UMA ABORDAGEM DIALÓGICA NOS FILMES JOÃO E MARIA DE TIM BURTON E MARIA E JOÃO: O CONTO DAS BRUXAS DE ROB HAYES BASEADO NO CONTO ORIGINAL DOS IRMÃOS GRIMM NA PERSPECTIVA DAS VOZES BAKHTINIANAS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.12175203


Deilma Barbosa Santos Silva [1]


RESUMO: O presente estudo traz reflexões à luz das vozes bakhtiniana sobre o fenômeno do dialogismo no gênero discursivo conto de fadas. Parte do pressuposto de que as narrativas infantis, principalmente os contos de fadas, apesar de passarem por modificações e adaptações em diferentes culturas e épocas, mantiveram seu caráter principal. Dessa forma, o presente trabalho tem como objetivo geral apresentar possíveis diálogos entre o gênero discursivo conto de fadas nas versões cinematográfica das obras baseadas nos Irmãos Grimm “João e Maria”, de Tim Burton (1987), “Maria e João: o conto das bruxas”, de Rob Hayes (2020), apontando aspectos que estabelecem o diálogo entre esses enunciados a partir das impressões bakhtiniana e levando em consideração seu caráter atemporal e pertinência nas práticas pedagógicas. Parte da hipótese que implementar o dialogismo através da leitura de obras que se relacionam, num processo de intertextualidade explícita ou implícita, comparando-os em perspectivas textuais e contextuais, pode contribuir para uma compreensão leitora mais eficiente no trabalho com literatura. O estudo é de natureza bibliográfica, fundamentando-se nas reflexões de Bakhtin sobre a noção de linguagem em perspectiva dialógica. A partir dos pressupostos de Bakhtin (2005) que apresenta a apreciação valorativa do locutor em relação ao tema e ao lugar que ocupa nas relações sociais, institucionais e interpessoais pelas escolhas linguístico-enunciativas que faz, fica evidente que as vozes se entrecruzam no texto por mobilizar todas as funções e as dimensões da linguagem.

Palavras-chave: Conto de fadas; gênero do discurso; dialogismo.

1. Introdução

As narrativas infantis, principalmente os contos de fadas, apesar de passarem por modificações e adaptações em diferentes culturas e épocas, mantiveram seu caráter principal. Enquanto legado cultural traduz-se numa possibilidade de manter viva a história do povo. Os contos de fada também se qualificam como recurso pedagógico e linguístico significativo, pois a interlocução com obras (literárias ou não) requerem a construção de sentidos mediante o diálogo e respectiva atitude responsiva e, sobretudo, oportuniza uma compreensão de mundo, com seus problemas e possíveis soluções. A partir dessa constatação, a escolha da temática decorre do interesse pela perspectiva de Bakhtin no campo dos estudos da língua enquanto objeto de estudo de análise discursiva e pelos contos de fadas.

Partindo da premissa que o conto de fadas é um gênero discursivo de fácil compreensão e acesso, é difícil encontramos uma pessoa que nunca ouviu ou leu uma narrativa dessa temática. Para melhor compreensão, pretende-se nesse artigo abordar o significado do tema central – contos de fadas – em diferentes enfoques. Apresentamos também a origem, as relações entre o mundo mágico e o mundo real, o que possibilitará assim, entender também sua simbologia em nossa realidade e também um panorama histórico social das obras apresentadas. Dessa forma, apresentamos possíveis diálogos entre o gênero discursivo conto de fadas nas versões cinematográfica das obras baseadas nos Irmãos Grimm João e Maria, de Tim Burton e Maria e João: o conto das bruxas, de Rob Hayes apontando aspectos que estabelecem o dialogismo entre esses enunciados a partir da perspectiva das vozes bakhtinianas, considerando seu caráter atemporal e pertinência nas práticas pedagógicas.

