VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA EM MULHERES DE BAIXA RENDA: UMA REVISÃO INTEGRATIVA.

OBSTETRIC VIOLENCE IN LOW-INCOME WOMEN.

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11317908


Nathália Marschner Lunkes; Isadora Luisa Monsão; Giovana Marques Martins; Orientador Gustavo Henrique Franciscato Garcia.


RESUMO

Violências Obstétricas (VO) são as muitas e variáveis formas de violência e irregularidades cometidas pelos profissionais de saúde na assistência ao prénatal, parto, pós-parto e abortamento. Portanto, esse estudo teve como objetivo principal descrever a vulnerabilidade das mulheres de baixa renda frente a violência obstétrica. Para isso, foi realizada uma revisão de literatura integrativa. Para a coleta de dados foram utilizadas as bases de dados Scientific Eletronic Library Online (SciELO), Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs) e National Library of Medicine National Institutes of Health dos EUA (PubMed). Os filtros inseridos para a busca foram: trabalhos nacionais e internacionais, em português, inglês e espanhol com textos completos e disponíveis. O reconhecimento da VO como problema de saúde pública possibilita aprofundar a reflexão acerca do tema e permite que sejam criadas ações voltadas a prevenir essa ocorrência. As desigualdades de raça/cor e social ficaram evidenciadas, onde a discriminação e marginalização contra as pessoas de baixa renda afeta a garantia de acesso aos serviços de saúde de qualidade e influenciam negativamente na saúde da mãe, bebê e sua família.

PALAVRAS-CHAVE: Violência Obstétrica; Discriminação Na Saúde; Baixa Renda.

ABSTRACT

Obstetric Violence (OV) are the many and variable forms of violence and irregularities committed by health professionals in prenatal, delivery, postpartum and abortion care. Therefore, this study aimed to describe the vulnerability of lowincome women to obstetric violence. For this, an integrative literature review was carried out. For data collection, the databases Scientific Electronic Library Online (SciELO), Latin American and Caribbean Literature in Health Sciences (Lilacs) and National Library of Medicine National Institutes of Health of the USA (PubMed) were used. The filters inserted for the search were: national and international works, in Portuguese, English and Spanish with complete and available texts. The recognition of VO as a public health problem makes it possible to deepen reflection on the subject and allows actions to be created aimed at preventing this occurrence. Race/color and social inequalities were evident, where discrimination and marginalization against low-income people affects the guarantee of access to quality health services and negatively influences the health of the mother, baby and family. 

Keywords: Obstetric Violence; Health Discrimination, Low Income.

1 INTRODUÇÃO

O parto é um acontecimento que em todo lugar do mundo, sempre teve muito valor cultural, social, emocional e afetivo. Habitualmente fechado ao mundo feminino e domiciliar, só na metade do século XX que a medicina interveio e então foram criados protocolos hospitalares e algumas intervenções violentas e de eficácia duvidosa¹. A mulher, que deveria ser a protagonista, acaba se tornando uma figura secundária durante o parto, em um ambiente controlado e dominado por subordinações institucionais. Isso faz com que ela perca a confiança no poder natural e na capacidade fisiológica do próprio corpo de dar à luz².

Violências Obstétricas (VO) são as muitas e variáveis formas de violência e irregularidades cometidas pelos profissionais de saúde na assistência ao prénatal, parto, pós-parto e abortamento. Estabelecido como maus tratos físicos, psicológicos e verbais, além das práticas iatrogênicas sem qualquer comprovação científica de melhoria à assistência, como a rotineira episiotomia, restrição ao leito, clister, tricotomia, ocitocina sem garantida necessidade, proibição de acompanhante e cesárea sem indicação³.

A expressão violência obstétrica foi utilizada pela primeira vez na Venezuela, em 2007, e foi definida como a apropriação do corpo e processos reprodutivos do sexo feminino por profissionais da saúde, que se expressa em um trato desumanizador e abuso da medicalização, tornando o parto um processo patológico. Reconhece-se assim a VO como um grave problema social, político e público¹. 

