UM RESUMO DO DIREITO REAL DE SUPERFÍCIE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7669354


Paulo Victor França de Souza


RESUMO

O presente artigo buscou apresentar o que é o direito real, sua distinção do direito de crédito (obrigacional), afunilando para um estudo de um dos direitos reais previstos no ordenamento jurídico brasileiro, que é o direito de superfície. O artigo mostra o direito real de superfície em sua história, fundamentos básicos, constituição e discussões doutrinárias. De forma breve e clara demonstra que o direito real de superfície é um modelo moderno que visa a circulação de bens, serviços e dinheiro de modo a ajudar todas as partes do contrato. Muito em razão disso, entende-se que substituiu a enfiteuse, prevista no Código Civil de 1916, promulgado em uma época na qual o Brasil era mais agrário e patriarcal, em contraste com o Código Civil de 2002, que atendeu à evolução do país e assim possui um caráter mais urbano, com progresso nas relações de consumo e tecnologia.

PALAVRAS-CHAVE: Direito real de superfície. Aspectos gerais. Questões contratuais.

ABSTRACT

The present article sought to present what is the right in rem, its distinction from the right of credit (obligatory), funneling to a study of one of the real rights foreseen in the Brazilian legal system, which is the surface right. The article also shows the surface real right in all its history, basic foundations, constitution and doctrinal issues. It briefly and clearly demonstrates that the surface right is a modern model that aims at the circulation of goods, services and money in order to help all parties to the contract. Much for this reason, it is understood that it replaced the long lease, provided for in the Civil Code of 1916, enacted at a time when Brazil was more agrarian and patriarchal, in contrast to the Civil Code of 2002, which has a more urban character. , with progress in consumer relations and technology.

KEYWORDS: Real surface rights. General aspects. Contractual questions.

1 INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 tem como objetivos a igualdade, solidariedade, dignidade, estado democrático de direito, entre outros. Ocorre que toda legislação infraconstitucional deve seguir esse parâmetro.

Dessa forma, um dos pontos que deve ser atendido é a função social da propriedade.

O tema aqui discorrido trata-se de um instrumento da função social da propriedade: a transmissão do direito de superfície, o qual permite, aos contratantes, a recíproca do benefício econômico, seja cada qual na sua instituição.

Importa ainda salientar que a cidade em si, enquanto centro econômico e urbanístico, também poderá se beneficiar das relações do referido contrato sendo, inclusive, este um dos desejos do diploma que regula a matéria, o Estatuto da Cidade, que será discorrido a seguir.

2 DIREITO REAL

Os direitos reais são previstos no artigo 1.225 do Código Civil[1], vide:

Art. 1.225. São direitos reais:

I – a propriedade;
II – a superfície;
III – as servidões;
IV – o usufruto;
V – o uso;
VI – a habitação;
VII – o direito do promitente comprador do imóvel;
VIII – o penhor;
IX – a hipoteca;
X – a anticrese.
XI – a concessão de uso especial para fins de moradia; (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)
XII – a concessão de direito real de uso; e (Redação dada pela Lei nº 13.465, de 2017)
XIII – a laje. (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)

Importa salientar que este rol é numerus clausus, taxativo e de ordem pública. Somente poderá ser juridicamente conhecido como direito real caso uma norma prévia assim o preveja.

O professor Caio Mário Pereira[2] os define da seguinte forma:

Já tivemos ensejo de os conceituar, distinguindo-os dos de crédito (v. n.º 7, supra, vol. I), dizendo que os primeiros (iura in re) traduzem uma dominação sobre a coisa, atribuída ao sujeito, e oponível erga omnes, enquanto os outros implicam a faculdade de exigir de sujeito passivo determinado uma prestação.

O direito real é, portanto, o direito do titular sobre a coisa, absoluto, exclusivo e exigível a todos.

