REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7087755
Autores:
Ana Carolina Benassi Perozim1
João Antônio das Chagas Silva2
RESUMO
O presente trabalho se destina a tratar do tema relativo à crise na produção de alimentos em paralelo com o direito fundamental a um meio ambiente equilibrado. Inicialmente, é feita uma incursão no universo do direito ambiental, com especial cuidado para o conceito e os desdobramentos advindos da noção jurídica de meio ambiente. Em seguida, foram abordados os princípios de direito ambiental, os quais se revelaram fundamentais para a compreensão completa do problema inicialmente proposto. Após, o direito um meio ambiente ecologicamente equilibrado foi abordado, ocasião em que se buscou a realização de uma abordagem constitucional e humanitária a respeito do equilíbrio ambiental enquanto direito social previsto na atual Carta Política. Visando situar o problema da necessidade de elevação da produção de alimentos foi desenvolvida uma análise a respeito da situação demográfica no mundo atual e as projeções para os anos futuros, para, em seguida, verificar a viabilidade prática e jurídica de se conciliar o direito humano a alimentação e segurança alimentar com o direito ao meio ambiente equilibrado, especialmente à luz do uso de agrotóxicos e outras substâncias.
Palavras-chave: Direito Ambiental. Direito a Alimentação. Segurança Alimentar.
ABSTRACT
This work is intended to address the issue on the crisis in food production in parallel with the fundamental right to a balanced environment. Initially, an incursion in the universe is made of environmental law, with special attention to the concept and developments arising from the legal concept of environment. Then the principles of environmental law were addressed, which proved essential for the complete understanding of the problem initially proposed. After the right an ecologically balanced environment has been addressed, at which it was sought to hold a constitutional and humanitarian approach regarding environmental balance as a social right provided for in the present Charter Policy. Aiming to situate the problem of the need to increase food production was developed an analysis about the demographic situation in the world today and projections for future years, to then verify the practical and legal feasibility of reconciling the human right to nutrition and food security with the right to a balanced environment, especially in light of the use of pesticides and other substances.
Keywords: Environmental Law. Right to food. Food Safety.
1. INTRODUÇÃO
O uso desenfreado de agrotóxicos tem se tornado um problema cada vez mais debatido no meio científico. A questão levanta temas que provocam os mais diversos tipos de paixões: seja no que diz respeito à produção de alimentos (direito a alimentação versus segurança alimentar), seja no campo ambiental com o risco de sinistros desta natureza.
A primeira grande questão que se coloca quando do debate do uso de agrotóxicos é o confronto entre a necessidade de produzir alimentos para alimentar uma população mundial cada vez numerosa em um mundo desigual, e obediência às normas de segurança alimentar.
Como se sabe – e como se terá a oportunidade de explorar ao longo do trabalho, a população mundial continua crescendo, as desigualdades verificadas entre os Países, embora minoradas nas últimas décadas, ainda permanecem claramente visíveis. Torna-se necessário desenvolver formas de produzir alimentos em larga escala para, através do barateamento de preços e melhoria na qualidade, fazer frente à demanda cada vez mais crescente.
O problema que se apresenta em decorrência desta necessidade e da solução apontada é buscar formas de equilibrar o uso de agrotóxicos – que não deve ser eliminado exceto no caso de substituição por mecanismos outros menos nocivos e igualmente eficientes, e as preocupações com as consequências desenfreadas deste uso.
Tais consequências são basicamente duas: uma de ordem biológica e outra de ordem ambiental.
Poucas não são as pesquisas que ligam o consumo de agrotóxicos ao aparecimento de moléstias, como o câncer, problemas cardíacos, hepáticos e etc. De outra banda, a intoxicação verificada tanto por consumidores, quanto por produtores, faz surgir o debate a respeito da informação que é disponibilizada.
No caso dos produtores, a questão é saber se há, de fato, o cumprimento do princípio ambiental da informação para o manuseio adequado dos produtos. No caso dos consumidores, se o mesmo princípio vem sendo aplicado para que sejam informados a respeito do tipo de agrotóxicos que podem consumir ou que estão consumindo.