Essa condição anula o direito da gestante de ter um cuidado digno e ameaça à integridade física, a vida e o respeito. É uma infração dos direitos humanos. A Lei Orgânica sobre os direitos das Mulheres a uma Vida Livre de Violência identifica a VO como “dominância do corpo da mulher, produzindo a anulação da liberdade e autonomia, o que gera um grande impacto negativo à vida dessas mulheres” ³. Em geral, a VO acontece intraparto e no pós-parto, com a mulher mais suscetível, sem condições de autodefesa. O parto é um acontecimento doloroso, na concepção da maioria das mulheres, e isso faz com que a violência não seja percebida, o que banaliza a situação e torna-se um ato costumeiro em nosso país4.

O sexo feminino é constantemente estereotipado como “frágil”, sendo mantido sob uma autoridade patriarcal, onde o médico vai decidir o que é melhor. Esse cenário atinge, com frequência, mulheres de baixo nível socioeconômico, de minorias étnicas expostas e julgadas como inferiores, anulando o seu exercício pleno de cidadania e escolha. No Brasil, a cor da pele, a raça, a etnia, a classe social e o gênero são determinantes no processo de viver, adoecer e morrer. A violência é uma realidade presente no cotidiano da mulher preta e pobre5

Com relação a VO, a maioria das mulheres que relatam terem sofrido algum tipo de violência na internação para o parto, são negras, de menor escolaridade e atendidas no setor público6. A discussão da VO é recente, e pouco reconhecida entre as próprias mulheres, o conceito, definição e categorização do que de fato classifica este tipo de violência, ainda precisa ser esclarecido e divulgado de uma maneira mais eficaz7. Deste modo, a VO é um tema de importância para a política pública de saúde da mulher no Brasil, como para a formação de profissionais e capacitações, uma vez que as mudanças dessas práticas são extremamente necessárias para o sistema.

Com base nesse retrato brasileiro de elevada taxa de mortalidade materna e de alta estimativa de violência no parto, esta pesquisa teve como objetivo principal descrever a vulnerabilidade das mulheres de baixa renda frente a violência obstétrica. 

2 METODOLOGIA

Para isso, foi realizada uma revisão de literatura integrativa utilizando o método PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and MetaAnalyses). A coleta de dados utilizou as bases de dados Scientific Electronic Library Online (SciELO), Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) e National Library of Medicine National Institutes of Health dos EUA (PubMed). Os descritores empregados foram: Violência Obstétrica; Discriminação Na Saúde; Baixa Renda, utilizados isoladamente ou combinados através do operador booleano AND. Os filtros aplicados na busca incluíram trabalhos nacionais e internacionais, com textos completos e disponíveis. 

A busca dos artigos foi realizada entre 15 de dezembro de 2023 e 18 de janeiro de 2024, resultando em 266 artigos no SciELO, 390 artigos no PubMed e 102 no LILACS. Após a análise inicial, foram selecionados 40 artigos, descartando-se os demais pelo título. A leitura completa dos artigos levou à exclusão de 10 deles por não atenderem ao tema proposto no estudo. Para a fase de elegibilidade, foram avaliados 24 artigos, dos quais 17 foram incluídos para a confecção da discussão, conforme demonstrado no Fluxograma 1.

Após o levantamento das literaturas, os dados da pesquisa foram analisados para atingir o objetivo do estudo. Dessa forma, os resultados foram organizados em duas categorias temáticas:

  1. Conceituação da violência obstétrica;
  2. II. Relação entre a violência obstétrica e a baixa renda.

Fig. 1: Fluxograma de seleção de estudos. Adaptado do fluxograma PRISMA group 2009.

Fonte: De própria autoria.