2. O gênero conto e as versões atuais de João e Maria.

O conto de fadas é um gênero literário da prosa de ficção. No tocante  ao romance, o conto, enquanto gênero diferencia-se porque ele se baseia na dramaticidade dos fatos narrados e também estar condicionado ao relato de uma única situação. Assim, como todo texto de ficção, o conto apresenta um narrador, personagens, ponto de vista e enredo. Leal (1985) define o conto de fadas como:

(…) uma narrativa tradicional que tem por herói, seres humanos; sua forma é solidamente estabelecida e nela os elementos sobrenaturais ocupam posição secundária. Não se refere a temas “sérios” ou reflexões filosóficas profundas. Seu principal atrativo consiste na própria narrativa (Leal, 1985, p.23).

Por ser uma narrativa curta, esse gênero é caracterizado como um texto sob a forma de prosa que diz o que tem que dizer em poucas linhas, e ainda produz grande impacto em quem lê. Duas de suas grandes qualidade são a concisão e a brevidade. Apesar do conto se aproximar da poesia e da crônica, eles não devem ser confundidos; cada um tem suas especificidades.

Existem partes que nem sempre são percebidas pelo leitor ao ler um conto, o conto traz mistério, que a princípio parece claro e simples, mas que na verdade pode ser uma peça chave para um acontecimento que vai além da história. O indivíduo que ouve histórias desde a sua infância poderá desenvolver com mais facilidade as competências e habilidades leitoras. É nessa perspectiva que Aguiar (1990) define os contos de fadas:

Os contos de fadas mantêm uma estrutura fixa. Partem de um problema vinculado à realidade (como estado de penúria, carência afetiva, conflito entre mãe e filhos), que desequilibra a tranquilidade inicial. O desenvolvimento uma busca de soluções, no plano da fantasia, com a introdução de elementos mágicos. A restauração da ordem acontece no desfecho da narrativa, quando há uma volta ao real (Aguiar, 1990, p. 64).

É comum encontramos nos contos algumas características que também os definem: possuem uma narração unidimensional sem delongas com uma linguagem sem formalidades, ou seja; é uma linguagem simples. Nos textos apresenta sempre um conflito sem envolvimento de muitos personagens.

A origem da palavra conto advém do latim e o seu significado se resume em oralidade e ficcionalidade, ou seja, os contos não precisam necessariamente dispor de aspectos da realidade (Barbosa, 1991 apud Hillesheim e Guareschi, 2006), pelo contrário, os mesmos utilizam o “maravilhoso” como elemento para o entretenimento e projeção dos problemas humanos. Cabe ressaltar que os contos de fadas dispõem do que o filósofo e linguista Todorov (1980/1981) denominou como fantástico e maravilhoso.

Hoje o termo se refere a uma gama de narrativas, incluindo as histórias que normalmente recorrem a heróis quase sempre jovens, com coragem e habilidade em aventuras estranhas muitas vezes mágicas, que lhes servem de teste para um eventual destino feliz, e madrastas más cuja função é dificultar‑lhes a vida ao longo da narrativa.

Para Bakhtin (2003), a formação de novos gêneros está relacionada com as ações humanas, sendo assim, em cada momento histórico, surge um novo gênero com suas características específicas, para atender as necessidades daquela sociedade. O gênero discursivo está em constante mudança na comunicação humana, da mesma forma, que as ações do homem se transformam ao longo do tempo, desta maneira, assim como a sociedade muda, o gênero também passa por mudanças, de acordo com as transformações da sociedade. Segundo Nelly apud Câmara Cascudo (1983), o conto popular maravilhoso é justamente o mais amplo e mais expressivo, pois ele nos traz informações históricas, etnográficas, sociológicas, e jurídicas. 

Nele encontramos vários aportes que nos remetem e nos levam à determinados momentos da História. Permitem a partir deles, compreendermos os costume, modo de pensar e agir dos indivíduos de determinada época histórica. Por assim ser compreendida, eles são considerados um deleite da literatura brasileira que não nos cansamos de ouvir e recontar.

O surgimento das  histórias infantis está intrinsicamente ligada a aquisição da fala no ser humano. O ato de ouvir histórias tem grande relevância e importância para a formação humana. Contar histórias para os indivíduos desde à infância é de suma necessidade para efetivação da formação essencial do ser psicossocial.