2.1 Direito Obrigacional

Em contrapartida ao direito real, o direito obrigacional não recai sobre a coisa, mas sobre a pessoa. É um vínculo onde há o credor, o devedor e a prestação.

Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves[3]:

Obrigação é o vínculo jurídico que confere ao credor (sujeito ativo) o cumprimento de determinada prestação. Corresponde a uma relação de natureza pessoal, de crédito e débito, de caráter transitório (extingue-se pelo cumprimento), cujo objeto consiste numa prestação economicamente aferível.

3 DIREITO REAL DE SUPERFÍCIE

3.1 Parte Geral

Embora o direito real de superfície já fosse previsto pelo Código Civil de 1916, com o novo Código Civil de 2002, este instituto passou a ser uma substituição do que outrora era previsto, pelo antigo código, como enfiteuse.

A enfiteuse era um modelo em que o enfiteuta possuía o domínio útil da propriedade perpetuamente. Desse modo, ele deveria pagar ao senhorio uma quantia anual, detendo então uma natureza jurídica de direito real em coisa alheia, pois o enfiteuta possuía poderes amplos como se proprietário fosse, mas ainda havia a figura do senhorio. Carlos Roberto Gonçalves[4] explica da seguinte forma:

(…) não pode haver dois direitos reais, de igual conteúdo, sobre a mesma coisa. Logo, podemos concluir que duas pessoas não ocupam o mesmo espaço jurídico, deferido com exclusividade a alguém, que é o sujeito do direito real. Já em relação ao segundo, que elucida que é possível se estender a outrem direitos que são conferidos somente em razão da condição de proprietário do bem, sem que este perca o seu direito sobre a propriedade, como no caso da enfiteuse.

O Código Civil de 2002[5], o artigo 2.038 prevê expressamente a proibição de novos enfiteuses:

Fica proibida a constituição de enfiteuses e subenfiteuses, subordinando-se as existentes, até sua extinção, às disposições do Código Civil anterior, Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916, e leis posteriores.

Isso se explica pela dispensabilidade da enfiteuse nos dias atuais e pela perpetuidade característico do instituto. Entende-se que a enfiteuse era necessária para povoar o imenso território brasileiro, fundamental para o Brasil-império, a fim de povoar e fixar regiões distantes.

Todavia o Brasil deixou de ser um país rural e tornou-se cada vez mais urbano. Em razão disso, o direito de superfície atende mais suas necessidades,  e  tão necessária é sua regulação que não está apenas previsto pelo Código Civil, como também pelo Estatuto da Cidade.

Sendo o Estatuto da Cidade uma lei de 2001 e o Código Civil tendo entrado em vigor no ano de 2004, à época surgiram discussões se este revogou ou derrogou aquele no que tange à mesma matéria, como comenta Maria Helena Diniz[6]:

Em caso de antinomia entre o critério de especialidade e o cronológico, valeria o metacritério lex posterior generalis non derrogat priori speciali, segundo o qual a regra de especialidade prevaleceria sobre a cronológica. Esse metacritério é parcialmente inefetivo, por ser menos seguro do que o anterior, podendo gerar uma antinomia real. A meta-regra lex posterior generalis non derrogat priori speciali não tem valor absoluto, dado que, às vezes, lex posterior generalis derogat priori speciali, tendo em vista certas circunstâncias presentes. A preferência entre um critério e outro não é evidente, pois se constata uma oscilação entre eles. Não há uma regra definida; conforme o caso, haverá supremacia ora de um, ora de outro critério.

Um ponto de solução adveio na I Jornada de Direito Civil[7], promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, realizada no período de 11 a 13 de setembro de 2002 com a publicação do Enunciado nº 93:

As normas previstas no Código Civil, regulando o direito de superfície, não revogam as normas relativas a direito de superfície constantes do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), por ser instrumento de política urbana.

Dessa feita, conclui-se que não houve revogação, nem ao menos derrogação, mas sim, a coexistência de ambos os diplomas, sendo um ou outro usado em decorrência do caso em concreto.