3 RESULTADOS 

3.1 VIOLÊNCIA

No Brasil, as estatísticas de violência apontam, de maneira geral, que os homens predominam, seja como vítimas ou agressores. Em 2013, a chance de homens morrerem em decorrência de agressões foi 11,3 vezes maior do que a das mulheres, e 83,5% das hospitalizações por agressões no Sistema Único de Saúde (SUS) envolveram homens8,9. Uma pesquisa com base nos dados do inquérito do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (Viva), conduzido pelo Ministério da Saúde em 2011, com jovens vítimas de violência atendidos nos serviços de urgência e emergência do SUS, indicou que os homens foram as principais vítimas (75,1%) e agressores (83,1% e 69,7% dos casos de violência perpetrada contra vítimas do sexo masculino e feminino, respectivamente). Entre os homens, as agressões mais frequentes ocorreram em locais públicos, causadas por desconhecidos, com uma maior incidência de lesões graves e óbitos nas primeiras 24 horas. Por outro lado, entre as vítimas do sexo feminino, os incidentes predominaram no ambiente doméstico, sendo perpetrados por companheiros, ex-companheiros, familiares ou conhecidos10,11.

Destaca-se que os homens são as principais vítimas das formas de violência mais registradas nos sistemas de informação da saúde, segurança pública e justiça. Em contraste, a violência contra a mulher é marcada pela sua invisibilidade, ocorrendo principalmente em ambientes privados e, frequentemente, sendo praticada por pessoas próximas, como familiares e conhecidos. Devido a essas características, muitos incidentes não resultam em atendimentos e não são capturados pelos sistemas de informação, contribuindo para a subnotificação dos eventos e reforçando a invisibilidade da violência contra a mulher⁸.

3.2 VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES

A violência contra mulheres pode se manifestar de diversas formas. É explicada como todo ato danoso, capaz de levar a lesão ou morte, e que pode ocorrer de forma psicológica, sexual, patrimonial e até mesmo institucional, que tenha como principal motivação o gênero⁸.

Reconhecida como uma violação dos Direitos Humanos, a violência contra as mulheres acarreta implicações nos âmbitos político, econômico, social, psicológico e cultural. Diante disso, torna-se crucial a implementação de estratégias voltadas para fortalecer a cidadania feminina. Nessa perspectiva, é essencial ressaltar o papel central do Estado, com a participação ativa da sociedade civil, no desenvolvimento de políticas públicas direcionadas à prevenção e à superação dessa forma de violência⁸.

No contexto brasileiro, ao longo das últimas décadas, observam-se avanços significativos no enfrentamento da violência contra as mulheres e suas particularidades, contribuindo para a consolidação de estratégias em curso. Entre esses avanços, destaca-se o aumento constante na produção e sistematização de informações sobre o fenômeno, considerado uma ação prioritária nos documentos internacionais⁸.

No âmbito da violência contra as mulheres, a informação desempenha um papel crucial como ferramenta indispensável para dar visibilidade ao fenômeno, compreendendo sua extensão e subsidiando a formulação de políticas públicas abrangentes para enfrentamento. Essas informações organizam a prática social, proporcionando novos contextos e significados para os fenômenos, desempenhando tanto o papel de mantenedora e reprodutora de uma determinada estrutura social quanto de agente propulsor de mudanças nessa estrutura12.

3.3 VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

Uma pesquisa no Brasil de 2010, da Fundação Perseu Abramo, afirma que 25% das mulheres revelam terem sido violentadas, costume que muitas vezes é corriqueiro pelos profissionais e instituições³. Algumas práticas não são percebidas pelos próprios profissionais da saúde como violentas, e isso acaba fazendo com que muitas condutas sejam rotineiras no cotidiano da assistência, interpretando-as como toleráveis ou necessárias¹.

Excesso de procedimentos podem causar danos com finais evitáveis na saúde da mulher e do bebê, como distócia do parto, hemorragias, hipóxia neonatal, além de um possível pós-parto insatisfeito13. Com frequência, nas salas de parto, as mulheres estão sozinhas, seminuas, com estranhos, em posição de submissão, com pernas abertas e levantadas, sendo separadas de seus filhos logo após o nascimento. Está cada vez mais claro que esses costumes estão ligados a má assistência e a desfechos ainda piores, inclusive em serviços especializados².