Machado (2002) coloca que os contos de fadas surgem a partir dos mitos e tradições orais, alguns datados do século II d. C. Eles sofreram e sofrem modificações em sua estrutura, não apenas por razões externas, mas também por razões internas ao próprio contador. Nas versões escritas por Perrault apud Machado (2002), por exemplo, são acrescentados preceitos morais, já que estes contos eram usados como recursos para reforçar boas maneiras, condutas e ações. Além disso, os contos originais foram adaptados, pois traziam enredos que chocavam e assustavam até mesmo os adultos.

Nessa  abordagem essas histórias não eram contadas às crianças por acreditarem serem inadequadas. Com o passar dos anos, esses relatos eram feitos para descontrair as pessoas; porém com o surgimento das fadas nos contos; elas passaram a ser utilizadas como ferramenta pedagógica-metodológica na educação. Os Irmãos Grimm surgem neste contexto com suas narrativas que apesar do tempo, ainda prevalecem até a atualidade.

Os Irmãos Grimm (Jacob, 1785-1863 e Wilhelm, 1786-1859) nasceram na cidade de Hanau, na Alemanha. Eles foram folcloristas, contistas, filólogos, críticos, escritores no século XVIII e contribuíram de forma significativa para a língua e cultura alemã com a compilação, não só de inúmeros contos, como também mediante a publicação de um dicionário e uma gramática da língua alemã.

Entre os anos 1807-1814, segundo Barbosa (2009), os Irmãos Grimm recolheram contos baseados em tradições populares do seu país. Para isso, passaram a ouvir indivíduos que viviam e trabalhavam nos vilarejos, aldeias e nos arredores da Kassel, localizada na Alemanha. Esses filólogos penetravam nas aldeias para ouvir e transcrever tais relatos, transcrevendo-os com fidelidade tais narrativas.

Esses autores transitam entre os escritores mais influentes e importantes da história.  Vale frisar que os Irmãos Grimm demonstravam como motivação para a criação de seus contos, o poder de atrair as pessoas através de suas narrativas extraordinárias. Por essa razão, eles coletaram lendas urbanas de diversas regiões da Alemanha e escreveram ficções baseadas em mitologias populares. O impacto destas obras foi tão grande, que até hoje podemos assistir filmes e séries inspirados nos trabalhos de Jacob e Wilhelm Grimm. O exemplo disso é o longa-metragem Maria e João que estreou em 1987 e apresentou uma abordagem fiel às primeiras versões obscuras da história.

Porém, nem todas as produções baseadas nos trabalhos dos Grimm resgatam a carga perturbadora presente nos livros do século XIV.  Com a obra dos irmãos Grimm não foi diferente, como é o caso de Maria e João: o conto das bruxas, que é a nova adaptação do conto de João e Maria trazida para os cinemas que se apropria do gênero discursivo conto de fadas João e Maria, versão original dos autores, de forma mais fiel do que as versões infantilizadas mais conhecidas.  O filme estreou em cartaz a no dia 20 de fevereiro de 2020. A obra é uma releitura com dose aprimorada de terror sobre a já sombria história registrada pelos Irmãos Grimm.

Adaptado por Rob Hayes, que inspirou seu roteiro no lado sombrio da narrativa e o transformou em um terror de tensão constante, o filme traz ao espectador um estilo diferente daquele comum nas telas. Ressaltamos que os irmãos Grimm coletaram obras inesquecíveis, como Chapeuzinho Vermelho e Rapunzel, que foram levadas às crianças através de versões amenas se comparadas às originalmente escritas. Por isso, pode ser que esta onda de adaptações voltadas para o terror ganhe novas vidas, trazendo o máximo do grotesco apresentado pelos autores ainda no século XIX.

Como já fora dito anteriormente, os contos não eram designados às crianças. Os contos eram escritos de autorias desconhecidas que se perpetuam até hoje através da “narrativa de gerações de contadores variados, que dedicavam parte das longas noites do tempo em que não havia eletricidade para entreter a si mesmos e aos outros contando e ouvindo história” (Machado, 2002, p. 69). Os contos de fadas foram criados pelos franceses no século XVII. Eles evoluíram e se fortaleceram com os contadores de histórias que abraçaram as tradições contadas oralmente e as reescrevem. Tais escritores são considerados como importantes nesse contexto: Charles Perrault, os Irmãos Grimm, Hans Chirtian Andersen dentre outros.

