REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7589586
Maria Alvina Ferreira de Moura1
RESUMO
Tendo em vista que neologismos acontecem o tempo todo, este breve trabalho pretende mostrar que esse processo de criação de vocábulos ocorre na obra Laranja Mecânica, porém de forma completamente peculiar às demais ocorrentes na fala, no cotidiano fora do mundo fictício e até mesmo dentro desse mundo imaginário. Para a teorização do assunto abordado, o trabalho é fundamentado nos estudos de Fiorin (2012) e Alves (2004), em definições apontadas pelo Dicionário Online de Português, na obra de Burgess e nos comentários dos admiradores de sua obra literária, além de observações do próprio autor. Com esse conteúdo e com o propósito apresentado, é claro ao leitor reconhecer a importância de Laranja Mecânica para a ampliação e comprovação dos estudos linguísticos, tanto os já feitos quanto os que ainda deverão ser realizados, além de tomá-lo como exemplo para a teorização dessas afirmações e despertar, nos receptores o interesse pelo lado criativo que a língua proporciona cada um de realizar.
PALAVRAS-CHAVE: neologismo, obra literária, linguagem, Laranja Mecânica.
INTRODUÇÃO
O trabalho sobre neologismo busca incentivar não somente os linguistas como também os amantes pela língua e todas as suas particularidades a lerem uma das obras que mais trabalhou com neologismos ao longo da narrativa, sem se preocupar muito com o entendimento dos leitores, de modo que a história não perdesse sentido. Muito pelo contrário, o livro se torna, nesta pesquisa, um instrumento provocador acerca da curiosidade sobre neologismos, pela narrativa em si e pelo modo como o autor utiliza sua criatividade para com os vocábulos utilizados.
Para que isso torne-se possível, o livro será apresentado junto ao contexto ao qual o autor pertencia quando o escreveu, alguns comentários a respeito de seus admiradores como também serão mencionados, além de vários exemplos de neologismos categorizando-os segundo o texto de Fiorin (2012). Também serão fornecidas algumas definições de termos presentes no texto, pesquisadas no Dicionário Online de Português (2009-2017), a explicação de Alves (2004) sobre as criações lexicais, o glossário presente no próprio livro feito pela editora Aleph, comentários do autor dentro da própria obra e menções à sua vida pessoal.
Em ordem, será feita uma breve síntese sobre a importância que se têm as palavras, será mostrada uma das definições do neologismo e a análise desse processo de criação das palavras que ocorre em Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, será apresentada. Algumas curiosidades do autor também serão mencionadas brevemente, além da opinião de um dos críticos/admiradores de sua obra. Após isso, serão mostrados exemplos do livro, descrevendo cada situação do emprego de neologismo conforme Fiorin (2012) e sobre as criações lexicais de Alves (2004).
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
O modo como as palavras foram e são formadas sempre fascinou as pessoas de todo o mundo. Algo que chama a atenção dos linguistas contemporâneos é o fato de que ao longo da história muitas delas passaram a não mais serem usadas ou foram modificadas, e estão em modificação até hoje, principalmente na fala.
O ato de criar palavras ou expressões está incluído na sociedade de tal forma que há incontáveis termos que um determinado grupo de uma determinada região conhece e o utiliza enquanto outro grupo os desconhece, jamais utilizaram ou ouviram falar. A esse fenômeno de empregarem-se palavras novas, derivadas ou formadas de outras já existentes, dá-se o nome de neologismo conforme indica o Dicionário Online de Português, ou ainda, como Alves (2004) definiu em sua obra Neologismo: Criação Lexical: “Neologismo é o elemento resultante do processo de neologia. É a nova criação que poderá vir a fazer parte do sistema linguístico, mediante a aceitação e uso por parte dos falantes de determinada comunidade”. Esse elemento pode ocorrer por vários motivos, entre eles, a necessidade de nomear-se algo que ainda não tem nome, a simples vontade de falar ou escrever um vocábulo que ainda não foi registrado e até mesmo a intenção de causar estranhamento no receptor. Entre as opções de uso de neologismo citadas anteriormente, a última é a que descreve o que Burgess fez em sua obra literária Laranja Mecânica.2
As gírias reais utilizadas pelas gangues de adolescentes de Londres foram substituídas pelas criações de Burgess e essa desorientação na leitura era completamente proposital, pois, como linguista por seus próprios méritos, o escritor transformou o interesse pela força das palavras em uma verdadeira obsessão e acabou sendo um dos poucos autores que fez tanto com a linguagem como fez nessa obra ou como o colunista do jornal Folha de S. Paulo, Reiners (2004, p.01), registra “A qualidade extrema do original de Burgess é a música da gíria “nadsat”, causadora de estranhamento à altura de clássicos da literatura modernista de língua inglesa, como o próprio Finegans Wake, de James Joyce”.