A OMS define que o parto deve ter início de forma espontânea, não induzida, devendo a parturiente ter liberdade de decisão e escolha, ser livre para movimentar-se, receber suporte contínuo durante a parturição, como monitoramento cardíacos fetais, alimentação, adoção de posições não supinas, respeito à privacidade, o uso do partograma e a presença de acompanhantes. Todo cuidado deve ser único e individualizado e não deve ocorrer a separação da mãe e bebê imediatamente após o parto14.

Irrefutavelmente, o parto é um momento único e inolvidável na vida da mulher, quando o cuidado empregado pelos profissionais deveria ser ímpar e pautado no protagonismo da mulher, tornando-o mais natural e humano possível. Diferentemente de outros acontecimentos que necessitam de cuidados hospitalares, o processo de parturição é fisiológico, normal, necessitando, na maioria das vezes, apenas de apoio, acolhimento, atenção, e o mais importante, humanização15.

Uma experiência positiva de nascimento dos filhos pode significar mudança positiva na história de vida daquela mulher. À luz do que uma boa experiência de parto/nascimento pode produzir, também se podem vislumbrar as possíveis consequências (algumas traumáticas) da violência em um momento de tamanha fragilidade e relevância emocional, como é o nascimento de um filho. Considerando que, em 25% dos partos normais em maternidades, há violência obstétrica, é possível estimar o grande impacto à saúde feminina, física e emocional, que as práticas de assistência obstétrica brasileiras vêm criando5.

Embora peculiar e ainda pouco abordada, a violência obstétrica tem ganhado notoriedade. Trata-se da realização de procedimentos desnecessários ou omissão de cuidados direcionados à mulher durante o pré-natal, parto ou puerpério, sem consentimento ou em desrespeito a sua autonomia, exercido por profissionais da saúde16.

Uma em cada quatro mulheres brasileiras sofre violência no parto segundo pesquisa realizada, em 2010, pela Fundação Perseu Abramo:

“Mulheres brasileiras e Gênero nos espaços público e privado”. O conceito internacional de violência no parto define qualquer ato ou intervenção direcionada à parturiente ou ao seu bebê, praticado sem o consentimento explícito e informado da mulher e/ou em desrespeito à sua autonomia, integridade física e mental, aos seus sentimentos, opções e preferências³.

O fenômeno constitui um grave problema de saúde, violando a autonomia feminina, aos seus direitos humanos, aos seus direitos sexuais e reprodutivos. Adotando-se que a maternidade é um marco para a vida da mulher, momento delicado, onde deve-se oferecer antes, durante e depois, o cuidado especial, o apoio, a assistência e a proteção. Toda mulher tem direito de receber um parto humanizado e livre de maus tratos17.

A integridade corporal das mulheres e seu bem-estar emocional parecem não serem desfechos relevantes para a saúde pública das mães visto que, ainda são escassas as investigações nacionais sobre a satisfação da mulher com a experiência de conceber um filho. Praticar o desrespeito e abuso durante o prénatal e parto são violações dos direitos humanos básicos das mulheres18.

Determinadas ações prestadas as gestantes no período gestacional, podem ser citadas com VO, como desrespeito físico, mental, verbal procedimentos desnecessários e desrespeitosos, a falta de confidencialidade, não obtenção de conhecimento e esclarecido antes da realização de procedimentos, recusa em administrar analgésicos, violações da privacidade, cuidado negligente durante o parto levando a complicações e situações ameaçadoras da vida, e detenção de mulheres e seus recém-nascidos nas instituições, após o parto19.

A maternidade é percebida por algumas mulheres como o início de um novo ciclo, um marco diferencial, que consagra a abrangência do papel feminino, embora a maioria das pacientes a associe com dor intensa e sofrimento, sendo um momento de grandes expectativas. Apesar de fisiológico, o trabalho de parto pode sofrer interferências do estado emocional, da cultura, dos valores, da história da parturiente e de fatores ambientais². 

