UMA ANÁLISE FOUCAULTIANA DO JORNAL ESCOLAR: OS EFEITOS DE SENTIDO DA NEGAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO DOS ALUNOS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11820600


Vanessa da Silva Oliveira¹
Carlos Borges da Silva Junior²


Resumo

O jornal escolar é uma estratégia fundamental para práticas de democracia e cidadania em sistemas de ensino e possibilita a construção do espaço público, com posicionamento dos alunos. Nesse cenário, o objetivo dessa pesquisa foi realizar uma análise do discurso de uma edição do jornal escolar, publicado pela Escola de Ensino Fundamental Benedita Torres, localizada em Canaã dos Carajás (PA), publicada em fevereiro de 2022.  A autoria do jornal é institucional e silencia a voz dos alunos. Ao aplicar a análise do discurso francesa às notícias e editoriais do jornal foi avaliado que a escola traz um regime de verdade hegemônico, que apresenta uma narrativa de escola romantizada, que não reconhece seus erros e que se apresenta como sem falhas para a comunidade escolar, naturalizando o fracasso escolar. Portanto, o jornal não abre possibilidades para a construção do espaço público e meramente reproduz as relações de poder tradicionais entre escola e comunidade.

Palavras-chave: jornal escolar; Escola de Ensino Fundamental Benedita Torre; análise de discurso francesa.

Abstract

The school newspaper is a fundamental strategy for democratic and citizenship practices in education systems and enables the construction of public space, with student positioning. In this scenario, the objective of this research was to carry out a discourse analysis of an edition of the school newspaper, published by Escola de Ensino Fundamental Benedita Torres, located in Canaã dos Carajás (PA), published in February 2022. The authorship of the newspaper is institutional and silences student voices. By applying French discourse analysis to the newspaper’s news and editorials, it was assessed that the school brings a hegemonic regime of truth, which presents a narrative of a romanticized school, which does not recognize its errors and which presents itself as flawless to the school community, naturalizing school failure. Therefore, the newspaper does not open up possibilities for the construction of public space and merely reproduces traditional power relations between school and community.

Keywords: school newspaper; Benedita Torre Elementary School; French discourse analysis.

Introdução

          O jornal escolar é uma estratégia de letramento midiático praticado por instituições de ensino no Brasil com potencial de ser uma ferramenta de construção de um espaço público compartilhado por toda a comunidade escolar. Nesse contexto, ele tem amplo potencial de ser uma ferramenta emancipatória e humanizadora, que possibilite que diversos atores educacionais sejam ouvidos em suas demandas e posicionamentos.

          Por outro lado, o jornal escolar pode ter um caráter conservador e tradicional, cujo objetivo é meramente informar. De fato, tornar ou não um jornal escolar em uma ferramenta democrática, de construção do espaço público e emancipação dos sujeitos demanda interesse dos gestores escolares, no sentido de possibilitar a participação efetiva de todos, especialmente dos alunos. O jornal escolar que silencia e que apenas permite a voz de gestores não é um instrumento de democracia, mas de reprodução da hierarquia escolar.

          É nesse contexto que esse artigo se organiza, ou seja, pensar o jornal escolar, por meio análise de discurso francesa, em suas possibilidades contra hegemônicas e emancipatórias para o sujeito.

          Para isso, nosso corpus de análise será o jornal escolar da Escola de Ensino Fundamental Benedita Torres, localizada em Canaã dos Carajás (PA), publicada em fevereiro de 2022 e tem como pano de fundo o contexto pós-pandemia.

          Considerando que nos importante avaliar a gestão escolar e aqueles que por ela foram legitimados a ter voz nos textos jornalísticos, nossa análise de discurso será sobretudo foucaultiana, porque nos importante entender a relações de poder que estão enunciadas no texto. Os discursos, nessa abordagem, são mecanismos reveladores de ideologias, hierarquias, percepções hegemônicas sobre a realidade e, acima de tudo, estratégias de manutenção do status quo. Para captar tais ideologias e regimes de verdade presentes nos textos do jornal escolar, vamos utilizar dois conceitos típicos da análise de discurso francesa, que são o de interdiscurso e o de não-dito. Ainda, a análise de discurso francesa se materializa por meio da análise do sujeito que fala e de seu contexto histórico. Então é central levar em conta quem é o sujeito pós-pandêmico e que relações de poder ele quer perpetuar.