Segundo Coelho (1987), os primeiros registros foram os contos do “Livro do Mágico” que datam de 4.000 a.C, feitos pelos egípcios. Sequencialmente apareceram na Índia, Palestina (Velho Testamento), Grécia Clássica, sendo o Império Romano o principal divulgador das histórias mágicas  do   Oriente   para   o Ocidente. Então:

No século XII, mais precisamente em 1155, o Romance  de   Brut   de Wace retomam as aventuras  lendárias do   Rei   Arthur   e seus   cavaleiros. (…).  Na Era Clássica, os contos, que tinham um profundo sentido de  verdade humana, foram  perdendo seu verdadeiro significado e, como simples “envoltório” colorido e estranho, transformou-se nos contos maravilhosos infantis (Coelho, 1987 p.15).

Bettelheim (1980) afirma que surge na Europa no século XIV a primeira coleção de contos denominado Gesta Romanorum, de origem persa, escrito em latim, com motivos do folclore  europeu,  precedendo a famosa coleção “As Mil e Uma Noites” do folclore árabe.

O conto como  narrativa oral  surge no Brasil tendo como percussores os portugueses que consolidam cada dia mais a cada dia pelos contadores de todo o país.

Para concluir este ponto de apresentação histórica e conceitual, vale destacar que as contribuições de dos estudos e pesquisas de Bettelheim (2000)

Enquanto diverte a criança, o conto de fadas a esclarece sobre si mesma, e favorece o desenvolvimento de sua personalidade. Oferece significado em tantos níveis diferentes, e enriquece a existência da criança de tantos modos que nenhum livro pode fazer justiça à multidão e diversidade de contribuições que esses contos dão à vida da criança (Bettelheim, 2000, p. 20).

Os contos de fadas são repletos de simbologia. O simbolismo que encontramos nos personagens e nas tramas age no inconsciente das crianças, aos poucos ajuda na resolução de conflitos interiores que são normais nessa fase.

Os contos representam valores que se cruzaram através de ciclos históricos, assim, podem significar ritmos de iniciação, símbolos atômicos e a luta mística entre forças da natureza (Khéde, 1990, p. 24).

Pode-se afirmar que uma obra é clássica quando consegue despertar emoções humanas e se torna referência em qualquer época. São vários episódios da vida cotidiana relatados nas obras contistas e esses dramas aparecem no começo de muitas histórias consideradas muito importantes na literatura. Para Bettelheim (1991), o descontentamento com irmãos, mães e pais e a agressividade são vivenciados no fantástico mundo dos contos: a rivalidade entre irmãos é trabalhada em Cinderela, o medo da rejeição em João e Maria, e a separação entre as crianças e os pais em O Patinho Feio e Rapunzel.

Ao analisarmos as obras dos contos de fadas, verificamos que no passado a leitura destes, tinha o propósito de apontar padrões sociais moralmente aceitáveis para a sociedade. Com isso percebemos o real objetivo dos contos, serviam mais para instruir do que para divertir. Canton, (1994) coloca que

O conto popular de magia faz parte de uma tradição oral pré-capitalista que expressa os desejos das classes inferiores de obterem melhores condições de vida, enquanto o termo conto de fadas indica o advento de uma forma literária que se apropria de elementos populares para apresentar valores e comportamentos das classes aristocrática e burguesa (Canton, 1994, p.30).

A divisão das personagens em boas e más, belas e feias, poderosas ou fracas, etc., faz com que o indivíduo compreenda valores que são essenciais para a conduta humana. A simbologia que existe nos contos de fadas faz com que o indivíduo percorra um caminho que ele possa pensar e experimentar, podendo simbolizar um mundo apresentado igualmente de acordo com o seu e também servir como consolo. Mensagens de bondade, docilidade, coragem, altruísmo e afeto, contidas nos contos de fadas, são excelentes meios para construção de personalidade, pois estas conseguem mexer com o interior dos alunos e jamais serão esquecidas ao longo de suas vidas. Crianças que recebem de seus pais mensagens como essas através de contos de fadas desde a infância, com certeza serão pessoas mais humanas, mais sonhadoras e mais felizes. 