Além do mais, é frequente perceber a medicalização dos partos nos dias de hoje, com a ampla utilização de procedimentos considerados impróprios e dispensáveis. Essas práticas, muitas vezes, representam um risco potencial à saúde e à vida tanto da mãe quanto do bebê, carecendo de uma avaliação adequada de sua segurança e desprovidas de fundamentação em evidências20.

O significado empregado pela Organização Mundial de Saúde (OMS)21, a apreciação de violência permaneceu conexo com a consciência do exercício de uma ação violenta, entretanto o básico assunto é que essa ação para ser caracterizada enquanto uma violência necessitaria ser exercitada de modo propositado, procedente a acarretar agravos físicos e psicológicos, em outras palavras, a violência como, a utilização propositada da força física ou do poder, fidedigno ou em intimidação, contra si próprio, contra outro indivíduo, ou contra um conjunto ou uma sociedade, que proceda ou tenha ampla probabilidade de proceder em dano, óbito, agravo psicológico, ausência de evolução ou privação. 

De acordo com a pesquisa realizada por Palma e Donelli22, a violência obstétrica incide em diversos agentes, diversos deles pertinentes a pretextos igualitários e culturais. Ela pode permanecer entendida desde agressões comoveis e psicológicas a agravos físicos. Em diversos estudos e artigos lidos, revelam que a violência obstétrica favorece decorrências nocivas, tanto para o recém-nascido, quanto para a futura mãe, é intensamente evidente. 

A violência nas maternidades é expressa através da forma de organização dos serviços e da organização das práticas assistenciais, observando-se uma acessibilidade ruim, com pouca permeabilidade dos serviços e dos profissionais às usuárias do SUS, e a manutenção das maternidades em condições inadequadas para o desenvolvimento de um cuidado integral23,24,25.

Tal brutalidade é conhecida como um triste e grave fenômeno social que está sofrendo grande aumento em todas as suas formas, principalmente contra a mulher e, ao longo da história vem ganhando destaque em todos os países do mundo seja de forma social, racial, etária, religiosa, sexual e doméstica. A violência contra a mulher apresenta-se em distintas expressões, e uma delas tem sido muito presente e não identificada: a violência obstétrica26.

A VO tem sido um tema recente de estudo em diversos países, um tema de grande relevância para um estudo aprofundado, pois configura-se como um problema de saúde pública devido ao elevado número de indivíduos que atinge e consequentemente, pelos impactos sociais, econômicos e individuais que produz, além de tratar-se de uma questão que dissemina doenças e sofrimentos e, por vezes, coloca a vida da parturiente em risco27.

É importante ressaltar a violência obstétrica, que pode acontecer durante o processo parturitivo, a qual rompe com o protagonismo feminino e a autonomia do processo de nascimento, podendo promover sentimento de insegurança e frustração na mulher. Cabe relembrar que o universo do nascimento é construído por ela ainda durante a gestação, construção essa que se reveste de sentimentos, sonhos, desejos e transformações em relação ao próprio corpo, à sexualidade e principalmente às expectativas diante do novo28.

4 DISCUSSÃO

Atualmente, cerca de 830 mulheres morrem diariamente devido a complicações relacionadas à gravidez ou ao parto. Há uma notável disparidade racial nas figuras, e as mulheres negras têm setenta e cinco por cento mais chances de ter um parto traumático em comparação às mulheres brancas. As experiências traumáticas de parto geralmente resultam de VO, uma noção que engloba atitudes desrespeitosas dos profissionais da saúde, discriminação dos prestadores de cuidados e falta de consentimento para o tratamento31.

A violência obstétrica é especialmente severa para mulheres negras devido à discriminação generalizada no campo da maternidade. Estima-se que as mulheres negras têm três vezes mais chances de morrer de problemas relacionados ao parto do que as mulheres brancas15.

