UMA ANÁLISE SOBRE GRUPOS ARMADOS E POLÍTICAS DE MORTE NO ESPÍRITO SANTO

REGISTRO DOI:10.69849/revistaft/th102501021309


Luizane Guedes Mateus


RESUMO:

A problemática de que trata este artigo refere-se há uma breve análise acerca da formação e atuação de redes criminosas no estado do Espírito Santo. Apontados como responsáveis pela violência nos territórios considerados vulnerabilizados da cidade, a atuação desses grupos tem provocado novas formas de sociabilidade entre moradores do referido estado, assim como incitado à necessidade de revisão de todo o aparato de políticas públicas, especialmente no que tange à segurança pública. A partir de pesquisas realizadas junto às comunidades deixadas mais vulneráveis a estas facções pelo próprio poder público, busca-se analisar a emergência desses grupos, assim como sua atuação tem construído uma nova modalidade de sujeição e extermínio de jovens, em sua maioria negros.

Palavras chave: território, violência; crime organizado

SUMMARY: The issue addressed in this article relates to a brief analysis of the formation and operational dynamics of criminal networks in the federal state of Espírito Santo (Brazil). The activities of these groups, identified as responsible for the violence in areas deemed vulnerable within the cities, have induced new forms of social interaction among residents of the mentioned federal state, as well as instigated the necessity to review the entire public policy apparatus, particularly in relation to those concerning public safety. Conducted within communities most exposed to these factions and which are often neglected by the public authorities themselves, this study would like to analyze the emergence of these groups, as well as how their actions have constructed a new modality of subjugation and extermination of young people, the majority of whom are black.

Keywords: territory.violence; organized crime

10 de outubro de 2022 – mal se conseguia ver as luzes do início de noite da cidade; elas estavam cobertas em quase todo o horizonte pelas nuvens cinzas e intensas da chuva de primavera, que tomava conta da cidade de Vitória/ES. A escuridão não era completa, à direita ainda havia um final de luminosidade do sol bem longe, mas ainda visível. Foi nesse instante que a primeira chama apareceu e o primeiro ônibus foi incendiado. Em menos de vinte e quatro horas outros dez ônibus e um veículo de uma emissora de TV foram queimados, um outro ônibus sumariamente metralhado – todos na Região Metropolitana da Grande Vitória[1].

A sequência de ações criminosas se iniciou supostamente com a morte de J.C.C., 26 anos, apontado pelas forças policiais como uma das lideranças da faccção tida como maior e mais articulada do estado, o PCV – Primeiro Comando de Vitória. Em uma ação organizada, em menos de vinte e quatro horas o conjunto de cidades parecia estar em uma guerra, com pessoas amedrontadas em suas casas, escalas especiais de trabalho para os serviços essenciais, frotas de coletivos retiradas de determinados bairros, ditos mais violentos. No centro de todo o caos instaurado, uma questão bem definida – a ação de grupos criminosos em represália à morte de uma liderança.

Quem são as personagens dessas histórias? Como estas redes se constituem e quais os efeitos de suas ações? Elas têm laços históricos de formação e atuação?! Por onde começar, se são tantas as histórias que atravessam a vida de quem coabita diariamente com as múltiplas violências, que se constituem historicamente a partir de grupos como a Scuderie Detetive Le Cocq – décadas de 1970 à 2000, e atualmente com as chamadas “franquias” de grupos criminosos. Estes serão os fios condutores e as indagações que buscamos analisar nessa escrita.

Este artigo visa discutir a emergência histórica e a atuação de grupos armados no Estado do Espírito Santo, assim como o efeito de atravessamentos dessa construção com a violência nas periferias das cidades da Região Metropolitana da Grande Vitória. Optamos assim, por contar histórias, as quais remontam a emergência e atuação dessas redes criminosas, trazendo ora articulações e configurações de um passado não tão distante, quando algumas organizações exerciam poder de vida e morte no Espírito Santo, ora emergindo nas articulações atuais, onde ramificações de facções já conhecidas no cenário nacional parecem conectar o Espírito Santo à rota transcontinental de tráfico de drogas e armas.

 Para esta escrita utilizaremos como base de análise resultados de um trabalho de pesquisas realizadas ao longo de dez anos, sobre a atuação de grupos de extermínio e facções criminosas no Estado do Espírito Santo. Foi realizada uma extensa pesquisa bibliográfica em arquivos de três jornais de grande circulação que, durante as últimas décadas, retrataram as configurações e reconfigurações do chamado crime organizado, desde a emergência do Esquadrão da Morte, perpassando a constituição e fortalecimento da Scuderie Detetive Le Cocq, até os dias atuais, com a formação das chamadas facções criminosas. Realizamos ainda um trabalho de campo, em conjunto com atividades de ensino, pesquisa e extensão ligados ao Departamento de Psicologia e ao Programa de Pós Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo, durante o período de 2018 a 2021, com comunidades historicamente assoladas por conflitos territoriais entre grupos criminosos; esse percurso nos possibilitou a escuta de moradores locais, mães e familiares de vítimas de violência, lideranças comunitárias, além da observação in loco das implicações desses conflitos para a constituição da vida social dessas comunidades. 

Comunidades para as quais são destinadas apenas a segurança pública como forma de aproximação e “pseudo garantia de direitos”, militarizando seu cotidiano e mantendo-se a precariedade da vida; vida que passa a valer tão pouco que só será lembrada nas páginas policiais, quando a espetacular cobertura midiática acerca da formação e estruturação das ditas facções criminosas se torna rentável e facilmente utilizada para operações policiais, invasões de residências, extermínio de uma parcela muito específica da população – classe, raça e gênero são bem delimitados quando os “autos de resistência” são lavrados.

 Nesse sentido, para pensarmos a constituição dos grupos armados no estado do Espírito Santo, precisamos traçar um panorama da constituição histórica das organizações criminosas com atuação desde as décadas de 1960 até os dias atuais, uma vez que desconfiamos de padrões de continuidade, atualização e reatualização dessas redes. Nesse sentido, iniciamos essa construção histórica a partir da emergência do Esquadrão da morte no estado pesquisado.

