REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8349321
Monica Galhardo Ribeiro1
INTRODUÇÃO
O propósito deste artigo é a análise de alguns aspectos relacionados à violência, dentro da obra Enterre seus mortos, cuja representação se dá por meio de ações e de objetos poéticos presentes na narrativa da escritora contemporânea Ana Paula Maia. Nesse contexto, a exposição iniciará com a abordagem de fatos relevantes que definem a obra, bem como o cenário em que os personagens principais estão inseridos. Em sequência, as condições existenciais e psicológicas também serão exploradas, na busca da investigação dos princípios enraizados nos personagens e em seus comportamentos. Por fim, tratar-se-á do conceito de banalidade do mal e da exploração da violência na literatura brasileira.
Estilística e intertextualidade
Em uma leitura atenta da obra Enterre seus mortos, de Ana Paula Maia, há uma aparente permissão que nos transporta a várias análises, e, em uma delas, percebe-se a restrita a exploração do universo do suspense, que, por conseguinte, remete o leitor ao campo da reflexão filosófica, bem como a impressão de que a estilística do escritor norte-americano Edgard Alan Poe, teria, de certa forma, sido sua fonte inspiradora, somada à ousadia de Franz Kafka.
A obra nos é apresentada como uma espécie de novela, quase, senão de cunho policial, visceral e beirando o horror. Contudo, o que prevalece, de fato, é o romance filosófico, o qual, a todo o tempo, chama o leitor para validar nosso inconsciente, frente ao emaranhado existencialista, dentro do contexto em que se passam as cenas, valorando ou não nossa moral, nossa ética e nosso padrão de vida humana, contrapondo o escritor português Fernando Pessoa, quando, em sua célebre frase, diz que “[…] somos apenas cadáveres adiados”. Seguramente, Ana Paula Maia vai além disso.
O cenário faz justiça a essa ideia de intertextualidade com Poe e, talvez, quem sabe, não seja só uma mera coincidência termos um personagem Edgar. Certo é que a escritora organiza suas ideias e estilística fundamentadas em narrativas impregnadas de violência, de ambientes escatológicos, sujos e marginalizados, além da construção de personagens grotescos e, em alguns casos, pouco dotados de raciocínio lógico.
Subserviência social
Vale lembrar que a rotina pacata, aliás muito pacata, de Edgar Wilson é quebrada, quando um fato inusitado nos chama a atenção – o episódio em que ele se depara com o corpo de uma mulher enforcada, dentro da mata, passivo às intempéries e à ocasião. Dessa forma, mesmo acostumado com todo o tipo de morbidez, uma vez que ele trabalha no órgão responsável por recolher animais mortos, em estradas, e levá-los para um depósito, onde são triturados em um grande moedor, Edgar não aceita a ideia de abandono do corpo pela incompetência e pela estrutura da polícia, bem como por saber que, no fim, será devorado por abutres. Wilson resolve, assim, ser interpassivo e remove o cadáver, clandestinamente, e o acomoda em um velho frízer, à espera de um policial que, ao chegar, nada pode fazer, diante daquela situação, já vez que o sistema o impede de tomar qualquer atitude que pudesse movê-lo do local.
Pertinentemente a isso, podemos inferir a interpassividade, em Zizek, o qual explana que, na ânsia de tomarmos uma providência, suma agir, colocamo-nos, cada vez mais, inertes, frente às exigências e às necessidades do outro. “Isso nos leva à noção de falsa atividade: as pessoas não agem somente para mudar alguma coisa, elas podem também agir para impedir que alguma coisa aconteça, de modo que nada venha a mudar” (Zizek, 2010, p. 36).
No fragmento em que Edgar Wilson se solidariza com a mulher enforcada e exposta à mercê da natureza, em especial, servindo de presa para abutres, é possível relacionar que o simples homem “executador” de tarefas, bem como a estão inseridos no sistema gerador de injustiças, de mazelas sociais e de sujeitos que vivem com pouco, brutos e invisíveis a esse sistema – seja pela banalidade do horrendo, seja pela injustiça ou contexto social em que a situação é composta. Fatores idênticos aos vividos pelos judeus, na Segunda Guerra Mundial, que resultaram em uma violência jamais vista na humanidade, principalmente pelo seu modus operandi.
Em sua tentativa de devolvê-los ao curso da normalidade, palavra fugidia no universo que Ana Paula Maia constrói magistralmente, os dois removedores de animais mortos conhecerão o insalubre destino de seus semelhantes. Com uma linguagem seca, que mimetiza as estradas pelas quais o romance se desenrola, a autora faz brotar questões existenciais de difícil resolução1.