Além disso, estudos16,17 apontam que uma grande população de baixa renda e negra, revelam como os profissionais geralmente justificam atos de violência obstétrica fingindo preocupação paternalista e afirmando falsamente que a mãe ou o bebê estavam em perigo. Além disso, está bem estabelecido que as mulheres negras têm uma incidência inferior de acompanhamento durante a gravidez, apontando para uma baixa qualidade de atendimento em hospitais onde as mulheres negras buscam atendimento materno, que geralmente são encontradas em áreas altamente segregadas.

Outro fator relevante, é que mulheres vítimas de VO são mais propensas a ter complicações de embolias e histerectomias relacionadas ao parto. As mulheres negras acreditam que suas preocupações não são tratadas pelas equipes de saúde; para muitas mulheres negras, a notícia de um bebê evocam mais medo do que alegria, porque essas mulheres conhecem as tendências alarmantes e como as equipes de tratamento podem desconsiderar seus desejos e preocupações32.

Os fatores sociais e do sistema de saúde contribuem para altas taxas de maus resultados de saúde e mortalidade materna para as mulheres negras, que têm mais probabilidade de enfrentar barreiras à obtenção de cuidados de qualidade e geralmente enfrentam problemas raciais. Devido ao racismo, sexismo e outras barreiras sistêmicas que contribuíram para a desigualdade de renda, as mulheres negras geralmente têm uma renda inferior do que mulheres brancas, e consequentemente, têm menos dinheiro para sustentar a si mesmas e suas famílias e podem ter que escolher entre recursos essenciais, como moradia, creche, alimentação e assistência médica20.

Essas compensações são evidentes nos resultados de saúde das mulheres negras e no uso de cuidados médicos. Comparadas às mulheres brancas, as mulheres negras têm maior probabilidade de não ter seguro, enfrentam maiores barreiras financeiras para se cuidar quando precisam e são menos propensas a ter acompanhamento no pré-natal. De fato, essas mulheres apresentam taxas mais altas de muitas doenças evitáveis e condições crônicas de saúde, incluindo diabetes, hipertensão e doenças cardiovasculares, sendo assim, quando, ou se, elas optam por engravidar, essas condições de saúde influenciam os resultados da saúde materna e infantil7.

As disparidades na mortalidade materna e infantil estão enraizadas no racismo. O racismo estrutural na assistência médica e na prestação de serviços sociais significa que as mulheres negras costumam receber atendimento de qualidade inferior às mulheres brancas. Significa a negação de cuidados quando essas mulheres procuram ajuda quando sofrem dores ou que os prestadores de serviços de saúde e serviços sociais falham em tratá-las com dignidade e respeito19,24.

Esses estressores e a experiência acumulada de racismo e sexismo, especialmente durante períodos sensíveis de desenvolvimento, desencadeiam uma cadeia de processos biológicos, conhecidos como intemperismo, que prejudicam a saúde física e mental das mulheres afro-americanas. O pedágio psicológico do racismo a longo prazo coloca as mulheres em maior risco por uma série de condições médicas que ameaçam suas vidas e a vida de seus bebês, incluindo pré-eclâmpsia (pressão alta relacionada à gravidez), eclâmpsia (uma complicação da pré-eclâmpsia caracterizada por convulsões), embolias (obstruções dos vasos sanguíneos) e condições de saúde mental².

Os legados da escravidão hoje são vistos no racismo estrutural que resultou em morte materna e infantil desproporcional entre os afro-americanos. As raízes profundas desses padrões de disparidade na saúde materna e infantil estão na mercantilização da gravidez de mulheres negras escravizadas e no investimento dos médicos em servir os interesses dos proprietários de escravos. Mesmo certas especializações médicas, como obstetrícia e ginecologia, devem uma dívida às mulheres escravizadas que se tornaram sujeitos experimentais no desenvolvimento do campo29.

As iniciativas de saúde pública devem reconhecer esses legados históricos, abordando o racismo institucionalizado e o viés implícito na medicina, promovendo programas que sanem as disparidades de saúde socialmente incorporadas30.

Durante anos, a maternidade negra tem sido apresentada de maneira desfavorável, tanto na cultura popular quanto nos círculos acadêmicos.

