A SYSTEMATIC REVIEW OF THE EFFICACY AND SAFETY OF CANNABIDIOL (CBD) IN THE TREATMENT OF POST TRAUMATIC STRESS DISORDER (PTSD)
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/dt10202512182021
André Muritiba Araújo; Roberta Ravena Veloso Silva; Roberto Carlos Veloso Silva; Gabriel Fernandes Menezes; João Lucas de Queiroz Pereira; Raquel da Silva Souza Gomes; Lara de Sousa Bezerra; Tracy Thabata de Andrade Coelho; Mariano Oliveira de Morais Cunha Neto1; Tâmara Trindade de Carvalho Santos2
RESUMO
Objetivo: Analisar sistematicamente as evidências científicas acerca da eficácia e segurança do canabidiol (CBD) como intervenção terapêutica para o Transtorno de Estresse Pós Traumático (TEPT), elucidando seus mecanismos de ação neurobiológicos e aplicabilidade clínica. Metodologia: Conduziu-se uma revisão sistemática seguindo as diretrizes PRISMA nas bases de dados PubMed, Scopus, ScienceDirect, Web of Science e Google Scholar. Foram incluídos 22 estudos, abrangendo ensaios clínicos e modelos pré-clínicos, selecionados após triagem de 909 registros iniciais. Resultados: Os dados indicam que o CBD isolado reduz significativamente sintomas de hiperestimulação (hyperarousal) e ansiedade, facilitando a extinção da memória do medo via modulação do sistema endocanabinoide e agonismo de receptores 5-HT1A. Diferentemente do uso não supervisionado de cannabis rica em THC, que se associou a piores desfechos, o CBD apresentou um perfil de segurança favorável. Conclusão: O CBD demonstra potencial promissor como terapia adjuvante para o TEPT, preenchendo lacunas deixadas por tratamentos convencionais. Entretanto, a heterogeneidade dos estudos atuais exige a realização de ensaios clínicos randomizados padronizados para consolidar sua integração na prática baseada em evidências.
Palavras-chave: Canabidiol; TEPT; Sistema Endocanabinoide; Revisão Sistemática; Ansie dade.
ABSTRACT
Objective: To systematically analyze scientific evidence regarding the efficacy and safety of cannabidiol (CBD) as a therapeutic intervention for Post-Traumatic Stress Disorder (PTSD), elucidating its neurobiological mechanisms of action and clinical applicability. Methodology: A systematic review was conducted following PRISMA guidelines across PubMed, Scopus, ScienceDirect, Web of Science, and Google Scholar databases. Twenty-two studies were included, comprising clinical trials and preclinical models, selected after screening 909 initial records. Results: Data indicate that isolated CBD significantly reduces hyperarousal and anxiety symptoms, facilitating fear extinction memory via endocannabinoid system modulation and 5-HT1A receptor agonism. Unlike unsupervised use of THC-rich cannabis, which was associated with worse outcomes, CBD presented a favorable safety profile. Conclusion: CBD shows promising potential as adjunctive therapy for PTSD, addressing gaps left by conventional treatments. However, the heterogeneity of current studies necessitates standardized ran domized clinical trials to consolidate its integration into evidence-based practice.
Keywords: Cannabidiol; PTSD; Endocannabinoid System; Systematic Review; Anxiety.
1. INTRODUÇÃO
O Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) configura-se como uma condição psiquiátrica crônica e incapacitante, desenvolvida após a exposição a eventos traumáticos significativos, tais como combate militar, agressão sexual ou desastres naturais (SHALEV; CHO; MARMAR, 2024). Clinicamente, o transtorno é caracterizado por uma tríade sintomatológica que inclui memórias intrusivas recorrentes, hiperestimulação autonômica (hiperarousal), comportamentos de esquiva e alterações negativas persistentes na cognição e no humor (KELMENDI et al., 2016). Tais manifestações comprometem severamente a funcionalidade diária e a qualidade de vida dos indivíduos acometidos.