Os contos de fadas podem servir de mediadores na formação de valores nas crianças, conservando neles até a fase adulta, o sonho de manter acesa a chama vibrante, intensa e colorida da infância. É na infância que nós e professores devemos transmitir esses valores a criança para que elas cresçam saudáveis, conscientes e com respeito a si mesmo e com os outros (…) (Pietro, 2001, p. 22).

Os contos de fadas nas suas entrelinhas carregam importantes enfoques pedagógicos, muitas vezes questões humanas necessárias para que os alunos enfrentem medos, angústias, disputas, ciúmes, morte, etc. Eles resgatam diversos valores, estimulam o diálogo, o espírito crítico, o prazer da ludicidade, ensinamentos e verdades que compõem o mundo da infanto-juvenil, sem tirá-los da realidade.

2.1 Uma breve história sobre as obras e o dialogismo entre elas.

Os contos de fadas são contos folclóricos, histórias fantásticas de tradição oral que sobreviveu ao tempo e, originalmente, eram grandes metáforas para problemas da época. Era muito importante que crianças não se perdessem nas florestas em um tempo no qual não havia tecnologias de comunicação eficientes como as que temos hoje. Replicar essas histórias tal qual eram contadas na época de sua origem certamente tem seu valor histórico e cultural, mas há uma perda de aplicabilidade.

Com a obra dos irmãos Grimm não foi diferente, como é o caso de João e Maria de Tim Burton e Maria e João: o Conto das Bruxasde Rob Hayes, que se apropriam do conto original e trazem para o mundo cinematográfico suas versões de forma variadas que nem sempre retratam a sua originalidade.

João e Maria, dirigido por Tim Burton – bem no início da carreira, foi exibido pela primeira vez na noite de Halloween de 1983, no canal americano Disney Chanel. A ambientação um tanto estranha e o elenco formado por atores sino-americanos trouxe certo desconforto para a Disney, que até reprisou o especial no ano seguinte. Entretanto, depois disto ele simplesmente desapareceu inclusive dos arquivos da empresa. Apenas em 2014 o média-metragem ressurgiu, exibido na íntegra no canal do YouTube.

Nessa versão, o filme retrata a clássica história infantil dos Irmãos Grimm. A história narrada é a seguinte: um pobre lenhador que vive com sua mulher e seus dois filhos próximos a uma floresta negra, onde costumam desaparecer crianças. Eles são muito pobres e mal tem o que comer. Um dia, João e Maria se perdem na floresta e encontram uma casa toda feita de doces e biscoitos. Eles são atraídos pela bruxa que dá a eles tudo o que quiserem comer. Mas eles não sabiam que a bruxa estava querendo engordá-los para depois comê-los. Ao descobrirem o plano da bruxa, João e Maria tentam escapar e libertar todas as outras crianças que também estavam presas com eles. E armam um plano contra a bruxa: pegar o seu tesouro e assim tirá-los da miséria.

O filme Maria e João: O Conto das Bruxas trata-se de uma sinistra releitura do conto clássico João e Maria, escrito pelos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, ou melhor, por eles reescrito a partir de fontes (orais e textuais) que ambos coletaram em pesquisas por fábulas infantis na Alemanha. O filme também apresenta a história de dois irmãos, que entram em uma floresta profunda para buscar alimentos e a possibilidade de trabalho. Mas no caminho, acabam encontrando a casa de uma misteriosa idosa, que irá trazer riscos à vida dos dois. O filme, dirigido por Oz Perkins, abraça o terror e não poupa seus jovens protagonistas dos mais cruéis destinos.