Redes criminosas: configurações históricas

Dia 15 de agosto de 1969, as manchetes dos jornais anunciam a descoberta de um cemitério clandestino na localidade de Barra do Jucu, distante de Vitória cerca de 22 quilômetros. Os matadores enterravam duas ou três pessoas em cada cova. Os buracos tinham pouco mais de meio metro de profundidade de areia. Algumas covas eram contíguas. A estrada da Barra do Jucu não tinha asfalto no ano de 1969. A passagem de carros erguia uma nuvem de poeira no trecho de barro batido. A vegetação das margens adquiria uma tonalidade avermelhada, opaca, quando o tráfego era intenso no verão. À beira da estrada, uma vereda conduzia ao leito seco do rio Jucu. A folhagem ocultava uma clareira no interior do matagal. Ali os carrascos sepultaram quase uma dezena de vítimas. Os corpos em estado de putrefação intumesciam o chão. A exalação dos gases empesteou a atmosfera (GUIMARÃES, 1978).

Latrocínios, assassinatos, desaparecimento de cadáveres,  espancamentos  e  tortura de presos, furto e tráfico de armas de uso exclusivo das Forças Armadas, tráfico de drogas, liberação de internos  dos presídios, desvio de carros roubados já apreendidos pelas forças policiais, adulteração de motores, falsificação de documentos, corrupção. Estaríamos falando das atuais denúncias realizadas contra grupos criminosos no Espírito Santo? Definitivamente não. Estes e uma lista infindável de outros crimes são atribuídos ao Esquadrão da Morte no Espírito Santo, não na atualidade, mas no ano  de 1969 (GUIMARÃES, 1978).

Esta é a primeira parada nas construções históricas que forjaram  a existência dos grupos criminosos constituídos no Espírito Santo: a emergência do esquadrão da morte e da Scuderie Detetive Le Cocq. Nesse sentido, para entendermos a emergência dessas redes em solo capixaba, buscamos entender como começaram a se articular em estados como São Paulo e Rio de Janeiro, onde primeiro tiveram visibilidade os chamados “Esquadrões da Morte”.

Em São Paulo, segundo Bicudo (1976), os primeiros casos começaram a emergir em fins de 1968, porém ainda sem a designação de “Esquadrão da Morte”. Foi através de ampla investigação, iniciada em 1969 por parte da Procuradoria da Justiça que o funcionamento do chamado Esquadrão da Morte começou a ser entendido e cartografado.

No que se refere ao Rio de Janeiro, de acordo com Coimbra (2001) desde  1958,  havia se organizado o que ficaria conhecido nos anos 60 e 70  como “Esquadrão da Morte”. Sob o comando do detetive Mariel Moryscötte de Mattos, esse grupo eliminava supostos bandidos comuns, sendo composto, em geral, por políticos, membros do Poder Judiciário, policiais civis e militares e sendo  mantido,  via  de regra, por grupos de empresários. Mais tarde esse grupo ficou conhecido na figura da “Scuderie Detetive Le Cocq”,  nome escolhido em homenagem ao detetive Milton Le Cocq, que havia sido morto em uma troca de tiros com um assaltante de pontos de jogos de bicho.

No Espírito Santo esse grupo, primeiramente chamado “Esquadrão da Morte”, foi responsabilizado, nas décadas de 1960 e 1970, pela execução sumária de centenas de pessoas – presos da justiça, pessoas “não identificadas”, assim como desafetos políticos do cenário capixaba. Os assassinos cumpriam um ritual bastante conhecido entre os policiais civis e militares do estado – a pessoa era arrancada do local onde se encontrava, era presa de forma ilegal, para em seguida ser encaminhada ao seu destino final, o cemitério clandestino da Barra do Jucu, na cidade de Vila Velha – lá era espancada, seviciada e obrigada a cavar sua própria cova para em seguida ser decapitada, e posteriormente enterrada no cemitério clandestino chamado pelos policiais pelo codinome de “jardim”. Foi constatado também que muitos cadáveres foram arremeçados na baía de Vitória, capital do Espírito Santo. Esse foi o ponto inicial das primeiras investigações e descobertas acerca da atuação de redes criminosas no estado, em 1969.

Com a morte de Le Cocq, em 1964, seus comandados criaram um grupo para-policial chamado “Scuderie Le Cocq”, em sua homenagem, e não escondem de ninguém que seu objetivo é matar “bandidos”: bandido bom é bandido morto”, disse à imprensa um de seus integrantes, que anos depois seguirá carreira política no Rio utilizando essa frase em sua campanha eleitoral. A partir de então, cadáveres passam a ser encontrados em lugares ermos da cidade, com vários tiros e um cartaz onde se lê frases como “Menos um ladrão na cidade – assinado: E.M.”. Essa expressão passará a ser repetidamente utilizada por outros grupos de matadores, que começam a surgir na cidade com nomes como “Rosa Vermelha”, “Mão Branca” etc. (MISSE, 2008)

Enquanto em terras capixabas corpos eram enterrados em covas rasas, no Rio de Janeiro a Scuderie Le Cocq era constituída com o objetivo de uma suposta “repressão” ao crime. O grupo era liderado pelos chamados “Doze Homens de Ouro”, policiais escolhidos na força de elite da polícia do Rio de Janeiro, para “limpar” a cidade. Era composto por agentes do Estado, treinados para eliminar aqueles considerados os piores bandidos da época.

Não tardará e o Espírito Santo constituirá seu próprio formato da Scuderie. Constam em dois extensos relatórios da Polícia Civil, escritos pelo delegado Francisco Badenes Júnior e adicionados às investigações sobre a Scuderie pela Assembléia Legislativa do Espírito Santo, que inúmeros envolvidos eram policiais, jornalistas, magistrados, promotores e políticos. Verificaram-se, nestes documentos, que a Scuderie tinha um  tribunal  próprio, para aplicar “medidas punitivas”, tanto em seus associados quando em “criminosos”. Possuía, ainda, um organograma que detalhava os métodos da organização paramilitar, onde prevalecia uma hierarquia bem detalhada, assim como a contabilidade relacionada ao tráfico de armas e drogas, que entre as décadas de 1970 e 2000 eram controlados com mão de ferro pela organização criminosa, em todo o estado do Espírito Santo.

