REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102411141420
Luan Luiz Rodrigues Nogueira1
Resumo
Em 14 de março de 2024, o Estado Brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pela execução extrajudicial de doze pessoas, protagonizada pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, em operação deflagrada na rodovia José Ermírio de Moraes no dia 5 de março de 2002. Nesse contexto, surge a necessidade de avaliar a conjuntura sócio-política em que a operação foi realizada, bem como aferir se a utilização política da força policial das instituições de Segurança Pública do Estado de São Paulo pode ter dado ensejo à tão grave violação de Direitos Humanos no bárbaro episódio que ficou conhecido como caso castelinho. De maneira análoga, oportuno refletir também acerca dos ensinamentos que o Brasil pode extrair dessa condenação para a construção de uma mudança de paradigma em relação à atuação do Estado, especialmente a concernente à atividade policial.
Palavras-chave: Caso Castelinho; Condenação; Corte Interamericana; Utilização política da força policial.
Abstract
On march, 14, 2024, the brazilian State was condemned by the Inter-American court of human rights for the extrajudicial execution of twelve people, carried out by the military police of the state of São Paulo, in operation launched on the José Ermírio Moraes highway on march 5, 2002. In this context, there is a need to evaluate the social-political situation in which the operation was carried out, ass well as to assess whether the political use of the police force of Public Security institutions in the state of São Paulo may have given rise to such serious violation of human rights in the barbaric episode that became known as the castelinho case. In a similar way, it is also opportune to reflect on the lessons that Brazil can extract from this conviction to construct a paradigm shift in relation to the State’s actions, especially regarding police activity
Keywords: Castelinho case; Conviction; Inter-American Court; Political use of police force.
INTRODUÇÃO
Não é novidade a participação do Estado brasileiro em episódios de lamentável violência policial. A herança de uma sociedade desigual desde sua concepção colonial, perpassando pelo longo período de escravidão e sua abolição despretensiosa de inclusão fizeram eclodir a violência nos grandes centros urbanos. Nesse contexto, surge o falacioso discurso da criminalização da pobreza como instrumento de validação da ação violenta do Estado.
Tantas foram as ações violentas perpetradas por agentes do Estado brasleiro que, atualmente, o Brasil é o segundo país com mais casos em análise pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, ficando atrás apenas da Venezuela. O Brasil já foi julgado pela Corte quatorze vezes, tendo sido condenado em treze. Dentre as ocasiões pelas quais o Brasil foi condenado, seis envolviam policiais ou militares.
No cerne de tão nefasto comportamento estatal, destaca-se o caso “Castelinho”, julgado em março de 2024 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, pelo qual o Brasil foi condenado.
No dia 05 de março de 2002, a Polícia Militar do Estado de São Paulo, contando com um efetivo de aproximadamente cem homens, deflagrou uma operação na altura da praça de pedágio da rodovia Senador José Ermírio de Moraes, nas proximidades da cidade de Sorocaba, região conhecida como “Castelinho”. Na ocasião, foi realizada a interceptação de um ônibus que conduzia supostos criminosos para a prática de assalto a um avião de transporte de valores que chegaria ao aeroporto de Sorocaba com um montante em dinheiro estimado em aproximadamente 28 milhões de reais. Os policiais realizaram mais de 700 disparos no ônibus interceptado que culminaram com a morte dos doze suspeitos. Na ocasião, um policial também ficou ferido.
Inicialmente, a operação foi amplamente propagada como um sucesso no combate ao crime organizado e às facções criminosas paulistas. Contudo, com a evolução das investigações e após uma série de denúncias de entidades da sociedade civil, a exemplo da Ordem dos Advogados do Brasil, diversas inconsistências na versão oficial apresentada pela Polícia foram encontradas, tais como a inexistência do suposto avião de transporte de valores e a participação, com autorização da Poder Judiciário e ciência da Secretária de Estado de Segurança Pública, de presos condenados que se encontravam cumprindo pena no sistema carcerário paulista no planejamento do assalto ao avião.