As duas obras cinematográficas, ambas roteirizadas a partir do gênero discursivo original, Conto de Fadas João e Maria apresenta características similares que se divergem em alguns aspectos. Compreendemos que o gênero discursivo está em constante mudança na comunicação humana da mesma forma que as ações do homem se transformam ao longo do tempo. Desta maneira, assim como a sociedade muda, o gênero também passa por mudanças, de acordo com as transformações da sociedade. Para Bakhtin (2003), a formação de novos gêneros está relacionada com as ações humanas, sendo assim, em cada momento histórico, surge um novo gênero com suas características específicas, para atender as necessidades daquela sociedade.

De acordo com a visão bakhtiniana é a partir da interação verbal que a palavra se concretiza como signo ideológico. É a partir dessa interação, considerando o contexto em que ela surge; ela se transforma e ganha diferentes significados. A partir das impressões trazidas nas obras destacadas, analisaremos as mesmas de acordo com os conceitos de dialogismo trazidos para a discussão desse artigo. Para Brait (2005), “o dialogismo diz respeito às relações que se estabelecem entre o eu e o outro nos processos discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos” (Brait, 2005, p. 95). Nas próprias palavras de Bakhtin (2003[1979]), todo enunciado é de natureza dialógica, dessa forma, o dialogismo é o modo de funcionamento real da linguagem. Dessa maneira, constituído pelo fenômeno da interação social, o diálogo revela-se como a tessitura da vida pela linguagem. O dialogismo pressupõe a existência de uma interação permanente entre os participantes do diálogo, ou seja, o sujeito, ao mesmo tempo em que negocia com seu interlocutor, recebe influências deste. Trata-se do princípio básico, que pressupõe a contra palavra, a qual nem sempre ocorre de forma harmoniosa, mas também depreende o confronto, o desencontro.

Sendo assim, o enunciado como totalidade discursiva, é constituído num determinado contexto social e histórico, no entanto; ele não deixa de estabelecer vínculos com outros enunciados e discursos, sendo permeado por diversas vozes alheias – as vozes constituídas pelos outros e dos quais nos servimos como novos temas/discursos. Conforme Bakhtin (2003[1979], p. 280), “cada campo de utilização da linguagem elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso”.

Com base nos princípios de Bakhtin analisaremos as obras na perspectiva de forma de discurso traçada por Bakhtin. Na composição das formas de discurso, segundo Bakhtin (2005), são elencados três elementos: o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional, os quais:

[…] estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente
determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso (Bakhtin, 2005, p. 261-262).

Bakhtin (2005) reflete sobre o gênero como um enunciado de natureza histórica, sócio interacional, ideológica e linguística relativamente estável, porque gêneros são o que as pessoas reconhecem como gêneros a cada momento do tempo. A versão roteirizada por Rob Hayes e dirigida por Oz Perkins mantém-se próxima do conto em alguns aspectos. Nos planos temporal e espacial, por exemplo, a narrativa cinematográfica acompanha a literária, situando-se em meados do século XVIII, em algum vilarejo europeu assolado pela peste. Trata, também, de dois irmãos abandonados e famintos, que se perdem na floresta e encontram refúgio e guloseimas na cabana de uma bruxa.

No entanto, logo no início se revela a tonalidade mais escura com que a história é contada. Um breve relato antecede o enredo principal: a assustadora trajetória de como um bebê doente, condenado à morte, tornou-se Holda, a bruxa má da floresta. Ou seja, fica claro o ponto de vista que terá destaque ao longo do filme e o subtítulo em português O conto das bruxas também elimina qualquer dúvida a esse respeito.

Sobre o título, a inversão Maria e João não foi pensada apenas como um aceno ao movimento feminista. Essa alteração do título da história no filme indica uma mudança de valores radical: não é mais João e Maria, mas sim Maria e João. Trata-se de uma mudança que sustenta a estrutura do filme, cuja protagonista é, sem dúvida, Maria que no conto dos Grimm, seu protagonismo é mais tênue, rarefeito; acentua-se apenas no desfecho, quando ela se torna a heroína. Por outro lado, na adaptação cinematográfica, a personagem logo se sobressai. Interpretada com intensidade por Sophia Lillis, a Maria de Oz Perkins é uma jovem de iniciativa. Pré-adolescente, cabe a ela cuidar do irmão, esse sim uma criança.