Afora isto, as contaminações provocadas pelo uso de agrotóxicos atingem solo e lençol freático, tornando impróprias áreas anteriormente cultiváveis e recursos hídricos anteriormente aproveitáveis.
A intoxicação de elementos da vida silvestre também surge como ponto relevante de debate, tendo em vista que não são raras as informações de casos em que peixes e demais animais são contaminados pelos agentes nocivos presentes nos agrotóxicos.
São assuntos que levantam a tese da possibilidade de responsabilização jurídica dos agentes instrumentalizadores de tais danos, sejam eles ambientais ou ofensivos à saúde pública.
2. CRISE ALIMENTAR: A NECESSIDADE DE ELEVAR A PRODUÇÃO DE ALIMENTOS E O PROBLEMA AMBIENTAL
Aqui nos deparamos com o problema principal a ser. Cuida-se de um paradoxo aparentemente insolúvel que coloca em choque dois direitos fundamentais e, portanto, constitucionalmente previstos. Entretanto, parece-nos equivocado tratar da questão exclusivamente do ponto de vista jurídico. Quando assuntos sociais são transformados em artigos, incisos e parágrafos, o tema aparente perder a urgência, ou, pode-se afirmar, atrai uma frieza maior em sua tratativa.
Talvez seja este um dos graves problemas do sistema jurídico brasileiro, e, ousa-se dizer, mundial.
Numa vênia para a crítica, não é exagero dizer que, no alto dos tribunais, quando os problemas sociais tão relevantes como o ora debatido ali chegam para decisão jurisdicional definitiva, estacionam não como eventos que afligem homens, mulheres e crianças, mas como partes despersonalizadas com um problema jurídico posto em análise.
Há, ao que nos parece, um recrudescimento da falta de empatia e a ausência de compreensão de que se cuida de seres humanos com um problema real a os afligir.
No que interessa ao tema proposto, é necessário que, ao menos por hora, sejam afastadas as friezas características do atual sistema jurídico para nos aproximarmos da frieza dos números, que embora também não sejam melhores em calor, remetem, diferentemente das leis que o fazem para os conflitos, a pessoas e coisas.
Torna-se necessário, assim, situar os problemas em seus aspectos sociais, apontando sua gravidade, para, em seguida, tentar aproximação com a solução jurídica adequada, se é que, dada a atual conjuntura ambiental e econômica, ela de fato existe.
2.1 Crise alimentar: um retrato da conjuntura atual e o direito social e humano a alimentação
O mundo vê sua população crescer em velocidade geométrica. Segundo dados da Organização das Nações Unidas em seu “2015 Revisional of World Population Prospects” o mundo atingiu a marca de 7 bilhões de pessoas. Estima-se que até 2030 este número chegará a incríveis 8,5 bilhões, 9,7 bilhões em 2050 e, finalmente, 11 bilhões no ano de 2100.
Certamente, muitos dos que atualmente leem o presente trabalho não estarão mais sobre a face da Terra quando a população mundial atingir o pico de mais de uma dezena de bilhões de pessoas. Entretanto, os efeitos deste crescimento populacional vertiginoso podem ser verificados analisando o presente.
Ainda segundo dados da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), no ano de 2015, aproximadamente 795 milhões de pessoas no mundo passam fome. 12,9% da população mundial ingere menos calorias diárias que o suficiente para atender às necessidades nutricionais cotidianas.
A grande questão que se coloca é se, de fato, existe relação direta entre a fome experimentada por grande parte do mundo – e que, ainda assim, apresentou redução de quase 23,3% em comparação com 25 anos – com a quantidade de alimentos que o mundo produziu. A dúvida repousa na gênese do problema da fome: cuida-se, afinal, de ineficiência ou escassez de alimentos ou no abismo social que ainda assola o mundo?