De igual maneira, a adulteração da cena da operação, bem como o sumiço das imagens das câmeras de segurança do pedágio, que chegaram a estar sob a guarda da polícia, suscitaram ainda mais discussões acerca da legitimidade da operação e fizeram eclodir no seio social desconfianças acerca da real motivação da operação castelinho.
O presente estudo tem por finalidade estudar a possível relação da utilização política das forças policiais como um dos fatores determinantes para o resultado da operação Castelinho, à luz da análise do momento sócio-político por que passava a sociedade paulista. Para tanto, será utilizado o método bibliográfico, utilizando-se de pesquisas científicas, além da consulta a matérias publicadas acerca do assunto, sobretudo por especialistas na área.
1. CENÁRIO POLÍTICO-SOCIAL DA SOCIEDADE PAULISTA
Para a melhor compreensão das circunstâncias que ocasionaram o trágico desfecho da operação Castelinho, é necessário realizarmos uma breve digressão a outubro de 1992, quando, de uma ação policial para conter uma rebelião de presos do pavilhão nove do presídio do Carandiru, resultou a morte de cento e onze presos. Na ocasião, a rebelião foi atribuída à existência de várias facções na cadeia e ao fato de a administração da penitenciária ser realizada pelos próprios detentos.
O episódio de violência protagonizado pela polícia repercutiu nacional e internacionalmente, fazendo nascer para os presos a ideia necessária de uma organização com a finalidade de evitar que novos massacres atingissem a população carcerária. Idealizaram ainda que uma organização hierárquica dentro dos centros de detenção evitaria brigas internas como as que ensejaram a rebelião do Carandiru e traria mais possibilidades de negociação com o Estado[1]. Nesse contexto, em agosto de 1993, especialistas apontam para o surgimento da maior facção criminosa do país, nascida no seio do sistema carcerário paulista.
Com uma gestão do crime mais organizada, os anos seguintes aos da criação da facção paulista que atua dentro e fora dos presídios revelaram um novo nível de poder da criminalidade do Estado de São Paulo. Uma série de ações começaram a ser orquestradas de dentro das cadeias e começaram a chamar a atenção da população paulista para uma sensação de insegurança sem precedentes.
Ações como o sequestro da apresentadora Patrícia Abravanel, fugas cinematográficas de presídios paulistas, inclusive com a utilização de aeronaves e a maior rebelião do sistema carcerário nacional, em fevereiro de 2021, que atingiu 29 unidades prisionais, em 19 cidades paulistas, promoveram uma verdadeira espetacularização do crime. Após a megarrebelião de 2021, a existência da nova facção paulista, cuja existência era negada pelo Estado, restou comprovada.
A demonstração de um novo modus operandi, com mais crueldade, planejamento e organização fez com que a imprensa se interessasse mais pelas novidades do crime no Estado de São Paulo. A intensa presença de notícias sobre o crime organizado paulista nos noticiários fez surgir uma forte sensação de insegurança para a sociedade.
2. UTILIZAÇÃO POLÍTICA DAS FORÇAS DE SEGURANÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO NA OPERAÇÃO CASTELINHO
Nesse contexto de completa insegurança implementado pelas inovações criminosas no Estado de São Paulo, era natural esperar do Estado o engendramento de esforços no sentido de melhorar a política de segurança pública e, à luz da legalidade que vincula a Administração Pública, prestar uma rápida resposta à sociedade paulista.
No entanto, ao invés de uma atuação legal, clara e transparente, a resposta estatal para as inovações criminosas foi eivada de vícios. Inicialmente, o Grupo de Repressão e Análise aos Delitos de Intolerância, GRADI, subordinado diretamente à Secretaria de Estado de Segurança Pública, que havia sido criado em março de 2000 com a finalidade de reprimir crimes e ataques contra minorias e executar prevenção contra crimes de intolerância de qualquer espécie foi rapidamente desvirtuado dos objetivos de sua criação e passou a investigar o crime organizado.