          Com essa análise, esperamos contribuir com a literatura com uma avaliação discursiva foucaultiana do jornal escolar e das relações de poder intrínsecas ao seu discurso.  

1. O jornal escolas nas políticas educacionais curriculares brasileiras e a autoria institucional

          Um primeiro olhar para a segunda edição do jornal escolar da Escola de Ensino Fundamental Benedita Torres, publicada em fevereiro de 2022, nos mostra claramente que se trata de um jornal informativo escrito e editado por uma equipe da gestão escolar. Não é um documento participativo.

          Quando nos debruçamos nas políticas curriculares, especialmente a BNCC, notamos que ela traz um enfoque de participação de alunos na escrita de textos jornalísticos, conforme o exemplo a seguir:

(EF04LP16) Produzir notícias sobre fatos ocorridos no universo escolar, digitais ou impressas, para o jornal da escola, noticiando os fatos e seus atores e comentando decorrências, de acordo com as convenções do gênero notícia e considerando a situação comunicativa e o tema/assunto do texto (Brasil, 2018, p. 80).

            A BNCC apresenta o jornal dentro do contexto de estudos do gênero textual, dentro da perspectiva reducionista da competência. Conforme fica claro na leitura do texto, isso não é cumprido pela escola, porque os jornais são de autoria institucional, conceito de Ruiz (2019). Nesse contexto, a escola ou é representada pela voz que se expressa de forma conclusiva, assumindo uma posição axiológica. Nesse contexto, há uma intencional supressão de qualquer referência que identifique o redator individual, porque quem escreve fala em nome da gestão escolar e as demais vozes são silenciadas.

          O que nos deixa claro a BNCC é que o jornal da escola deve ter autoria de alunos, não apenas a autoria institucional. Alves-Filho (2006, p.78) estudou a autoria institucional e define:

O que estamos afirmamos é que a autoria se situa a um só tempo na imanência dos textos (pois nela deixa vestígios linguístico-textuais), mas também no mundo sociocultural (onde encontramos as instituições e as pessoas que assumem a responsabilidade pelos textos). Sendo um pouco mais direto, diríamos que a autoria se situa num lugar onde a dimensão textual e a dimensão social se encontram e se co-constituem.  Por essa razão, afirmamos que a autoria tanto reflete como refrata os indivíduos e as instituições que assumem a responsabilidade enunciativa pelos textos.

          Uma que vez que reconhecemos que a autoria e dimensão social do texto jornalístico se encontram na materialização do mesmo, então podemos atribuir sentido ao jornal escolar que mantém apenas a autoria institucional como parte de uma estratégia de manutenção do status quo. A partir dessa constatação damos início à análise de discurso do texto.

2. Metodologia de Análise do Discurso

          Para a construção dessa pesquisa, conforme já mencionado, utilizaremos a análise de discurso francesa, conforme Foucault (2001) – do qual utilizaremos o conceito de poder – e de Orlando (2003), a partir da qual vamos mobilizar alguns conceitos específicos para aplicação no texto.

Tabela 1: Percurso de análise

EtapaDescrição
Constituição do CorpusSeleção e coleta de textos que formarão o conjunto de dados para análise. Pode incluir discursos políticos, literatura, entrevistas, entre outros.
Pré-AnáliseFamiliarização com o corpus para entender o contexto, identificar temas recorrentes, palavras-chave e estruturas linguísticas. Orienta a análise subsequente.
DescriçãoDescrição detalhada dos elementos linguísticos presentes nos textos, incluindo vocabulário, gramática, estrutura textual e figuras de linguagem. Identificação de características formais.
AnáliseInvestigação das relações entre linguagem, história, sociedade e poder. Foco em entender como ideologias são construídas e como relações de poder são expressas na linguagem.
InterpretaçãoCompreensão profunda dos significados produzidos pelos discursos, revelando representações, valores e crenças subjacentes, além de formas de exercício e manutenção do poder.
ConclusãoSíntese das descobertas, destacando resultados da análise. Aborda questões sobre como sentido é produzido, quem detém poder na produção do discurso e como ideologias são transmitidas.

Parte superior do formulário

Fonte: elaborado pela autora.

          Orlandi (2014) explica que a análise do discurso percebe no texto não como objeto final de avaliação, mas como fenômeno que possibilita ao analisar ter acesso ao discurso. Por isso que quando olhamos o jornal escolar, precisamos entender o contexto histórico no qual os sujeitos que o produzem estão inscritos e a partir de que formação discursiva fala.