É certo que parcela considerável da fome pode ser atribuída a dificuldade de obtenção de alimentos em zonas menos privilegiadas por aspectos naturais que garantam, agronomicamente, resultados produtivos satisfatórios.
Entretanto, quando se têm que a maior parcela dos famintos encontra-se situada no continente africano e, em especial, em países com terras plenamente cultiváveis, a questão se torna consideravelmente mais complexa.
Valter Casarin3, Presidente do International Plant Nutrition Institute, em artigo publicado, afirma que, para dar conta da alimentação suficiente para a população esperada nos próximos anos, a humanidade terá que produzir, nos próximos 40 anos, “a mesma quantidade de alimentos produzida nos últimos 8.000 anos”.
A afirmação parece apocalíptica e, ao menos em primeira análise, é capaz de responder parte da questão ora lançada. Não é possível dizer que a maior parte das questões relativas à fome estão relacionadas com a produção de alimentos, mas nossa incapacidade de produzir quantidade suficiente para fazer frente a uma população de 11 bilhões de pessoas em futuro não tão distante é elemento preocupante desde agora.
Quando migramos a situação para o âmbito doméstico, o quadro se torna consideravelmente consternador. Em 1991, segundo dados do Censo Demográfico daquele ano, a população brasileira era de aproximadamente 147 milhões de brasileiros.
Atualmente, segundo dados do IBGE publicados no Diário Oficial da União do dia 30 de agosto de 2016, os brasileiros já somam 206.081.432 pessoas. Uma elevação de quase 40% em 25 anos.
A notícia um tanto quanto mais alentadora é a de que, entre o ano de 2002 e 2014 o Brasil reduziu o índice de famintos em 82,1%, segundo relatório da Organização das Nações Unidas.
No mesmo relatório afirma-se que a grande responsável pela guinada positiva no número de famintos se deu, não em razão da capacidade brasileira de produzir alimentos, mas em razão da capacidade criada de torná-los acessíveis aos que passavam fome.
Isso se dá em razão da demonstrada e antiga capacidade e vocação nacional para a produção, especialmente quando se considera as características agronômicas do País, notadamente a extensão de terras cultiváveis.
O principal responsável pela diminuição da fome, segundo destaca a ONU foi a distribuição de renda implementada nos últimos anos, em especial através de programas sociais que garantem acesso à renda mínima.
Questão interessante é se indagar se o problema brasileiro enfrentado até 2002 é idêntico ao verificado atualmente em todo o mundo. Afinal, nos termos do divulgado pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, existem aproximadamente 31,8 milhões de quilômetros quadrados de áreas sem restrição de fertilidade e 41,1 milhões de quilômetros quadrados de área cultivável.
Cuida-se de uma extensão agricultável bastante significativa. Entretanto, convém dizer que o fato de o planeta possuir terra agricultável em boa quantidade não conduz imediatamente á afirmação de que a fome é causada exclusivamente pela falta de acesso aos alimentos produzidos.
Muitas das áreas cultiváveis existentes sofrem com conflitos bélicos que tornam instáveis quaisquer iniciativas agro-econômicas significativas nestas regiões. Ademais, o latifúndio e a monocultura continuam impedindo o aproveitamento pleno de tais áreas.
Não é nosso objetivo esgotar o assunto relativo ao aproveitamento do solo e da produção de alimentos, mas apenas apontar a elevação dos índices de produção e aproveitamento como provável fator a contribuir para a efetivação do direito a alimentação. Note-se, que mesmo a causa da crise alimentar, se ocasionada pela falta de acesso ou pela baixa produção de alimentos, foi delimitada.
A alimentação foi inserida como direito social e, portanto, fundamental, na atual Carta Política com a Emenda Constitucional n.º 64. A inserção, entretanto, veio tardia. Note-se que já estampada, como lembra Irio Luiz Conti, na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em especial seu artigo 25 abaixo transcrito:
Artigo 25:
Todo o homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
II) A maternidade e a infância tem direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social. (grifamos)
De igual modo, o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais também assim preleciona:
ARTIGO 11
1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequando para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria continua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento.