O GRADI passou então a cooptar criminosos condenados que cumpriam pena nos estabelecimentos carcerários de São Paulo para a infiltração na facção paulista. Para tanto, contou com a autorização extra oficial de magistrados para a liberação ilegal dos presos.
Foi nesse cenário que começou a amoldar-se a operação Castelinho que aconteceria em março de 2002. Três criminosos condenados foram liberados pela Administração Carcerária para colaborarem com o GRADI com a infiltração em ações criminosas fora dos presídios e o repasse de informações.
Infiltraram-se três presos liberados para colaborar com as investigações do GRADI em organização criminosa, fomentaram e participaram ativamente do planejamento e da preparação logística com veículos, armas e munições para o assalto ao suposto avião transportador de alta cifra em valores que chegaria ao aeroporto de Sorocaba-SP.
No dia 5 de março de 2002, quando os bandidos se deslocavam em direção ao local do crime, nas proximidades de um pedágio da Rodovia José Ermírio de Moraes, a Polícia deflagrou a Operação Castelinho, que contou com mais de cem policiais e ocasionou a morte de 12 bandidos.
Ato contínuo ao desfecho da Operação, houve rápida propagação pela imprensa e pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo do enorme êxito policial obtido com a ação policial, fazendo parecer que, dessa vez, o aparelho estatal teria conseguido se antecipar ao crime e prestado rápido combate às ações criminosas intentadas. Contudo, a existência de inconsistências nas informações causou efeito contrário à imagem que se pretendia construir com a operação, fazendo emergir rapidamente questionamentos sobre a legalidade da atuação estatal e do uso da força policial.
As principais inconsistências encontradas foram o fato de que a administração do aeroporto de Sorocaba informou que o avião que supostamente transportaria os valores nunca existiu, já que aquele aeroporto não recebia mais esse tipo de vôo. Outra questão erigida foi acerca da legalidade da infiltração de presos condenados em organização criminosa, já que a autorização para a infiltração em grupos criminosos só passou a ser autorizada, no Brasil, com o advento da lei 11.343/2006 e ainda assim, era restrita aos agentes policiais.
Outro ponto que chamou a atenção foi o fato de os integrantes da organização alvo da infiltração mortos na operação, que haviam sido aliciados pelos condenados que colaboravam com o GRADI, possuíam extensa ficha criminal e muitos encontravam-se, inclusive, na situação de fugitivos do sistema prisional. Portanto, desde o início da infiltração, o poder público poderia ter recapturado os criminosos integrantes da organização objeto da infiltração, dando outro desfecho à Operação, sem o resultado morte. Ainda no contexto das apurações iniciais, verificou-se também o desaparecimento das imagens das câmeras de segurança da praça de pedágio que ficava nas proximidades.
Nesse sentido foi o parecer do vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, João José Sady, emitido em 2002:
1- Os juízes da Corregedoria dos Presídios da Comarca da Capital, há quase dois anos, vinham liberando presidiários, que cumpriam pena em regime fechado, a deixar o cárcere para viver aqui fora em regime de semi-liberdade, com a finalidade, agora tornada conhecida, de serem ativados em operações de investigação policial.
2 – Conforme consta dos ofícios e certidões expedidas, tais meliantes eram entregues ao órgão denominado de Grupo de Repressão e Análise de Delitos de Intolerância – GRADI. Passavam, então, a residir, oficialmente, no quartel de cavalaria onde se situava a base daquela unidade policial, com autonomia para entrar e sair no horário que desejassem, bem como dormir fora da unidade, sem qualquer escolta.
3 – Tais regalias eram deferidas em troca de que estes indivíduos efetuassem trabalhos de infiltração em grupos criminosos, para obter informações que possibilitassem a prisão dos meliantes. O apogeu da atividade de tal grupo, resultou na denominada “operação castelinho” apresentada à imprensa como grande vitória das forças policiais contra o crime organizado.
