REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th1024120915131
João Jorge Neto[1]
Irlanda do Socorro de Oliveira Miléo[2]
RESUMO
O estudo aborda a relação entre violência doméstica e o currículo da escola básica, destacando a importância da educação como ferramenta de prevenção e enfrentamento dessa problemática. O objetivo foi analisar como a escola pode atuar como espaço de proteção e transformação social, integrando essa temática ao currículo escolar. A metodologia consistiu em uma revisão bibliográfica interdisciplinar, contemplando aspectos educacionais, sociais e legais. Os resultados indicam que a violência doméstica impacta significativamente o desempenho escolar e o desenvolvimento emocional de crianças e adolescentes, reforçando a necessidade de a escola abordar a temática de forma sistemática e integrada. O estudo aponta desafios, como a falta de capacitação docente e a resistência social, mas também propõe soluções, incluindo a formação continuada de professores e a articulação com redes de proteção. Conclui-se que a integração do tema no currículo escolar é essencial para romper ciclos de violência e promover a formação de cidadãos conscientes e comprometidos com a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Palavras-chave: Violência doméstica. Currículo escolar. Educação. Proteção social. Formação cidadã.
1. INTRODUÇÃO
O interesse pelo tema da violência doméstica e sua relação com o currículo escolar emergiu da necessidade de compreender como a escola pode atuar como agente de proteção e transformação social diante de uma problemática tão relevante e complexa. A violência doméstica, que afeta milhares de crianças e adolescentes no Brasil, não apenas compromete o bem-estar físico e emocional das vítimas, mas também interfere diretamente no processo educacional, impactando o desempenho escolar e a socialização desses indivíduos.
Discutir essa temática no contexto escolar é fundamental na atualidade, considerando que a escola ocupa um espaço estratégico na formação cidadã e na construção de valores éticos e democráticos. Além disso, ao abordar questões como direitos humanos e convivência ética, o ambiente escolar contribui para a desconstrução de estereótipos de gênero e para a prevenção de ciclos de violência, promovendo uma sociedade mais inclusiva e igualitária.
Este trabalho baseia-se em uma pesquisa bibliográfica, estruturada por meio da análise de literatura científica e legislativa sobre a temática. A metodologia adotada possibilitou uma abordagem interdisciplinar, contemplando aspectos sociais, educacionais e legais da violência doméstica, bem como as estratégias pedagógicas para integrá-la ao currículo escolar.
O objetivo geral é analisar como o currículo da escola básica pode contribuir para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica, promovendo um ambiente educacional mais inclusivo e protetivo. Para isso, organizamos o texto em cinco partes: a primeira contextualiza o conceito de violência doméstica e seus impactos na vida de crianças e adolescentes; a segunda explora o papel da escola como espaço de proteção social; a terceira discute a integração da temática no currículo escolar; a quarta aborda os desafios e limitações dessa inclusão; e, por fim, são apresentadas as considerações finais sobre as contribuições da pesquisa.
2. CONTEXTUALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
A violência doméstica é caracterizada como uma prática que reflete desigualdades estruturais de gênero e da família, enraizadas em valores patriarcais e dinâmicas de poder assimétricas. Segundo Pessôa e Wanderley (2020), essa violência não se limita ao âmbito físico, mas incluem dimensões psicológicas, morais, patrimoniais e sexuais, o que demonstra a necessidade de uma abordagem ampla e interdisciplinar para seu enfrentamento. A perpetuação dessa problemática decorre, em parte, da falta de estratégias eficazes que contemplem tanto a proteção das vítimas quanto a responsabilização e reeducação dos agressores.
A violência doméstica pode ser compreendida como uma expressão de relações de poder e controle, frequentemente enraizada em desigualdades estruturais e históricas. Segundo Cruz (2023), essa violência vai além das manifestações físicas, englobando aspectos emocionais, patrimoniais e sociais que afetam desproporcionalmente grupos vulneráveis, como mulheres negras. A interseccionalidade entre raça, gênero e classe é essencial para compreender as formas complexas como a violência doméstica se manifesta, especialmente em contextos em que o racismo estrutural e o sexismo interagem para ampliar as vulnerabilidades.