Para compreendermos a força de morte da Scuderie, importa dizer que, em meados de 1991 iniciou-se uma investigação, no Município de Vitória, acerca de execuções sumárias de mais de 40 meninos e meninas em situação de rua. Os cadáveres de crianças entre 10 e 14 anos eram expostos nas principais vias de acesso da capital. As execuções eram justificadas por estes meninos e meninas atrapalharem a organização do tráfico.

Uma série de homicídios cometidos no Espírito Santo, no início da década de 1990, está intimamente relacionada à ação da Scuderie Le Cocq. De acordo com o relatório da Human Rights Wacht, no Estado do Espírito Santo, o movimento local de meninos e meninas de rua registrou um número de pelo menos quarenta, dentre crianças e adolescentes, assassinados no Estado desde 1992 – 34 dessas mortes somente no ano de 1993 (PENGLASE, 1994).

Invertendo a lógica criminal, os assassinos faziam questão de mostrar os corpos dos assassinados. Essas mortes tornavam-se mais freqüentes nos momentos em que a associação de policiais promovia greves. Com o aprofundamento das investigações, descobriu-se que os suspeitos dos crimes eram policiais e tinham algo em comum: todos eram associados à Scuderie Detetive Le Cocq.

O rastro de assassinatos que a Scuderie Le Cocq deixou no Espírito Santo também atingiu nomes de grande relevância no estados, como o padre italiano Gabriel Maire, a jornalista Maria Nilce  Magalhães, o prefeito do Município da Serra, José Maria Feu Rosa, e os magistrados Marcelo Denadai, Carlos Batista e Alexandre Martins Filho, todos crimes de grande repercussão nacional e internacional.

É uma organização ultra-conservadora de direita, que se destinava em princípio ao assassinato de supostos delinqüentes, mas que, ao fim, sob a capa de impunidade, não se furtou a praticar os mais hediondos crimes. É uma associação que congrega, sobretudo, policiais civis e militares, aos quais vêm se agregar membros do Ministério Público, do Poder Judiciário e outras autoridades públicas, além de indivíduos da sociedade civil. Ela mostrou ser um sindicato do crime bem estruturado, contando com diversos departamentos, tribunais de justiça internos, procuradorias, etc, tentando reproduzir, internamente, o aparelho estatal (ZANOTELLI, 2002).

Com tantos assassinatos, o então governador do estado, Albuíno Azeredo, criou a Comissão  de Processos Administrativos Especiais  –  CPAE; paralelamente, após a morte do advogado Marcelo Denadai, a Anistia Internacional, o Fórum Reage Espírito Santo, a Assembléia Legislativa, a OAB-ES e diversas organizações não governamentais nacionais e internacionais se mobilizaram para garantir uma ampla investigação acerca dos crimes praticados no Espírito Santo. Um pedido de intervenção federal no estado foi aprovado, por unanimidade, em 4 de julho de 2002; o amplo destaque dado pela imprensa ao caso fez com que o governo federal apresentasse a criação de uma Missão Especial Federal, que teve início em 17 de julho de 2002. Insta frisar que somente quatro anos depois, em 2006, a Scuderie foi aparentemente dissolvida, embora poucos tenham sido os investigados responsabilizados por seus crimes.

Das capitanias hereditárias às biqueiras profissionais

A história da Scuderie deixou não só um rastro de assassinatos não resolvidos no Espírito Santo  que  merece destaque, visto que aponta para todo um processo em curso de desestruturação, destruição e descrédito das instituições policiais. Com sua dissolução as redes de tráfico de drogas e armas, antes centralizadas nas mãos de grandes empresários, começam a ganhar novos contornos, novas configurações, temática que passaremos a abordar para entender as organizações criminosas da atualidade.

Importa dizer que até 2002, quando a Scuderie começou a ser investigada, os conflitos territoriais, impulsionados pelo tráfico de drogas e armas, eram pouco catalogados, e não apareciam com destaque nas pesquisas realizadas nos três jornais de grande circulação que foram parte da metodologia de pesquisa[2].

Neste período as regiões onde o tráfico era intensamente visibilizado por ações das forças de repressão do estado eram comandadas por grupos familiares. Segundo relato das pesquisas, rotas terrestres e marítimas eram comandadas por membro da Scuderie, e essas famílias tinham como responsabilidade apenas a organização da distribuição em suas áreas de domínio. As invasões e tomadas de território não faziam sentido, uma vez que todo o território possuia apenas um “donatário” – a Scuderie, com seus associados.

A partir de 2002 esse cenário ganha novas configurações, com a a criação da Missão Especial Federal. Mas será em 2003 que observaremos uma mudança significativa e que influenciará o modo como atuarão as redes de tráfico de drogas e armas no Espírito Santo até os dias atuais. Era março de 2003, e o  desmantelamento  das  organizações criminosas adquiria dimensões significativas, quando o principal juiz integrante da Missão Especial – Alexandre Martins de Castro Filho – foi assassinado com três tiros. Alexandre foi morto exatamente 13 dias depois de ouvir uma testemunha que denunciou o relacionamento entre altas autoridades do  Espírito  Santo e criminosos comuns, em ações ilícitas que envolviam o desvio de recursos públicos, a contratação de crimes de mando e o tráfico de armas e drogas pelo porto das cidade.

De cidades comandadas por membros da pela Scuderie com famílias chefiando pontos de comercialização de drogas, a Região Metropolitana da Grande Vitória passa a ter disputas em decorrência do fim da hegemonia na divisão dos territórios.

O enfraquecimento e a suposta dissolução da Scuderie provocaram uma corrida pelo domínio dos territórios mais rentáveis em várias cidades, especialmente na Região da Grande Vitória, onde estão localizadas as principais rotas de entrada e saída de grandes quantidades de entorpecentes – portos de cargas internacionais, rodovias e um aeroporto, que ligam o Espirito Santo a estados como Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, entre outros. Traficantes vistos como pouco expressivos no cenário do tráfico começaram a criar alianças com grupos externos, especialmente no eixo Rio – São Paulo, conexões estabelecidas com grandes facções como o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital. A rota passou a ser não só de comercialização de drogas e armas, mas também de esconderijo para líderes procurados pelas forças policiais capixabas.