“Há uma forma ainda mais fundamental de violência que pertence à linguagem, enquanto tal, à imposição a que a linguagem procede de um certo universo de sentido” (Zizek, 2009, p. 10).
Wilson não está sozinho. Há ao seu lado um colega de profissão, Tomás, um ex-padre, excomungado pela Igreja Católica, que distribui extrema unção aos moribundos vítimas de acidentes fatais que cruzam seu caminho. Ambos acabam por se habituar à brutalidade. Wilson e Tomás já não se abalam, diante das mortes, visto que conhecem a linha fronteiriça, pela qual todos os dias transitam, a linha entre o homem e o animal e entre o bem e o mal. Dessa forma, enquanto Tomás se empenha em salvar a alma, Edgar se preocupa com a carcaça daqueles que passam por sua estrada. Por isso, os dois decidem dar um fim digno àqueles infelizes cadáveres – simbolismos paradoxais marcados pela confluência e pelo distanciamento requeridos pelos significados e significantes em que estão caricaturalmente inseridos.
Nas caricaturas condensou-se toda uma torrente de humilhações e de frustrações. Esta condensação, devemos tê-lo presente, é um fato fundamental da linguagem, da construção e imposição de um certo campo simbólico (Zizek, 2009, p. 59).
É interessante observar que encontramos um Edgar Wilson mais maduro e, principalmente, mais reflexivo. Em vez do homem bruto, marcado pela força e violência de suas ações, agora, ele é responsável justamente por eliminar os rastros da violência. É possível perceber, ainda, uma preocupação maior do personagem, em fazer ao que lhe parece certo, mesmo que, nem sempre, seja claro qual é o caminho correto a ser seguido.
Há uma divisão nítida das classes em que os personagens estão inseridos, bem como a tendência naturalizante de suas ações, são estados de verdade que estigmatizam a violência. Segundo Mauro Iasi, é preciso:
Identificar como expressamos em nossa consciência social essas contradições, de que forma constituímos nossa relação com o Real através do encadeamento de significantes, valores, ideias, juízos que, ao conformar uma determinada visão de mundo, de certa maneira, constituem aquilo que chamamos de Real. (Iasi, 2014, p. 184)
A brutalidade, morte e o [des]prezar humano
O poder de inventabilidade da escritora parece só não ser maior que a “brutalização” contida em Edgar, porém, na mesma proporção, o personagem mostra-se respeitoso à vida, uma congruência quase paradoxal para alguém colocado às margens do sistema.
Tomás tem esse poder confortador diante da morte, diante das piores notícias, e sabe disso. Não é um homem santo de paróquia, mas um homem de dores, um santo das estradas, disponível para Deus e para os homens, servindo da maneira que melhor sabe: vivendo no encalço da morte. (p. 88)
Outra observação que se faz necessária, relembrando a ideia da bruta normalidade em que a morte é encarada na obra, é o aspecto da banalidade do mal e das ações escatológicas. As mortes são tratadas como fato e, em determinado momento, tomado pela sequência, nada parece assustar ou indignar os personagens, Edgar e Tomás, o qual, como ex-padre, propositalmente ou não, leva o mesmo nome do filósofo metafísico católico Tomás de Aquino.
Se abordarmos as formalidades que envolvem o tratamento derradeiro da morte e da violência, seja com os animais ou com as pessoas, podemos averiguar que os animais parecem ter um tratamento mais digno e humano que propriamente os seres humanos, a exemplo, Wilson é compassivo com seu dever moral e tem responsabilidade com os mortos, sem distingui-los, portanto.
Tal análise cabe na multiplicidade de interpretações possíveis, ou seja: a) todos estão em um mesmo patamar, na condição de que não há distinção entre os seres humanos e animais; b) os animais podem ser humanizados, em seu tratamento, e, por conseguinte, cabe a eles o emprego da dignidade e da moral, tanto quanto os humanos, ou c) os humanos desceram ao patamar dos animais, portanto, não necessitam de tratamento que privilegie sua moral e dignidade, na condição pós-morte. Fato é que, ao considerarmos o estilo de Maia, em outras palavras, o tom seco, cru e, ao mesmo tempo, conciso, a obra Enterre seus mortos, faz o leitor refletir sobre a ideia de que, em diversos momentos da vida, o homem parece muito pior que os animais.
