materna das seguintes formas: No risco adicional associado aos eventos adversos do manejo agressivo do parto vaginal.

Existem danos associados ao uso inapropriado e excessivo (muitas vezes também não informado e não consentido) de intervenções invasivas e potencialmente danosas no parto vaginal, como o recurso não regulado de ocitocina para indução ou aceleração do parto, manobra de kristeller, fórceps, episiotomia, entre outras.

Estas intervenções tem ocorrência muito acima da justificável por indicações clínicas, como amplamente documentado em estudos nacionais; e também no parto manejado agressivamente como constrangimento à cesárea, aumentando a sua ocorrência e riscos decorrentes21.

A violência no parto vaginal funciona como forma de constrangimento ou coerção à cesárea, quando as opções disponíveis às mulheres se resumem a esta cirurgia ou a um parto vaginal manejado agressivamente, não raramente com a negativa de qualquer forma de anestesia22.

“Toda mulher tem direito ao melhor padrão atingível de saúde, o qual inclui o direito a um cuidado de saúde digno e respeitoso”. Esta passagem é o preâmbulo da declaração da OMS referente à “Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde”. Este documento reconhece que, ao redor do mundo, inúmeras mulheres são vítimas de abusos, desrespeito e maus-tratos em instituições de saúde no momento do parto.23

Reconhece também que tais práticas violam os direitos humanos das mulheres, ameaçando seu direito à vida, à saúde, à integridade física e à não discriminação. Diante dessa realidade, o objetivo da OMS é de convocar todos os entes envolvidos para o diálogo, maior ação, pesquisa e mobilização sobre o tema, numa perspectiva de saúde pública e direitos humanos, já que:

[…] um crescente volume de pesquisas sobre as experiências das mulheres durante a gravidez, e em particular no parto, descreve um quadro perturbador. No mundo inteiro, muitas mulheres experimentam abusos, desrespeito, maus-tratos e negligência durante a assistência ao parto nas instituições de saúde. Isso representa uma violação da confiança entre as mulheres e suas equipes de saúde, e pode ser também um poderoso desestímulo para as mulheres procurarem e usaremos serviços de assistência obstétrica24.

No Brasil, os debates em torno do termo violência obstétrica começam a surgir nos primeiros anos da década de 2000, sobre as influências das experiências ocorridas na Venezuela e na Argentina. Além disso, uma de suas características básicas está atrelada à vertente do ciberativismo encabeçado por mulheres brancas e da classe média-alta, em que as mesmas relatam suas vivências durante o parto, denunciando práticas abusivas e desrespeitosas nos serviços de saúde.

Entende-se por violência obstétrica a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por profissional de saúde que se expresse por meio de relações desumanizadoras, de abuso de medicalização e de patologização dos processos naturais, resultando em perda de autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seu

As pesquisadoras relatam que tanto no Brasil como na América Latina o termo violência obstétrica é usado para descrever as variadas formas de violências ocorridas durante a gravidez. Os achados da pesquisa revelaram expressões como: violência de gênero no parto e aborto, violência no parto, abuso obstétrico, violência institucional de gênero no parto e aborto, desrespeito e abuso, crueldade no parto, assistência desumana/desumanizada, violações dos direitos humanos das mulheres no parto, abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto.15

Tratamento diferencial com base em atributos considerados positivos (casada, com gravidez planejada, adulta, branca, mais escolarizada, de classe média, saudável etc.), depreciando as que têm atributos considerados negativos (pobre, não escolarizada, mais jovem, negra) e as que questionam ordens médicas.16

Baseadas nos atributos classificadores dirigidos às parturientes, as autoras identificam a existência de escolhas de determinados perfis de mulheres para o treinamento de procedimentos a partir de um ordenamento hierárquico do valor social das pacientes. Esse fato evidencia “uma hierarquia sexual, de modo que quanto maior a vulnerabilidade da mulher, mais rude e humilhante tende a ser o tratamento oferecido a ela”. As pesquisadoras citam que “mulheres pobres, negras, adolescentes, sem pré-natal ou sem acompanhante, prostitutas, usuárias de drogas, vivendo em situação de rua ou encarceramento, estão mais sujeitas a negligência e omissão de socorro” .

3.2 COMPETÊNCIA DO PROFISSIONAL DE SAÚDE

A violência obstétrica está situada entre a institucional e a de gênero, conforme é praticada nos serviços de saúde, por ação e omissão, dirigida à mulher, a afetando no seu emocional e em seu físico, aumentando a naturalização da sua subordinação na sociedade, diz Lima17 e a partir disso acrescenta que, é possível compreender que a violência obstétrica não é consequência de ummodelo biomédico, mecanicista e hegemônico, mas justamente constitutivo dele.