É a partir desse contexto histórico que os conflitos territoriais passam a ganhar destaque nas páginas policiais. Bairros estratégicos começam a ser cobiçados por grupos armados, que precisam de rotas para entrada e saída de drogas e armas. Esses grupos se tornam responsáveis pela criação de dinâmi­cas de “governos locais”, que produzem novas formas de dominação e sujeição das populações periféricas, afetando especialmente a juventude negra. Comunidades inteiras passam a ser dominadas e sujeitadas a partir de regras próximas de grandes facções do eixo Rio – São Paulo, com batizados, estatutos, regras relacionadas a punições e sentenças de morte, como verdadeiras franquias, porém com fluidez nas alianças.

Agora nomeadas como facções, elas ganham os meios de comunicação como grandes responsáveis pela violência desenfreada no estado. Seus líderes são expostos nos jornais nos horários de pico, colocados como uma ameaça. Sanguinários, são vistos como os causadores do caos em que o estado mergulhou desde os anos 2000, embora saibamos que grande parte desse caos se estabeleceu pela estruturação rápida e desordenada de espaços urbanos com falta de planejamento para provimento de bens de serviços básicos, assim como a ineficácia de ações que estancassem sucessivas violações de direito nas comunidades periféricas. Exercendo poder como soberanos, essas lideranças baseaiam-se na lógica do direito de fazer morrer ou deixar viver, ou melhor, agora este se complementará na forma de “um poder exatamente inverso: poder  de fazer viver e de deixar morrer” (FOUCAULT, 2000).

Esses grupos, agora nomeados, dividem as cidades e estabelecem novas sociabilidades – o tráfico de drogas pela via do controle armado ainda é a base do novo modelo de organização, mas está associado ao “modo milícia” cunhado da realidade carioca, com invasão de residências para exploração do mercado imobiliário, fornecimento de serviços urbanos, assim como assumindo o cuidado socioassistencial das comunidades, buscando exercer o papel do Estado, especialmente na vida de jovens negros periféricos, que até então eram invisíveis para esse mesmo Estado, só constituindo sua existência quando tutelados, ou vistos como perigosos e envolvidos nessas redes criminosas…classes perigosas!

Redes Criminosas – classes perigosas da atualidade

Importa dizer que esse caminho da constituição dessas redes, que não se coloca como linear, mas sim permeado por idas e vindas, terá um viés histórico que o constituirá – a construção do conceito de classes perigosas. Para compreendermos o contexto atual em que se constrói a narrativa dos conflitos urbanos como principal expoente para o crescimento da violência na cidade de Vitória\ES, assim como extermínio da juventude negra – é preciso estruturar uma breve análise acerca desse conceito.

Alguns discursos serão produzidos ao longo da história, de acordo com a necessidade de homogeneização e sujeição de alguns grupos, especialmente negros e pobres. Estes discursos serão utilizados especialmente para dar certos lugares a estes grupos, como o lugar de perigo, daquele que pode, e porque não, deve ser combatido e exterminado. Uma dessas produções, amplamente disseminada nos dias atuais pelos meios de comunicação, diz respeito ao alardeado aumento da violência ocasionado pelo domínio das grandes cidades pelas chamadas facções criminosas, assim como da ausência de controle por parte das forças de segurança, desse fenômeno.

Produção que não emerge nos dias atuais, muito menos é retilínea, natural ou processual. Trata-se de uma construção que, ao longo da história, ganhará corpo e se revestirá de ‘verdades’, através do conceito de classes perigosas. Este conceito ganhará força a partir do Movimento Higienista do Século XIX e começo do Século XX, mais especificamente no ordenamento e reordenamento de algumas teorias. Não obstante, é possível esbarrar nesse momento histórico, com produções legitimadas como científicas, que apontarão caraterísticas anatômicas para a identificação de “criminosos natos” – Antropologia Criminal – assim como aquelas que irão considerar relevante aplicar o conceito de seleção natural aos humanos, classificando-os como “bem nascidos” ou não, de acordo com suas características genéticas – a Eugenia.

Essas, e outras teorias, irão construir um caminho que irá separar, diferenciar e elencar aqueles que merecem viver, daqueles cujos corpos podem ser deixados pelo caminho – corpos virtuosos e corpos viciosos, como elencava o Tratado das Degenerecências (Morel, 1857). Todas estas teorias terão um ponto comum – irão apontar como inferiores pessoas com deficiência, com transtornos mentais, presos, negros e pobres; todas elas construirão um percurso de processos de exclusão, sujeição e confinamento, onde deverão sobreviver os mais fortes, mais aptos, superiores, aqueles considerados de “raça pura” – brancos.

Para a manutenção e perpetuação dessa superioridade, médicos, juristas, pedagogos, urbanistas, psicólogos e assistentes sociais construirão modelos ideais de família, de infância, de mulher, de juventude; construções que serão consolidadas através de modelos de família, de comportamentos, de vida laborativa. Essas construções possibilitarão a separação que definirá, já no final do Século XIX e começo do Século XX, quem seriam os dignos e quem seriam os viciosos, aqueles que poderiam ser “cuidados” e teriam seus valores construídos através do trabalho e da moral, e aqueles a quem deveriam ser designadas a prisão, o manicômio, os espaços de vigilância e controle. Os corpos perigosos poderiam ser deixados pelo caminho, afinal, mostravam-se como ameaça aos ‘cidadãos de bem”. Alguma “mera coincidência” com os dias atuais?! Alguma semelhança com o olhar que é direcionado aos corpos jovens em cumprimento de medidas socioeducativas?!