          O gênero textual define o que, dentro de uma ordem discursiva, pode ou não se dito.  Nesse contexto, a ação do analista é percorrer a trajetória feita pelo discurso se transforma em texto jornalístico e que define o que pode ou não se dito. Importa entender que aquilo que não pode ser dito se transforma em não-dito, que pode ser percebido nas entrelinhas do texto.

          O texto jornalístico que é o corpus dessa análise será entendido a partir do seu contexto de produção, ou seja, uma escola que volta às aulas depois das férias, em meio ao fim da pandemia, mas que está em reforma. Essa escola precisa justificar as escolhas que fez e, ao fazê-lo, precisa mostrar sua legitimidade e poder para não ser questionada pela sua capacidade em manter o ensino remoto.

          Nesse cenário, o texto será tido por nós como o lugar da relação com a representação física da linguagem – especialmente, que status quo ela quer manter.

          Para darmos início, apresentamos os títulos que contém o jornal em análise

  1. Mural Escolar
  2. Ensino Remoto
  3. Extra Classe
  4. Ler Conecta
  5. Educação Inclusiva
  6. Ações em Rede
  7. Gestão Pedagógica
  8. SOE
  9. Família Participativa
  10. Gestão Escolar
  11. Curiosidades
  12. Boletins Covid

          Escolhemos para a análise os tópicos 1, 4 e 10. O critério de escolha dos tópicos foram aqueles nos quais se mostrava mais clara a relação de poder que deveria ser mantida, justamente por trazerem símbolos das mesmas.

3. A pandemia e o discurso da reinvenção da escola

          No editorial que abre o jornal escolar em análise estabelece uma formação discursiva em diálogo com as aulas remotas (síncronas e assíncronas) realizadas na pandemia. A escola estava em reforma e precisava manter as aulas remotas e utiliza a memória da pandemia para legitimar que já tem a expertise e as tecnologias para manter as aulas nesse formativo. Orlandi, sobre o conceito de formação discursiva, afirma que a formação discursiva é o local onde o sujeito se coloca ideologicamente no discurso. A autora explica que o discurso não tem sentido em si mesmo, mas sim a partir do contexto sócio-histórico de onde emerge. A formação discursiva determina o que pode e deve ser dito. O que fica evidente então é que esse autor institucional precisa justificar algo que poderia causar descontentamento – crianças continuam a ser ensinadas online, mesmo com o fim da pandemia – justificando que esta permitiu que a escola acumulasse tecnologia e repertório para manter o ensino dessa forma até o fim das reformas.  Vejamos aqui a fala da instituição sobre o tema:

Continuaremos com a adoção das novas tecnologias educativas, pois já experenciamos que a informação pela internet viaja em segundos, de um lado para o outro do mundo. A mágica da tecnologia nos permite acompanhar revoluções, guerras, descobertas científicas, conquistas esportivas, realizações artísticas, mudanças políticas, crises econômicas e tantos outros assuntos em pouquíssimo tempo, e por isso, devemos usá-la em favor do ensino (Canaã dos Carajás, PA, 2022, p.02).

            Segundo Orlandi (2003) o objetivo da análise do discurso é apreender os sentidos do mesmo e o jornal escola, como símbolo, produz sentidos que podem ser apreendidos na interlocução entre sujeito, história e linguagem. Nesse texto supramencionado, o autor institucional usa a memória da pandemia para mostrar que a escola tem condições de garantir os processos de ensino e aprendizagem de maneira virtual. O editorial inicial da educação tem um título muito inventivo: A reinvenção da escola. A partir desse título, há uma trajetória discursiva que se organiza da seguinte forma:

Figura 1: Trajetória discursiva do editorial do jornal escolar

Fonte: elaborado pela autora

            Mas nosso questionamento é: em que medida utilizar tecnologias para mediar a relação entre professor, aluno e conteúdo é uma reinvenção. A escola continua a mesma – um sistema disciplinar e autoritário de formar mão de obra (Foucault, 2001). A escola é a mesma, apenas se transformam os meios de manutenção da disciplina escolar. Dessa forma, há um regime de verdade no jornal que afirma que sugere que o ensino remoto é uma forma de se reinventar a escola, mas ele é apenas um meio de reprodução das mesmas estruturas de poder.

