TRAUMAS PSICOLÓGICOS E O ABUSO DE ÁLCOOL: UM ESTUDO DE CASO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10227935


Maria Eduarda Trento1
Orientador: Tiago Rafael Sausen²


RESUMO

A dependência química, caracterizada pelo DSM-5, envolve sintomas cognitivos, comportamentais e fisiológicos, com implicações significativas nas relações sociais e profissionais. O objetivo deste trabalho foi analisar a relação entre traumas psicológicos e o abuso de álcool, destacando a influência de traumas vivenciados, especialmente na infância, como fator de risco para a dependência. Foi realizada uma entrevista com um ex-usuário de álcool, internado em uma clínica de reabilitação localizada no oeste do estado do Paraná, com posterior transcrição e análise das respostas. Foi possível comprovar a intrínseca relação entre a existência de traumas psicológicos e o abuso de álcool. Destaca-se, além disso, a importância do apoio familiar e da conscientização sobre os impactos do abuso de álcool não apenas na vida do indivíduo, mas também nos relacionamentos interpessoais. O artigo destaca a importância de abordagens inclusivas e destituídas de estigmas no enfrentamento do uso abusivo de álcool, promovendo uma compreensão mais profunda das inter-relações entre traumas psicológicos e o abuso de álcool.

Palavras-Chave: Alcoolismo; Entrevista; Vício.

ABSTRACT

Chemical dependence, as characterized by the DSM-5, involves cognitive, behavioral, and physiological symptoms, with significant implications for social and professional relationships. The aim of this study was to analyze the relationship between psychological trauma and alcohol abuse, highlighting the influence of experienced traumas, especially in childhood, as a risk factor for dependence. An interview was conducted with a former alcohol user who was admitted to a rehabilitation clinic located in the western state of Paraná, with subsequent transcription and analysis of the responses. It was possible to confirm the intrinsic relationship between the existence of psychological traumas and alcohol abuse. Furthermore, the importance of family support and awareness of the impacts of alcohol abuse not only on the individual’s life but also on interpersonal relationships is emphasized. The article underscores the importance of inclusive and stigma-free approaches in addressing abusive alcohol use, promoting a deeper understanding of the interplay between psychological traumas and alcohol abuse.

Keywords: Alcoholism; Interview; Addiction.Parte superior do formulário

1. INTRODUÇÃO

A dependência química é um tema bastante presente nas discussões da área da saúde, tanto em nível mundial como nacional, sendo tratado como um problema de saúde pública e uma mazela social (Pratta e Santos, 2009). Conforme dados do Ministério da Saúde, em 2021, houve um aumento de 12,4% nos atendimentos a pessoas com transtornos mentais relacionados ao uso de álcool e outras drogas em relação à 2020 pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Dentre os atendimentos realizados, o uso abusivo de álcool foi o mais recorrente, com cerca de 160 mil em todos os níveis de atenção. (SAPS, 2022)

De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, na sua 5ª edição, (DSM-5), a dependência química se caracteriza por um conjunto de sintomas, sendo eles de âmbito cognitivo, comportamental e fisiológico, os quais indicam o uso contínuo e possíveis complicações relacionadas ao abuso (APA, 2014). Alves e Lima (2013) declaram que o uso abusivo de álcool possui profundas consequências nas relações familiares, sociais e profissionais na vida do paciente. O uso excessivo de álcool também está relacionado ao risco e danos complexos, como episódios de violência, conflitos, acidentes e tentativas de suicídio. Ferreira et al. (2019) apontam que um dos fatores de risco para o desenvolvimento da dependência de substâncias psicoativas é a presença de eventos traumáticos em sua vida, principalmente pelo impacto no desenvolvimento do sistema de recompensa e resposta ao estresse no cérebro.

King e Chassin (2008) discutem que a exposição a experiências traumáticas pode contribuir para o aumento de comportamentos externalizantes, caracterizados por um conjunto de reações, como a agressividade e a inquietação. Outro ponto de observação é em relação aos problemas de conduta, fatores importantes para os usos e abusos de substâncias. Lang (2019) observa que o consumo de substâncias age como uma saída para o estresse e para aliviar uma dor emocional.

O vício acaba preenchendo uma necessidade que o paciente julgava essencial, mas que não foi realizada em sua vida. Entre os riscos de desenvolvimento da dependência, destaca-se as adversidades na infância, correlacionado o abuso de substâncias aos traumas e problemas no início da vida. Ressalta-se que este fato não indica que um trauma causa necessariamente uma dependência química, e sim que os traumas da infância promovem um cenário suscetível ao abuso dessas substâncias. (Lang, 2019)

Pelos motivos supracitados, o presente artigo objetiva-se em apresentar um estudo de caso acerca da relação dos traumas psicológicos com o abuso do álcool. Para isso, serão descritos os aspectos que podem correlacionar os traumas psicológicos com a doença.