As diretrizes terapêuticas atuais preconizam, como primeira linha de tratamento, as psicoterapias focadas no trauma, a exemplo da Terapia de Processamento Cognitivo (CPT) e da Exposição Prolongada (PE), associadas a farmacoterapias como os Inibidores Seletivos de Recaptação de Serotonina (ISRS) (MARTIN et al., 2021). Entretanto, uma proporção substancial de pacientes apresenta resposta parcial ou refratariedade a essas intervenções clássicas, o que evidencia a necessidade premente de investigar abordagens terapêuticas alternativas (SHALEV; CHO; MARMAR, 2024).
Nesse contexto, o Sistema Endocanabinoide (SEC) emergiu como um alvo farmacológico promissor para o manejo do TEPT, dada sua função homeostática na regulação da resposta ao estresse, no processamento da memória emocional e na extinção do medo (BERARDI; SCHELLING; CAMPOLONGO, 2016). O canabidiol (CBD), um fitocanabinoide não psicotomimético derivado da Cannabis sativa, tem despertado crescente interesse científico devido às suas propriedades ansiolíticas, neuroprotetoras e anti inflamatórias (GRAY; WHALLEY, 2020; MANZONI; MANDUCA; TREZZA, 2025). Diferentemente do tetrahidrocanabinol (THC), o CBD não induz efeitos intoxicantes ou euforizantes, o que o torna um candidato mais viável para aplicação clínica generalizada (PERTWEE, 2004).
Estudos pré-clínicos sugerem que o CBD pode potencializar a extinção do medo e atenuar comportamentos do tipo ansioso em modelos animais de TEPT, possivelmente via modulação dos receptores canabinoides (CB1 e CB2), dos receptores serotoninérgicos (5- HT1A) e do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA) (ZER-AVIV; SEGEV; AKIRAV, 2016). Embora incipientes, as evidências clínicas indicam que o CBD pode mitigar sintomas centrais do TEPT, como pesadelos e hipervigilância, mantendo um perfil de segurança favorável (TELCH et al., 2022).
Apesar desses achados encorajadores, a literatura científica ainda apresenta lacunas significativas. A maioria dos estudos clínicos disponíveis sobre CBD e TEPT caracteriza-se por amostras reduzidas, desenhos abertos (open-label) ou ausência de grupos controle rigorosos, o que limita a generalização dos resultados (TELCH et al., 2022). Ademais, os mecanismos neurobiológicos subjacentes aos efeitos terapêuticos do CBD no TEPT permanecem incompletamente elucidados, havendo evidências conflitantes sobre suas interações precisas com o SEC e outros sistemas de neurotransmissão (PENG et al., 2022).
A heterogeneidade nos regimes de dosagem, nas formulações farmacêuticas e na duração dos tratamentos constitui um fator adicional de complexidade na interpretação dos dados existentes (ZHANG; MELCHERT; MARKOWITZ, 2024). Outro ponto crítico refere se à escassez de dados sobre a segurança a longo prazo do uso de CBD, particularmente em populações vulneráveis, como adolescentes e indivíduos com comorbidades psiquiátricas complexas (DOUCETTE et al., 2024; HOGGART et al., 2015).
A motivação para a condução desta revisão sistemática decorre da urgência em consolidar e avaliar criticamente o corpo de evidências, em expansão porém fragmentado, acerca do papel do CBD no tratamento do TEPT. Ao sintetizar os achados pré-clínicos e clínicos, este estudo objetiva clarificar o potencial terapêutico do composto, identificar as lacunas de conhecimento prioritárias e fundamentar direções futuras para a pesquisa.
Esta revisão busca, ainda, contextualizar o CBD dentro do panorama terapêutico ampliado do TEPT, comparando sua eficácia e segurança com as modalidades de tratamento estabelecidas. A relevância deste trabalho reside no seu potencial de orientar clínicos, pesquisadores e formuladores de políticas públicas na tomada de decisões baseadas em evidências quanto à integração do CBD nas estratégias de manejo do TEPT.
2. METODOLOGIA
A presente revisão sistemática foi conduzida em estrita conformidade com as diretrizes do Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA) (PAGE et al., 2021). Para assegurar a abrangência e a relevância dos dados, foram consultadas cinco bases de dados primárias: PubMed, Scopus, ScienceDirect, Web of Science e Google Scholar. A seleção destas bases fundamentou-se em seus escopos complementares: o PubMed pela sua vasta cobertura em biomedicina; Scopus e Web of Science pela robustez em indexação e análise de citações; ScienceDirect pelo acesso a periódicos de alto impacto em neurociência e farmacologia; e Google Scholar para a captura de literatura cinzenta e anais de congressos, mitigando o viés de publicação.