O impacto da violência doméstica na família transcende as relações entre agressor e vítima, afetando de maneira significativa o bem-estar emocional e psicológico de todos os membros do núcleo familiar, especialmente crianças e adolescentes. Cruz (2023) aponta que a violência muitas vezes rompe os vínculos de confiança e segurança que deveriam caracterizar as relações familiares, gerando ciclos intergeracionais de sofrimento e reproduzindo padrões de abuso. Esses efeitos demonstram a importância de intervenções que contemplem tanto a proteção da vítima quanto a reconstrução das relações familiares.
Além disso, a violência doméstica contra crianças e adolescentes é uma grave violação dos direitos humanos que se manifesta em diferentes formas, incluindo agressões físicas, psicológicas, negligência e violência sexual. Segundo Ponce e Neri (2015), ela é caracterizada por ações ou omissões praticadas por pais, responsáveis ou outros membros da família que comprometem o desenvolvimento e a dignidade desses indivíduos em fase peculiar de formação. Essa violência é frequentemente naturalizada em contextos culturais e históricos que perpetuam a subordinação das crianças e adolescentes aos adultos, dificultando sua visibilidade e enfrentamento.
O impacto da violência doméstica na vida de crianças e adolescentes vai além das consequências físicas, afetando sua saúde mental, desenvolvimento cognitivo e a capacidade de estabelecer relações saudáveis. Ponce e Neri (2015) ressaltam que o ambiente escolar frequentemente se torna um reflexo dessa violência, com dificuldades de aprendizado, baixa autoestima e comportamentos disruptivos evidenciando as marcas do abuso. Nesse contexto, a escola possui um papel fundamental no reconhecimento e encaminhamento de casos, articulando-se com redes de proteção e promovendo a conscientização sobre os direitos das crianças.
2.1. Tipos de violência doméstica
Os tipos de violência doméstica podem ser classificados em categorias distintas que refletem as múltiplas dimensões do abuso. Conforme Miura et al. (2018), esses tipos incluem violência física, psicológica, sexual, moral e patrimonial, cada um com características específicas que refletem diferentes formas de controle e abuso dentro das relações interpessoais. A violência física é frequentemente associada a atos de agressão corporal, enquanto a psicológica está relacionada a humilhações, ameaças e controle emocional, afetando diretamente a saúde mental das vítimas.
A violência sexual engloba qualquer ato que force a vítima a manter ou presenciar práticas sexuais não consentidas, incluindo a violação de seus direitos sexuais por meio de coação ou intimidação. Além disso, Albuquerque et al. (2021) destacam a violência patrimonial, que envolve a retenção, destruição ou subtração de bens e recursos financeiros da vítima, frequentemente utilizada como forma de limitar sua independência. Por fim, a violência moral, caracterizada por calúnia, difamação e injúria, objetiva deslegitimar a vítima perante a sociedade ou seus pares.
No contexto doméstico, esses tipos de violência podem ocorrer em diferentes relações familiares, incluindo parcerias íntimas, relações parentais e até mesmo interações com cuidadores. Miura et al. (2018) destacam a importância de considerar não apenas o espaço físico onde ocorre a violência, mas também as dinâmicas relacionais e de poder que a sustentam. Nesse sentido, os conceitos de violência doméstica e intrafamiliar frequentemente se sobrepõem, mas possuem distinções relevantes, sendo a última mais abrangente em termos de relações envolvidas.
Assim, a diversidade dos tipos de violência doméstica reflete a complexidade desse fenômeno e evidencia a necessidade de abordagens integradas no enfrentamento dessa questão. Albuquerque et al. (2021) enfatizam que, embora a visibilidade de alguns tipos de violência seja maior, todas as formas possuem repercussões profundas, tanto individuais quanto coletivas, exigindo esforços sociais, jurídicos e educacionais para sua prevenção e combate.