É também neste período que os espaços públicos serão considerados como ‘lugares do perigo’, das doenças, das mazelas e onde serão instrumentalizados os considerados criminosos. Não por acaso, é neste mesmo período que fervilham movimentos de resistência e contestação, manifestações populares não só na Europa, mas também no Brasil; período em que as ruas são palco dos movimentos populares, e que fazem desses espaços, lugares perigosos à ordem vigente. Assim, torna-se necessário esvaziá-los, torná-los inertes através do perigo, fomentando o espaço privado como o espaço do cuidado e da proteção.

Serão então modernizados os espaços públicos, tornando-os assépticos, transformando-os nos espaços do trabalho, que as ´balbúrdias´ e os perigos serão desmobilizados…ruas não mais como lugares de encontros, mas como espaço de produtividade, vidas empurradas para a margem. O processo de urbanização dos Séculos XIX\XX estará intimamente associado à pobreza, e por consequência, à reconstrução do conceito de classes perigosas.

É neste período que os processos de urbanização irão se associar aos processos de industrialização. Teremos então, no que concerne ao Município de Vitória, o início da formação dos bairros tidos como economicamente vulneráveis, os chamados “territórios da pobreza”. Segundo Coimbra (2001) na história das cidades constata-se que tais territórios, à medida que são valorizados economicamente, têm suas populações empurradas para outras regiões menos importantes. As chamadas periferias sobrevivem sem as mínimas condições de saneamento básico, moradias, transportes, etc – espaços onde, segundo o discurso hegemônico, vicejam a violência, o banditismo, a criminalidade.

Importante observarmos que todo o processo de formação desses bairros na cidade de Vitória, terá como base, entre as décadas de 1940\1950, a vinda de um grande contingente de migrantes do Nordeste do Brasil, especialmente do Estado da Bahia, em busca de inserção no mercado de trabalho, moradia e melhores condições de vida. Será também um processo marcado por embates para uso dos espaços da cidade, tendo uma grande parcela dessas famílias sido “empurrada” para regiões sem urbanização da cidade, acarretando o crescimento populacional nas áreas de morro e encostas, assim como de proteção ambiental. Será assim que bairros como Piedade, Caratoíra, Fonte Grande, Forte São João, Alagoano, Ilha do Príncipe e tantos outros se constituirão não só com total ausência do poder público, mas também a mercê de toda sorte de invasões e domínio do comércio de drogas e armas.

Para esses bairros serão, mais uma vez, destinadas apenas a segurança pública como forma de aproximação e “pseudo garantia de direitos”, militarizando seu cotidiano e mantendo-se a precariedade da vida; vida que passará a valer tão pouco que só será lembrada nas páginas policiais, quando a espetacular cobertura midiática acerca da formação e estruturação das ditas facções criminosas se tornará rentável e facilmente utilizada para operações policiais, invasões de residências, extermínio de uma parcela muito específica da população – classe, raça e gênero serão bem delimitados quando os “autos de resistência” forem lavrados.

O conceito de classes perigosas será reatualizado e fortalecido a cada notícia veiculada pelos meios de comunicação; a ampla cobertura da mídia será acompanhada pelos discursos de uso da força letal para o combate ao perigo eminente – o confronto entre esses grupos; grupos que se colocarão através dos corpos negros e franzinos que se esguiam pelas vielas dos morros da cidade. Para ele a prisão, as medidas socioeducativas, o tiro de “12 ou ponto 40”, a comoção seletiva, a punição mais severa que um corpo pode merecer – a morte. Para suas famílias discursos de desestrutura, de falta de limites, ausência paterna, risco pessoal e social balizados na falta, ausência do direito ao luto.

No comando desse grande negócio é identificada, em seu aspecto político e legal, a figura do ‘narcotraficante’, cujo estereótipo, construído pelo discurso oficial e divulgado pela mídia, aponta para o protótipo do criminoso organizado, violento, poderoso e enriquecido através da circulação ilegal desta mercadoria, conhecida em nossa legislação outrora como ‘entorpecente’, e hoje, genericamente, como ‘droga’. Toda a atual política de repressão ao comércio de drogas ilícitas está voltada a combater este ‘inimigo’ da sociedade, Como delegado de polícia acabei por encontrar uma realidade diversa daquela que nos é apresentada diariamente, enquanto ‘verdade’. Os criminosos autuados e presos pela conduta descrita como tráfico de drogas são constituídos por homens e mulheres extremamente pobres, com baixa escolaridade e, na grande maioria dos casos, detidos com drogas sem portar nenhuma arma. Desprovidos do apoio de ‘qualquer’ organização, são os ‘narcotraficantes’ que superlotam os presídios e casas de detenção. (D’elia, 2007)

São nesses bairros que teremos a construção da estratégia de “guerra às drogas” da atualidade, especialmente através de operações policiais de suposto combate ao tráfico. Bairros pobres e negros, que possuem um grande contingente de adolescentes e jovens com envolvimento primário em atos infracionais, por vezes apreendidos e encaminhados ao sistema socioeducativo em meio aberto pelo caráter menos gravoso de suas infrações. São esses corpos que irão emergir quando Achille Mbembe (2018) traz para a discussão o conceito de necropolítica, uma política de morte que se coloca enquanto regra para o funcionamento do Estado, que se dará através do uso da força desproporcional e do extermínio de alguns corpos; uma política que elege quem pode e deve morrer.

Esses corpos serão majoritariamente negros. Para Mbembe (2018), na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado. O operar da necropolítica será visto com extrema facilidade nos territórios pobres das cidades, e mais especialmente ainda nos bairros periféricos de Vitória, onde as concepções de direitos humanos não imperam. Mas, de fato, existe alguma concepção de direitos humanos que abarque, como humanos, esses grupos vistos como marginalizados?! A construção de direitos humanos como um especialismo fortalece a ideia de universalidade e essencialidade, assim como torna vidas homogêneas, tirando delas toda forma de resistência. Como nos afirma Coimbra (2001) sabemos que podemos estar falando sobre e em nome dos direitos humanos e tendo práticas que, em realidade, estão produzindo/fortalecendo a opressão, o constrangimento e os maus encontros.