As estratégias de busca foram estruturadas para recuperar estudos que investigassem a intersecção entre o Canabidiol (CBD) e o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). No PubMed, utilizou-se uma combinação de termos MeSH (Medical Subject Headings) e termos livres, com a seguinte sintaxe: (“Cannabidiol”[MeSH] OR “CBD”[TIAB] OR “Cannabis”[TIAB]) AND (“Post-Traumatic Stress Disorder”[MeSH] OR “PTSD”[TIAB]). Estratégias análogas foram adaptadas para as demais bases de dados, aplicando-se filtros para restringir os resultados a artigos de pesquisa originais, excluindo revisões narrativas, editoriais e pesquisas de opinião.
Os critérios de inclusão foram definidos conforme o acrônimo PICOS (População, Intervenção, Comparação, Desfechos e Desenho do Estudo). No tocante à população, foram considerados elegíveis estudos envolvendo seres humanos diagnosticados com TEPT ou modelos animais validados para o estudo da condição. A intervenção de interesse consistiu na administração de CBD, seja na forma isolada ou em formulações ricas no fitocanabinoide, comparada a placebo, tratamento padrão ou ausência de intervenção, conforme a disponibilidade do desenho experimental. Os desfechos primários incluíram a avaliação da severidade dos sintomas por meio de escalas validadas (e.g., CAPS-5, PCL-5), além de medidas de extinção do medo, ansiedade ou marcadores neurobiológicos pertinentes. Quanto aos tipos de estudo, foram incluídos ensaios clínicos randomizados, estudos observacionais do tipo coorte ou caso-controle e estudos pré-clínicos originais. Por fim, restringiu-se a seleção a artigos publicados em língua inglesa, sem delimitação temporal, visando obter uma perspectiva histórica abrangente. Foram excluídos da análise estudos que focassem exclusivamente no tetrahidrocanabinol (THC) sem fornecer dados específicos sobre o CBD, bem como pesquisas qualitativas desprovidas de métricas clínicas objetivas.
O processo de seleção seguiu um fluxo hierárquico. A busca inicial identificou um total de 909 registros. Após a remoção automatizada e manual de duplicatas, 582 registros foram descartados, restando 327 artigos para a triagem inicial baseada na leitura de títulos e resumos. Desta fase, 238 estudos foram excluídos por não atenderem aos critérios temáticos ou metodológicos preliminares. Os 89 artigos remanescentes foram submetidos à leitura integral (full-text review). Nesta etapa, 48 estudos foram excluídos devido à indisponibilidade de dados originais ou falhas metodológicas críticas, como a ausência de grupo controle em ensaios pré-clínicos, e 19 foram removidos por focarem majoritariamente em outros canabinoides. Ao final, 22 estudos satisfizeram todos os critérios de elegibilidade e foram incluídos na síntese qualitativa (Figura 1).
Figura 1 – Fluxograma PRISMA do processo de seleção dos estudos

Para assegurar o rigor da revisão, o risco de viés dos estudos incluídos foi avaliado utilizando ferramentas padronizadas: a ferramenta Cochrane Risk of Bias (RoB 2) para ensaios clínicos randomizados e a ferramenta SYRCLE (Systematic Review Centre for Laboratory animal Experimentation) para estudos em modelos animais. A heterogeneidade metodológica substancial entre os estudos, particularmente no que tange aos regimes de dosagem e ferramentas de avaliação de desfecho, inviabilizou a realização de uma meta análise quantitativa; optou-se, portanto, por uma síntese narrativa crítica dos dados.