2. Os Estados Partes do presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de toda pessoa de estar protegida contra a fome, adotarão, individualmente e mediante cooperação internacional, as medidas, inclusive programas concretos, que se façam necessárias para:
a) Melhorar os métodos de produção, conservação e distribuição de gêneros alimentícios pela plena utilização dos conhecimentos técnicos e científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo aperfeiçoamento ou reforma dos regimes agrários, de maneira que se assegurem a exploração e a utilização mais eficazes dos recursos naturais;
b) Assegurar uma repartição eqüitativa dos recursos alimentícios mundiais em relação às necessidades, levando-se em conta os problemas tanto dos países importadores quanto dos exportadores de gêneros alimentícios.
Talvez não haja mais clara orientação para a humanidade quanto à alimentação enquanto direito humano, que o artigo 11 do Pacto de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, ao qual, inclusive, o Brasil manifestou adesão através do decreto n.º 591 de 6 de julho de 1992.
Note-se que não se trata exclusivamente do reconhecimento da alimentação como direito, num sentido meramente declaratório, tendo em vista que o texto estabelece obrigações positivas aos Estados capazes de viabilizar a efetivação material do declarado direito.
Uma das ferramentas apresentadas encontra-se no já citado item 2 deste artigo 11, quando estabelece a obrigação por parte dos Estados de criar programas que garantam o aprimoramento dos métodos de produção, conservação e distribuição de alimentos.
Aqui, a comunidade internacional implicitamente reconhece os dois temas levantados em linhas volvidas como igualmente influenciadores da crise alimentar: a produção e a distribuição de alimentos. Assim, reconhece-se que a questão está situada tanto no âmbito produtivo quanto na dimensão de acesso ao alimento por parte dos famintos.
A alínea “b” do item 2, como pode ser observado, também reconhece a escassez de áreas cultiváveis em determinadas regiões do globo, determinando a distribuição levando-se em conta a vocação de importador ou exportador de alimentos.
O ponto fulcral do debate no nível que interessa para a discussão que ora se pretende fazer é se seria possível elevar, ainda mais, a produção de alimentos sem, com isso, prejudicar, também, o direito fundamental e humano a um meio ambiente equilibrado.
2.2 O uso de agrotóxicos como forma de elevar a produção de alimentos e seus impactos ambientais
Após o início da chamada “Revolução Verde”, ocorrida no início da década de 50, ocorreram profundas mudanças no modo como o homem realiza a produção de alimentos (MOREIRA, et al., 2015, p. 1). Tais mudanças abrangeram desde a manipulação genética, até a criação de pesticidas e adubos, os primeiros para livrar as lavouras de pragas que pudessem lhe comprometer a produtividade, e o segundo para garantir um padrão positivo no produto final.
O modo como o mercado de agrotóxicos se expandiu no mundo não poderia ter uma origem mais peculiar. Segundo lembra Flávia Londres (2011, p. 17), após o fim da Segunda Grande Guerra, dois fatores contribuíram para o início da citada Revolução Verde (e nela o uso indiscriminado de agrotóxicos teve sua gênese).
O primeiro foi o nicho de mercado aberto para indústrias que, durante a guerra, produziam o veneno e as demais substâncias utilizadas em armas químicas. O segundo, foi a necessidade de se criar formas de produção eficiente de alimentos, para fazer frente a um mundo faminto do pós-guerra. Assim, as indústrias que outrora produziam as substâncias nocivas usadas no conflito passaram a produzir os agrotóxicos que seriam utilizados na agricultura.
No mundo, como lembra a autora, o uso de agrotóxicos foi largamente incentivado por instituições financeiras como o Banco Mundial e a própria FAO (órgão das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura). Internamente, também houve incentivos realizados por diversas esferas de governo, algumas, inclusive, condicionando a concessão de crédito agrícola à compra de semelhantes insumos. Era, assim, absolutamente acessível – por incentivada, a aquisição de agrotóxicos dos mais diversos tipos.