2.2. Violência doméstica no Brasil
A prevalência da violência doméstica no Brasil revela um cenário alarmante, evidenciando a extensão e a gravidade do problema. Segundo Bueno e Reinach (2021), durante a pandemia de Covid-19, 15% das mulheres brasileiras acima de 16 anos relataram ter sofrido algum tipo de violência doméstica, o que corresponde a aproximadamente 13,4 milhões de vítimas. Esses dados apontam para uma escalada da violência em um contexto de isolamento social, onde fatores como instabilidade econômica, aumento do consumo de álcool e convivência intensificada exacerbam os conflitos no âmbito doméstico.
Entre as formas de violência reportadas, a violência física afeta 6% das mulheres, o que equivale a 5,3 milhões de vítimas. Esse número é ainda mais elevado entre mulheres negras, de baixa escolaridade e na faixa etária de 35 a 44 anos, evidenciando a interseccionalidade de raça, classe e gênero na vulnerabilidade à violência. A violência psicológica, que inclui ameaças, humilhações e controle, também foi amplamente relatada, assim como o assédio sexual, que afeta especialmente jovens de 16 a 24 anos. Esses dados destacam a necessidade urgente de intervenções direcionadas e sensíveis às especificidades das vítimas (Bueno; Reinach, 2021).
A pandemia agravou ainda mais a desigualdade de gênero, ampliando a dependência econômica das mulheres e limitando suas opções para escapar de situações de abuso. Bueno e Reinach (2021) enfatizam que a crise sanitária retrocedeu décadas de avanços na inserção feminina no mercado de trabalho, deixando muitas mulheres ainda mais vulneráveis à violência doméstica. Além disso, a dificuldade de acesso a serviços de apoio durante o período de isolamento intensificou a exposição ao risco e a falta de alternativas de proteção para muitas vítimas.
Além disso, no contexto brasileiro, a violência doméstica é agravada pela interseccionalidade de fatores como pobreza e racismo, que colocam mulheres negras e de classes populares em uma posição de maior vulnerabilidade. Lapa (2022) destaca que a violência de gênero, incluindo a violência doméstica, é frequentemente invisibilizada por uma cultura machista que minimiza ou justifica o comportamento agressivo masculino. Essa invisibilidade é reforçada por práticas como a subnotificação de casos, que dificulta o desenvolvimento de políticas públicas eficazes e integradas.
A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) representa um marco no enfrentamento da violência doméstica, estabelecendo mecanismos de proteção e ampliando a compreensão jurídica sobre o tema. Conforme Lapa (2022), a legislação tipifica cinco formas de violência: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, todas com impactos devastadores sobre as vítimas e suas famílias. No entanto, a implementação efetiva dessa lei enfrenta desafios, como a falta de recursos, a insuficiência de medidas preventivas e o preconceito institucional.
Portanto, a violência doméstica no Brasil deve ser compreendida como um problema social de grande magnitude, que demanda ações coordenadas entre diferentes esferas da sociedade. Lapa (2022) reforça a necessidade de estratégias que promovam não apenas a proteção das vítimas, mas também a desconstrução de papéis de gênero que sustentam as relações abusivas. É fundamental investir em educação, sensibilização e políticas públicas que abordem as raízes estruturais da violência, promovendo uma sociedade mais igualitária e justa.
3. A ESCOLA COMO ESPAÇO DE PROTEÇÃO E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
A escola desempenha um papel crucial como espaço de proteção e transformação social, especialmente no enfrentamento de problemas estruturais, como a violência doméstica. Segundo Ponce e Neri (2015), a instituição escolar possui uma função social que transcende a instrução formal, englobando a promoção de justiça social, o respeito aos direitos humanos e a formação de cidadãos críticos. No contexto de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, a escola deve ser um espaço seguro, capaz de identificar sinais de abuso, promover a conscientização e encaminhar casos às redes de proteção.