Nesse diapasão explica Ricardo Pereira Lira[8]:

Não incide no caso a regra da Lei de Introdução segundo a qual a lei posterior, que regula inteiramente a matéria tratada na lei anterior, a revoga. Isso porque o direito de superfície contemplado no Estatuto da Cidade é um instituto de vocação diversa daquele previsto no novo Código Civil, voltado aquele para as necessidades do desenvolvimento urbano, editado como categoria necessária à organização regular e equânime dos assentamentos urbanos, como fator de institucionalização eventual da função social da cidade. No novo Código Civil, o direito de superfície será um instrumento destinado a atender interesses e necessidades privados.

Destarte, em se tratando de interesse público, como por exemplo, do município, usa-se o Estatuto da Cidade. Por outro lado, em se tratando do interesse do civil particular, usa-se o Código Civil.

O sistema jurídico brasileiro possui uma regra genérica de que “o acessório segue o principal”. Em razão disso, encontra-se o princípio do superfícies solo cedit, a superfície acede ao solo, onde expressa o vínculo indissolúvel da superfície e do solo. Todavia o direito de superfície é uma exceção a este princípio, uma vez que ao cede-lo, o titular do solo poderá usar e dispor de sua propriedade, mas limitadamente, de modo a não intervir no uso do superficiário.

3.2 Parte Especial

O Estatuto da Cidade, a Lei 10.257/2001, em sua Seção VII tem como título “Do direito de superfície”, onde estipula brevemente sobre a concessão do direito de superfície.

O Estatuto da Cidade define que o proprietário pode conceder o direito sobre o solo, subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, desde que permitido pela legislação urbanística, o qual encontra-se o terreno, por tempo determinado ou indeterminado de forma gratuita ou onerosa.

Será gratuito quanto o ato for entre vivos ou por testamento.

Ressalta-se que “tempo indeterminado” não significa perpétuo.

O Código Civil[9] limita o uso do subsolo, como vê-se no parágrafo único a seguir:

Art. 1.369. O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O direito de superfície não autoriza obra no subsolo, salvo se for inerente ao objeto da concessão.

O Estatuto da Cidade cala-se quanto a instituição do direito de superfície para plantio, porém para Maria Sylvia Di Pietro Zanelo[10] essa falta não constitui um empecilho:

Porém, como instituto, nessa lei, é previsto apenas como instrumento de política urbana, fica evidente que sua utilização se dará mais especificamente para a construção. Nada veda, no entanto, o uso para plantações, ainda que estas não sejam muito usuais na área urbana.

3.2.1 Parte Especial: Questões Contratuais

Importa frisar que para que o ato seja valido, é necessário que seja realizado mediante escritura pública, por contrato registrado no cartório de registro de imóveis, independente se o valor seja inferior ao limite de 30 (trinta) salários mínimos estipulados pelo artigo 108 Código Civil[11]:

 Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.

O superficiário e o proprietário, terão direito de preferência em caso de venda do terreno reciprocamente. Ou seja, caso o proprietário concedente (fundeiro) queira alienar o imóvel, o superficiário terá a preferência. Caso o superficiário queira alienar o direito real de superfície, o fundeiro terá a preferência.

O Estatuto da Cidade e o Código Civil não estipularam uma forma quanto ao direito de preferência relativo ao contrato do direito real de superfície. Dessa feita, é pacifico, pela doutrina e jurisprudência, que será usado, por analogia, o estipulado para outros contratos, como por exemplo, de compra e venda (artigos 513 a 520 do Código Civil), do locatário de imóvel urbano (artigos 27 a 34 da lei 8.245/1991) ou a do condômino (artigo 504 do Código Civil).

Como regra, o superficiário responderá integralmente pelos encargos e tributos da propriedade superficiária, podendo o contrato dispor em contrário

O contrato poderá ser extinto por ato inter vivos ou mortis causa.