Como lembra Moreira:
Entretanto, essas novas facilidades não foram acompanhadas pela implementação de programas de qualificação da força de trabalho, sobretudo nos países em desenvolvimento, expondo as comunidades rurais a um conjunto de riscos ainda desconhecidos, originado pelo uso extensivo de um grande número de substâncias químicas perigosas e agravado por uma série de determinantes de ordem social. (MOREIRA, et atl., 2015, p. 1)
Assim, a falta de cuidado observada, originadora do manejo inadequado de agrotóxicos por pessoas, em sua maioria, sem qualquer preparo, representou a violação de normas básicas de segurança, causando desastres que vão desde a intoxicação humana, até a contaminação de leitos, mananciais, rios, córregos, nascentes, lençol freático, eliminação de elementos de fauna, dentre outros. Continua Moreira:
A ampla utilização desses produtos, o desconhecimento dos riscos associados a sua utilização, o conseqüente desrespeito às normas básicas de segurança, a livre comercialização, a grande pressão comercial por parte das empresas distribuidoras e produtoras e os problemas sociais encontrados no meio rural constituem importantes causas que levam ao agravamento dos quadros de contaminação humana e ambiental observados no Brasil. (MOREIRA, et. al, p. 1)
Cabe, antes que se possa adentrar em uma análise mais aprofundada da questão, definir o que seria, do ponto de vista legal, o agrotóxico. Tal definição pode ser encontrada no artigo 2º da Lei 7802/89, que reza:
Art. 2º Para os efeitos desta Lei, consideram-se:
I – agrotóxicos e afins:
a) os produtos e os agentes de processos físicos, químicos ou biológicos, destinados ao uso nos setores de produção, no armazenamento e beneficiamento de produtos agrícolas, nas pastagens, na proteção de florestas, nativas ou implantadas, e de outros ecossistemas e também de ambientes urbanos, hídricos e industriais, cuja finalidade seja alterar a composição da flora ou da fauna, a fim de preservá-las da ação danosa de seres vivos considerados nocivos;
Como se nota, do conceito de agrotóxico, do ponto de vista jurídico, excluem-se, por exemplo, fertilizantes e adubos químicos, incluindo-se todos os processos físicos, químicos ou biológicos tendentes a preservar a integridade daquilo que se pretende produzir.
O Brasil encabeça a lista de maiores consumidores de agrotóxicos no mundo. Entretanto, mesmo diante de tão elevado consumo, o País não consegue liderar a relação de maiores exportadores de alimentos do globo. Na relação que destaca os principais exportadores mundiais, o Brasil se situa apenas na quarta posição, exportando menos alimentos que a França.
Enquanto, anualmente, o montante de exportações brasileiras gira em torno de 30 bilhões de dólares, os franceses exportam aproximadamente 35 bilhões de dólares em alimentos todos os anos.
É interessante observar os pontos que diferem os dois Países à luz dos resultados que apresentam. Para tanto, alguns pontos devem ser ilustrativamente levantados.
A França, como se sabe, possui território infinitamente inferior ao território brasileiro, possuindo, por via de consequência, diminuto espaço de área cultivável. Outro ponto que pode ser destacado é que, metade dos agrotóxicos utilizados no Brasil são vedados pela União Europeia.
O questionamento brota naturalmente da análise das informações esboçadas. Como pode o Brasil, usando o dobro das possibilidades agrotóxicas, com espaço territorial e de áreas cultiváveis muito superior, não superar os franceses em exportação de alimentos?
É certo que a resposta passa pelo valor agregado daquilo que ambos os Países produzem e exportam, tendo em vista que as informações trazidas dizem respeito aos valores capitais das exportações e não exatamente quanto à quantidade de alimento que ambos produzem.
A resposta passa, necessariamente, pela análise do modo como o sistema produtivo brasileiro é organizado. A falta de manejo adequado do solo, o plantio desalinhado com as esperanças climáticas, a falta de investimento em tecnologia agrícola, a falta de investimento em infraestrutura logística, são apenas alguns dos fatores que podem influenciar negativamente a falta de competitividade brasileira.