Há uma urgência no humano em definir-se não apenas diferente do animal não-humano, mas inteiramente diferente dele, inclusive emocionalmente. As distinções não são neutras, apenas diferenças características, mas baseadas nelas que os grupos dominantes pretendem justificar o seu poder. O machismo aproveitou, durante muito tempo, do argumento das diferenças naturais para justificar a inferioridade feminina; o nazismo também tentava se pautar “cientificamente” nas pseudodiferenças entre arianos e outros, para eliminar esses “outros”. “A ilusão das diferenças se mantêm em razão do medo de que, ao ver similaridade, uma obrigação será criada para se conceder respeito e talvez mesmo igualdade.”2(MASSON, 2001, p. 273)
O contraponto é que Edgar Wilson e Tomás são adeptos ao respeito à vida, portanto, no contexto visceral em que passa o enredo, ambos representam a esperança, o fato de que “nem tudo está perdido”. “É meio filho de Deus, meio filho da puta, assim como a maioria de nós.” (p. 21). Contudo, as autoridades competentes, seja a polícia, seja o poder público, o rabecão, que recolhe os defuntos, entre outros, apresentam-se insensíveis aos problemas e à condição humana dada aos mortos. Pertinentemente, vale citar Arendt, “Conservar a autoridade requer respeito pela pessoa ou pelo cargo. O maior inimigo da autoridade é, portanto, o desprezo e o mais seguro meio para miná-la é a risada” (ARENDT, 2009, p.62).
A banalidade do mal
Outro fator presente na obra, ora intrínseco, ora extrínseco, parece ser o mal, porém, para defini-lo, dentro desse emaranhado de perspectivas, precisamos contextualizá-lo.
Edgar e Wilson necessitam dirigir, por longas estradas desertas, raspar a carniça do asfalto, jogá-la na caçamba de uma caminhonete e levá-la para um galpão onde os corpos são triturados. A repetição do ato brutal, sórdido e nada convencional gera o “não pensar”, que, por sua vez, institui uma certa ignorância da ação, instaurando-se, então, uma certa normalidade nas ações e na prática. Assim, funciona a banalidade do mal, que se instaura, ao encontrar o espaço institucional, criado pelo não pensar. Arendt, em uma de suas obras sobre a questão do mal, quando tratava de sua origem, não via alguém perverso ou doentio, sequer alguém antissemita ou raivoso, mas tão somente alguém que cumpre ordens, incapaz de pensar no que realmente fazia, mantendo o foco somente no cumprimento de ordens3.
Vale lembrar que um dos conceitos mais relevantes do pensamento filosófico de Hannah Arendt é exatamente a “banalidade do mal”. Já o alemão, também filósofo Kant, não só retrata a questão do mal, em sua obra, como também reflete sobre o conceito de “mal radical”. O mal radical não é assim chamado por ser intenso, mas por estar enraizado em quem o pratica (a palavra radical deriva do termo em latim radix, que significa raiz). É, portanto, aquele que, além de estar preso à pessoa, fundamenta-se no ódio.
A banalidade do mal, na filosofia de Arendt, é, em outras palavras, “a mediocridade do não pensar, e não exatamente o desejo ou a premeditação do mal, personificado e alinhado ao sujeito demente ou demoníaco” – pensamento que vai ao encontro do texto de Maia, Enterre seus mortos. Nesse contexto, vimos Edgar, que está acostumado a “dar um fim” nos cadáveres de animais mortos, com poucos traços aparentes de sua personalidade, entrar em confronto, dia após dia, com a questão da mortalidade, e, por si só, já há uma relação de banalidade aparente. Ele é justamente o responsável em eliminar os rastros dos animais mortos. Não é difícil, ainda, perceber sua preocupação em fazer a coisa certa, “mesmo que nem sempre seja claro qual é o caminho correto a ser seguido”. Ele não só está em volta da violência, mas também visualiza todo o processo do que a gera – isso não só inclui o atropelamento dos animais, com suas tripas e vísceras jogadas ao asfalto, ou o descuido de quem os “matou”, mas conta, inclusive, com o desprezo e com a banalização dos que ficam indiferentes a isso, assim como os policiais frente ao problema da enforcada.
Interessante é a realidade com que a ficção é transferida para a literatura pela autora. Com a magnificência que lhe é peculiar, Maia consegue transpassar para seu texto toda essa possibilidade do real.
Há quem afirme que o conjunto da literatura brasileira atualmente exige novos modelos de análise, capazes de estimular novas leituras e interpretações, uma vez que a tendência à exacerbação da violência e da crueldade, com a descrição minuciosa de atrocidades, sevícias e escatologia, vem pontuando cada vez mais tanto narrativas literárias quanto às audiovisuais, do cinema ou da televisão. Como se a dramatização do princípio da violência passasse a ser diretriz principal da organização formal, com seu caráter inarredável e obsceno, subsumindo tempos e espaços, personagens e situações. (PELLEGRINI, 2008, p. 41)
Em síntese, Enterre seus mortos, de Ana Paula Maia, adentra as qualidades estéticas e literárias dos romances de suspense –, para tanto, a autora procura conduzir o leitor aos valores humanos, éticos e morais. No entanto, sua obra carrega o conteúdo violento tão capaz de afligir a vida contemporânea cultural e social brasileira.