Pescadores de águas turvas

A pesquisa relacionada às redes criminosas no Espírito Santo não se coloca como algo estático. Este percurso, que na escrita acima caminhou por um viés histórico, se constituirá também por uma via de construção objetiva dessas redes – hierarquias, estatutos, alianças; construção que dará cor às redes armadas mais conhecidas do estado em questão.

Para compreendermos essas constituições traremos, mesmo que de forma breve, a constituição de um desses grupos armados, o PCV – Primeiro Comando de Vitória, grupo com maior domínio de territórios na Região Metropolitana da Grande Vitória. Como mencionado anteriormente, essa pesquisa é constituída a partir de apanhado documental de jornais de grande circulação da região, assim como com entrevistas com lideranças comunitárias locais. Partimos nessa construção de impressões, vivências, assim como uma escrita de meios de comunicação, fatores que em nada se colocam como neutros, pois são perpassados por inúmeras histórias, valores, constituições dos próprios territórios.

O PCV – Primeiro Comando de Vitória, segundo levantamento supracitado, emerge no Espírito Santo em meados de 2013, na Região de Bairro da Penha, comunidade que compõe o Território do Bem. Seu nascimento se concretiza mais especificamente a partir da transferência de um de seus líderes para um presídio federal, onde se conecta com lideranças de grupos maiores, entre estes o Primeiro Comando da Capital – PCC, e o Comando Vermelho – CV, grupos criminosos respectivamente nascidos em São Paulo e Rio de Janeiro. Essa aliança concretizará a primeira versão do PCV, com a constituição de um estatuto muito próximo ao do PCC, com regras, um conselho gestor, assim como uma hierarquia de lideranças dentro do grupo.

Em investigações realizadas na Operação Sicário[3], verificou-se que a facção tem uma hierarquia pormenorizada, por vezes fazendo alusão ao aparelhamento dos órgãos do Estado. Nessa lógica, possui um comando geral, que atua, mesmo estão dentro dos presídios estaduais e federais, e dita as principais determinações da organização. Abaixo desse comando é possível observar as lideranças locais, que funcionam em uma lógica de franquias, onde são responsáveis por seus bairros/territórios, mas possuem vinculação financeira e de atuação com o comando geral.

Ainda construindo a pirâmide dessa hierarquia, encontram-se gerentes e vapores – os primeiros responsáveis pela gestão de cada tipo de droga (embalagem, transporte e distribuição), e os segundos direcionados a venda direta das substâncias, com plantões que são de doze horas, remunerados. O grupo ainda conta com um braço armado especificamente para a prática de invasões a outros territórios, homicídios e incursões armadas pelas comunidades – o trem bala. Composto pelos chamados “faixas pretas”, são responsáveis pela parte de contenção e ataques armados da rede criminosa. Todos os batizados têm responsabilidades junto à facção, assim como também contam com assistência jurídica e auxílio aos seus familiares em caso de prisão ou morte.

Outro ponto importante e que emerge nas pesquisas diz respeito a outra parcela dos faccionados, a que possui um maior número de crianças, adolescentes e jovens envolvidos – a “linha de frente” da facção. Composta por mão de obra barata e descartável, diz respeito aos endoladores, olheiros, fogueteiros e formigas. Responsáveis por tarefas menores no grupo, eles embalam, vigiam as entradas e avisam da presença da polícia. Autores de atos infracionais de pequena ameaça – tráfico em sua maioria – são de famílias pobres e sem acesso à serviços públicos. São também os que mais morrem nas ações do Estado ou nos enfrentamentos com grupos rivais.

Formam-se os chamados ‘territórios da pobreza’, de um modo geral, espaços que não foram ainda valorizados pelo mercado imobiliário; verdadeiros guetos que sempre amedrontaram as camadas “mais favorecidas. Na história das cidades constata-se como tais territórios, à medida que são valorizados economicamente, têm suas populações empurradas para outras regiões menos importantes. As chamadas periferias sobrevivem sem as mínimas condições de saneamento básico, moradias, transportes, etc – espaços onde, segundo o discurso hegemônico, vicejam a violência, o banditismo, a criminalidade. (Coimbra, 2001)

Não é novidade que o alvo da marginalização e da violência, tanto do braço armado do Estado como dos grupos armados, apresenta as mesmas características, bem como compartilhem a mesma história marcada pela cor da pele, territorialidade e classe social. Dados do Atlas da Violência (IPEA, 2020) informam que até o ano de 2018 houve maior ocorrência de homicídios quando tratamos de homens jovens, com pico aos 21 anos de idade. Ao comparar os dados com a Atlas da Violência do ano de 2019, foi verificado um significativo aumento da morte de jovens. Outro dado alarmante é que esses corpos, adultos e jovens, também são corpos negros. Das mortes, 74% são de pessoas negras, e neste ano foi constatado, a partir de comparação com o ano anterior, que houve um aumento de vitimação da juventude.

A legitimação da morte para esses jovens negros paira pelas ruas, pelos discursos, pelos noticiários e telejornais. A defesa do “cidadão de bem” pressupõe a existência do cidadão que não é de bem, que é, portanto, exterminável, especialmente quando tem algum envolvimento com a criminalidade.

Os discursos e as narrativas sobre estes jovens convergem com práticas que legitimam mortes físicas e simbólicas durante toda sua vida. Nesse sentido, estar em uma facção é, para muitos, produzir sentido para essa curta existência. Meninos e meninas que trazem no corpo o conceito de transversalidade, atravessada pelas experiências familiares – do território de moradia, da escola que pouco frequentaram, das vivências cotidianas do “movimento” – endolação, vigilância, venda do produto, torturas, flagrantes forjados e, execuções no meio do dia, entre tantas outras vivências forjadas pelo “modo facção”.

Este tema é tratado de forma exaustiva nos meios de comunicação e mídias sociais, contudo, ainda, é carregado de armadilhas, sejam elas na forma como emergem as pesquisas desenvolvidas com a juventude autora de atos infracionais, sejam as armadilhas relativas às análises carregadas de pré-conceitos e equívocos das dimensões transversais da vida desses meninos e meninas em seus territórios.