4 – Conforme relatório apresentado por tais servidores públicos ao Juiz Corregedor da Polícia, aquela unidade, juntamente com os seus colaboradores presidiários, infiltrou-se em certa quadrilha que lhes confessou larga série de crimes, bem como, o projeto de praticar assalto no aeroporto de Sorocaba, no dia 5 de março de 2002.
Registre-se que a maioria destes elementos era constituída de fugitivos escapados às prisões e que deveriam ter sido imediatamente detidos.
5 – Ao invés de efetuar a prisão dos meliantes, os agentes, teriam colaborado com a organização e execução do delito em perspectiva. Utilizaram-se de viaturas policiais descaracterizadas, foram ao local do crime, associaram-se aos criminosos, ajudando-os a planejar e executar o delito, em seus menores detalhes. Tudo foi conduzido de modo que, com quarenta e oito horas de antecedência, os agentes policiais tinham pleno conhecimento de quem e quantos eram os delinqüentes, de onde sairiam, com quais armamentos, etc..
6 – Novamente, ao invés de simplesmente efetuar a prisão dos meliantes, os agentes organizaram um comboio para transporta-los, composto de um ônibus, uma D-20 e uma Ranger. Tal cortejo era capitaneado pelos agentes e seus colaboradores presidiários, que viajavam numa viatura policial (parati de cor prata) descaracterizada que, liderando o grupo, conduziu-os a uma emboscada, na qual foram eliminados fisicamente por tropas policiais, com o uso de força letal, em circunstâncias ainda não devidamente esclarecidas.
7 – Os referidos fatos foram apresentados à comunidade sob outra versão e com outras roupagens. Para esconder a realidade, foi produzido inquérito policial militar que espelha a versão oficial. Não está claro se o instrutor do inquérito agiu de má fé para forjar o resultado ou se foi enganado pelo falso testemunho dos maus policiais.
No entanto, investigações desenvolvidas pela Subcomissão de Segurança Pública da Comissão de Direitos Humanos vieram a revelar este conjunto de fatos aqui reportado e que, mais tarde, veio a ser corroborado pela descoberta do relatório reservado encaminhado pelo GRADI ao Juiz Corregedor da Polícia, no qual, a verdade sobre os fatos, escondida da população, era descrita minuciosamente como acima noticiado.
8 – Reunindo em sigilo uma comissão de juristas de nomeada, esta Comissão colheu o parecer unânime no sentido de que todos estes atos foram indubitavelmente ilegais. Os juízes teriam violado a lei ao deferir esta vida de prazeres e aventuras à “James Bond”, aos presidiários que cumpriam pena em regime fechado.
As autoridades policiais violaram a lei porque a infiltração em quadrilhas só é permitida quando praticada por agentes policiais e, ainda assim, tal autorização legislativa só veio a ser editada após os fatos aqui narrados. A Comissão de Direitos Humanos deu imediatamente notícia desta conspiração criminosa ao Presidente da Seccional, também em caráter sigiloso, na medida em que inexistiam, até então, quaisquer provas que corroborassem este cenário. Dali por diante, ficamos no encalço de obter provas dos acontecimentos, tais como, as autorizações e os relatórios acima referidos que só muito mais tarde é que chegaram às nossas mãos.
3. JULGAMENTO NO BRASIL
Logo após os fatos, em março de 2002, a Polícia Militar do Estado de São Paulo instaurou Inquérito Policial Militar para apurar as circunstâncias que ocasionaram as mortes na abordagem policial ao comboio de investigados durante a operação Castelinho. Após diligências complementares, em novembro de 2002, o oficial responsável pela presidência do Inquérito remeteu os autos para o comando da Polícia Militar de São paulo. O subcomandante decidiu aditivamente ao parecer que havia indícios de crime militar.