Em razão do termo final pactuado e quando há o descumprimento das obrigações contratuais assumidas pelo superficiário, como por exemplo: o superficiário dá destinação diversa daquela para a qual foi concedida,a extinção deverá ser averbada no cartório de registro de imóveis.

O contrato poderá prever, ainda, a transferência do direito de superfície a terceiros e em caso de morte do superficiário, os seus direitos transmitem a seus herdeiros.

Ao fim do contrato do direito de superfície, o proprietário recupera o pleno domínio do terreno, bem como das acessões e benfeitorias realizadas, independentemente de indenização, caso as partes assim tenham estipulado no contrato.

4 CONCLUSÃO

A transmissão do direito de superfície é um instrumento da função social da propriedade, além dos inegáveis benefícios na ascensão econômica para as partes do negócio.

Imagine, hipoteticamente, que alguém possua um bom terreno, bem localizado, porém não possua condições naquele momento de investir e queira fazê-lo mais adiante. Não resta dúvida de que um contrato de cessão do direito de superfície o ajudaria demasiadamente.

Em contrapartida, imagine uma rede de supermercados que queira abrir uma filial em tal localidade, mas antes queira entender, na prática, como seria um estabelecimento por lá. Com o direito sobre a superfície haveria a vantagem de não se precisar comprar um terreno e poder oferecer seu serviço. O lucro seria auferido mais rapidamente, pois o valor da compra poderia ser utilizado em outras áreas do negócio.

De igual modo, a área rural pode ser afeta ao instituto, visto que nos dias atuais é comumente usada para atividades empresariais.

Dessa forma, conclui-se a evolução do direito civil com emprego de tais institutos, restando claro o caráter dinâmico e evolucionista que houve nas relações consumeristas e mercantis no Brasil.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei n. 10.406, 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 15 de fev. de 2023

PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de direito civil. Rio de Janeiro, Editora Forense, 2010, p. 01.

GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito civil brasileiro, v. 2

GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito Civil Brasileiro – Direito das Coisas, 5º volume, 5ª edição, São Paulo, Editora Saraiva, 2010;

Diniz, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, Editora Saraiva, 8ª edição, página 78

Enunciado I. Jornada de Direito Civil. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej/EnunciadosAprovados-Jornadas-1345.pdf. Acesso em 15 de fev de 2023.

Pereira Lira, Ricardo. O direito de Superfície e o Novo Código Civil. Revista Forense 364/ 251.

Zanella di Pietro, Maria Sylvia. Direito de Superfície, Estatuto da Cidade (Comentários à Lei Federal 10.257/2001), coords. Adilson Abreu Dallari e Sérgio Ferraz, Malheiros Editora, página 181.


[1] BRASIL. Lei n. 10.406, 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 15 de fev. de 2023

[2] PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de direito civil. Rio de Janeiro, Editora Forense, 2010, p. 01.

[3] GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito civil brasileiro, v. 2

[4] GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito Civil Brasileiro – Direito das Coisas, 5º volume, 5ª edição, São Paulo, Editora Saraiva, 2010;

[5] BRASIL. Lei n. 10.406, 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 15 de fev. de 2023

[6] Diniz, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, Editora Saraiva, 8ª edição, página 78

[7] Enunciado I. Jornada de Direito Civil. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej/EnunciadosAprovados-Jornadas-1345.pdf. Acesso em 15 de fev de 2023.

[8] Pereira Lira, Ricardo. O direito de Superfície e o Novo Código Civil. Revista Forense 364/ 251.

[9] BRASIL. Lei n. 10.406, 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 15 de fev. de 2023

[10] Zanella di Pietro, Maria Sylvia. Direito de Superfície, Estatuto da Cidade (Comentários à Lei Federal 10.257/2001), coords. Adilson Abreu Dallari e Sérgio Ferraz, Malheiros Editora, página 181.

[11] BRASIL. Lei n. 10.406, 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 15 de fev. de 2023