A articulação entre escola e políticas públicas é fundamental para consolidar seu papel protetivo. Brito et al. (2005) destacam que iniciativas como programas de conscientização e capacitação de educadores são essenciais para que a escola possa identificar sinais de violência e agir de forma efetiva. A implementação de políticas como a notificação compulsória de maus-tratos possibilita maior visibilidade ao problema, ampliando as possibilidades de intervenção e promovendo a responsabilização dos agressores.
O currículo escolar é uma ferramenta fundamental para transformar a escola em um ambiente de proteção e transformação. Conforme argumentam Ponce e Neri (2015), a justiça curricular implica integrar práticas pedagógicas que reconheçam e enfrentem desigualdades sociais, promovendo a convivência democrática e solidária. Ao abordar temas como violência doméstica e direitos humanos, a escola não apenas instrumentaliza os alunos para compreenderem o mundo e a si mesmos, mas também cria um espaço de acolhimento e cuidado que possibilita a denúncia e o encaminhamento de situações de risco.
A articulação entre a escola e as redes de proteção é essencial para efetivar sua função social. Ponce e Neri (2015) destacam a necessidade de capacitar educadores para identificar sinais de violência e agir em colaboração com instituições como Conselhos Tutelares e serviços de saúde e assistência social. Além disso, a construção de fluxos internos para comunicação e encaminhamento de casos é crucial para garantir respostas rápidas e efetivas às demandas identificadas no ambiente escolar.
Portanto, a escola tem um papel central no enfrentamento da violência doméstica e na promoção de transformações sociais. Brito et al. (2005) enfatizam que, ao oferecer suporte psicossocial, capacitar seus profissionais e integrar-se a redes intersetoriais, a escola não apenas protege, mas também fomenta um ambiente propício ao desenvolvimento integral de crianças e adolescentes, contribuindo para uma sociedade mais equitativa e justa.
3.1. A relação entre a violência doméstica e o desempenho escolar
As consequências psicológicas da violência doméstica são profundas e abrangentes, afetando não apenas a saúde mental das vítimas, mas também suas relações sociais e qualidade de vida. Segundo Pereira et al. (2021), as vítimas frequentemente desenvolvem transtornos como depressão, ansiedade, estresse pós-traumático e distúrbios do sono, que podem persistir mesmo após a cessação da violência. Esses efeitos psicológicos são agravados por um ciclo contínuo de medo, vergonha e isolamento, que dificulta o acesso ao apoio e tratamento necessários.
O trauma causado pela violência doméstica também tem repercussões intergeracionais. Pereira et al. (2021) destacam que crianças que crescem em ambientes violentos podem desenvolver problemas emocionais e comportamentais, perpetuando o ciclo de violência. Além disso, o ambiente de violência afeta as relações familiares, criando dinâmicas de medo e desconfiança que enfraquecem os laços emocionais e sociais dentro da família. Isso evidencia a necessidade de intervenções integradas que envolvam todos os membros do núcleo familiar.
É importante dizer que abordar as consequências psicológicas da violência doméstica exige uma abordagem holística e intersetorial. Pereira et al. (2021) enfatizam que é crucial ampliar o acesso a serviços de saúde mental e apoio social para as vítimas, bem como fortalecer as políticas públicas de prevenção e combate à violência. Além disso, ações de sensibilização e educação podem contribuir para a construção de uma sociedade mais acolhedora, promovendo a recuperação das vítimas e a quebra do ciclo de violência.
Baseado nos efeitos psicológicos que tem a violência doméstica, é importante falar que a relação entre a violência doméstica e o desempenho escolar é marcada por impactos significativos no desenvolvimento cognitivo, emocional e social de crianças e adolescentes. Segundo Pereira e Williams (2008), as vítimas de violência doméstica apresentam dificuldades no ambiente escolar, frequentemente demonstrando baixo rendimento acadêmico, desinteresse pelas atividades escolares e problemas comportamentais. Esses fatores refletem os efeitos traumáticos da violência no ambiente doméstico, que comprometem a capacidade de concentração e aprendizado.