A remessa dos autos pelo subcomando da Polícia Militar ao juiz da primeira auditoria da Justiça Militar estadual em dezembro de 2002. Em janeiro de 2004, os autos foram remetidos à Polícia Militar de Choque e foram encaminhados para a Corregedoria da Polícia paulista com ordens de arquivamento.
Na justiça comum, foi aberto inquérito pela Polícia Civil em 2002, tendo o Ministério Público solicitado diversas provas e diligências adicionais. Em dezembro de 2003, o Ministério Público apresentou denúncia contra 55 pessoas, sendo 53 policiais e 2 integrantes do sistema prisional paulista que teriam participado na condição de colaboração com a Polícia Militar.
Em dezembro de 2004, a Fundação Interamericana de Direitos Humanos e outras entidades apresentaram ao Procurador-Geral da República um pedido para a transferência da competência das investigações da Operação Castelinho para a esfera federal, que foi rejeitado em junho de 2005.
Finalmente, em 2014, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo proferiu decisão absolutória acerca do processo penal nº 0012422-57.2002.8.26.0286, na qual foram absolvidos os réus que eram condenados à época dos fatos sob o fundamento da teoria do domínio do fato e os policiais, sob a justificativa de terem atuado em legítima defesa e estrito cumprimento do dever legal.
Em janeiro de 2015, o Ministério Público do Estado de São Paulo recorreu da decisão absolutória, lastreado nas provas técnicas produzidas durante o processo penal. O Ministério Público pediu que fossem analisadas as evidências de desaparecimento das imagens do pedágio da rodovia, examinada a alegação de que os privados de liberdade e os agentes policiais teriam participado do planejamento e da ação e ainda o fato de o grupo não ter sido detido antes da deflagração da operação. No entanto, em 2017, o Tribunal de Justiça rejeitou o recurso de apelação.
4 PROCEDIMENTOS NO SISTEMA INTERAMERICANO
4.1. Procedimento perante a Comissão
Em abril de 2003, a Federação Interamericana de Direitos Humanos apresentou petição inicial perante a Comissão interamericana de Direitos Humanos. Em março de 2007, a Comissão aprovou o relatório de admissibilidade Nº 18/07, que foi notificado às partes em maio de 2007.
Apenas em 2019, ou seja, dezesseis anos após a petição, a Comissão aprovou o relatório de mérito Nº 238/19, no qual chegou a uma série de conclusões e formulou várias recomendações ao Estado. Esse relatório de mérito foi notificado ao Estado em fevereiro de 2020, com um prazo de dois meses para a informação acerca das providências tomadas em relação às recomendações formuladas.
Em maio de 2021, a Comissão submeteu à Corte Interamericana de Direitos Humanos, com a totalidade dos fatos e violações de Direitos Humanos do caso. A Comissão ainda enfatizou a preocupação com o prazo desarrazoado de dezoito anos e um mês entre a petição inicial perante a Comissão e a submissão do caso perante a Corte. A Comissão solicitou à Corte a declaração da responsabilidade internacional do Estado brasileiro pela violação do artigo 4.1 da Convenção Americana no tocante às obrigações estabelecidas pelo artigo 1.1 do mesmo instrumento, em detrimento das 12 vítimas, bem como pelas violações aos artigos 5. 8 e 25 da Convenção, em relação às obrigações constantes no artigo 1.1, em desfavor dos familiares das vítimas.
4.2. Procedimento perante a Corte
Em setembro de 2021, a submissão do caso foi notificado ao Estado brasileiro. Em dezembro de 2021, os representantes apresentaram o escrito de petições, argumentos e provas, conforme os artigos 25 e 40 do regulamento da Corte. Além de aderir às violações trazidas pela comissão, pugnaram por medidas de reparação adicionais. Nessa mesma ocasião, os representantes solicitaram fazer uso do Fundo de Assistência Jurídica de Vítimas da Corte, pleito julgado procedente pela corte em junho de 2022.