Importa dizer que, nesta escrita, os territórios são parte principal das pesquisas relacionadas as redes criminosas, pois será neles que as configurações e reconfigurações dos grupos irão acontecer, mas será também neles que serão possíveis agenciamentos que permitirão a garantia de direitos e a produção de vida das pessoas periféricas.

Nesse sentido, retomamos a formação do Primeiro Comando de Vitória – PCV, a partir dos territórios. Entendemos que em qualquer acepção, território pressupõe poder, e esse poder está relacionado tanto ao poder político quanto ao poder de dominação e apropriação. Nesse sentido, concordamos com Haesbaert (2004), ao afirmar que fazer parte de um território-espaço físico têm implicações simbólicas relacionadas às apropriações territoriais que remontam as marcas do que foi vivido ali com as apropriações pela dominação relacionada ao uso concreto e funcional e ao valor de troca.

Na constituição histórica e forma de atuação do PCV, percebe-se um processo de tomada de territórios, dominação e apropriação pela força e violência, não só pelo domínio de pontos de vendas de drogas ilícitas, mas também pela possibilidade de reafirmação do poder de existência do grupo criminoso. Apropriar-se das chamadas biqueiras não parece suficiente, é necessário apropriar-se das vidas, das pessoas, das histórias que atravessam os becos e as marcas históricas que as comunidades trazem em si, atravessadas por experiências de moradia, escolarização, trabalho e também do tráfico, experiências de exercício de poder.

Para Foucault (1979), o poder se exerce por meio de estratégias e seus efeitos não serão imputáveis somente a uma apropriação, mas a manobras táticas e técnicas.

Não há a era do legal, a era do disciplinar, a era da segurança. Vocês não tem mecanismos de segurança que tomam o lugar dos mecanismos disciplinares, os quais teriam tomado o lugar dos mecanismos jurídico- legais. Na verdade, vocês têm uma série de edifícios complexos nos quais o que vai mudar, claro, são as próprias técnicas que vão se aperfeiçoar ou, em todo caso, se complicar, mas o que vai mudar, principalmente, é a dominante ou, mais exatamente, o sistema de correlação entre os mecanismos jurídico-legais, os mecanismos disciplinares e os mecanismos de segurança (FOUCAULT, 2008).

Ele não deve ser pensado como fundamentalmente emanado de um ponto, mas como uma rede que permeia todo o corpo social, articulando e integrando os diferentes focos de poder. Ele circula, se exerce em rede e não está sob o domínio ou controle de um eixo central, sendo que os indivíduos são os centros de transmissão desse poder que os atravessa. É assim que se produzirão o lugar do perigo e o corpo que habitará o “perigoso”.

Impertinentes conclusões

Mas se o poder e a capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer passa pelos corpos que compõem as facções, produtores e também expostos à violência, como superar o “fazer viver e deixar morrer”, como reordenar a vida e abandonar as políticas de controle social através dos homicídios travestidos de “guerra de gangues” ou de autos de resistência?! Como construir caminhos que não mais se materializem pela expressão da morte?!

Importa dizer, antes de mais nada, que as faccções criminosas estão presentes em todas as regiões do Brasil. Elas estão materializadas desde às áreas periféricas das cidades, até as áreas nobres; atuam com suas rotas e articulações na malha viária, marítima e aérea do país, ao passo que também tem propiciado sua interiorização, com expressivo aumento dos índices de violência nas cidades menores e mais afastadas dos centros urbanos.

No Espírito Santo esse cenário não é diferente, mas esse crescimento ainda não ganha tanta visibilidade, uma vez que os meios de comunicação continuam focados nas ações ocorridas na Região Metropolitana da Grande Vitória. Em partes, esse foco se dá pelo crescimento exponencial dos índices de violência, mas também pelo fato de que um debate sobre a ação das redes criminosas tem se tornado discussão diária, especialmente na cidade de Vitória, capital do estado. Acolher imediatamente a urgência dessa discussão tem sido ponto comum entre quem executa políticas de segurança pública, mesmo que de forma deturpada e simplista, assim como também entre as próprias comunidades que vivenciam a realidade de violência das disputas territoriais, colocando a discussão como uma real questão. 

É válido salientar que o tema (in) segurança pública vem se apresentando como uma das expressões da demanda social, que fica cada vez mais complexa à medida que cresce no estado, como também em todo o Brasil. No decorrer dos últimos anos, o quadro de violência no Espírito Santo, em particular os homicídios provocados por conflitos territoriais, vem tendo ênfase nos noticiários locais e nacionais, estimulando pesquisas, publicações acadêmicas, provocando intensos movimentos na sociedade capixaba, dispositivos que tem provocado a emergência de outras  formas de pensar e produzir análises acerca das políticas de segurança pública, assim como também compreender como as redes criminosas que permeiam a história do estado desde as décadas de 1960 tem se configurado e reconfigurado.

Apontados como responsáveis pela violência nos territórios considerados vulnerabilizados da cidade, a atuação desses grupos tem provocado novas formas de sociabilidade entre moradores das regiões periféricas, assim como incitado à necessidade de revisão de todo o aparato de políticas públicas, especialmente no que tange à segurança pública, uma vez que o modelo constituído ainda é pautado na pretensa guerra às drogas, com foco em operações policiais de pouco efeito prático, que mais promovem o extermínio de pobres e negros do que soluções palpáveis para a população.

O racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, ‘este velho direito soberano de matar’. Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado (MBEMBE, 2018).

Em constante contramão, acreditamos que produzir efeitos no desmantelamento desses grupos tem sentido apenas quando pensamos políticas públicas focadas na garantia de direitos para as comunidades vulnerabilizadas pelo modelo econômico vigente, especialmente para a juventude negra que se encontra alijada de todo e qualquer direito básico. Nosso caminho se faz ao caminhar. Identificamos que a juventude no estado do Espírito Santo é, muitas vezes, àquela que não comparece em espaços garantidos por direito, a saber, escolas, unidades de saúde, espaços culturais, dentre outros que, na lógica pela qual as cidades são nutridas, se localizam em lugares proibidos para a população pobre, como as áreas nobres das cidades. Entretanto, dentre as idas e vindas e como sujeitos sociais que são, esta juventude segue reagindo e existindo, mesmo habitando vielas, quebradas e biqueiras.