Maria e João: o Conto das Bruxas muda completamente a história e a mensagem do conto dos Irmãos Grimm. Não se trata exatamente de um conto machista como são geralmente aqueles que envolvem princesas ou mesmo Chapeuzinho Vermelho, que culpabiliza a vítima.

O roteiro de Rob Hayes insere os elementos do conto original de uma forma sutil e natural. As migalhas de pão ou bolo (depende da versão) são referenciadas logo a princípio, quando Maria vai visitar um possível empregador e avisa a João que, se encontrar alguma migalha de bolo, trará para ele. Ambos estão com fome vagando pela floresta, como no conto, e é João quem encontra a casa da temerosa bruxa Holda, mas a forma como isso acontece é completamente subvertida: não é ele que está tentando salvar a irmã, há somente o desespero por comida. A bruxa é idosa, como no conto original, também come crianças e morre pelo fogo que pretendia usar para cozinhar João, que aparece sendo empanturrado com uma torta. De certo, todos esses elementos estão presentes, mas é apenas uma nostalgia da história que conhecemos.

As histórias de bruxas costumam ser sobre o feminino e qualquer história com o estereótipo de uma mulher velha e má como bruxa deve ser questionada. O feminino em Maria e João: o Conto das Bruxas é um poder e não um conjunto de regras sociais a serem seguidas pela mulher. Maria tem cabelo curto, contrariando o estereótipo patriarcal do que é ser uma mulher. Além disso, logo no início da história ela se recusa a aceitar um emprego que traria segurança para a sua família, mas no qual seria assediada: ela prefere passar fome a se submeter à exploração do seu corpo. Percebe-se aí compreender o texto mediante a perspectiva e a intenção do locutor que é responsável pela compreensão de outrem. No campo da linguagem a partir de elementos extralinguísticos, requer abordagens históricas de fatos e fontes. Pressupõe assim que, todo discurso mantém contato com outras réplicas do chamado diálogo social, estão, assim, permeadas por vozes de outros, ou seja, as vozes alheias. “Assim, as relações dialógicas são extralinguísticas. […] A linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam” (Bakhtin, 2010, p. 209).

Quando a história da filha de Holda é contada pela primeira vez, vemos o pai da criança levá-la até uma bruxa. Esta está sentada sob uma figura triangular, figura geométrica que é revista inúmeras vezes ao longo do filme, sobretudo na arquitetura da casa de Holda. O triângulo é uma figura que, na bruxaria, representa justamente o homem, o falo e, sobretudo, o fogo. Não demora em percebermos que a trajetória de Maria nesse novo filme não é salvar a si e seu irmão e voltar para casa, mas sim amadurecer como uma mulher livre e independente em uma sociedade patriarcal.

A representação do elemento fogo (através do triângulo) ajuda a justificar a fotografia amarelada, que também representa o alerta de que a casa, embora pareça aconchegante, não é um local confiável. Como na história que conhecemos, a bruxa planeja comer as crianças perdidas na floresta, mas, agora, é um ritual para libertar Maria da figura masculina que a acompanha. Maria, no entanto, compreende que essa libertação não precisa vir da anulação do homem, indicando para o espectador a diferença entre feminismo e feminismo, entendido como ideologia que prega a superioridade do género feminino sobre o masculino.

O tripé que compõe o filme que são a direção, fotografia e arte criam cenários tão assustadores quanto deslumbrantes, mostrando que o mal não está nas coisas em si, mas no uso que é feito delas. Os enquadramentos centralizados e repletos de geometria vão além de uma marca estética e parecem dizer que os símbolos da bruxaria podem ser encontrados diretamente na natureza, sem que precisem ser traçados ou explicitados por alguma pessoa.

A luz é incorporada como um elemento sobrenatural e o incômodo de vermos personagens artificialmente iluminados mesmo em meio a uma floresta no meio da noite é abandonado quando, na sequência em que Maria abandona João na floresta, uma luz vermelha brilha sem justificativa lógica em meio às árvores. Isso demonstra o entendimento da direção de que cinema é arte e, como tal, é um ambiente de liberdade criativa. Outro ponto digno de nota é o uso de contraluz em quase todo o filme, iluminando o cenário com uma luz que parece habitar somente fora da casa e que deixa os personagens quase no limite da silhueta: se há sombra, ela não está no mundo, mas nas pessoas.