Estudos15,30 mostraram que a mídia usa “a preocupação com as crianças como uma ferramenta retórica para definir mulheres pobres e minoritárias como mães ruins”, e as estatísticas mostram que as crianças negras estão superrepresentadas no sistema de assistência21.

A desigualdade racial que afeta as mães negras e as pessoas de cor continua a crescer, apesar das pesquisas em andamento e dos apelos frequentes para tomar medidas para enfrentar as disparidades e melhorar os cuidados. Embora as causas sejam complexas e incluam lacunas na cobertura do seguro de saúde, acesso desigual a serviços, determinantes sociais da saúde e outros fatores, é claro que a crise da mortalidade materna está enraizada no racismo e na marginalização das mulheres negras e de suas práticas de parto28.

Para a maioria das mulheres negras, isso significa estar exposto a múltiplas formas de discriminação e barreiras institucionais à assistência de qualidade. Há também evidências de que os efeitos crônicos do estresse do racismo, juntamente com a sensação de não serem ouvidos quando surgem preocupações com a saúde, são fatores da mortalidade materna negra e maus resultados para a saúde materna. Lidar com preconceitos explícitos e implícitos é um importante, mas fator frequentemente negligenciado que afeta a melhoria da saúde materna nos Brasil25.

Existem razões éticas e de direitos humanos convincentes para focar nossa atenção na eliminação de profundas e duradouras diferenças nas condições sociais que continuam quebrando ao longo das linhas da cor da pele. Uma abordagem multifacetada para lidar com a crise da maternidade no Brasil exigirá transformação nos sistemas financeiros e de saúde; garantir a coleta e ação sistemática de dados com base em riscos evitáveis; abraçar princípios de equidade racial e justiça social; vendo a saúde materna de forma holística e durante toda a vida útil; e a construção de uma força de trabalho diversificada em assistência médica e perinatal que integre efetivamente a obstetrícia no sistema de prestação de assistência médica23.

O direito humano à igualdade e à liberdade de discriminação foge às mulheres negras. Esses princípios fundamentais abrangem todos os direitos humanos e são essenciais para a realização da justiça reprodutiva e justiça do nascimento¹. A exposição crônica das mulheres negras ao racismo, discriminação de gênero, desrespeito e abuso – dentro e fora do sistema de saúde – afeta diretamente sua capacidade de exercer autonomia corporal e de ser um participante ativo na tomada de decisões sobre sua saúde. Além disso, a degradação sistemática do trabalho tradicional do parto realizado por parteiras e doulas e o aumento da medicalização do parto ao longo do tempo levaram as mulheres negras a um sistema de prestação de serviços que são inerentemente tendenciosos contra elas³.

 A consideração da interseccionalidade – sistemas sobrepostos e interdependentes de discriminação em um indivíduo e/ou grupo – é fundamental para entender as complexidades envolvidas no tratamento da mortalidade e morbidade materna entre as mulheres negras. Como as mulheres negras experimentam várias formas de racismo, discriminação e preconceito por causa de sua raça, gênero ou classe, entre outras, os esforços para melhorar os sistemas de atendimento sem abordar o racismo e a discriminação de todas as formas são ineficazes15.

5 CONCLUSÃO

O reconhecimento da VO como problema de saúde pública possibilita aprofundar a reflexão acerca do tema e permite que sejam criadas ações voltadas a prevenir essa ocorrência. As desigualdades sofridas por mulheres de baixa renda ficaram evidenciadas, onde a discriminação e marginalização afeta a garantia de acesso aos serviços de saúde de qualidade e influenciam negativamente na saúde da mãe, bebê e sua família.

Existem muitos estudos que comprovam a desigualdade entre mulheres de acordo com o padrão social, tanto em relação à menor índice de pré-natal, anestesia, corte vaginal, além de estarem expostas a posturas autoritárias dos profissionais da saúde, entretanto, vale salientar a importância sempre de mais estudos que possam difundir o conhecimento sobre o assunto.

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