2. TRAUMAS PSICOLÓGICOS

O trauma é definido como a exposição do indivíduo a eventos estressores, exemplos disso são o abuso sexual, ferimentos graves e riscos à vida. Essa exposição pode acontecer de modo direto, onde a ação ocorre com a própria pessoa, ou de modo indireto em três vias, sendo elas (i) testemunhar outras pessoas sofrendo o evento, (ii) saber que o evento aconteceu com alguém próximo e (iii) ter contato repetido com detalhes de eventos traumáticos, como a exposição de policiais à violência. O peso psicológico causado pelo evento traumático é bastante variável, com os sintomas podendo alternar-se entre ansiedade, medo, agressividade, raiva e dissociação. (APA, 2014). A definição do DSM-5, no entanto, possui uma ênfase maior nos eventos que promovem o trauma do que na reação destes na vida do indivíduo.

Rangel (2018) apresenta que os traumas decorrem de experiências dolorosas, as quais podem causar vários danos na vida do indivíduo. A pessoa afetada pelo trauma pode reviver a situação apenas ao pensar no evento traumático, inclusive com a presença de sons, imagens, odores e sentimentos relacionados à ocasião.

Os traumas não se restringem a situações que oferecem risco imediato à vida, sendo que situações extremas podem ser igualmente prejudiciais, como a descoberta de uma grave doença, ou até um episódio de intensa humilhação pública. Essas situações podem levar a reações emocionais similares a eventos relacionados ao transtorno de estresse pós-traumático, porém não possuem esse diagnóstico já que não são definidas como evento traumático no DSM-5. De modo a contemplar mais situações verdadeiramente traumáticas, surgem novas propostas de entendimento destes eventos, inclusive dos casos menos violentos, mas que causam reações psicológicas relevantes. (Dalenberg, Straus e Carson, 2017)

Rangel (2018) ressalta que trauma e eventos traumáticos possuem definições distintas. Trauma ocorre a partir da resposta psíquica do acontecimento, ou seja, não tem ascendência no evento traumático em si. Os eventos possuem ampla exemplificação, como acidentes, tragédias ambientais, doenças graves e outras situações de grande estresse.

Os eventos traumáticos ainda podem ser categorizados em interpessoais e não-interpessoais. Os eventos interpessoais estão relacionados às situações perpetradas por outras pessoas, como abusos sexuais, agressões físicas e maus tratos. Os eventos não-interpessoais relacionam-se com situações sem a ação direta de pessoas, como acidentes e desastres naturais. O tipo de trauma está relacionado à intensidade dos sintomas do quadro de estresse pós-traumático, sendo que os eventos interpessoais geralmente promovem sintomas mais graves (Thomas, Owens e Keller, 2021).

2.1. DEPENDÊNCIA QUÍMICA

A dependência química é caracterizada como Transtorno por Uso de Substâncias (TUS), pelo DSM-5. Sua principal característica é a existência de um agrupamento de sintomas dos campos cognitivos, comportamentais e fisiológicos que promovem o uso contínuo de alguma substância. Seabra et al. (2017) apontam que os pacientes dependentes possuem elevada comorbidades físicas e psíquicas, associadas às incapacidades provocadas pelo uso das drogas.

Doering-Silveira (2014) apresenta que as substâncias psicoativas possuem a capacidade de alterar sensações, no estado emocional ou no grau de consciência. A designação psicoativa se dá pela atuação no cérebro e por afetar a atividade mental. Se classificam como depressoras responsáveis por diminuir a atividade mental. Estas substâncias agem diminuindo a atenção, a concentração, a tensão emocional e a capacidade cognitiva. Os principais exemplos das drogas depressoras são os ansiolíticos, narcóticos, álcool e inalantes.

Já as drogas estimulantes possuem função contrária, atuam aumentando a atividade cerebral, como por exemplo a cafeína, o tabaco, a cocaína, o crack e as anfetaminas. E ainda existem as drogas alucinógenas, que causam alterações na percepção, como as substâncias derivadas de plantas ou cogumelos, maconha, LSD e ecstasy. (Silveira e Doering-Silveira, 2014).