               Aqui, cabe uma reflexão sobre a perspectiva foucaultiana sobre a escola e as relações de poder nela intrínseca.  Na perspectiva do autor, as instituições sociais como hospitais, igreja, Estado, escola, dentre outras, são reprodutoras das relações de poder e controle da sociedade que as cria. Nesse contexto, entender a escola na perspectiva de Foucault (2001), implica em entender as relações poder e do controle social intrínsecas a ela. Foucault argumenta que as instituições educacionais não são meramente espaços neutros para a transmissão de conhecimento, mas sim locais onde o poder se manifesta e molda as relações sociais, por de um discurso disciplinar, cujo objetivo último é docilizar os corpos para o capitalismo.

          Para Foucault (2001), a escola é um dispositivo disciplinador que contribui para a formação e manutenção de estruturas de poder. Ele destaca a importância das práticas disciplinares que ocorrem dentro da escola, como a vigilância constante, as hierarquias de autoridade e os métodos normalizadores. Essas práticas não apenas moldam o comportamento dos estudantes, mas também contribuem para a criação de uma sociedade que se conforma às normas estabelecidas e que se mantém calada diante da subalternização dos corpos. As escolas, instituições legitimadas pela sociedade, promovem um regime de verdade, de caráter discursivo, que faz apologia à disciplina como potencializadora do sucesso escolar e profissional.

          Além disso, Foucault (2001) critica a ideia de que a escola é um local de pura educação e conhecimento. Ele argumenta que a escola está envolvida em processos de exclusão e controle, selecionando e categorizando os indivíduos com base em critérios socialmente construídos. A escola, nesse sentido, funciona como uma instituição que reproduz e perpetua as hierarquias sociais existentes.

          A ênfase de Foucault (2001) na relação entre poder, conhecimento e práticas disciplinares destaca a complexidade da instituição escolar. Ele nos convida a questionar as estruturas de poder que permeiam a educação e a considerar como essas estruturas influenciam a formação de sujeitos dentro da sociedade. A percepção de escola em Foucault (2001) nos leva a entender que seus produtos, como um jornal escolar, também não são neutros, mas permeados de ideologias e estratégias de manutenção do status quo.

4. O jornal escolar e seus regimes de verdade

            Para compreender o caráter disciplina do jornal escolar, precisamos nos debruçar sobre o trecho a seguir:

Os alunos dos anos finais realizarão o primeiro Simulado do ano, uma estratégia planejada pelos professores para encerrar o período de avaliação do 1° bimestre. É a oportunidade para avaliar o aprendizado dos estudantes e identificar as dificuldades e as áreas do conhecimento que precisam ter as práticas docentes replanejadas (Canaã dos Carajás, PA, 2022, p.02).

          O trecho supracitado faz circular um regime de verdade no qual está implícito que as avaliações são positivas. Contudo, na perspectiva foucaultiana, elas são instrumentos de poder. Sobre tais regimes de verdade, vejamos como o autor os define:

Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (Foucault, 2001, p.10).

          O jornal escolar em análise possui diversas páginas sobre avaliação, justificando sua importância para que o professor avalie o que o aluno sabe ou não. Contudo, como pode um conjunto de questões avaliar saberes acumulados em uma trajetória de vida? Mesmo sendo pedagogicamente impossível o discurso é criado legitimando as avalições. Sobre isso, vejamos:

Diagnóstico inicial: é a forma com que o professor verifica o processo de aprendizagens. Avaliar o que seus alunos já sabem antes de começar efetivamente o trabalho de mais um ano letivo, é essencial para nortear o planejamento do professor. Através deste momento, serão identificadas as causas de dificuldades específicas de cada aluno na assimilação dos conteúdos. O processo foi garantido tanto virtualmente quanto nos plantões presenciais (Canaã dos Carajás, PA, 2022, p.02).

          Podemos notar no texto o argumento de que a prova de diagnóstico inicial possibilita identificar as causas de dificuldades. Mas de fato uma única prova consegue apontar as causas de um processo complexo como a aprendizagem? Para entender porque o editorial tem legitimidade veicular tais regimes de verdade, precisamos analisar as condições de produção desses discursos. Orlandi (2003) explica que falar em condições de discurso implica em analisar o sujeito e seu contexto imediato. O contexto situacional impacta escolhas linguísticas, tom e estilo, proporcionando para o analista conhecer como o texto produz sentido. Os objetivos e propósitos do emissor ao criar a mensagem influenciam diretamente a estrutura e o conteúdo do discurso. Se a intenção é persuadir, informar ou entreter, isso se reflete nas escolhas linguísticas e nas estratégias de argumentação.