As consequências da violência doméstica na educação vão além do desempenho acadêmico, afetando também as relações sociais e a autoestima dos alunos. Mainardi e Grisa (2021) destacam que os traumas causados por agressões físicas, psicológicas e negligência podem interferir na estabilidade emocional, prejudicando a assimilação de conteúdos e o desempenho acadêmico. Além disso, as vítimas frequentemente reproduzem no ambiente escolar comportamentos aprendidos em casa, como a dificuldade de socialização e a propensão a conflitos, o que compromete tanto suas relações interpessoais quanto sua integração ao grupo.
A escola, embora impactada pelos reflexos da violência doméstica, também se apresenta como um espaço potencial de proteção e intervenção. De acordo com Mainardi e Grisa (2021), professores e outros profissionais da educação possuem um papel crucial na identificação de sinais de abuso e no encaminhamento dos casos às redes de proteção. No entanto, muitas vezes faltam recursos e capacitação para que os educadores desempenhem essa função de forma eficaz, evidenciando a necessidade de políticas públicas que fortaleçam a articulação entre escola, assistência social e órgãos de proteção.
Portanto, abordar a relação entre a violência doméstica e o desempenho escolar exige uma atuação integrada que envolva a capacitação de educadores, o fortalecimento de políticas públicas de proteção à infância e a implementação de programas que promovam a saúde emocional no ambiente escolar. Mainardi e Grisa (2021) ressaltam que a escola tem potencial para se transformar em um espaço seguro e acolhedor, onde crianças e adolescentes possam superar os efeitos da violência, desenvolver suas habilidades e construir trajetórias acadêmicas e sociais mais positivas.
3.2. A importância do acolhimento e encaminhamento de vítimas pela escola
A escola desempenha um papel fundamental no acolhimento e encaminhamento de vítimas de violência doméstica, especialmente crianças e adolescentes. De acordo com Câmara e Penido (2022), o ambiente escolar vai além de sua função pedagógica, atuando como espaço de proteção e intervenção social. Os professores, em especial os pedagogos, têm um papel crucial na identificação de sinais de violência, pois interagem diretamente com os alunos e conseguem observar mudanças comportamentais ou físicas que podem indicar situações de abuso ou negligência.
O acolhimento adequado no ambiente escolar exige a preparação e a capacitação dos educadores, para que estejam aptos a reconhecer e lidar com casos de violência doméstica. Conforme destacam Câmara e Penido (2022), a formação inicial dos pedagogos muitas vezes não aborda com profundidade o tema, o que dificulta a atuação efetiva desses profissionais frente às situações de violência. A falta de conteúdos específicos no currículo acadêmico reflete-se na prática pedagógica, criando lacunas na identificação e no encaminhamento correto de casos às redes de proteção, como os Conselhos Tutelares e serviços de assistência social.
Além do acolhimento, o encaminhamento das vítimas exige a integração da escola com as redes intersetoriais de proteção, garantindo suporte psicológico, social e jurídico. Câmara e Penido (2022) ressaltam que a escola pode atuar como ponte entre a vítima e as instituições responsáveis por sua proteção, fortalecendo a resposta à violência doméstica. Contudo, muitas vezes, os educadores enfrentam desafios como o desconhecimento sobre os procedimentos legais ou a falta de suporte institucional, o que pode levar ao silenciamento ou à subnotificação dos casos.
4. CURRÍCULO ESCOLAR E A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
O currículo escolar desempenha um papel crucial no enfrentamento da violência doméstica, especialmente por sua capacidade de promover uma educação crítica e transformadora. De acordo com Singulano e Teixeira (2020), a ausência de debates sistemáticos sobre direitos humanos, gênero e igualdade nas escolas brasileiras limita a formação de uma consciência crítica entre os alunos, perpetuando estereótipos de gênero e naturalizando a violência. A inclusão de conteúdos que abordem a violência doméstica no currículo escolar é essencial para desconstruir valores patriarcais que sustentam essas práticas e fomentar mudanças culturais.