Ao que parece, o Brasil tenta compensar as dificuldades que possui através do uso de agrotóxicos em larga escala, desconsiderando, inclusive, recomendações internacionais quanto ao uso de alguns. O uso indiscriminado de agrotóxicos possui dois campos consequenciais distintos: um ambiental e outro do ponto da segurança alimentar.
Quando se cuida do tema da segurança alimentar o que se faz é o equivalente a se equilibrar numa linha fina em que, de um lado se tem a carência alimentar verificada no mundo e, de outro, o uso desenfreado de agrotóxicos com vistas a elevar a produção agrícola.
Não se nega que o mundo carece de impulsionar seus índices de produção de alimento, muito embora também se deva admitir que o desperdício e a distribuição sejam fatores igualmente preponderantes, porém, é necessário que esta produção esteja diretamente conectada com elementos como a segurança do alimento que se consome e a certeza de que as normas ambientais estão sendo obedecidas.
Por anos, o homem tem continuado numa relação absolutamente nociva com o meio em que vive, extraindo dele, sem preocupações reais com a sustentabilidade, mais que o suficiente para a própria sobrevivência. O homem saiu da condição de agente sobrevivente dominado pela natureza, e migrou para um status de vivente predador dominador desta mesma natureza.
O resultado desta migração irresponsável é perceptível na prática. Segundo dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura apenas entre 2005 e 2010 o mundo perdeu aproximadamente 178.000.000 (cento e setenta e oito milhões) de hectares de florestas. A expansão agrícola é responsável por 80% da desflorestação mundial (MICHIGAN UNIVERSITY, 2010).
É bem verdade que embora o mundo, e especialmente o Brasil, tenha acordado de maneira juridicamente tardia para a questão ambiental, progressos fáticos também podem ser percebidos em função deste leve despertar.
Segundo documento produzido pela Union of Concerned Scientists o Brasil foi líder mundial em redução do desmatamento e emissão de CO², com uma queda de 70% nos níveis de desmatamento quando se compara os números de 2013 com a média observada entre 1996 e 2005 (Corrêa, 2014).
Dentro da divisão tradicional tripartida que é feita dos Direitos Fundamentais, o Direito do Meio Ambiente inclui-se nos de terceira dimensão, posto que representa a titularização de direitos não meramente individualistas, centrados nos interesses singulares de determinado indivíduo. O direito a um meio ambiente equilibrado e sustentável é, nesta esteira, transindividual, tendo por fundamento normativo de existência os princípios da solidariedade e da fraternidade. Com efeito, o texto constitucional determina, na cabeça do artigo 225, que:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
É, sob certo ponto de vista, poética a opção de palavras feita pelo constituinte originário quando da redação do mencionado artigo. Dele podem ser extraídos uma série de primados capazes de guiar a interpretação, a aplicação e a produção das regras de Direito Ambiental.
Inicialmente, já se nota a transindividualidade do Direito Ambiental quando, nas expressões iniciais do artigo 225, o constituinte afirma que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Não se trata de direito atribuível a um indivíduo ou a uma parcela restrita de indivíduos, mas a todos, sem distinção.
Se todos têm direito a um ambiente ecologicamente equilibrado, também é certo que o dever de preservação ambiental não se restringe a um grupo singular de pessoas. De igual modo, a Constituição entrega – não apenas ao Poder Público – mas a toda a coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Como já se destacou, o uso de agrotóxicos, de maneira irresponsável, representa risco direto para o meio ambiente, seja qual for a definição que a respeito se adote. Os problemas gravosos visualizados em razão disso trazem o questionamento sobre as consequências jurídicas do risco ambiental provocado pelo uso indiscriminado.