3. RESULTADOS
A análise temporal das publicações revela um interesse progressivo e sustentado na investigação do CBD como intervenção terapêutica para o TEPT. O cenário bibliométrico permaneceu incipiente antes de 2015, registrando apenas um estudo identificado, porém observou-se uma inflexão significativa entre os anos de 2015 e 2016, período que concentrou seis publicações. Este aumento correlaciona-se com a mudança de paradigmas científicos e sociais em direção à exploração de terapias baseadas em canabinoides. Após uma breve estabilização nos anos subsequentes, a produção científica manteve uma constância de dois a três estudos anuais a partir de 2019. A análise temática demonstra que as investigações iniciais (2015-2016) priorizaram a eficácia sintomática, enquanto estudos a partir de 2020 diversificaram o escopo para incluir aplicações em subpopulações específicas e elucidação de mecanismos neurobiológicos complexos, indicando um amadurecimento do campo em direção à medicina translacional e personalizada.
3.1 Eficácia do Canabidiol na Sintomatologia do TEPT
A eficácia dos canabinoides, com ênfase no CBD, foi avaliada em contextos clínicos que variam desde séries de casos até ensaios randomizados, revelando nuances importantes sobre o tipo de formulação e o perfil do trauma. Os dados extraídos demonstram uma clara distinção terapêutica entre o CBD isolado e o uso de cannabis in natura (Quadro 1). Em uma série de casos seminal, Elms et al. (2019) reportaram que o CBD oral foi bem tolerado e promoveu redução sustentada na severidade dos sintomas em 91% dos pacientes. Corroborando a especificidade da ação, o ensaio clínico randomizado de Bolsoni et al. (2022) evidenciou que o CBD atenuou significativamente a ansiedade induzida pela rememoração do trauma, mas com uma distinção crítica: o efeito foi robusto para traumas não-sexuais, mas não significativo para traumas sexuais, sugerindo que a neurobiologia subjacente pode diferir conforme a natureza do evento estressor. Em contrapartida, grandes estudos observacionais indicam que o uso não supervisionado de maconha (rica em THC) está associado a piores desfechos funcionais e maior severidade sintomática.
Quadro 1 – Estudos Clínicos Relevantes sobre CBD e Cannabis no TEPT

A análise destes estudos reforça a hipótese de que o CBD isolado possui propriedades ansiolíticas que facilitam a extinção do medo aversivo, um processo cognitivo prejudicado no TEPT. Entretanto, a discrepância nos resultados baseada no tipo de trauma (Bolsoni et al., 2022) alerta para a necessidade de estratificação de pacientes. Além disso, os dados de Wilkinson et al. (2015) servem como um alerta clínico importante sobre os riscos da automedicação com produtos de cannabis não padronizados, onde o THC pode exacerbar a paranoia e a desregulação emocional.
3.2 Mecanismos Neurobiológicos e Alvos Terapêuticos
A revisão identificou mecanismos pleiotrópicos pelos quais o CBD pode exercer seus efeitos terapêuticos, restaurando a homeostase neurobiológica perturbada pelo trauma. As evidências apontam para uma ação tripartida envolvendo a modulação do sistema endocanabinoide, a regulação alostática do estresse e a polifarmacologia, conforme detalhado no Quadro 2.
Quadro 2 – Mecanismos de Ação e Alvos Moleculares dos Canabinoides no TEPT

O estudo de Manzoni et al. (2025) é particularmente relevante ao destacar que a ação do CBD transcende o sistema endocanabinoide clássico, atuando como agonista dos receptores serotoninérgicos 5-HT1A, o que explica seus efeitos antidepressivos e ansiolíticos independentes dos receptores CB1. Adicionalmente, a regulação da carga alostática proposta por Lohr et al. (2020) sugere que o CBD pode intervir não apenas nos sintomas psicológicos, mas também nas comorbidades fisiológicas do TEPT, como a disfunção cardiovascular e metabólica.
3.3 Aplicações Clínicas em Populações Específicas
A versatilidade terapêutica do CBD foi explorada em diversos contextos clínicos além do TEPT puro, abrangendo comorbidades frequentemente associadas ao trauma. Os resultados indicam que a eficácia e a segurança são variáveis dependentes da população e da condição comórbida, exigindo abordagens personalizadas (Quadro 3).
Quadro 3 – Aplicações Clínicas dos Canabinoides em Condições Associadas


A análise destas aplicações revela que, para populações com lesão cerebral traumática concomitante ao TEPT, o CBD pode oferecer benefícios duplos (neuroprotetor e psicotrópico), embora a janela terapêutica seja estreita. No contexto de abuso de substâncias, frequente em pacientes com TEPT, o CBD apresenta-se como uma alternativa não viciante capaz de atenuar o comportamento de busca por drogas, diferindo substancialmente das terapias de substituição convencionais.
4. DISCUSSÕES
A consolidação e análise crítica do corpo de evidências acerca do uso do canabidiol (CBD) no tratamento do TEPT revela um cenário terapêutico complexo, no qual o composto transcende a função de mero paliativo sintomático para atuar como um modulador neurobiológico capaz de restaurar a homeostase de sistemas críticos desregulados pelo trauma. A convergência entre os modelos pré-clínicos e as observações clínicas iniciais fortalece substancialmente a plausibilidade biológica do CBD, sugerindo uma ação multimodal que não apenas atenua a hiper vigilância, mas também intervém nos processos cognitivos de extinção do medo, uma falha central na fisiopatologia do transtorno. A capacidade do CBD de inibir a degradação da anandamida via enzima FAAH, somada à sua atividade agonista sobre os receptores 5-HT1A, oferece um mecanismo robusto para explicar a redução dos sintomas de hyperarousal e a melhoria na qualidade do sono reportadas, preenchendo lacunas deixadas pelas farmacoterapias convencionais que frequentemente falham em abordar a totalidade do espectro sin tomatológico do TEPT (ZER-AVIV et al., 2016; MANZONI; MANDUCA; TREZZA, 2025).
Sob uma ótica translacional, o posicionamento do CBD no arsenal terapêutico merece destaque, especialmente quando contrastado com as intervenções de primeira linha. Enquanto os Inibidores Seletivos de Recaptação de Serotonina (ISRS) exigem semanas para alcançar eficácia plena e estão frequentemente associados a efeitos colaterais que comprometem a adesão, como disfunção sexual e embotamento afetivo, o CBD apresenta um perfil de início de ação e tolerabilidade que pode favorecer a adesão em pacientes refratários (ASPESI; PINNA, 2019).
Mais do que uma alternativa isolada, o CBD demonstra potencial sinérgico quando utilizado como adjuvante às psicoterapias baseadas em exposição. Ao atenuar a resposta fisiológica de medo agudo durante as sessões terapêuticas sem causar a sedação ou o prejuízo cognitivo típico dos benzodiazepínicos, o canabinoide poderia teoricamente catalisar o processo de reconsolidação da memória, facilitando a extinção do trauma em pacientes que, de outra forma, abandonariam o tratamento devido à intensidade do sofrimento emocional evocado (BERARDI; SCHELLING; CAMPOLONGO, 2016).
Entretanto, a integração do CBD na prática clínica contemporânea colide com barreiras epistemológicas significativas que tensionam os princípios da Medicina Baseada em Evidências (MBE). Existe um descompasso palpável entre a crescente demanda dos pacientes, impulsionada por relatos anedóticos e pela percepção social de segurança dos produtos naturais, e a necessidade científica de rigor metodológico.
A predominância de estudos com amostras reduzidas e desenhos abertos fragiliza a força de recomendação clínica, criando um cenário onde a prática clínica muitas vezes precede a validação científica robusta (STACK et al., 2023; SHANNON; OPILA-LEHMAN, 2016). A variabilidade extrema nas formulações disponíveis, oscilando entre extratos full spectrum e isolados purificados, juntamente com a ausência de diretrizes de dosagem padronizadas, gera uma incerteza farmacocinética que dificulta a replicabilidade dos estudos e a formulação de protocolos clínicos consistentes, expondo os pacientes ao risco de intervenções subotimizadas ou ineficazes (ABIZAID; MERALI; ANISMAN, 2019).
Adicionalmente, as implicações farmacoeconômicas e de segurança a longo prazo constituem vetores críticos nesta discussão. Dados recentes de estudos de coorte trazem uma nova dimensão ao debate, sugerindo que o uso de cannabis medicinal pode estar associado a uma redução significativa na utilização global de recursos de saúde por pacientes com TEPT, possivelmente devido à mitigação de crises agudas que levariam a atendimentos de emergência (DOUCETTE et al., 2024). Este achado aponta para um potencial custo-efetividade que poderia justificar a inclusão do CBD em protocolos de saúde pública, desde que resguardada a segurança.
Contudo, a segurança a longo prazo permanece uma incógnita, especialmente no que tange ao impacto do uso crônico sobre a neuroplasticidade em cérebros em desenvolvimento e os potenciais interações medicamentosas em pacientes idosos com polifarmácia. É imperativo, portanto, que a comunidade científica mantenha uma postura de vigilância cautelosa, reconhecendo que, embora o perfil de segurança em curto prazo seja favorável, a ausência de evidência de dano não constitui, por si só, evidência de ausência de risco em exposições prolongadas.
Por fim, a interpretação destes achados não pode prescindir do reconhecimento das limitações inerentes ao corpo de evidências atual. A heterogeneidade metodológica impede a realização de meta-análises quantitativas, restringindo as conclusões a sínteses qualitativas que, embora valiosas, possuem menor poder estatístico. O viés de publicação e a confusão frequente em estudos observacionais entre o uso de cannabis medicinal supervisionado e o uso recreativo de produtos ricos em THC introduzem ruídos que podem distorcer a percepção de eficácia e risco. Assim, o avanço do campo depende não apenas de mais estudos, mas de uma mudança qualitativa na pesquisa, priorizando ensaios clínicos randomizados de larga escala, com biomarcadores de resposta e padronização rigorosa das intervenções, para que o CBD possa transitar de uma promessa terapêutica para uma ferramenta clínica validada e precisa no manejo do TEPT.
5. CONCLUSÃO
A presente revisão sistemática consolidou e avaliou criticamente o corpo de evidências acerca da eficácia e segurança do canabidiol (CBD) no tratamento do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), revelando um panorama no qual a substância transcende a categoria de terapia alternativa para se posicionar como um modulador neurobiológico promissor. Os achados indicam que o CBD possui um potencial terapêutico tangível e multimodal, atuando não apenas na mitigação sintomática da ansiedade e do hyperarousal, mas intervindo diretamente nos mecanismos fisiopatológicos centrais do transtorno, notadamente na extinção da memória do medo e na regulação da homeostase do estresse. Tal perfil sugere que o CBD pode preencher lacunas críticas deixadas pelas farmacoterapias convencionais, especialmente em pacientes refratários ou intolerantes aos efeitos adversos dos inibidores seletivos de recaptação de serotonina.
Entretanto, a transição do CBD de uma molécula experimental promissora para um padrão de tratamento clínico validado enfrenta desafios translacionais significativos. A evidência atual, embora biologicamente plausível e clinicamente encorajadora, permanece frag mentada por limitações metodológicas substanciais, incluindo a predominância de estudos observacionais, a escassez de ensaios clínicos randomizados de larga escala e a falta de padronização nas formulações farmacêuticas. Esta heterogeneidade impede a formulação de diretrizes de dosagem precisas e a estratificação segura de pacientes. O futuro da pesquisa nesta área não deve, portanto, limitar-se à replicação de estudos de eficácia simples, mas deve avançar em direção à medicina de precisão, priorizando a elucidação de biomarcadores preditivos de resposta, a definição de janelas terapêuticas ideais e o monitoramento rigoroso da segurança a longo prazo.
Em última análise, a integração do CBD nos paradigmas de medicina baseada em evidências para o TEPT dependerá da capacidade da comunidade científica de equilibrar a inovação terapêutica com o rigor metodológico. A superação das barreiras atuais exige um esforço coordenado para conduzir ensaios clínicos robustos que possam dissociar definitivamente os efeitos terapêuticos do CBD dos riscos associados ao uso não supervisionado de cannabis. Apenas através deste escrutínio científico rigoroso será possível transformar o potencial do CBD em uma ferramenta clínica segura, eficaz e acessível, capaz de aliviar o fardo devastador do trauma na vida dos pacientes.
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1Discentes do Curso Superior de Medicina do Faculdade Ages Campus Jacobina
2Orientador, Doutorado em Biotecnologia e Docente do Curso Superior de Medicina – Faculdade Ages de Medicina Campus Jacobina e-mail: tamara.carvalho@ages.edu.br