Em março de 2022, o Estado brasileiro apresentou um escrito de exceções preliminares e de contestação à submissão do caso pela Comissão. Nessa oportunidade, o Brasil interpôs duas exceções preliminares e uma consideração prévia, além de apresentar oposição às violações atribuídas e as reparações decorrentes. Já em junho de 2022, os representantes e a Comissão apresentaram suas observações às exceções interpostas pelo Brasil.
Em dezembro de 2022, a Corte Interamericana de Direitos Humanos convocou os representantes e o Estado brasileiro para uma audiência com a finalidade de receber alegações e observações finais orais, além de receber o depoimento da suposta vítima, de uma testemunha e de um perito proposto pelo Estado. A audiência ocorreu em fevereiro de 2023, durante o 155º Período Ordinário de Sessões.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos recebeu sete pedidos de amicus curiae, bem como solicitou ao Estado Brasileiro por duas ocasiões a apresentação de prova documental de ofício. Tal pedido foi atendido e a documentação solicitada foi remetida ao tribunal.
Em março de 2023, os representantes das vítimas e o Estado brasileiro remeteram à corte suas observações e alegações finais escritas e, em dezembro de 2023, durante o 163º Período Ordinário de Sessões, a Corte deliberou a sentença condenatória do Estado Brasileiro ora retratada.
5 SENTENÇA CONDENATÓRIA E OBRIGAÇÃO DE REPARAÇÃO
No julgamento do caso “Castelinho”, a Corte considerou o Brasil culpado pela execução extrajudicial de doze pessoas, bem como reconheceu graves falhas e omissões na coleta e preservação dos possíveis meios de prova. A Corte concluiu ainda que tamanhos foram os desvios no curso da investigação criminal que só podem ter sido ocasionados por uma vontade deliberada do Estado de não apuração e manutenção da impunidade.
Diversas também foram as obrigações de reparação atribuídas pela Corte ao Estado brasileiro. Inicialmente, a Corte determinou, num prazo de três meses, a criação de um grupo de trabalho com a finalidade de esclarecer as atuações do GRADI, bem como evitar a repetição de fatos como os da operação “Castelinho”. A Corte fixou o prazo de dois anos para que o referido grupo apresente um relatório definitivo.
A sentença prossegue determinando as medidas de reabilitação, segundo as quais o Brasil é obrigado a prestar assistência médica, psicológica e psiquiátrica aos familiares das vítimas. Como medida de satisfação, determinou a Corte a publicação da sentença no Diário Oficial da União e do Estado de São Paulo.
Como ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional, a Corte exigiu que o Brasil organize, no prazo de um ano, evento público de reconhecimento de responsabilidade internacional em relação ao caso “Castelinho”. Nesse ato, deve ser feita referência às violações dos Direitos Humanos declaradas na sentença e deverá contar com a presença das vítimas e familiares, bem como de altos funcionários do Governo de São Paulo e da Polícia Militar.
A título de garantia de não repetição, a Corte exigiu que o Estado de São Paulo realize a completa implementação de dispositivos de geolocalização e registro dos movimentos dos veículos policiais, além do envio dos registros de operações policiais que resultem morte ou lesões graves de civis, incluindo gravações das câmeras corporais e geolocalização aos órgãos de controle interno e externo da Polícia Militar de São Paulo.
Quanto à reabertura de processos judiciais, a Corte reiterou o entendimento que já havia manifestado no caso Sales Pimenta Vs. Brasil, determinando que o Estado crie, no prazo de três anos, mecanismo que permita a reabertura de investigações e processos judiciais, inclusive nos quais tenha ocorrido prescrição, quando uma sentença futura da Corte o Estado seja responsabilizado internacionalmente por inobservar a obrigação de investigar violação de Direitos Humanos.
Seguindo as medidas de reparação, a Corte segue fixando a necessidade de alteração normativa interna do Brasil, com a finalidade de permitir que a apuração seja realizada por um órgão independente e diferente da força policial envolvida no incidente. Para o cumprimento dessa medida, fixou o prazo de um ano a contar do proferimento da sentença.