Os dados até o momento coletados impedem a conclusão assertiva a respeito daquilo que se deveria priorizar, se o direito social à alimentação ou a um meio ambiente equilibrado. Entretanto, como afirma Barroso “não existe hierarquia em abstrato entre princípios, devendo a precedência relativa de um sobre o outro ser determinada à luz do caso concreto” (2009, p. 329). Assim, segundo cremos, o correto seria preservar a coexistência pacífica dos direitos, já que a pessoal importância social não permite o sacrifício de um em desfavor do outro.
3. CONCLUSÃO
Como pôde ser percebido ao longo da explanação ora realizada, o assunto debatido é tão complexo quanto apaixonante. Complexa também seria a chegada até uma solução que permita afirmar, com absoluta certeza jurídica, que ambos os direitos – direito a alimentação e direito a um meio ambiente equilibrado – foram respeitados.
Não se pode negar a existência de técnicas que permitem a coexistência entre a natureza em seu estado mais puro e a produção de alimentos. Mas uma questão sempre permanecerá sem resposta: as soluções alternativas são suficientes para produzir alimentos bastantes para sanar as necessidades nutricionais dos atuais 7 bilhões de seres humanos e dos 11 bilhões futuros que habitarão a terra em 2100? A resposta, até o momento, permanece oculta.
A tarefa humana, conforme apontado por Valter Casarin, parece impossível de ser realizada e a previsão é tão apocalíptica quanto verdadeira, especialmente quando consideramos as estimativas de crescimento demográfico para os próximos anos. Como seremos capazes de produzir, em 40 anos, aquilo que toda a espécie humana produziu em seus 8 mil anos de existência é uma resposta que também permanece oculta.
Se a tarefa se afigura impossível considerando os recursos atuais, dentre os quais o uso de substâncias agrotóxicas, fertilizantes e outras estratégias proporcionadas pela engenharia genética, como fazê-lo se tais saídas forem descartadas em nome da manutenção de um meio ambiente equilibrado?
Talvez a solução esteja nos investimentos em ações que garantam a perfeita distribuição igualitária do alimento produzido, ou, para que se possa ter uma visão jurídica desta solução, a aplicação plena do quanto consta no Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Torna-se necessária a implementação solidária de ações que, ao mesmo tempo, viabilizem a produção de alimentos levando-se em consideração seu papel enquanto produto do capitalismo moderno – realidade cuja modificação se mostra, ao menos no que nos parece, utópica – e, ao mesmo tempo, enquanto elemento fomentador da dignidade humana.
E aqui visualiza-se outro desafio do mundo moderno: conciliar as exigências e demandas do capital com os valores humanos mais básicos e elementares, como o próprio meio ambiente e o direito a alimentação.
Não são poucos, como se percebe, os pontos que impedem a humanidade de, num grande movimento de superação, atingir sua tarefa fundamental de alimentar os atuais 7 bilhões de seres humanos. A saída engloba a conciliação de interesses claramente antagônicos, cujos fundamentos vão muito adiante da mera disputa existente entre a necessidade da produção alimentar e a preservação ambiental.
Por outro lado, os estudos até o momento realizados, principalmente quando da análise da crise alimentar e suas causas, indicam que solução possível há, basta que os atores capazes de implementá-la a construam conjuntamente.
A humanidade enfrentará desafios inéditos nos próximos anos e apenas a compreensão de que ao menos um destes pontos é de interesse comum, poderá conduzir o homem ao seu futuro, seja ele qual for.
O fato extraível de toda a explanação até o momento realizada é a de que, caso não haja alterações consideráveis tanto no que respeita à produção de alimentos, quanto no que respeita ao meio ambiente e seu equilíbrio, em 2100 os 11 bilhões de seres humanos viverão em um mundo poluído, desigual e faminto.
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3 Dr. Casarin é agrônomo e engenheiro florestal. Mestre em “Solos e Nutrição de Plantas” e Doutor em “Ciência do Solo”.
1Pós-graduada em Direito Público, pela Universidade Anhanguera – Uniderp e em Ministério Público – Estado Democrático de Direito, pela FEMPAR – Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná.
2Pós-graduado em Direito Público, pela Universidade Cândido Mendes.