A escola, como espaço de formação cidadã, tem o potencial de atuar preventivamente ao incorporar discussões sobre desigualdade de gênero e violência em seu cotidiano pedagógico. Singulano e Teixeira (2020) ressaltam que ações educativas, como palestras, debates e oficinas, podem contribuir para a sensibilização de crianças e adolescentes, promovendo uma compreensão mais ampla sobre o problema da violência doméstica e os direitos das mulheres. Esse tipo de abordagem permite que os alunos se tornem agentes de transformação em suas comunidades, desafiando normas sociais que legitimam a violência.
Conforme Tognetta e Lepre (2022), o currículo deve ir além da transmissão de conhecimentos tradicionais, integrando temas relacionados à convivência, diversidade e valores morais de forma transversal e sistematizada. A escola, nesse sentido, deve atuar como um espaço de transformação, fomentando uma cultura de respeito e não violência. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) reforça a importância de um currículo que contemple competências socioemocionais e promova a convivência democrática.
Portanto, um currículo voltado à convivência e prevenção da violência, como sugerem Tognetta e Lepre (2022), é essencial para transformar o ambiente escolar em um espaço de proteção e cidadania. Essa abordagem exige esforços conjuntos entre gestores, educadores e a comunidade, visando criar uma escola mais inclusiva e comprometida com a construção de uma sociedade mais justa e solidária.
5. DESAFIOS E LIMITAÇÕES NA INCLUSÃO DO TEMA NO CURRÍCULO
A inclusão do tema da violência doméstica no currículo escolar enfrenta diversos desafios e limitações que dificultam sua implementação efetiva. Segundo Santiago et al. (2020), um dos principais entraves é a resistência de setores conservadores, que frequentemente associam o debate sobre violência doméstica a questões consideradas polêmicas, como gênero e direitos humanos. Essa resistência reflete-se na censura de conteúdos educacionais que abordam desigualdades e violências estruturais, limitando o espaço para discussões críticas no ambiente escolar.
A falta de capacitação de educadores para tratar temas sensíveis como a violência doméstica é outro desafio significativo. Santiago et al. (2020) destacam que muitos professores não recebem formação específica para lidar com questões de convivência ética e cidadania no contexto escolar, o que os deixa despreparados para abordar situações de violência ou para integrar essas discussões ao currículo de forma consistente. Essa lacuna na formação docente compromete o potencial da escola de atuar como espaço de conscientização e transformação.
Outro entrave significativo é a ausência de diretrizes claras e de políticas públicas que garantam a inclusão do tema no currículo escolar. Conforme Maria (2021), os documentos oficiais, como os Parâmetros Curriculares Nacionais, abordam questões de diversidade e cidadania de forma genérica, sem oferecer um direcionamento específico sobre a violência doméstica. Isso resulta em uma implementação desigual e ineficaz, variando conforme as prioridades de cada instituição ou gestão escolar.
Portanto, superar esses desafios exige a implementação de políticas educacionais que priorizem a inclusão de temas relacionados à violência doméstica no currículo, bem como a capacitação continuada dos professores para lidar com essas questões. Maria (2021) reforça que a escola, como espaço de formação cidadã, precisa assumir um papel ativo na construção de uma sociedade mais consciente e engajada, promovendo o debate crítico e a sensibilização sobre a violência doméstica e seus impactos.
No Quadro 1 se podem observar os aspectos que devem ser melhorados, considerando os desafios e limitações atuais e o fundamento legal para isso.
Quadro 1: Contribuições do Currículo Escolar para a Prevenção da Violência Doméstica: Aspectos, Desafios e Fundamentos Legais.