Reconhecendo a função de controle externo do Ministério Público, a Corte determinou o aparelhamento do órgão, com recursos materiais e humanos, em prazo razoável, para o correto exercício do controle externo da atividade policial e proceder investigações autônomas nos casos de graves violações de Direitos Humanos promovidas por agentes policiais.
A título de indenização compensatória, o Estado brasileiro foi condenado a pagar U$ 20.000,00 (vinte mil dólares dos Estados Unidos) para os familiares das vítimas em decorrência de dano material e imaterial, bem como U$ 80.000 (oitenta mil dólares dos Estados Unidos) a favor de cada uma das doze vítimas, devendo esse montante ser pago a seus herdeiros.
Por fim, a sentença da corte determinou que o Brasil restitua os valores utilizados do Fundo de Assistência Jurídica das Vítimas da Corte Interamericana de Direitos Humanos, durante a tramitação do julgamento do caso “Castelinho”, bem como apresente, no prazo de um ano, relatório acerca do cumprimento das medidas ordenadas na sentença.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Cada vez mais, ganha força o movimento global que baliza o caminho da afirmação constante e crescente, à luz da dinamogenesis dos Direitos Humanos. Nesse contexto, o excesso de violência perpetrada pelo Estado brasileiro por meio de suas instituições tem feito transcender os flagrantes de violações de Direitos Humanos para além dos limites territoriais pátrios.
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos, por intermédio do juízo de admissibilidade da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da sentença de condenação proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos impôs ao Brasil uma série de obrigações de reparação de violações cometidas durante a operação “Castelinho”.
No entanto, o Estado brasileiro não pode limitar sua evolução aos comandos repressivos da referida sentença. Mais que minimizar os efeitos dos erros já praticados, é necessário trabalhar no sentido de evitar novas falhas, ao menos as que possam acontecer segundo os mesmos aspectos anteriores.
Diante da sentença condenatória e reparatória na qual o Brasil foi condenado, é imprescindível que se proceda uma verdadeira ressignificação da atuação policial, com maior preparação, maior empatia social e respeito aos Direitos Humanos. O treinamento não deve restringir-se a protocolos táticos e operacionais, mas contemplar áreas do conhecimento social e antropológico para entenderem a formação da sociedade brasileira e seu estado de maturação.
Compreender que a violência desmedida e gratuita, ainda que por vezes possa soar como justiça, não passa de justiçamento, tão inútil quanto catalisador de um ciclo infindável da barbárie que não respeita lado algum. Enquanto a violência estatal parece não recuar, os agentes são cada vez mais desacreditados e igualmente vítimas de crescente violência.
É cediço também que a União parece estar mais adiantada no processo de compreensão e aceitação da necessidade de respeito aos Direitos Humanos, principalmente no que tange à atuação de seus agentes. Diversamente, talvez por não encontrarem-se diversamente no polo passivo de eventual controle pelo Sistema Interamericano, os Estados da Federação ainda carecem de processo intenso de conscientização acerca do tema.
Portanto, é necessário a percepção e aceitação do julgamento do caso Castelinho não como mero encargo ao Estado brasileiro, mas como um verdadeiro mandamento de otimização da atuação estatal no sentido de reeducar seus agentes e quebrar um paradigma de extremismo securitário obsoleto, violento, cruel, ineficaz e internacionalmente vergonhoso que não guarda correspondente legal interno nem tampouco é tolerado nos cenários regional ou global.
Por fim, é necessária a quebra de uma barreira geográfico-jurídica, a fim de entender a coexistência do Brasil num todo de Estados, que sem abrir mão de suas soberanias, caminham no sentido da proteção global da dignidade humana, à luz de uma perspectiva do pluralismo jurídico e intercultural dos direitos humanos, que desponta como o único itinerário possível para a tão almejada materialização da paz social, com respeito pleno à dignidade de todos os seres humanos.
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1 email: luannogueira03@hotmail.com