Em relação à dependência química, Chaim, Bandeira e Andrade (2015) a classificam como uma doença crônica de origem multifatorial complexa. Essa classificação é contrária à opinião popular que consideram, erroneamente, o consumo de drogas algo imoral ou relacionado à falta de força de vontade. O quadro de dependência química está relacionado à incapacidade do paciente de controlar o seu comportamento, mesmo que o início do consumo tenha características voluntárias. Isso ocorre principalmente pelas alterações cerebrais causadas pelo consumo de drogas, como a refutação do autocontrole e da resistência a estímulos intensos.

3. METODOLOGIA

O método utilizado foi o estudo de caso. De acordo com Pereira, Godoy e Terçariol (2009), o estudo de caso é uma abordagem que se destaca por seu aprofundamento na análise de um objeto de estudo, permitindo a obtenção de conhecimento detalhado e abrangente; é como uma ferramenta eficaz para coletar e organizar informações sobre o objeto de estudo, visando preservar sua integridade e singularidade.

Para a elaboração deste artigo, foi conduzida uma revisão bibliográfica que abordou os principais aspectos psicossociais relacionados aos traumas psicológicos e ao abuso de álcool. Em seguida, foi realizada uma entrevista, previamente semiestruturada, com um ex-usuário de álcool, com o objetivo de compreender como os conceitos teóricos relativos a traumas e vícios se manifestam nas experiências do entrevistado

O estudo recebeu aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) através do parecer consubstanciado número 6.336.096. Em conformidade com esta aprovação, a pesquisa foi realizada com um participante do sexo masculino, com 55 anos de idade, dentro das instalações de uma Clínica de Reabilitação, localizada no oeste do estado do Paraná.

A entrevista foi coordenada pela psicóloga que atua na instituição, a qual agendou um dia e horário específico para a realização da entrevista e providenciou um espaço reservado para que ela ocorresse, garantindo a privacidade do paciente e obtendo seu consentimento para ser entrevistado.

4. RESULTADOS E DISCUSSÕES

O uso de substâncias pode servir como uma maneira de lidar com o estresse e aliviar a dor emocional. A dependência pode surgir quando o indivíduo tenta preencher uma necessidade que acredita ser fundamental, mas que não foi satisfeita em sua vida. Um dos fatores de risco para o desenvolvimento da dependência é a presença de adversidades na infância, havendo uma correlação entre o abuso de substâncias, experiências traumáticas e problemas vivenciados no início da vida. (Lang, 2019)

Desse modo, a escrita do autor faz alusão ao relato do entrevistado, que mencionou:

“Quando era jovem, morava no sítio, e lá tinha criação de gado. Meu pai saia para trabalhar durante o dia e deixava eu e meu irmão responsáveis para prender o gado quando estivesse anoitecendo. Nós fazíamos isso, mas às vezes o gado entrava no meio do mato e não conseguíamos achar todos, e quando ele chegava nos batia muito e nos deixava trancados para fora de casa, para dormir no tempo. Não importava se estava frio, calor, chovendo, nós dois ficávamos para o lado de fora. Sabia onde ele guardava a cachaça e, muitas vezes, quando não conseguia prender todos os gados, já sabendo que iria apanhar, ficava com muito medo e pegava uma garrafa de cachaça, na intenção de beber para me sentir “fora do ar” e não sentir a surra que iria levar. Do mesmo jeito, quando já estava trancado para fora de casa, bebia para não sentir medo de ficar no escuro e “no meio do mato”.

A relação entre a experiência de traumas ao longo da vida e o abuso de substâncias psicoativas – em especial o álcool – é um fenômeno bastante descrito na literatura. De acordo com Smith e Cottler (2018), com o avanço dos critérios diagnósticos no que diz respeito à traumas e ao abuso de substâncias químicas, e com o desenvolvimento de medidas padronizadas para avaliar esses transtornos, se tornou possível uma investigação mais rigorosa e abrangente da prevalência dessas condições na população. Numerosas pesquisas foram realizadas nos Estados Unidos a partir da década de 1970, e, posteriormente, em outras regiões do mundo, especialmente na Europa e na Austrália e, embora a magnitude da relação entre traumas psicológicos e o abuso de substâncias varie de acordo com a região geográfica, os achados são consistentes quanto à ligação entre os dois.