          Além disso, as circunstâncias históricas e políticas desempenham um papel importante. O contexto histórico em que o discurso é produzido pode influenciar a mensagem, assim como eventos políticos específicos podem moldar o tom e o conteúdo da comunicação. Em um sistema educacional disciplinar, o discurso reforçador sobre a importância das provas é central para justificar tal forma de dominação. Por isso mesmo, normas e valores culturais também têm impacto nas condições de produção do discurso. A adequação à cultura vigente reflete-se nas escolhas linguísticas, nas referências culturais e nas estratégias argumentativas adotadas pelo produtor do discurso.

          Vivemos em uma cultura que legitima o poder escolar e seus discursos de controle e disciplina. O conceito de disciplina é central em Foucault (2001, p.62) e nos ajuda a entender como a escola, por meio de procedimentos aparentemente rotineiros, como aplicar uma prova ou definir os horários de alimentação e descanso, estão impondo controle e disciplina:

A disciplina exerce seu controle, não sobre o resultado de uma ação, mas sobre seu desenvolvimento (…) A disciplina é uma técnica de poder que implica uma vigilância perpétua e constante dos indivíduos. Não basta olhá−los às vezes ou ver se o que fizeram é conforme à regra. E preciso vigiá−los durante todo o tempo da atividade e submetê−los a uma perpétua pirâmide de olhares. (…) E o poder de individualização que tem o exame como instrumento fundamental. O exame é a vigilância permanente, classificatória, que permite distribuir os indivíduos, julgá−los, medi−los, localizá−los e, por conseguinte, utilizá−los ao máximo. Através do exame, a individualidade torna−se um elemento pertinente para o exercício do poder.

          Esse é o contexto do discurso escolar sobre avaliação. Ele é produzido em um contexto cultural que naturalizou a disciplina escolar. Se, de uma maneira simples, dizemos que o fim da escola é a aprendizagem, importante controlar o desenvolvimento nela, impondo constantes sistemas de vigilância e controle, como os horários, as chamadas, as tarefas, as provas, os exames externos, dentre tantos outros.

5. Incentivo à leitura no projeto institucional Ler Conecta

          O jorna em análise tem uma seção sobre o projeto institucional Ler Conecta. Faremos a análise do discurso do texto a seguir:

O projeto institucional Ler Conecta, tem[1] por objetivo principal o fomento à leitura com todos os segmentos discentes e surgiu da necessidade imposta em decorrência da Pandemia COVID-19 que intensificou, ao privar-nos do contato físico e direto com os alunos, algumas dificuldades existentes em relação às práticas de leitura e escrita na escola.

É inegável as dificuldades de leitura e produções escritas de nossos alunos, os motivos e causas são diversos e variados e vão desde à falta de acesso a leitura e principalmente a bons livros, passando pela falta de interesse e ou estimulo, e principalmente programas e projetos eficientes de incentivo à leitura desenvolvidos por quem detém a maior parte desta responsabilidade em formar e criar um público leitor crítico, participativo, variado e com competências e habilidades em compreender aquilo que está lendo. Assim sendo, o projeto visa preencher esta lacuna desenvolvendo atividades ligadas à competência leitora e escrita de maneira a propiciar aos alunos uma variedade de gêneros e tipos textuais e autores diversos, oportunizando aos mesmos o acesso a boas leituras de maneira a tornar tal prática uma constante em seu processo de ensino e aprendizado e que possa acompanha-lo por toda sua trajetória enquanto cidadão.

Para que venhamos a obter sucesso, alcançando os objetivos pretendidos faz-se necessário a participação de toda a comunidade escolar, gestores, equipe de apoio, pais e responsáveis, alunos e principalmente, os professores, pois os mesmos serão os propulsores deste processo, servindo como referência em suas práticas e comportamento leitor, indicando bons livros, orientando as leituras e interagindo com seus alunos durante a realização destas práticas (Canaã dos Carajás, PA, 2022, p.02, grifos nossos).