Pensar resistências à morte, seja na bala do fuzil dos grupos rivais, seja na pseudo resistência à prisão, passa por um pensamento e uma prática críticos, um fazer que consiste em não reduzir as experiências e as relações com estes sujeitos, mas em desvelar alternativas concretas para lidarmos com as condições cotidianas, haja vista que o cotidiano está no centro das histórias e não fora delas.

Desta forma, se faz necessário o diário compartilhar com a juventude que se permite aproximação, com seus familiares e com suas formas de existência, mesmo diante da atuação deles nessas redes. Entendemos que estes meninos e meninas são a ponta de um iceberg, e que não são os mantenedores dessa maquinaria, que existe e se retroalimenta em uma complexa articulação financeira que garante entrada e circulação de armas, substâncias psicoativas e lavagem de dinheiro.

  Cabe ressaltar que ao lidarmos diretamente com a realidade dos territórios onde essas redes criminosas atuam, e com o que eles nos apresentam, não deixamos escondida e negligenciada a principal causa da existência e fortalecimento desses grupos, a saber, a perversidade da ausência proposital do estado, o racismo forjado nas instituições, nos discursos, nas práticas e no dia-a-dia.

Seja em momentos nas comunidades, em visita as lideranças comunitárias ou em atividades com mães e familiares de jovens mortos no envolvimento com as facções, o nosso compromisso ético e político enquanto pesquisadora é o de evidenciar e tentar destruir esse lugar do perigo que se cola aos corpos desses adolescentes e jovens e que limita sua existência ao ato infracional, ao grupo armado. São histórias que, anteriores ao envolvimento na criminalidade, são rasuradas e deslegitimadas em seu funcionamento, manifesto em sucessivas recusas de emprego, batidas policiais, olhares tortos na rua e práticas cotidianas que reiteram a política de morte. Nosso compromisso como pesquisadora é justamente afastar dessas comunidades a ideia de bairros fadados a violência, a punição, castigo e sina, fazendo com que adolescentes e jovens envolvidos nesses grupos consigam romper com as práticas infracionais, ainda que estas façam parte de um contexto maior que sua própria existência. As facções também se alimentam dessa busca por existência dessa parcela alijada da sociedade, e só deixarão de alistar em suas fileiras estes meninos e meninas, quando os mesmos passarem a existir como sujeitos de direito.

Referências Bibliográficas

BICUDO, H. P. (1976). Meu depoimento sobre o esquadrão da morte. São Paulo, Pontifícia Comissão de Justiça e Paz de São Paulo.

COIMBRA. C. M. B. (2001) Operação Rio: O Mito das Classes Perigosas.Um Estudo Sobre a Violência Urbana, a Mídia impressa e os Discursos de Segurança PúblicaRio de Janeiro, Oficina do Autor.

D’ELIA, O. Z. F (2007) Acionistas do Nada: quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro, Revan.

IBGE (2020). Estimativas da População. Estimativas da População. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9103estimativasdepopulacao.html?=&t=downloads Acesso em 15/11/2023.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA; FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (2020) Atlas da violência 2020. Brasília; Rio de Janeiro; São Paulo, IPEA.

FOUCAULT, M. (1979) A Vontade de Saber. Rio de janeiro, Graal.

FOUCAULT, M. (2000) Em Defesa da Sociedade. Curso no Collège de France (1975- 1976). São Paulo, Martins Fontes.

FOUCAULT, M. (2008) Segurança, território, população. São Paulo, Martins Fontes.

GUIMARÃES, A. P. (1978)  As classes perigosas: banditismo urbano e rural. Rio de Janeiro, Edições Graal.

HAESBAERT, R (2004) Dos múltiplos territórios à multiterritorialidade. Porto Alegre. Disponível:http://www.uff.br/observatoriojovem/sites/default/files/documentos/CONFERENCE_Rogerio_HAESBAERT.pdf. (Acesso em: 20/11/223).

MBEMBE, A. (2018) Necropolítica. São Paulo, n-1 edições.

MISSE, M. (2008) Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, Revista de Ciências Sociais.

PENGLASE, B. (1994) Final Justice: police and death squad homicides of  adolescents in Brazil. Em kimzey, R. Human Rights Watch/Americas . Nova Yorque, Human Rights Watch.

ZANOTELLI, C. (20020) A CPI do narcotráfico e as redes criminosas no território brasileiro: um balanço provisório do caso do Espírito Santo. Dimensões Revista de História da UFES. Vitória, Universidade Federal do Espírito Santo.


[1] A Região Metropolitana da Grande Vitória é composta pelas cidades de Vitória, Vila Velha, Cariacica, Serra, Viana, Fundão e Guarapari. Os sete municípios abrigam cerca de 46% da população de todo o Espírito Santo, com 2.006.486 habitantes (IBGE, 2020).

[2] As pesquisas em questão dizem respeito a dois momentos – o doutorado e o pós doutorado da autora, nos Programas de Pós-graduação em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense – UFF e da Universidade Federal do Espírito Santo, respectivamente. Ambas estavam relacionadas a narrativa de familiares de vítimas de grupos de extermínio e grupos armados no Espírito Santo, utilizando como metodologia entrevistas com familiares, lideranças comunitárias e a coleta de informações produzidas pela imprensa.  Estas informações foram levantadas em arquivos existentes em dois jornais de grande circulação do referido estado – Jornal A Gazeta e Jornal A Tribuna, assim como no jornal virtual Século Diário. Com acesso digital a esses jornais, foi organizada uma pesquisa temática utilizando os temas violência, esquadrão da morte, polícia e grupos de extermínio. Esse trabalho de classificação por assunto possibilitou o acesso a um conjunto bastante detalhado de reportagens que foram produzidas no período que vai de 1980 a 2020.

[3] Operação da Polícia Civil com o objetivo de combater organizações criminosas no Espírito Santo, especialmente em bairros da Grande Vitória.


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