É bastante claro que o conto fantástico foi levado para o universo do gênero de terror, mas este não é um filme de sustos, ainda que possa causar algum e chegue a fazer uso do já desgastado “pulo do susto”. Esse é um terror atmosférico, o desconhecido e a nossa fragilidade diante de algo que parece muito maior e mais forte são os elementos que compõem o horror de Maria e João: o Conto das Bruxas.

O feminismo embutido na trama joga ainda com outro terror real: a desunião entre as próprias mulheres. Holda é uma vilã pelas escolhas erradas que fez em sua trajetória, ainda que seja completamente justificado pelo trauma vivido, o que torna a personagem muito mais profunda. O embate entre Maria e Holda é justamente porque ela impõe à Maria (que acaba por descobrir-se bruxa também) uma lógica violenta e destrutiva ao invés de propor uma relação de compreensão e igualdade. E, com isso, não se torna impressionante que o filme tenha sido escrito e dirigido por dois homens: eles também têm um grande papel na luta feminista.

Mais uma vez ressaltamos a importância de estudar os gêneros discursivos como o conto, pois eles continuam tendo pertinência temática para o contexto sociopolítico e cultural. Se tais narrativas trazem uma mensagem relevante para a realidade contemporânea, mesmo com tantas transformações na sociedade, nas relações de trabalho e na política, é pelo caráter universal e atemporal que somente obras literárias clássicas possuem. Por isso, devem sempre ser revisitadas e apreciadas.

4. Conclusão

O desafio de lançar um novo olhar sobre os contos literários que acompanham nosso tempo procura instaurar uma perspectiva discursiva em relação a estas produções e possibilitar aos leitores apreciar o inegável aspecto lúdico, reconhecendo as vozes ali marcadas e a constituição de sentidos possíveis.

Apesar do caráter ideológico das narrativas infantis, elas são obras que despertam a imaginação, a fantasia e aguçam o interesse e o prazer pela leitura; logo atendem ao caráter de fruição e cumprem uma das funções do texto literário.

Trata-se da possibilidade de se exercer responsividade ao enunciado em diferentes épocas, e por diferentes faixas etárias de interlocutores. Ou seja, os leitores e/ouvintes desses enunciados são sujeitos constituídos em momentos históricos distintos e, mediante seu conhecimento de mundo e de valores, geram atitudes responsivas distintas para com os enunciados, conforme sugere a perspectiva teórica bakhtiniana.

As obras João e Maria, dirigido por Tim Burton e Maria e João: o Conto das Bruxasde Rob Hayes – objetos desse estudo – continuam tendo pertinência temática para o contexto sociopolítico e cultural. Bakhtin (2016) afirma

Os limites de cada enunciado concreto como unidade da comunicação discursiva são definidos pela alternância dos sujeitos do discurso, ou seja, pela alternância dos falantes. Todo enunciado (…) tem, por assim dizer, um princípio absoluto e um fim absoluto: antes do seu início, os enunciados de outros; depois do seu término, os enunciados responsivos de outros (…). O falante termina o seu enunciado para passar a palavra ao outro ou dar ugar à sua compreensão ativamente responsiva. O enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real, elimitada com precisão pela alternância dos sujeitos do discurso e que termina com a transmissão da palavra ao outro, por mais silencioso que seja o “dixi” percebido pelos ouvintes [como sinal] de que o falante concluiu sua fala (Bakhtin, 2016, p. 29, grifo do autor).

Referências

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[1]Mestra em Letras – área de concentração em Estudos Linguísticos – PPGL – Programa de Pós – Graduação em Letras, vinculado ao Departamento de Educação – Universidade do Estado da Bahia (UNEB, Campus X). Professora efetiva atuando na Rede Municipal de Ensino do Município de Teixeira de Freitas, BA.E-mail: delbss@hotmail.com.

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