          A análise que faremos aqui fará o uso de dois conceitos centrais na análise do discurso francesa, que é o dito e o não-dito (Orlandi, 2003). O principal é entender aqui que aquilo que não foi também produzi sentido.

          Na análise do discurso, o conceito de “dito” e “não dito” refere-se à distinção entre o que é explicitamente expresso no texto ou na fala (o dito) e o que está implícito, subentendido, sugerido, mas não afirmado diretamente (o não dito). Essa abordagem visa compreender não apenas as palavras pronunciadas, mas também as lacunas, o subtexto e as entrelinhas que podem transmitir significados adicionais. O “dito” corresponde ao conteúdo manifesto e óbvio da comunicação, representado pelas palavras e frases expressas de maneira clara. Por outro lado, o “não dito” abrange aquilo que não é explicitamente articulado, envolvendo lacunas, subtexto, intenções subjacentes e significados que podem ser deduzidos do contexto.

          A análise do não dito desempenha um papel crucial na compreensão do poder simbólico do discurso, uma vez que mensagens mais significativas e impactantes frequentemente estão nas entrelinhas. O não dito pode ser influenciado por diversos fatores, como contextos culturais, sociais, históricos e pelas relações de poder entre os interlocutores. Assim, ao analisar o discurso, os estudiosos buscam desvendar não apenas o que foi expressamente comunicado, mas também o que foi implicitamente sugerido ou omitido.

          O trecho em negrito no texto foi escolhido porque ele há um não-dito, que se refere à própria naturalização da ideia de interesse pela leitura que está implícita no mesmo. O autor institucional aqui naturaliza o interesse pela leitura, como se ele não fosse fruto de condições culturais e acesso financeiro a possibilidades que permitem a leitura, como educação na idade certa, pais alfabetizados e com tempo para ler com os filhos, sem fala na própria possibilidade de comprar livros. Dessa forma, há um não dito que retira do próprio sistema de educação a responsabilidade pelo desinteresse pela leitura. Para entender melhor isso, tomemos a análise de Fisher (2001, p. 204):

Considerando nossos atos ilocutórios – atos enunciativos, atos de fala -, podemos dizer que esses se inscrevem no interior de algumas formações discursivas e de acordo com um certo regime de verdade, o que significa que estamos sempre obedecendo a um conjunto de regras, dadas historicamente, e afirmando verdades de um tempo. As “coisas ditas”, portanto, são radicalmente amarradas às dinâmicas de poder e saber de seu tempo. 

          As “coisas ditas” pela escola no contexto do jornal escolar não problematizam a realidade, apenas romantizam um olhar sobre a escola, como se ela fosse sem falhas e, mesmo com o desafio de continuar com aulas remotas no pós-pandemia, ainda assim se nega a construir uma discussão real sobre isso, apontando os problemas reais que tal mudança pode implicar. Tais “coisas ditas” produzem um efeito de sentido de que a escola deseja manter um imaginário diante da sociedade, de que ela é impecável, de tal forma que até mesmo a falta de interesse pela leitura de muitos alunos é de responsabilidade do próprio aluno.

6. Mídia contra hegemônica e o silenciamento dos alunos

          Bonini (2017) entende que o jornal escolar é um tipo de mídia alternativa e que ela tem o potencial de ser contra hegemônica, ou seja, de ser um canal participativo, contra o discurso dominante. Contudo, essa precisa ser uma decisão intencional da instituição que publica o jornal. No jornal em análise, a escola não apenas não dá voz aos alunos, mas fala por eles, conforme podemos ver nessa seção, sobre o serviço de orientação educacional, que podemos ver abaixo:

O Serviço de orientação Educacional realizou em parceria com os professores o processo de eleição dos representantes de turmas 2022. Com isso, objetivamos: Possibilitar ao aluno o exercício de práticas democráticas por meio do processo de reuniões e discussões com os representantes.

Desenvolver a capacidade crítica de nossos alunos, para que aprendam a interferir nas discussões e problemáticas da escola.

Compreender a importância da participação como forma de organização social que possibilita o desenvolvimento de seu próprio processo de formação cidadã.

Explicitar a função do representante de turma na perspectiva de uma democracia representativa e participativa.

Ouvir os alunos, orientando-os, com o objetivo de consolidar as relações democráticas na escola.

Reduzir e eliminar quaisquer formas de desentendimento entre professor e aluno e aluno e professor.