As classes profissionais que mais promovem a violência obstétrica são os médicos e enfermeiros, entre as ações no momento do parto mais relatados em estudos pelas mulheres estão: o uso de expressõespejorativas, opressões, gritos e humilhações.28

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto concluisse que o ato de parir é um processo natural, no qual deve ser respeitada a autonomia e individualidade da mulher. Trata-se de um momento de grande conexão entre a mãe e o bebê, quando é criada uma ligação afetiva para a vida toda. Ocorre que, como visto no presente trabalho, inúmeras vezes o ato de parir é transformado em um ato de violência, ocasionando na violação de uma série de direitos, tais como a integridade física e psicológica da mulher, além de seus direitos sexuais e reprodutivos, todos protegidos pela Constituição Federal vigente. A violência obstétrica tem fundamento em um discurso hegemônico pautado na expertise, ou seja, o conhecimento técnico especializado capaz de transformar o profissional da saúde em uma autoridade que não pode ser questionada.

Os médicos possuem o monopólio do conhecimento, cujos argumentos estão envoltos pela cientificidade. Todo e qualquer discurso questionador é desqualificado e o tratamento injusto dado à mulher é perpetuado, tudo isso através da ação pedagógica capaz de incorporar o habitus, responsável por naturalizar atos violentos que caracterizam a violência obstétrica. Cria-se uma relação de submissão, na qual a mulher não possui qualquer poder de negociação e seus desejos sequer são ouvidos, muito menos levados em consideração, pois parte-se da ideia de que somente o médico sabe o que é melhor.

A mulher é excluída e seu protagonismo entregue nas mãos daquele que é detentor do saber científico. Concluiu-se ainda que o tratamento violento é ainda mais acentuado nos grupos de mulheres-mães negras, tal fato tem influência do racismo institucional, que afeta diretamente a forma como a parturiente é tratada pelo profissional no momento do pré-parto, parto e pós-parto. Verifica-se que em função de fatores fenotípicos parturiente deixa de ser vista como sujeito de direitos.

Como consequência, tem-se o aumento da mortalidade materna de mulheres negras em função das mulheres brancas, sendo esse um grave problema a ser reconhecido e enfrentado. Por fim, é necessário que a parturiente tenha a sua autonomia e protagonismo respeitados ao máximo, sem impor uma técnica ou procedimento considerado “hegemônico”.

Para isso, faz-se necessário que as mulheres tenham acesso à informações relativas aos diferentes modelos de parto, permitindo que façam uma escolha realmente consentida, para tanto é crucial a existência de espaços para a educação, sejam eles formais ou não, para promover o entendimento obstétrico e o verdadeiro sentido de parir.

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3 Idem.

4 Diniz CSG, Ayres JRCM. Entre a técnica e os direitos humanos/ : possibilidades e limites da humanização da assistência ao parto. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo. São Paulo: 2001. 6 República Bolivariana de Venezuela. Leyorgánica sobre elderecho de lasmujeres a una vida libre de violência. Caracas: UNFPA; 2007.

5 Organização Mundial da Saúde (OMS). Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde. Genebra: OMS; 2014.

6 Curi, P. L., Ribeiro, M. T. D. A., & Marra, C. B. (2020). A violência obstétrica praticada contra mulheres negras no SUS. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 72(SPE), 156-169. http://dx.doi.org/10.36482/18095267.arbp2020v72s1.

7 Idem.

8 Assis, J. F. D. (2018). Interseccionalidade, racismo institucional e direitos humanos: compreensões à violência obstétrica. Serviço Social & Sociedade, 547- 565. https://doi.org/10.1590/01016628.159.

9 Inagaki, A. D. D. M., Lopes, R. J. P. L., Cardoso, N. P., Feitosa, L. M., Abud, A. C. F., & Ribeiro, C. J. N. (2018). Fatores associados à humanização da assistência em uma maternidade pública. https://doi.org/10.5205/19818963 v12i7a231395p187918862018.

10 Martins, A. D. C., & Barros, G. M. (2016). Parirás na dor? Revisão integrativa da violência obstétrica em unidades públicas brasileiras. Revista Dor, 17, 215- 218. https://doi.org/10.5935/18060013.20160074. 13 Assis, J. F. D. (2018). Interseccionalidade, racismo institucional e direitos humanos: compreensões à violência obstétrica. Serviço Social & Sociedade, 547- 565. https://doi.org/10.1590/01016628.159. 14 CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, ano 10, 1º sem. 2002, p. 171-188.

Disponível em:

<http://www.scielo.br/pdf/ref/v10n1/11636.pdf> . Acesso em: 21 mar. 2022.

11 Idem.

12 HOLSTON, James. Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

13 GOMEZ, José Maria. Direitos humanos, desenvolvimento e democracia na América Latina. Revista Praia

Vermelha: Estudos de Política e Teoria Social/Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de PósGraduação em Serviço Social. Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, 2004. Disponível em:<https://docs.google.com/file/d/0B0–tS_KbeqYm1TY2laUmxqXzQ/edit> Acesso em: 02 abr. 2022.

14 CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, ano 10, 1º sem. 2002, p. 171-188. Disponível em:

15 DINIZ, Carmen Simone Grilo et al. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, São Paulo, v. 25, n. 3, p. 377-384, 2015. Disponível em:

<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S010412822015000300019&script=sci_arttext> . Acesso em: 20 março 2022.

16 Idem.

17 Lima, K. D. (2016). Raça e Violência Obstétrica no Brasil [monografia]. Recife: Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz.