REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202503181613
Bruno Calado de Araújo1
RESUMO
Com a articulação das seguintes categorias: política pública (definição e características), participação social (conceito, institucionalização e instrumentos de efetivação) e administração judiciária (atividade-meio do Poder Judiciário), é defendida a tese da possibilidade de elaboração de uma Política Nacional Judiciária, indicando-lhe os pressupostos constitucionais e elementos gerais, no sentido de enfrentar o problema político da administração, finanças e orçamentos dos Tribunais. Tal política nacional, marcada pela participação social, deve ser instituída por uma lei ordinária e regulamentada por resolução do Conselho Nacional de Justiça. O ensaio foi orientado pela pesquisa documental e bibliográfica, com objetivo descritivo e conclui pela possibilidade de elaboração e implementação de uma Política Nacional Judiciária, de forma não disruptiva e alinhada com a Constituição de 1988 e demais normas infraconstitucionais.
Palavras-chave: Política pública. Participação social. Justiça. Poder Judiciário. Administração judiciária.
INTRODUÇÃO
Escrever sobre uma política nacional relativa ao Poder Judiciário é uma oportunidade de construir propostas que tragam uma nova visão ou contribuições originais a respeito do Estado brasileiro
Nesse sentido, defendemos a tese de uma política pública nacional que incida na administração, finanças e orçamento do Poder Judiciário e que seja marcada pela participação social.
Para tanto, estabelecemos quatro objetivos a serem enfrentados: o primeiro deles é o de identificar a política pública como categoria, traçando suas principais características e, a partir da análise e da comparação entre várias “políticas nacionais”, estabelecer os principais elementos de uma política pública de caráter nacional.
Por outro lado, precisamos reconhecer as diferenças entre as expressões que aparentam semelhança, mas tratam de categorias completamente diferentes. Dessa forma, importa esclarecer que estamos tratando de “justiça” – porém, longe do debate de ideias travado no curso de Sandel (2011)2 . Aqui, a referida expressão compreende três perspectivas diferentes de percepção acerca do Poder Judiciário3 .
Estamos falando dele, então como elemento de um “sistema de justiça”, como órgão jurisdicional e no papel de administrador público.
A partir da investigação desses elementos, podemos traçar as linhas gerais de uma política nacional voltada para a questão da administração judiciária.
Trata-se, portanto, de uma pesquisa de caráter bibliográfico e documental, cujo objetivo é descritivo (SEVERINO, 2007, p. 122-123).
1. POLÍTICA PÚBLICA
O conceito de política pública é basilar para a apresentação de uma proposta de política pública nacional. Precisamos estabelecer sua definição e características para, a partir de tais elementos, começar a estruturar a tese proposta.
1.1 Definição e Características
A trajetória do conceito de “política pública” é de longa data e, de acordo com Schmidt (2018, p. 121) sua “afirmação na literatura ocorreu na década de 1950, no contexto de um Estado ativo, interventor na economia e na vida social dos países capitalistas centrais”.
Não pretendemos realizar uma revisão da literatura a respeito do conceito de política pública, mas localizar uma definição e a partir dela desenvolver o trabalho de construção duma proposta de política pública de âmbito nacional.
Uma primeira definição, de caráter mais genérico é oferecida por Souza (2008, p. 26), para quem política pública é um campo de conhecimento que busca, ao mesmo tempo, ‘colocar o governo em ação’ e/ou analisar essa ação (variável independente) e, quando necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas ações (variável dependente) (grifamos).
Em termos reducionistas, essa primeira definição nos dá a primeira pista da definição de política pública, isto é, implica em ação governamental – seja de forma inicial ou através de mudanças no curso dessa mesma ação adotada.
Entretanto, não nos basta uma definição em que a política pública se reduz a algo que simplesmente impulsione a ação governamental. Na busca de um conceito mais robusto, encontramos a definição de Schmidt (2018, p. 127) para quem política pública é
um conjunto de decisões e ações adotadas por órgãos públicos e organizações da sociedade, intencionalmente coerentes entre si, que, sob coordenação estatal, destinam-se a enfrentar um problema político ( grifamos).
Nela, percebemos que as “ações governamentais” do conceito anterior foram contempladas como “conjunto de ações e decisões” e qualificadas, com a articulação de características que podemos decompor da seguinte forma:
a) adotadas por órgãos públicos e organizações da sociedade;
b) intencionalmente coerentes entre si;
c) sob coordenação estatal;
d) destinam-se a enfrentar um problema político.
Uma vez estabelecida a definição de política pública, passemos à análise das principais características desse “conjunto de ações e decisões” sob a coordenação estatal. Antes, porém, cumpre destacar que a política pública não é constituída por ações isoladas – ainda que importantes – mas por um conjunto de ações e decisões (SCHMIDT, 2018, p. 127) e, conforme dito anteriormente, intencionalmente coerentes entre si.
A primeira característica é a coordenação estatal, ou seja, ainda que não esteja atuando na execução direta da política pública (quando delegada a organizações sociais ou privadas), o controle e a coordenação dos trabalhos cabe sempre ao poder público.
A segunda, talvez a mais importante, seja relativa à teleologia da política pública, ou seja, pertinente ao seu propósito: a resolução de um “problema político”.
Schmidt (2018, p. 122-124) apresenta uma descrição das características do problema político, que também adotaremos para fins deste estudo. Para o autor, os problemas políticos assim o são porque emergem de demandas sociais, que são vinculadas “à visão ideológica predominante, aos compromissos assumidos pelo pelos governantes no processo eleitoral, às pressões dos grupos sociais e corporações econômicas, à cultura política vigente, entre outros fatores” (SCHMIDT, 2018, p. 122) e, dessa forma, as respostas a essas demandas “estão intimamente associadas ao contexto sócio-histórico ao qual pertence o Estado” (SCHMIDT, 2018, p. 123). O problema político, então, advém da própria sociedade e de seus fatores econômicos, culturais e/ou sócio-históricos. Além disso, são públicos ( que afetam a todas as pessoas) ou coletivos dizem respeito a uma parcela da sociedade, a um segmento social ( SCHMIDT, 2018, p. 123).
Pensando na tipologia da política pública de âmbito nacional, podemos dizer que é constitutiva, pois define os “procedimentos gerais da política, determinam as regras do jogo, as estruturas e os processos da política (…)” (SCHMIDT, 2018, p. 129). Nesse mesmo sentido, Bucci (2019, p. 813) argumenta que a criação de órgãos e serviços é função constitutiva, na taxonomia das formas de ação política.
1.2 Elementos de Políticas Públicas Nacionais
Schmidt (2018, p. 128) afirma que uma política, ao invés de um plano ou programa, “dispõe sobre princípios, objetivos e diretrizes relativas à gestão, estabelece responsabilidades do poder público e da sociedade, elenca meios e recursos, explicitando a forma de atuação governamental em determinada área” (grifamos).
Podemos extrair, então, os seguintes itens que compõem, basicamente, uma política pública:
a) princípios;
b) objetivos e
c) diretrizes.
Porém, nas palavras do autor, estamos tratando de políticas públicas em um determinado contexto, numa determinada área ou segmento.
Pergunta-se, então: quais seriam os elementos de uma política pública nacional? E qual a forma de materialização, ou seja, se existe, é prevista em suporte normativo? Qual?
Para responder às perguntas acima, o primeiro passo metodológico foi buscar identificar uma quantidade razoável de documentos que instituíram políticas nacionais, para buscar-lhes os elementos essenciais.
Selecionamos aleatoriamente a seguinte amostra de políticas nacionais, instituídas nos últimos quarenta anos, aproximadamente (entre 1981 e 2018):
a) Segurança Pública (Lei nº 13.675/2018);
b) Resíduos sólidos (Lei nº 12.305/2010);
c) Pessoas em situação de rua (Decreto nº 7.053/2009);
d) Promoção da saúde (Portaria de Consolidação nº 2/2017)
e) Idoso (Lei nº 8.842/1994);
f) Participação social (Decreto nº 8.243/2014, revogado);
g) Meio ambiente (Lei nº 6.938/1981);
h) Trabalhador e trabalhadora (Portaria nº 1.823/2012)
i) Enfrentamento à violência contra as mulheres (Cartilha, 2011).
j) Atenção integral à saúde do homem (Cartilha. 2008).
A partir da análise das disposições gerais, ou seja, dos elementos apontados por Schmidt (2018), elaboramos o seguinte quadro, ordenado por data:
Quadro 1 – Elementos de Políticas Públicas Nacionais
Política Pública | Suporte | Ano | Princípios | Objetivos | Diretrizes | Instrumentos |
Meio ambiente | Lei | 1981 | X | X | X | |
Idoso | Lei | 1994 | X | X | ||
Saúde do homem | Cartilha | 2008 | X | X | X | |
Pessoas em situação de rua | Decreto | 2009 | X | X | X | |
Resíduos sólidos | Lei | 2010 | X | X | X | X |
Enfrentamento à violência contra as mulheres | Cartilha | 2011 | X | X | X | |
Trabalhador e trabalhadora | Portaria | 2012 | X | X | X | |
Participação social | Decreto | 2014 | X | X | X | |
Promoção da saúde | Portaria | 2017 | X | X | X | |
Segurança Pública | Lei | 2018 | X | X | X | X |
O resultado da análise e comparação foi a confirmação da presença dos elementos “princípios”, “objetivos” e “diretrizes”, que compõem as disposições gerais das políticas públicas nacionais analisadas e aparecem com recorrência.
Porém, identificamos um quarto elemento, os “instrumentos”, que estão presentes em algumas políticas nacionais (notadamente as instituídas por lei ordinária) e têm a finalidade de efetivar todo o conteúdo previsto nos elementos anteriores.
Dessa forma, temos os seguintes elementos gerais integrantes de uma política nacional:
a) Princípios , que estabelecem o núcleo da política pública, norteadores dos demais elementos;
b) Objetivos , que são ações de caráter geral e que podem ser mensurados por metas;
c) Diretrizes , que estabelecem os parâmetros das ações a serem desempenhadas, a serem pormenorizadas na regulamentação;
d) Instrumentos , para garantir a ocorrência e permitir a efetivação da política nacional no plano fático.
Além dos elementos, é importante notar o instrumento de afirmação das mencionadas políticas nacionais, ou seja, são instituídas por lei ordinária em 4 casos (40% da amostra) e as demais formas normativas (decreto e portaria), em 20% cada. Ou seja, em 80% dos casos, as políticas nacionais revestem-se de caráter normativo e em apenas 20% são apenas cartilhas, cujo conteúdo é apenas orientativo.
2. PARTICIPAÇÃO SOCIAL
Em princípio, poderíamos abordar diretamente a questão dos campos de atuação do Poder Judiciário, pressupondo a participação popular nos processos de formulação de políticas públicas.
Porém, a prudência insiste em rechaçar os “acordos de cavalheiros”, “apertos de mãos” ou, contemporaneamente, a crença pueril de que em um Estado Democrático de Direito a participação social lhe é subjacente, quando está em jogo a questão decisória acerca dos problemas políticos a serem enfrentados pelo poder público.
Dessa forma, trataremos da inserção da participação social em uma política nacional como algo essencial, porém, tratada de forma explícita e institucionalizada.
2.1 Conceito e Institucionalização
Não pretendemos problematizar a discussão que existe na literatura especializada a respeito da democracia, em que são debatidas e confrontadas as formas representativa, participativa e deliberativa. Cumpre apenas distingui-las, de forma articulada com a necessidade da sua respectiva institucionalização.
De início, podemos dizer que a representação já ocorre na maior parte das vezes e num grande número de espaços. Seja no parlamento ou no Poder Executivo, o modelo geral é o do afastamento do contato direto, da população em geral, com o processo decisório – que, na verdade, é um processo de poder.
Por outro lado, o modelo participativo busca ampliar o envolvimento da sociedade civil e, nas palavras de Fonseca (2019, p. 94) se a sua institucionalização
pode gerar relações de dominação, despolitização e uso instrumental das novas instituições, também é verdade que a atuação de tais instituições pode gerar dinâmicas inovadoras, culminando com processos de democratização interna das estruturas do Estado, com a promoção de novas capacidades estatais e fortalecimento daquelas já existentes . (grifamos).
Então, a institucionalização de uma política nacional – de caráter participativo no âmbito do Poder Judiciário – pode permeabilizar internamente o referido Poder às demandas da sociedade civil.
O foco do modelo deliberativo, por sua vez, “situa-se mais na qualidade do processo deliberativo em si do que na quantidade de cidadãos que foram incluídos no mecanismo” (FONSECA, 2019, p. 32). Podemos dizer, então, que o deliberativo contém em si o modelo participativo, porém, essa mesma participação social seria limitada pelo aspecto qualitativo do processo decisório.
Por isso, defendemos o modelo participativo para a adoção de política pública nacional da qual estamos tratando, pois apresenta uma possibilidade muito maior de participação da sociedade como um todo e que respeita as garantias constitucionais das instituições, tais como a autonomia e a independência. O modelo deliberativo, a seu turno, poderia trazer confrontos diretos com essas mesmas garantias e talvez, para ser implementado, poderia ensejar uma mudança de desenho institucional ou até mesmo uma reconfiguração da arquitetura institucional.
Fonseca (2019, p. 29) descreve os pressupostos para a participação social:
Para que a participação social seja ato contínuo e aberto a todos os cidadãos, é fundamental que as oportunidades para participar sejam múltiplas tanto no espaço como no tempo. Desse modo, as formas participativas devem estar presentes em múltiplas arenas, seja no Estado ou na sociedade civil, em suas múltiplas acepções . (grifamos).
Trataremos, mais adiante, das múltiplas oportunidades de participação, ao lidarmos dos institutos de efetivação da participação social.
Mas não basta optar pela participação social: é preciso garantir a sua continuidade e, nesse sentido, Fonseca (2019, p. 19) leciona que:
A institucionalização da participação, por sua vez, corresponde a uma tentativa de reduzir a vulnerabilidade das experiências participativas e aumentar sua perenidade , visto que, muitas vezes, tais experiências terminam por ser dependentes da vontade política do gestor e são frequentemente afetadas por mudanças de governo (grifamos).
Institucionalizar significa, em outras palavras, proteger uma política pública participativa da mudança de governos, gestões ou mesmo da “vontade política” em determinadas circunstâncias adversas. Garante, ainda, um fortalecimento do processo decisório para além da representatividade e canalizador de oportunidades para a sociedade civil integrá-lo.
Nesse sentido, de forma geral há o incremento da accountability vertical, ou seja, do controle social, na qual “a sociedade civil e a imprensa sancionam (por meio de denúncias e exposição pública) agentes estatais eleitos ou não eleitos” (ROBL FILHO, 2013, p. 30) e, de forma específica para o caso pontual do Poder Judiciário, há o reforço também da accountability judicial institucional, que diz respeito às “informações e às justificações sobre ações institucionais (administração, orçamento, relações com outros poderes), assim como a sanção pela realização de processos institucionais inadequados” (ROBL FILHO, 2013, p. 31).
2.2 Instrumentos de Efetivação
Compreendendo a participação social como elemento necessário de uma política pública nacional, precisamos tirá-la do campo teórico e abstrato e trazê-la para a realidade concreta, de forma a efetivar seu propósito.
Nesse sentido, constituem verdadeiras “interfaces socioestatais”, na medida em que promovem, de acordo com Lüchmann (2020, p. 23) “um processo interativo e comunicativo que envolve diálogo, contestação de significados, controle, autoridade e poder” entre o Estado (no caso, o Poder Judiciário) e a sociedade civil. A autora apresenta os seguintes tipos de interfaces socioestatais, que compreendemos como instrumentos de efetivação da participação social, quando analisou a estrutura do governo municipal de Florianópolis: Conselho de Políticas; Orçamentos Participativos, Conferências, Conselhos consultivos, Audiências públicas, consultas públicas, facebook e blogs, prefeitura nos bairros, reuniões com grupos de interesse, mesas de negociação, ouvidorias, pesquisas de satisfação de usuários, ouvidorias, denúncias (LÜCHMANN, 2020, p. 28-29).
Dos instrumentos apontados, destacamos – pela pertinência temática – as seguintes interfaces:
a) conferências : “encontros periódicos que reúnem setores sociais e governamentais para a discussão e apresentação de propostas e diretrizes em sua respectiva área de política” (LÜCHMANN, 2020, p. 28);
b) audiências públicas : “consultas abertas à população promovidas pelo poder público diante de uma temática específica, em geral vinculada a um processo decisório, como a aprovação de uma obra, ou a elaboração de uma determinada política pública. São obrigatoriamente presenciais” (LÜCHMANN, 2020, p. 28);
c) pesquisas de satisfação dos usuários : “disponibilização de questionários ( online e presenciais), de avaliação dos serviços oferecidos aos usuários, utilizando os resultados para subsidiar ações de melhoria nos serviços” (LÜCHMANN, 2020, p. 29).
Além da pertinência, estão diretamente conectadas a uma proposta de política pública nacional de grande amplitude e, ao mesmo tempo, que possa ser institucionalizada e concretamente possível.
3. SISTEMA DE JUSTIÇA, JURISDIÇÃO E ADMINISTRAÇÃO JUDICIÁRIA
Estabelecido o parâmetro inicial (política pública nacional com participação social), o próximo passo é estabelecer a relação dele com o Poder Judiciário.
Nesse sentido, precisamos compreender, inicialmente, que o referido Poder é passível de três formas distintas de percepção:
a) Enquanto elemento de um sistema, com a participação necessária e definida na Constituição;
b) Enquanto um dos três Poderes do Estado brasileiro e
c) Enquanto gestor público.
Sabendo de qual forma estamos tratando, temos o fechamento do parâmetro e, consequentemente, podemos avançar e elaborar uma proposta de política pública nacional.
3.1 Justiça como Sistema
Partindo de um conceito simples de sistema, apresentado por Ferreira (2010, p. 703), que o compreende como “disposição das partes ou elementos do todo, coordenados entre si, e que formam estrutura organizada” podemos concluir, a partir da leitura do texto constitucional, que o “sistema de justiça” não compreende apenas o Poder Judiciário e seus respectivos ramos – mas todas as funções essenciais à justiça.
Nesse sentido, Silva (1997, p. 549), explicando o brocardo jurídico “nemo iudex sine actore”4 , avança na questão e nos diz que
Esta velha máxima, que significa, ao pé da letra, que não há juiz sem autor, exprime muito mais do que um princípio jurídico, porque revela que a Justiça, como instituição judiciária, não funcionará se não for provocada , se alguém, algum agente (autor, aquele que age), não lhe exigir que atue.
(…)
Nisso se acha a justificativa das funções essenciais à justiça , compostas por todas aquelas atividades profissionais públicas ou privadas, sem as quais o Poder Judiciário não pode funcionar ou funcionará muito mal . São procuratórias e propulsoras da atividade jurisdicional (…) (grifamos).
Dessa forma, portanto, notamos que não apenas os órgãos do Poder Judiciário, como também cada uma das elencadas pela Constituição como “funções essenciais à justiça” (Ministério Público, Advocacia Pública, Advocacia e Defensoria Pública) fazem parte de um sistema que podemos denominar de “sistema de justiça”.
Neste ponto, percebemos também o seguinte: ainda que todas as funções gravitem na órbita do Poder Judiciário como elementos impulsionadores da atividade estatal, esse próprio Poder também é um elemento, de caráter central.
O foco aqui é a articulação sistêmica entre o Poder Judiciário (percebido como um elemento) e as referidas “funções essenciais”.
Indo mais além, podemos enxergar que o problema político aqui está imbricado com a própria articulação desse sistema. Ou seja, a problemática surge a partir das relações entre o Poder Judiciário, centro do sistema, e cada uma das funções essenciais – inclusive entre elas mesmas.
3.2 Jurisdição como Atividade-Fim
Carneiro (2007, p. 6) apresenta um conceito tradicional de jurisdição, afirmando-a como “a atividade pela qual o Estado, com eficácia vinculativa plena, elimina a lide, declarando e/ou realizando o direito em concreto”.
Por outro lado, a doutrina contemporânea apresenta uma perspectiva um pouco diferente, a exemplo de Neves (2018, p. 59), que define jurisdição como a “atuação estatal visando à aplicação do direito objetivo ao caso concreto, resolvendo-se com definitividade uma situação de crise jurídica e gerando com tal solução a pacificação social”. Desse conceito, notamos a essência da jurisdição: atuação do Estado, atuando sobre uma determinada situação (chamada de “crise jurídica” 5 ) de forma definitiva, “dizendo o Direito”.
Não nos interessa o debate processualístico, mas detectar a essência da jurisdição, que emerge a partir dos dois conceitos, oriundo dos seguintes elementos:
a) ação estatal em caráter de monopólio, através da aplicação, declaração ou realização do direito;
b) cujo respeito é de obrigação às partes envolvidas e
c) a pacificação social.
Porém, podemos aprofundar a questão, a partir da análise de Cintra, Grinover e Dinamarco (2011, p. 149), na qual os autores nos apresentam três perspectivas da jurisdição, ou seja, como poder, função e atividade:
Como poder , é manifestação do poder estatal, conceituado como capacidade de decidir imperativamente e impor decisões . Como unção , expressa o encargo que têm os órgãos estatais de promover a pacificação de conflitos interindividuais, mediante a realização do direito justo e através do processo . E como atividade , ela é o complexo de atos do juiz no processo , exercendo o poder e cumprindo a função que a lei lhe comete (grifamos).
Então, diante do poder (capacidade ou possibilidade ), da função (encargo ou tarefa ) e da atividade (complexo de atos ou modo de fazer ), podemos dizer que a jurisdição é a atividade-fim (ou seja, a principal atividade) do Poder Judiciário a partir da perspectiva do encargo. De outra forma, podemos afirmar que a atividade-fim do Poder Judiciário é o de promover a pacificação social, por meio do direito justo e através do respectivo processo.
Podemos enxergar que o problema político aqui diz respeito precipuamente, então, ao conjunto de normas que estabelecem não apenas quais são os direitos materiais, como também as que desenham toda a arquitetura processual.
3.3 Administração Judiciária como Atividade-Meio
A administração judiciária está ligada à atividade interna dos Tribunais, no sentido de proporcionar subsídios para a consecução da atividade-fim do Poder Judiciário, ou seja, o exercício da jurisdição. Dessa forma, podemos dizer que é uma “atividade-meio”, como campo específico da Administração. Nesse sentido, Procopiuck (2013, p. 297) leciona que
A Administração Judiciária surge como uma das especializações do campo da gestão e historicamente tem buscado alternativas para modernização da organização e das práticas dos tribunais ( grifamos).
Além de se caracterizar como administração pública, o Poder Judiciário está no mesmo conjunto das demais organizações públicas, conforme esclarece Procopiuck (2013, p. 295):
A Administração Judiciária, se vista de modo amplo, não se diferencia da aplicada nos demais tipos de organização. O objeto de trabalho está relacionado a métodos de planejamento, gestão de recursos humanos, gestão orçamentário-financeira, gestão de tecnologia da informação, gestão patrimonial, gestão de processos, gestão de operações e assim por diante (grifamos).
Procopiuck (2013, p. 297) nos alerta também para a dificuldade existente no Poder Judiciário, para a mudança e, consequentemente, para a permeabilidade à participação social:
De modo geral, comparadas com as estruturas do Poder Executivo, as do Poder Judiciário são bastante reduzidas; logo, se considerada apenas esta dimensão, sua administração e condução de reformas tenderiam a ser relativamente simples. Contudo, a história demonstra que as dificuldades de alteração das estruturas administrativas judiciais são menos dependentes do tamanho de seu aparato administrativo e operacional do que de valores e práticas institucionalizados ao longo de séculos ( grifamos).
Uma das possíveis respostas a essa dificuldade é apontada por Santos (1989, p. 51), que compreende a administração judiciária como campo da sociologia judiciária e, nesse sentido, nos aponta para uma percepção dessa administração como instância política,
inicialmente propugnada pelos cientistas políticos que viram nos tribunais um subsistema do sistema político global, partilhando com este a característica de processarem uma série de inputs externos constituídos por estímulos, pressões, exigências sociais e políticas e de, através de mecanismos de conversão, produzirem outputs (as decisões) portadoras elas próprias de um impacto social e político nos restantes subsistemas.
O objeto das demandas desse subsistema político não precisam corresponder, necessariamente, a conflitos de interesse ou crises jurídicas. As pressões sociais sobre a forma como é empregado o orçamento dos Tribunais pode ser um input , que vai gerar o correspondente output através de uma decisão.
E a diferenciação entre a atividade-fim e a atividade-meio do Poder Judiciário está justamente no caráter do processo decisório, positivado na Constituição de 1988, em seu art. 93 (disposições gerais), quando trata das duas formas de decisão do Poder Judiciário:
jurisdição, no inciso IX e decisões administrativas, no inciso X:
“Art. 93 (…)
IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;
X – as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão pública, sendo as disciplinares tomadas pelo voto da maioria absoluta de seus membros (grifamos).
Cumpre observar que essas decisões administrativas integram a autonomia administrativa, financeira e orçamentária garantida pela Constituição, em seu art. 99 (administrativa e financeira) e em seu parágrafo primeiro (orçamentária).
Porém, a autonomia não é irrestrita: existem deveres (constitucionalmente previstos como princípios) no “caput” do art. 37 da Constituição, ou seja, o exercício deve ser nos parâmetros da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Podemos dizer, então, que a administração judiciária – atividade-meio – é objeto de uma (ou mais) políticas públicas e estabelecer a seguinte diferenciação entre as três categorias apresentadas:
Quadro 2 – Perspectivas do Poder Judiciário
CATEGORIA | FUNDAMENTO NORMATIVO | OBJETO | PROBLEMA POLÍTICO |
SISTEMA DE JUSTIÇA | Constituição | Articulação sistêmica entre o Poder Judiciário e as funções essenciais da justiça | Articulação interinstitucional |
JURISDIÇÃO | Constituição e demais normas infraconstitucionais | Atividade-fim dos órgãos do Poder Judiciário | Definição das normas de direito material e processual |
ADMINISTRAÇÃO JUDICIÁRIA | Constituição | Atividade-meio do Poder Judiciário | Administração, Finanças e Orçamento |
Fonte: Elaborado pelo autor
Destacando cada um dos aspectos e, principalmente, cada um dos problemas políticos advindos das perspectivas, podemos focalizar o objeto de uma política nacional com participação social a partir do enfrentamento de um ou mais problemas apresentados.
Reforçamos que, na questão da administração judiciária, estão destacadas a administração, finanças e orçamento como “problema político” a ser enfrentado por uma política pública nacional. Rodrigues (2022, p. 31) o denomina “política judiciária”, pois compreende “todas as questões administrativas e organizacionais do Judiciário, ou seja, suas estruturas internas”.
Nesse sentido, pretendemos enfrentar o problema político (ou “política judiciária”) da administração judiciária a partir de uma política nacional, articulada com a participação social, ou seja, a elaboração de uma estrutura teórico-normativa de uma Política Nacional Judiciária com participação da sociedade civil.
4. POLÍTICA NACIONAL JUDICIÁRIA
Depois de estabelecer a definição de política pública, elencar os elementos de uma política pública de âmbito nacional e perceber a diferença entre “Sistema de Justiça”, “jurisdição” e “administração judiciária”, chegou o momento de articularmos uma proposta de política pública nacional para a administração judiciária – justamente por defender a tese de que esta última é um problema político, passível de ser enfrentado por políticas públicas ( Schmidt, 2018, p. 127) e com participação social.
A proposta a ser apresentada não tem o objetivo de ser disruptiva6 , mas o de trabalhar articulada com os instrumentos constitucionais e legislativos em vigor no país, inclusive sem alterar qualquer desenho institucional.
Neste momento também é importante esclarecer que não estamos tratando das “Políticas Judiciárias Nacionais”, implementadas pelo Conselho Nacional de Justiça ( CNJ) que pode ser entendida, nos dizeres do próprio Conselho7 , como
todo ato ou ação instituído pelo CNJ, de caráter contínuo ou de vigência determinada, que impulsione o desenvolvimento pelos órgãos do Poder Judiciário de programas, projetos ou ações voltadas a temáticas que perpassam pelos grandes desafios da justiça brasileira e encontram-se alinhados à Estratégia Nacional do Poder Judiciário , instituída Resolução CNJ nº 325, de 24 de junho de 2020 (grifamos).
Analisando de forma crítica, as políticas implementadas são de extrema relevância (vide, por exemplo, a Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, Resolução nº 254/2018, do CNJ ) , porém, são na verdade um conjunto de ações tomadas individualmente. Não é apenas um jogo de palavras: quando tratamos de “políticas judiciárias nacionais”, estamos abordando as políticas judiciárias de forma individualizada, cada qual com suas particularidades. O que lhe atribui o caráter nacional é a possibilidade de implementação em todo o território brasileiro.
Por outro lado, uma “política nacional judiciária” vai tratar da forma mais ampla possível, abstraindo os casuísmos de cada possível política judiciária a ser implementada para cada um dos problemas políticos a serem enfrentados pelos Tribunais, relativos à administração judiciária.
4.1 Conceito e Objetivo Geral
Uma Política Nacional Judiciária (doravante denominada PNJ) é uma resposta à questão da administração judiciária com a respectiva participação social, ou seja, é de forma concreta um documento que incide no campo da autonomia do Poder Judiciário – seja na esfera administrativa, financeira ou orçamentária. Seu objetivo principal não é cercear a autonomia, mas atuar nos campos jurídicos positivados que lhe dizem respeito. Dito de outra forma, não quer reduzir a autonomia do Poder Judiciário, mas sim permitir uma maior participação social em seus meandros administrativos (como gerencia a máquina pública), financeiros (como, onde e o quanto gasta) e orçamentários (quanto recebe e onde pretende empregar os recursos).
4.2 Pressupostos Constitucionais
Considerando que “pressupostos” são os elementos que não apenas antecedem a própria existência da coisa em si – mas que também lhe garantem a existência – podemos afirmar tranquilamente que a Constituição, ao longo de seu corpo, apresenta-os, possibilitando a implementação da PNJ.
O primeiro deles está contido no artigo 5º da Constituição, no inciso XXXIII e é o direito à informação:
Art. 5º (…)
XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade , ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (grifamos).
O segundo também está previsto no mesmo artigo 5º, porém, no inciso LXXIII e diz respeito não apenas à legitimidade para demandar em juízo, mas parte legítima para fiscalizar os atos lesivos ao Estado (que envolve o próprio Poder Judiciário), em caráter proativo:
Art. 5º (…)
LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência (grifamos).
No entanto, é no artigo 37 da Constituição em que temos um verdadeiro rol de pressupostos, quando abordamos o Poder Judiciário pela perspectiva da administração judiciária.
Aqueles de caráter geral estão previstos no “caput” do art. 37, notadamente quanto à publicidade e à eficiência. Além disso, encontramos o pressuposto da avaliação de políticas públicas no mesmo artigo 37, em seu § 16, que determina também a divulgação da avaliação realizada:
Art. 37 (…)
§ 16. Os órgãos e entidades da administração pública, individual ou conjuntamente, devem realizar avaliação das políticas públicas , inclusive com divulgação do objeto a ser avaliado e dos resultados alcançados, na forma da lei (grifamos).
Na qualidade de prestador de serviço público, encontramos os que, nesse sentido, obrigam o Poder Judiciário:
Art. 37 (…)
§ 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta , regulando especialmente:
I- as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços;
II- o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII. (grifamos)
Ou seja, os pressupostos constitucionais para a implementação de uma Política Nacional Judiciária inúmeros, encontram-se ao longo do texto constitucional e, dentre os que analisamos, podemos resumi-los em:
a) Direito à informação dos órgãos públicos;
b) Anulação de ato lesivo ao patrimônio público;
c) Publicidade da administração pública;
d) Divulgação dos resultados de avaliação das políticas públicas;
e) Participação do usuário, na administração pública direta.
Assim, os pressupostos da política nacional judiciária, permeada pela participação social, está no fato de que a administração judiciária deve prestar informações e a prática de atos lesivos a seu patrimônio podem ser questionados por qualquer cidadão ou cidadã. Além disso, os atos daquela administração devem ser públicos (quando não houver sigilo imposto por lei) e os Tribunais devem divulgar os resultados de políticas públicas que venham a implementar, com a respectiva participação dos usuários. Entenda-se, portanto, as expressões “qualquer cidadão ou cidadã” e “usuários” como sinônimos de “sociedade civil”.
4.3 Condições de Implementação e Elementos
Na Resolução Nº 325, de 29 de junho de 2020, do CNJ, que trata da Estratégia Nacional do Poder Judiciário 2021-2026, foram estabelecidos “macrodesafios do Poder Judiciário” e, dentre eles, destacamos os seguintes macrodesafios e suas respectivas descrições, inseridos em suas perspectivas:
Quadro 3 – Macro-desafios do Poder Judiciário
PERSPECTIVA | MACRO DESAFIO | DESCRIÇÃO |
Sociedade | FORTALECIMENTO DA RELAÇÃO INSTITUCIONAL DO PODER JUDICIÁRIO COM A SOCIEDADE | Refere-se à adoção de estratégias de comunicação e de procedimentos objetivos, ágeis e em linguagem de fácil compreensão, visando à transparência e ao fortalecimento do Poder Judiciário como instituição garantidora dos direitos (…) (grifamos). |
Processos Internos | APERFEIÇOAMENTO DA GESTÃO ADMINISTRATIVA E DA GOVERNANÇA JUDICIÁRIA | Formulação, implantação e monitoramento de estratégias flexíveis e aderentes às especificidades locais, regionais e próprias de cada segmento de justiça do Poder Judiciário, produzidas de forma colaborativa pelos órgãos do Poder Judiciário, magistrados, servidores, pela sociedade e pelos atores do sistema de justiça (…) (grifamos) |
Aprendizagem e Crescimento | APERFEIÇOAMENTO DA GESTÃO ORÇAMENTÁRIA E FINANCEIRA | (…) Envolve estabelecer uma cultura de adequação dos gastos ao atendimento das necessidades prioritárias e essenciais dos órgãos da justiça, para se obter os melhores resultados com os recursos aprovados nos orçamentos (grifamos). |
Fonte: Conselho Nacional de Justiça(2020)
Note-se que os três macrodesafios dizem respeito a:
a) relação institucional com a sociedade;
b) gestão administrativa e
c) gestão orçamentária e financeira.
Analisados em conjunto, constituem a “administração judiciária” e da forma como estão colocados, sintetizam também o problema político da administração judiciária.
Além disso, o CNJ já utilizou interfaces socioestatais, tais como a Consulta Pública a respeito das propostas de Macrodesafios para a Estratégia Nacional do Poder Judiciário 2021-2026 , além dos Encontros Nacionais, previstos na Resolução nº 325 de 29/06/2020, do referido Conselho.
Dessa forma, é evidente que, de forma esparsa, já existe no âmbito do Poder Judiciário o tratamento à administração, às finanças e ao orçamento dos Tribunais – inclusive com participação social. Não é nenhuma novidade.
Porém, é possível avançar no enfrentamento dessa questão, através dos esforços concentrados na PNJ, que pode nortear as ações do Poder Judiciário como um todo. E pensando nos elementos de uma política nacional, vistos anteriormente, podemos estruturar uma proposta de PNJ compreendendo a administração judiciária como problema político de responsabilidade do Poder Judiciário, permeada pela participação popular e que abarca as atividades administrativas, financeiras e orçamentárias dos Tribunais. Seus princípios (o núcleo de toda a PNJ), poderiam ser os seguintes:
a.1) participação e controle social;
a.2) transparência, responsabilização e prestação de contas;
a.3) celeridade e acessibilidade na elaboração, disponibilização e prestação de informações.
Pensando em seus objetivos gerais, teríamos a seguinte configuração:
b.1) promover e consolidar a participação social na administração judiciária nacional, através da adoção de mecanismos participativos nas funções administrativa, financeira e orçamentária dos Tribunais brasileiros;
b.2) aprimorar a relação do Poder Judiciário com a sociedade civil, respeitando a autonomia e a independência garantidas pela Constituição;
b.3) elevar a responsividade do Poder Judiciário;
b.4) elevar a transparência dos gastos, investimentos, orçamentos e prestação de contas dos Tribunais.
Quanto às diretrizes, ou parâmetros das ações a serem realizadas, poderiam ser as seguintes:
c.1) implementação do maior número de instrumentos de participação e controle social previstos nesta Lei;
c.2) paridade representativa, entre a sociedade civil e o Poder Judiciário;
c.3) promoção da cultura de responsabilidade administrativa, financeira e orçamentária do Poder Judiciário;
c.4) utilização de linguagem acessível à população em geral em todas as publicações e comunicações;
c.5) fortalecimento da participação social na administração judiciária.
E, por fim, seus instrumentos de efetivação (ou interfaces socioestatais) estão listados e descritos a seguir:
d.1) Conferência Nacional Judiciária: reunião periódica de debate, de formulação e de avaliação sobre temas específicos da administração judiciária, com a participação do Poder Judiciário e da sociedade civil, que contempla a etapa estadual, para propor diretrizes e ações acerca do tema tratado;
d.2) Conferência Estadual Judiciária: reunião periódica de debate, de formulação e de avaliação sobre temas específicos da administração judiciária, com a participação do Poder Judiciário e da sociedade civil, para propor diretrizes e ações acerca do tema tratado;
d.3) Consulta Pública Administrativa, Financeira e Orçamentária: instrumento de caráter consultivo, aberto a qualquer interessado, que visa a receber contribuições por escrito da sociedade civil sobre determinado assunto da administração judiciária, na forma definida no seu ato de convocação, com registro das contribuições e deliberações no Portal da Transparência Administrativa, Financeira e Orçamentária.
d.4) Portal da Transparência Administrativa, Financeira e Orçamentária: sítio eletrônico, no qual constam atualizados – em tempo real – todas as obras em andamento, bem como todos os gastos, investimentos e orçamentos realizados pelos Tribunais. O portal deverá manter todas as informações produzidas pelo período mínimo de cinco anos.
d.5) Prestação de Contas Anual: relatório anual, publicado pelos Tribunais em sítio eletrônico próprio, com a descrição de todas as obras e ações administrativas desenvolvidas, bem como de todos os gastos, investimentos e orçamentos realizados, em linguagem simples e acessível à sociedade civil em geral;
d.6) Grau de Satisfação dos(as) Jurisdicionados(as): pesquisa anual realizada pelos Tribunais, na qual – a partir de perguntas fechadas – a sociedade civil pode exprimir a satisfação com a administração da respectiva Corte. As pesquisas deverão permanecer registradas e de acesso público no Portal da Transparência Administrativa, Financeira e Orçamentária do Tribunal pelo prazo mínimo de cinco anos.