Conhecendo mais sobre a obra, é pertinente dizer que, por mais que haja gírias nas falas dos personagens, há também concordância entre as frases, há coerência e uma gramática bem executada, mesmo que esses personagens estejam sob o efeito de drogas pesadas, não importando muito com quem estivessem falando; como, por exemplo, quando os jovens encontram um velho senhor bêbado sentado na rua e Alex lhe diz: “Me interessa muitíssimo, irmão, se tivesse a bondade de me deixar ver que livros são esses que o senhor tem debaixo do braço. Não há nada de que eu goste mais neste mundo do que de um bom livro sadio, irmão”.
E destacando-se não somente nas falas, a própria narrativa contada em primeira pessoa, é feita de maneira atrativa e ao mesmo tempo coerente, por exemplo, na primeira página, quando Alex retoma aos leitores:
Tinha eu, quer dizer, Alex e meus três drugues, quer dizer, Pete, Georgie e o Tapado, o Tapado sendo realmente tapado, e nós estávamos sentados no Leite-bar Korova, rassudocar o que fazer da noite, num inverno agitado, preto e gelado, uma merda, se bem que seco. O Leite-bar Korova era um méssito de tomar leite-com, e vós, ó meus irmãos, já podem ter se esquecido como eram aqueles méritos, com as coisas mudando tão escorre hoje em dia e todo mundo muito rápido pra esquecer, os jornais também não muito lidos. (BURGESS, 1962, p. 7)
Um fato a se observar é o de que, apesar de o leitor não conhecer os vocábulos, alguns ainda podem ser entendidos segundo o contexto, como foi o caso deste último, o que possibilitou a existência de um glossário “nadsat” (adolescente) no final do livro, mesmo que não autorizado, pelo crítico Stanley Edgar Hyman.
A forma como o neologismo acontece na obra não se resume apenas em nomear coisas, pois verbos também são substituídos por outras palavras inventadas como “guliar” (caminhar), “correntar” (bater com a corrente), expressões como “naz” (idiota), “desculpaculpa” (desculpa), além das gírias e xingamentos como “bratchni” (filho da puta) e “druguinhos” (amiguinhos, companheiros). Alguns desses vocábulos até podem ser familiarizados por serem parecidos com o original traduzido, mas ao mesmo tempo, há também alguns falsos cognatos, que são palavras escritas de modo semelhante entre duas línguas, mas cujos significados são diferentes segundo indica o site da infoescola. Como exemplo, pode-se citar a palavra “morda”, que lembra o verbo morder no imperativo, mas na verdade significa focinho e também a palavra skorre, que remete ao verbo escorrer no infinitivo, entretanto significa rápido/depressa. Isso torna a leitura ainda mais impressionante, pois houve uma grande capacidade psíquica do autor para fazer um uso tão bem elaborado de todos estes fenômenos. E como afirma Fiorin (2012, p. 55):
No entanto, poder-se-ia pensar que os signos são etiquetas que são colocadas nas coisas. Assim pensam os sábios de Balnibardi, nas Viagens de Gulliver, […] A narração de Swift é uma ironia sobre as concepções vulgares que imaginam que a compreensão da realidade independe dos signos criados para nomeá-la, que a língua é uma nomenclatura que se aplica a uma realidade preexistente e não uma forma de categorizar, organizar e interpretar o mundo. (FIORIN, 2012, p. 55)
No desenrolar da narrativa, o uso dessas palavras é feito de modo natural, como se todos soubessem o que cada expressão significa, mesmo que a gangue não converse somente entre si. As outras pessoas também fazem uso de alguns neologismos, porém isso só é intensificado com o personagem Alex, que narra tudo em primeira pessoa, conversa com seus leitores e os chama de “meus druguinhos”, como se estes compreendessem do que ele os está chamando. Por esse motivo, pode-se entender que, para o leitor, a ligação entre significante e significado, será dada pelo contexto.
Como as expressões são realizadas desse modo, como se aquele vocábulo realmente existisse e fizesse parte do idioma falado, o leitor acaba tendo de se esforçar para dar um significado que se adeque àquela fala, e por isso ele é motivado. Caso ele não se disponha do glossário ou não consiga adequar um significado já existente no próprio idioma ao vocábulo, provoca estranhamento, e pode ser incapaz de compreender a narrativa Sobre a motivação existente entre significante e significado de um signo, Fiorin (2012, p.61): “a arbitrariedade do signo não se aplica a todas as linguagens, pois há linguagens que têm signos em que a relação entre significante e significado é motivada.”