Fortalecer e fazer a mediação entre o aluno e a turma e/ ou o aluno e a turma perante a escola.

Representar a turma perante a escola (Canaã dos Carajás, PA, 2022, p.013).

          O que fica claro aqui é que, em um serviço que tem como objetivo a orientação educacional, os alunos não foram consultados para que a escola soubesse no que efetivamente eles precisam ser “orientados”. Isso chama especialmente a atenção no trecho que o objetivo da orientação é eliminar as formas de desentendimento entre aluno e professor. Por que os alunos não foram convidados a partir e a falar sobre o que causa desentendimento? Entendemos que o jornal em análise é um documento de dominação, porque ele é reflexo de uma escola disciplinar e controladora. Sobre isso, diz Bonini (2017, p.173):

O jornal escolar modelado pela mídia jornalística hegemônica trabalha em função da opressão, da manutenção e do fortalecimento do mesmo contorno de mundo, com a tísica democracia de vozes e parcas possibilidades de mudanças que essa mídia implica. Mas se o jornal é escolar não modelado pela mídia dominante, ele pode representar os sujeitos (homens/mulheres) e a ação construtora local. Nesse sentido, ele pode ser um jornal comunitário. E sua ação política pode ser ainda mais questionadora, ao viabilizar o questionamento dos lugares sociais e ao dar ensejo a uma ecologia de saberes contra-hegemônica.

            A escola pública deveria ser uma construção coletiva, ou seja, um espaço onde gestores, professores, discentes e comunidade estabelecessem uma parceria para se emancipar mutuamente. Contudo, a escola brasileira se organiza com um espaço autoritário e utiliza esse lugar social legitimado para proferir seus discursos que perpetuam essa dominação (Crochick, 2021) Os discursos são estratégias pelas quais a escola legitima e naturaliza a sua dominação e o jornal escolar é um meio para isso.

          A leitura do jornal nos mostra como a atuação da gestão escolar é romantizada e não se trabalham os conflitos. A construção da escola como espaço público implicam em olhar para os problemas sociais inerentes a escola, do contrário, a escola será mera reprodutora de relações de poder.

Considerações Finais

          A análise de discurso de tradição francesa se pergunta: como determinado corpus produz sentido? Para responder a essa pergunta cabe ao analista olhar para a história, para a língua e para o sujeito – para daí apreender as ideologias e relações de poder. Na figura a seguir mostramos os resultados de cada uma dessas relações:

Figura 1: Sentidos no jornal escolar

Fonte: elaborado pela autora (2024)

            Por sua vez, na figura a seguir, construímos a trajetória discursiva nos possibilitou perceber a relação de poder intrínseca:

Figura 2: Trajetória discursiva

 Fonte: elaborado pela autora (2024)

          A escola publica seu jornal escolar há vários anos e esse artigo tem como limitação ter feito a análise de uma única edição. Nesse contexto, cabe ampliar a análise para outros jornais e para outras escolas, para entender se, em contextos outros, o jornal escolar também é utilizado para validar um discurso de poder.

Referências

ALVES FILHO, F. A autoria institucional nos editoriais de jornais. Alfa, São Paulo, v. 50, n. 1, p.77-89, 2006. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/1396/1096. Acesso em: 26 fev.2024.

FISCHER, R. M. B.. Foucault e a análise do discurso em educação. Cadernos de Pesquisa, n. 114, p. 197–223, nov. 2001. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cp/a/SjLt63Wc6DKkZtYvZtzgg9t/#ModalHowcite. Acesso em: 27 fev.2024.

FOUCAULT. M. A Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2001.

ORLANDI, Eni.  Análise de Discurso: princípios e procedimentos. São Paulo: Pontes, 2003.

ORLANDI, E. P. (Org.). Linguagem, sociedade, políticas. Pouso Alegre: UNIVÁS; Campinas: RG Editores, 2014. 230p.

RUIZ, Tânia Maria Barroso. Autoria institucional no jornal escolar O Colegial – órgão dos alunos do Colégio Catarinense (1945-50) / Institutional Authorship in the School Newspaper O Colegial, a Publication by Colégio Catarinense Students (1945-50). Bakhtiniana, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 150-170, jan./mar. 2019.


[1] Mantivemos o erro na pontuação da oração, conforme o original, porque a análise do discurso não pode admitir que o analista faça mudança no texto.