Cumpre destacar que os instrumentos de efetivação devem ser estruturados, implementados e monitorados pelo Conselho Nacional de Justiça, a partir do documento final de cada Conferência Nacional Judiciária.
A forma de institucionalização da PNJ é a de lei ordinária, com início de seu processo legislativo na Câmara dos Deputados. Publicada como lei, não está suscetível à vulnerabilidade inerente a atos normativos tais como decretos, portarias ou congêneres. Vincularia, então, a administração judiciária de todos os Tribunais brasileiros a uma norma de caráter cogente.
Sua regulamentação, com o detalhamento do Plano, é de responsabilidade do Conselho Nacional de Justiça, através da edição de Resolução específica. Se necessário for, em caráter complementar, o Conselho poderá elaborar outros instrumentos, tais como orientações e instruções, por exemplo.
CONCLUSÕES
O conjunto de atividades de administração, finanças e orçamento dos Tribunais (administração judiciária) é um problema político e, como tal, passível de ser objeto de uma política nacional que os enfrente de maneira uniforme, marcada pela participação social.
Não desconhecemos as dificuldades existentes para a permeabilidade do Poder Judiciário brasileiro à participação social, bastando lembrar de todo o debate – que durou mais de uma década – a respeito de uma reforma e da própria criação e instalação do Conselho Nacional de Justiça.
A proposta que apresentamos não é disruptiva e não traz em seu bojo qualquer necessidade reformista: ela pode ser implementada a partir da estrutura normativa e concreta existente. Basta apenas um projeto de lei que siga as diretrizes aqui traçadas, enfrentando – enquanto política pública nacional – o problema político da administração judiciária.
Entretanto, poderíamos ampliar de forma ainda mais abrangente a participação social na política de administração judiciária, a partir da alteração do desenho institucional do Conselho Nacional de Justiça, contemplando a alteração, por exemplo, de sua composição – com o aumento do número de Conselheiros(as) oriundos(as) da sociedade civil sem vínculo com o mundo jurídico.
Nesse sentido, haveria impacto direto na PNJ, uma vez que estaria sob a tutela de um grupo social, em princípio, heterogêneo e não necessariamente vinculados ao Direito. Contabilidade, Administração, História, Antropologia, Sociologia – ou mesmo ciências exatas e biológicas – poderiam compor o mosaico de constituição dos quadros do CNJ.
Note-se que, para tanto, haveria a necessidade de alteração a partir de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que demandaria um esforço e mobilização político-legislativo muito maior do que a implementação da PNJ através de projeto de lei ordinária.
Por outro lado, além da administração judiciária, o sistema de justiça e a própria jurisdição (atividade-fim do Poder Judiciário) também são categorias com seus respectivos problemas políticos. Dessa forma, poderíamos pensar também em uma “política nacional do sistema de justiça” e em outra, que poderia ser denominada “política nacional do exercício da jurisdição”.
Ampliando ainda mais a percepção dos problemas políticos, não é difícil percebê-los como faces distintas de uma mesma questão, que poderíamos denominar de “justiça”. Dito de outra forma, a “Justiça” poderia ser encarada não apenas como atividade e encarnação nos Tribunais, mas a soma de toda a estrutura e articulação estatal interligada ao Poder Judiciário.
Analisando dessa forma, concluímos também pela possibilidade de uma “Política Nacional de Justiça”, que enfrentaria conjuntamente cada um dos problemas políticos: sistema de justiça, jurisdição e administração judiciária.
2O debate trazido por Sandel (2011, p. 28) apresenta a “justiça” como qualidade de uma sociedade (“sociedade justa”), a partir da distribuição dos bens que valoriza, dando a cada um o que lhe é devido – pensando a “justiça” em três diferentes sentidos, ou seja, a partir da maximização do bem-estar, do respeito à liberdade ou do cultivo à virtude. Nossa compreensão, aqui, é mais simples e correlaciona a palavra “justiça” tão somente ao Poder Judiciário.
3Não desconhecemos a classificação apresentada por Zaffaroni (1995, p. 55), na qual afirma que as funções contemporâneas assinaladas aos tribunais são: decisão de conflitos, controle de constitucionalidade e autogoverno). Porém, para fins deste estudo, aglutinamos a decisão de conflitos e o controle de constitucionalidade no exercício da jurisdição, mantivemos o autogoverno e ampliamos a percepção do Poder Judiciário para além de si mesmo – como elemento de um sistema que envolve diversos atores constitucionalmente reconhecidos.
4“Não há juiz sem autor”, conforme explicado em seguida pelo Prof. José Afonso da Silva.
5Para o referido autor, a expressão “crise jurídica” substitui o “conflito de interesses”, pois nem sempre a solução do Estado será para um conflito entre as partes.
6Não tem o objetivo de propor uma ruptura com o modelo atual de desenho institucional, seja do Poder Judiciário ou, mais especificamente, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – responsável, como ver-se-á adiante, pela implementação e regulamentação da Política Nacional Judiciária.
7CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Painel de Políticas Judiciárias Nacionais. Disponível em <https://www.cnj.jus.br/gestao-da-justica/politicas-judiciarias-nacionais-programaticas/painel-de-politicas-judici arias-nacionais/> Acesso em 04 de dez. de 2023.
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1Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.