Outro ponto a ser mencionado sobre a obra é o fato de que o autor utiliza metáfora para expressões que ele cria de ações e que têm nome no seu próprio idioma. É uma estratégia interessante, pois em nenhum momento ele utiliza as palavras literais para descrever atos obscenos, e até mesmo os palavrões já citados anteriormente. A exemplo disso pode-se citar a expressão “vai-e-vem”, que se refere a fazer sexo, “leite-com-tudo-e-mais-alguma-coisa”, que se refere a leite com drogas, e também a mesma cena já mencionada com o idoso bêbado, e quando os adolescentes percebem que os livros que ele lia eram sobre pornografia, a reação de Georgie é dizer: “Veja, isto aqui é o que eu chamo de coisa imunda. Tem uma palavra que começa com um “f” outra que começa com um “c”.” Além disso, outra peculiaridade na linguagem da obra se dá pelo fato de que a gangue de Alex repete as palavras três vezes em tom interrogativo como em “Certo, certo, certo?” ou tem tom afirmativo como “Ok, ok, ok.” Ou mesmo o fato de, numa mesma frase, chamarem alguém por dois vocativos diferentes como em “Uma dor um tanto intolerável na cabeça, irmão, senhor.” É mais uma intenção do autor de tornar os personagens únicos, com uma linguagem própria e peculiar, transformando a obra em algo mais complexo, trabalhando diretamente com a linguagem e em como utilizá-la de maneira tão diferente do que as pessoas costumam usar.
A obra Laranja Mecânica é escrita utilizando uma linguagem bem característica, e o autor utiliza estratégias próprias de quem quer chamar a atenção para a língua, para a comunicação e para a questão psicológica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da explicação e definição sobre o que é neologismo e as diferentes motivações que levam alguém a realizá-lo, é perceptível que seu uso varia de grupo para grupo, e que esse fenômeno pode assumir um papel importantíssimo na escrita.
A escolha de Burgess por uma história repleta de neologismos tornou sua obra um instrumento valioso para a linguística, pois como foi comprovado por Fiorin, a nomeação não ocorre somente com objetos e coisas. Nomeações também ocorrem com com a simples substituição de um termo que já existe, com a substituição de verbos já existentes por termos criados pelo autor, com a invenção de gírias para comunicação, e essa foi a diferença que pôde ser percebida na obra, pois Burgess utiliza vários termos não existentes para as várias situações objetivando o estranhamento do leitor.
Com isso, pode-se entender o quão enriquecedor pode ser haver neologismos na literatura, pode-se notar o fato de ela não influenciar no mal uso da língua, mas complementar a linguagem e ainda, conforme foi trabalhada no livro, deixa todos curiosos, fascinados e admiradores do autor por ter feito tanta coisa com a linguagem em apenas um livro.
REFERÊNCIAS
FIORIN, José Luiz. Introdução à Linguística: Teoria dos signos. São Paulo: Contexto, 2012.
TERRON, Joca Reiners. “Laranja Mecânica” (Anthony Burgess): “Laranja Mecânica” sai com nova tradução. São Paulo: Aleph, 2004.
DUBOIS, J. e col. Dicionário de linguística (trad.). São Paulo: Cultrix, 1998.
BURGESS, Anthony. Laranja Mecânica. Edição em língua portuguesa. São Paulo: Aleph, 2004.
Dicionário Online de Português. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/neologismo/> Acesso em 30 de novembro de 2017.
ALVES, Ieda Maria. Neologismo: Criação Lexical. Ática, 2004.
1Mestranda/UFG / e-mail: mari456123@gmail.com
2Alex, um jovem de 14 anos e seus “drugues” (amigos) usam drogas pesadas e saem pelas ruas durante à noite ou depois da escola espancando pessoas desconhecidas, estuprando mulheres, roubando dinheiro e brigando com outras gangues por pura maldade e diversão. Utilizam-se de uma linguagem repleta de neologismos e gírias que não existem, e em um dado momento da narrativa, os amigos de Alex o traem e ele acaba sendo detido pela polícia e indo parar na cadeia. Ao mostrar selvageria em seu tempo na cadeia, o governo o submete a um processo de experimentação chamado Técnica Ludovico, que garantiu a extinção da maldade do jovem em algumas semanas, e depois de uma longa discussão sobre o que aconteceu com Alex após esse processo quanto à sua capacidade de escolha e quanto à moral interna de cada indivíduo, o filme finda-se fazendo com que Alex se cure do processo a que foi submetido, voltando a ter liberdade de escolha.