Embora a existência da relação entre os problemas com o uso de álcool e experiências de vida traumáticas esteja bem estabelecida, a natureza dessa relação ainda não é tão clara para os pesquisadores. Segundo Smith e Cottler (2018), existem duas grandes hipóteses que tentam explicar como essas condições se relacionam: a hipótese da automedicação sugere que vivenciar uma situação potencialmente traumática levaria o indivíduo a começar a abusar do álcool como uma forma de enfrentamento do trauma, regulando suas emoções de uma maneira disfuncional. Já a hipótese dos comportamentos de risco sugere o oposto: na verdade, seria o problema com o álcool que predisporia o indivíduo a se expor a mais situações com potencial traumático.

Tendo em vista o que foi citado acima, o entrevistado relatou que enfrenta problemas em sua vida pessoal, devido ao uso de álcool:

“Minha ex-esposa me apoiava em tentar mudar, mas eu achei melhor me separar, pois eu sei que devia ser complicado manter uma relação com essas circunstâncias. Eu tenho quatro filhos, e apenas um deles mantém contato comigo, até isso se torna um gatilho para mim, pois quando estou em casa, eles não querem me ver, e eu queria que tivéssemos uma relação melhor. Quando eu tento fazer contato e não obtenho resposta, já tenho vontade de beber, vejo isso como um gatilho.”

Nenhuma das hipóteses é unânime entre os estudiosos. No entanto, ambas já receberam apoio de pesquisas científicas. Por exemplo, em um estudo com ex-combatentes israelenses, o nível de esquiva experiencial (isto é, a tentativa de evitar entrar em contato com sentimentos desconfortáveis) e a adoção de estratégias de supressão emocional (ou seja, de controlar as emoções desagradáveis) se comportavam como mediadores da relação entre os sintomas de traumas psicológicos e o desenvolvimento de abuso de substâncias químicas, oferecendo suporte à hipótese da automedicação (Feingold e Zarach, 2021).

Por outro lado, um estudo com estudantes universitários dos Estados Unidos não encontrou fortes indícios de que a existência de situações traumáticas interpessoais anteriores à entrada na universidade fosse relacionada ao desenvolvimento de problemas com álcool, de modo que a relação era o inverso: quanto mais disfuncional era o uso de álcool dos estudantes, mais chances eles tinham de passarem por traumas interpessoais, o que favorece a hipótese dos comportamentos de risco (Bountress et al., 2019).

Segundo Chaim, Bandeira e Andrade (2015), a dependência química está intrinsecamente ligada à incapacidade do paciente de exercer controle sobre seu comportamento, mesmo que o início do consumo tenha características voluntárias. Esse fenômeno ocorre principalmente devido às alterações cerebrais provocadas pelo uso de substâncias, resultando na diminuição do autocontrole e da resistência a estímulos intensos.

Desse modo, o paciente relata:

“Não consigo ficar fora de clínicas de reabilitação, já estou neste processo há 15 anos. No total, já fiquei internado mais de 20 vezes, em seis clínicas diferentes, pois fico no processo de ir-voltar para a mesma clínica algumas vezes. Tenho medo de sair das clínicas, pois fora delas tudo é de fácil acesso, tudo se torna gatilho para beber, saber que eu tenho dinheiro me dá medo, pois sei que posso pagar o quero consumir. Quando saio das clínicas e chego em casa, começo a passar mal, pois sei que posso beber. Se eu for dormir, logo que acordo até minha saliva me dá ânsia de vômito se não beber, tento me controlar, mas começo a ter crises de ansiedade e passo mal como se estivesse doente. Depois do primeiro gole, não consigo nem mais comer, apenas beber, até o cheiro da comida me dá ânsia, e passo semanas assim. O máximo que já consegui me manter limpo em todo esse tempo foram 20 dias.”

A exposição a traumas na infância também pode causar alterações no circuito cerebral relacionado ao estresse. Estudos em animais já demonstraram que desregulações no circuito aumentam a predisposição à adoção de comportamentos aditivos na vida adulta, através do aumento dos efeitos reforçadores das substâncias psicoativas. (Moustafa et al., 2018)

Considerado isto, o entrevistado conta sua experiência:

“Percebi que bebia sem controle e toda vez que tinha oportunidade, todo ocorrido era motivo para beber. Logo, uma determinada bebida já não era mais suficiente, e eu mudava. Passava de cachaça, para cerveja, para conhaque, e assim seguia, tudo porque a vontade só aumentava, e nada mais fazia efeito.. Durante uma época, comecei a fazer tráfico de lança perfume da Argentina para o Brasil, a pedido de dois policiais e, a partir disso, vi a oportunidade de experimentar e entrar para o mundo das drogas, já que o álcool não me satisfazia mais. Ocorreu da mesma maneira, comecei pelo lança perfume, depois mudei para a maconha, e depois para a cocaína, pois nada era suficiente.”