Aspecto | Precisa Melhorar | Desafios e Limitações | Fundamentação Legal para Inserção no Currículo |
Educação em direitos humanos e cidadania | Ampliação de conteúdos sobre violência doméstica no currículo escolar. | Resistência de setores conservadores ao tratar de temas como gênero e direitos humanos. | Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que reconhece a violência doméstica como uma violação de direitos humanos. |
Capacitação de professores | Inserção de treinamentos específicos sobre identificação e enfrentamento da violência doméstica. | Lacuna na formação inicial de educadores, ausência de recursos e falta de apoio institucional. | BNCC, que reforça competências socioemocionais e o ensino de valores éticos e democráticos. |
Acolhimento e encaminhamento de vítimas | Criação de protocolos escolares para lidar com casos de violência doméstica. | Desconhecimento dos educadores sobre procedimentos legais e rede de proteção. | Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que garante o direito à proteção integral de crianças e adolescentes. |
Articulação com redes de proteção | Fortalecer a integração entre escola e conselhos tutelares, serviços de saúde e assistência social. | Falta de articulação intersetorial e subnotificação de casos pela escola. | Decreto 9.579/2018, que organiza a legislação sobre a proteção dos direitos da criança e do adolescente no Brasil. |
Inclusão de temas transversais no currículo | Promoção de debates sobre convivência ética, igualdade de gênero e prevenção da violência. | Ausência de diretrizes claras nos documentos oficiais e resistência social à inclusão de temas polêmicos no currículo. | Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação em Direitos Humanos, que orientam a educação básica na promoção de valores democráticos e éticos. |
Sensibilização e conscientização dos alunos | Aumentar a realização de palestras, oficinas e campanhas educativas sobre violência doméstica. | Estigma social e naturalização da violência em alguns contextos familiares e culturais. | BNCC, que prevê o desenvolvimento de competências para a convivência democrática e a formação de cidadãos críticos. |
Fonte: Autoria própria, baseado na pesquisa, 2024.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo buscou compreender a relação entre a violência doméstica e o currículo da escola básica, destacando o papel da educação como ferramenta fundamental no enfrentamento dessa problemática. A análise permitiu evidenciar que a violência doméstica não se limita a questões intrafamiliares, mas repercute diretamente no desempenho escolar, no desenvolvimento emocional e na socialização de crianças e adolescentes, tornando a escola um espaço estratégico para intervenções que rompam o ciclo da violência.
A inclusão desse tema no currículo escolar é não apenas pertinente, mas urgente, considerando o impacto transformador que a educação pode ter na formação de cidadãos conscientes e capazes de identificar e combater situações de abuso. No entanto, diversos desafios foram identificados, como a resistência de parte da sociedade, a falta de capacitação de educadores e a ausência de políticas públicas específicas que incentivem e orientem a abordagem dessa temática nas escolas.
Diante disso, soluções foram sugeridas, incluindo a necessidade de formação continuada de professores, a integração de conteúdos relacionados à violência doméstica no currículo escolar de forma interdisciplinar e o fortalecimento de parcerias entre a escola e redes de proteção. Essas medidas podem contribuir para que a escola se consolide como um ambiente seguro e acolhedor, capaz de identificar sinais de abuso e oferecer apoio às vítimas.
Por fim, o estudo reafirma a importância da educação na transformação social e na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Ao incorporar a discussão sobre violência doméstica no currículo, a escola não apenas protege seus alunos, mas também contribui para a formação de uma cultura de paz e respeito, essenciais para o pleno desenvolvimento das futuras gerações.
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[1] Psicólogo e Advogado, Especialista em Educação em Direitos Humanos e Diversidade da Universidade Federal do Pará – UFPA, Presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/PA e Membro da Comissão Nacional de Diversidade Sexual e Gênero da OAB. Mestrando em Currículo e Gestão da Escola Básica na Universidade Federal do Pará – UFPA.
[2] Doutora em Educação: Currículo pela Pontifícia Universidade Católica – São Paulo (2013). Possui mestrado em Educação – Políticas Públicas pela Universidade Federal do Pará (2007) e graduação em Licenciatura em Pedagogia pela Universidade Federal do Pará/Campus de Altamira (2003). É professora adjunta da Faculdade de Etnodiversidade da Universidade Federal do Pará/Campus Universitário de Altamira e do Programa de Pós-Graduação em Currículo e Gestão da Escola Básica (PPEB).