Segundo Ginzburg:
Compreendendo a literatura como produção constituída historicamente, e não como objeto fechado em si mesmo, podemos formular a hipótese de que a enorme carga de violência que caracteriza a história brasileira tenha implicações nas obras literárias (GINZBURG, 2012, p. 134).
Ana parece chamar a atenção para aqueles que praticam o mal banal, buscando a clemência psicológica de Edgar Wilson, uma vez que a ação do mal não se fundamenta em si mesma, pelo menos, em tese. Vimos, a exemplo da filosofia de Hanna Arendt, que a banalização do mal pode não ser só praticada por razão de crença e de princípios enraizados, mas por motivos outros, fora da ação.
Conclusão
Em Enterre seus mortos, Ana Paula Maia, já reconhecida pela qualidade literária e estética de sua obra, insere personagens que são pessoas comuns, entregues à própria sorte, em um contexto de precariedades, vulnerabilidade e a múltiplos perigos. A autora, assim, expõe um tema que faz parte de nosso cotidiano, mas que, muitas vezes, ignoramos: a condição dos rejeitados, desamparados pelos poderes públicos, pela lei e pela sociedade de que são parte. Resta a eles seguirem regras próprias para sobreviverem em um ambiente hostil e desolador. Fato é que ninguém se importa, a banalidade do mal e as consequências que imperam sobre os mortos e os sondam não são relevantes, mas um infortúnio que, como consequência, gera o desprezo.
O protagonista, Edgar, está em meio a uma rotina que se restringe a dirigir por longas estradas desertas, retirar, por meio de raspagem, toda a carniça encontrada nos asfaltos, aglomera-la na caçamba de sua caminhonete e levá-la para um galpão, onde os corpos, ou o que compreende como, são triturados.
Contudo, surge uma chama de lucidez na tratativa sentimental de Edgar Wilson, que se comove e procura, com essa comoção, dar uma gota de dignidade ao morto, cujo destino seria a putrefação e a dilaceração pelos abutres. Wilson é um homem bruto, compreensível por suas experiências de vida, porém isso não o impede de um momento de compaixão. “Diante dos mortos, seja humano, seja animal, ele não se mantém insensível”.
A obra gera grande angústia no leitor, típico do éthos autoral em que Ana Paula Maia parece passar como credibilidade – fato que, seguramente, a coloca no rol dos literários contemporâneos de grande relevância qualitativa. Certo é que, de forma despretensiosa, a autora de Enterre seus mortos procurou trabalhar a consciência e a existência em um mundo lúcido, cujos percalços são ignorados de forma litigiosa e controversa.
1Extraído do site: https://www.companhiadasletras.com.br/livro/9788535930672/enterre-seus-mortos em 02/11/2022, às 13h37.
2Citado no livro Quando os elefantes choram (2001;278).
3Extraído do site da UFG: https://www.medialab.ufg.br/n/111072-a-banalidade-do-mal em 05/11/2022.
BIBLIOGRAFIA
ARENDT. Hanna. Sobre a violência. Trad. André de Macedo Duarte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009
IASI, M. Posfácio: Violência, está velha parteira: Um samba-enredo. In S. Zizek (Org.), Violência: Seis reflexões laterais (pp. 171-189). São Paulo: Boitempo, 2014.
GINZBURG, Jaime. Apresentação. In: ______. Crítica em tempos de violência. São Paulo: Edusp e FAPESP, 2012. p. 13-18.
MAIA, Ana Paula, Enterrem seus mortos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
PELLEGRINI, Tânia. As vozes da violência na cultura brasileira contemporânea. Crítica marxista, 2005. 2005. Disponível em: . Acesso em: 18 mar. 2012
MASSON, Jeffrey Moussaieff; MCCARTHY, Susan. Quando os elefantes choram: a vida emocional dos animais. São Paulo: Geração editorial, 2001
ZIZEK, S. Violência. Lisboa: Relógio D’água, 2009.
_____, S. O sujeito interpassivo: Lacan girar numa roda de orações. In S. Zizek (Org.), Como ler Lacan (pp. 33-52). Rio de Janeiro: Zahar, 2010.