De qualquer forma, é provável que tanto a hipótese da automedicação, quanto a dos comportamentos de risco e a do estresse na infância sejam indicativos de diferentes caminhos pelos quais uma pessoa pode passar para desenvolver esta comorbidade relacionada aos traumas e ao uso de álcool e outras substâncias, tendo em conta a complexidade que ambos apresentam. (Smith e Cottler, 2018)

Em virtude dos aspectos discorridos acima, indagou-se ao entrevistado sobre os fatores que o impeliram a buscar tratamento, ao que ele prontamente respondeu:

“Minha principal motivação é a minha mãe, porque ela já tem mais idade, e começou a ficar doente devido a minha situação, chegando a ficar com depressão. Minha mãe tem medo que eu saia da clínica, pois diz que eu já fui e voltei várias vezes, e nunca consigo abandonar o vício. Me pediu para sair acompanhado de um monitor, para que ele não me deixe ter recaídas. E, além disso, quero ficar bem, não aguento mais essa situação. Devido ao vício, conhecia traficantes, e mantinha contato com eles para conseguir o que queria. Nunca parei de trabalhar, mas às vezes não tinha recebido o pagamento no momento em que precisava usar alguma coisa, e ficava devendo para os traficantes. Uma vez estava devendo 600 reais, e mandaram me matar, levei duas facadas, mas consegui me defender e golpear o homem que estava me atacando. Nós dois tivemos que ser levados ao hospital, mas aquele dia eu poderia ter morrido.”

Logo, dada a observação dos aspectos apresentados, torna-se evidente que o entrevistado, em várias ocasiões, enfrenta dificuldades para gerenciar os impulsos decorrentes de sua dependência ao álcool. Isso é evidenciado por sua propensão em se expor a situações de risco, além do receio de permanecer fora das clínicas de reabilitação, dependendo exclusivamente de seu autocontrole.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das reflexões apresentadas neste estudo, é possível concluir que a relação entre traumas psicológicos e o abuso de álcool, é complexa e multifacetada. Os resultados e relatos do estudo de caso revelam uma interconexão entre experiências traumáticas ao longo da vida e o desenvolvimento de padrões de uso abusivo de substâncias.

A literatura científica, respaldada por diversas pesquisas, sustenta a ideia de que a exposição a eventos traumáticos, em diferentes fases da vida, pode desencadear não apenas problemas de ordem psicológica, mas também influenciar de maneira significativa o comportamento em relação ao consumo de substâncias psicoativas. O indivíduo, ao buscar alívio para a dor emocional e o estresse, pode recorrer ao uso abusivo de álcool como uma forma de automedicação.

Os relatos do entrevistado corroboram essas conclusões, evidenciando como a busca por escape e a tentativa de preencher lacunas emocionais não atendidas, principalmente na infância, podem levar a um ciclo vicioso de dependência. A oscilação entre diferentes substâncias, a incapacidade de manter períodos significativos de abstinência e a vulnerabilidade a gatilhos emocionais destacam a complexidade desse quadro. As hipóteses discutidas na literatura, seja a automedicação ou os comportamentos de risco, oferecem diferentes perspectivas para compreender essa relação. No entanto, é evidente que há uma interação bidirecional entre o trauma psicológico e o uso abusivo de álcool, influenciando e sendo influenciados mutuamente.

O estudo enfatiza a importância da abordagem integrada no tratamento de casos de dependência química, considerando não apenas os aspectos neurobiológicos, mas também os fatores psicossociais, como traumas vivenciados ao longo da vida. Além disso, destaca-se a relevância do apoio familiar e da conscientização sobre os impactos não apenas na vida do indivíduo dependente, mas também em seus relacionamentos interpessoais.

Dessa forma, a contribuição deste trabalho vai além do escopo acadêmico, alcançando uma dimensão social ao enfatizar a necessidade de abordagens inclusivas, destituídas de estigmas, no enfrentamento da dependência química. A compreensão profunda das inter-relações entre traumas psicológicos e o uso abusivo de álcool lança luz sobre a importância de estratégias preventivas e de intervenção, visando não apenas a recuperação individual, mas também a promoção de uma saúde social mais abrangente.

REFERÊNCIAS

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ANEXO 1:

Parecer Consubstanciado do Comite de Ética em Pesquisa com Seres Humanos


¹ Acadêmica do 10º período do curso de Psicologia – UNIVEL.

² Professor do Curso de Psicologia – UNIVEL