TODOS IGUAIS, TÃO DESIGUAIS… ASSIM COMO O CIDADÃO ILUSTRE: QUANDO AS ENTRELINHAS DO FILME DIRIGIDO POR MARIANO COHN E GASTÓN DUPRAT DIALOGAM COM UMA CANÇÃO DO GRUPO ENGENHEIROS DO HAWAII

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202504101112


Euzebio da Silva Dornelas1


RESUMO  

Neste trabalho buscamos tecer encontros e, por que não, desencontros entre o filme “O cidadão ilustre” e a canção “Ninguém é igual a ninguém”, observando as entrelinhas da obra cinematográfica, que dialogam com a música. O filme, que dentre variadas perspectivas, aborda o comportamento humano e suas múltiplas questões, mazelas e idiossincrasias, revela o reencontro-embate do escritor Daniel Montovani, vencedor do Nobel de Literatura, com a população de sua cidade natal, Salas, interior da Argentina. Há mais de três décadas o escritor não vai a Salas, mas, retornar é preciso e enfrentar os próprios demônios, faz-se necessário. Já a música, um simples toque de sensibilidade que revela semelhanças e diferenças, afinal, todos são iguais, mas uns mais iguais que os outros. 

Palavras-chaves: Cidadão ilustre. Literatura. Entrelinhas. 

ABSTRACT 

In this article we seek to weave encounters and, why not, mismatches between the film “The Illustrious Citizen” and the song “Nobody is the same as anyone”, observing the lines of the cinematographic work, which dialogue with music. The film, which from various perspectives, addresses human behavior and its multiple issues, ills and idiosyncrasies, reveals the reunion-clash of writer Daniel Montovani, Nobel Prize winner in literature, with the population of his hometown, Salas, Argentina. For over three decades the writer has not been to Salas, but to return is necessary and face the demons themselves, it is necessary. The music, a simple touch of sensitivity that reveals similarities and differences, after all, all are equal, some more equal than others. 

Keywords: Illustrious Citizen. Literature. Between the lines. 

CAPÍTULO 1 – O convite… à reflexão 

O que seria de um artista sem pincel e tela? Ou um escritor sem papel e caneta, ou laptop a tiracolo? E o músico, sem instrumento? Para uns, não haveria artista, escritor ou músico! Será?  

Já para outros, tudo é questão de perspectiva!  

Depende do olhar e de olhar para dentro de si, buscando transformar e ser transformado (pela arte), que não está presa a ferramentas, nem sujeita a possíveis limitações de falsas impressões, imprecisas e restritas. 

O artista precisa transpirar… arte! Sangrar… arte! Misturar-se num bailar simbiótico, onde não mais exista um ou o outro, arte e artista, afinal, são ambos a mesma coisa, (re) encarnação do belo, da magia, da provocação, das múltiplas sensações, do riso e do choro, da reflexão e do pensamento, do incômodo mais profundo da alma, que dilacera e que – acalma – às vezes.  

Não há instrumentos… o artista-arte toca com o corpo!  

Palmas, batida nas pernas, nos braços e na barriga emitem sons de percussão. Ele assovia! Canta à capela! Emite sons – múltiplos – com a boca, transformando o próprio corpo numa orquestra. O artista-arte, treme! Ecoa e vibra! O seu som, espalha se no mais profundo íntimo de seu ouvinte, este, extasiado, entrega-se e se deixa ir, para onde a sonoridade o levar.  

Sem telas e sem tintas?  

Não há problema, ao contrário, pura inspiração para o improviso que consegue arrancar suspiros, inquietar e buscar outras formas do manifestar artístico. A terra molhada que se transforma em barro; a tinta que faltava e que agora, alimenta os dedos do artista-arte, que percorrem o muro; sim, simples muro, que diz, que grita, que fala e que se manifesta ao simples toque do artista, que toca na ferida e faz o muro ‘sangrar’! 

E o escritor?      

Amante da Literatura não se apega a ferramentas, ou à falta delas, tece suas palavras, ainda que na memória. ‘Lapidar’ é a ferramenta que lhe basta, a fim de preparar sua obra de arte, transformando o (bruto) emaranhado de palavras, em joia, rara! Na falta de papel e lápis, sua voz se transforma em pura poesia. Com o próprio sangue, o chão recebe frases que até podem contrastar com a dor.  

E, por mais louco que possa parecer, as fezes do artista-arte podem se transformar em tinta para seus registros, como mostra Fonseca (2004, p. 74), no conto “Natureza-podre ou Franz Potocki e o mundo”, dando-nos indícios de que a arte de Potocki tem ligações com o fecal. 

Ninguém jamais vira Potocki no ato de pintar. No entanto, ele não fazia nenhum segredo das tintas que usava, ou da técnica que empregava. Mas nem por isso os seus rivais e imitadores deixavam de dizer que a evanescência de seu cinza e a profundidade do seu negro indicavam o uso de algum ingrediente secreto (FONSECA, 2004). 

Em Clair (2004, p. 31), encontramos vestígios sobre a tradução da arte, como impulso interno do artista, que pode usar os produtos do próprio corpo, a fim de manifestar sua arte. Ainda menciona que se alguém perguntasse a Picasso, o que faria se estivesse numa prisão, sem nada para pintar, que o próprio Picasso responderia: “pintaria com meu cocô”. 

Não há limites!  

Este convite à reflexão, impresso neste artigo, objetiva-se numa preparação! Sim, uma preparação – sincera – para tentar absorver o ‘soco no estômago’ que é o filme “O cidadão ilustre”. A Literatura, precisa provocar e é inteiramente provocante nessa película, fazendo-nos pensar e refletir sobre muitas questões, inclusive, sobre a própria Literatura. 

Callai e Souza (2019, p. 10), destacam a Literatura como algo inscrito no próprio corpo, tombando-nos, por inteiro. “Nos faz buscar reminiscências, marcas de quem somos, ao encontro com histórias que nos contam e histórias que contamos, e ao final, são fragmentos de memórias”. 

Coutinho (1978, p. 9-10), diz que a Literatura, assim como toda arte, é a transfiguração do real, a recriação da realidade por intermédio do espírito do artista, que retransmite através da língua para diferentes formas, tornando-se nova realidade.  

Passa, então, a viver outra, autônoma, independente do autor e da experiência da realidade de onde proveio. Os fatos que lhe deram, às vezes, origem, perderam a realidade primitiva e adquiriram outra, graças à imaginação do artista. São agora fatos de outra natureza, diferentes dos fatos naturais objetivados pela ciência, ou pela história, ou pela sociedade? O artista literário cria, ou recria, um mundo de verdades que não são mensuráveis pelos mesmos padrões das verdades fatuais. Os fatos que manipulam não têm comparação com os da realidade concreta. São as verdades humanas gerais que traduzem antes um sentimento de experiência, uma compreensão e um julgamento das coisas humanas, um sentido da vida, e que fornecem um retrato vivo e insinuante da vida, o qual sugere antes que se esgote o quadro. (COUTINHO, 1978). 

A condição humana e suas questões intermináveis, fazem parte de uma infinidade de relatos literários, que nos provocam e nos convidam ao desnudamento, enquanto escritores, leitores e espectadores da vida… enquanto seres humanos, em busca de um aperfeiçoamento inalcançável, colocando-nos diariamente frente a frente com nossas mazelas… nus… diante de nós mesmos e diante da Literatura, onde buscamos enxergar os recortes e reflexos da vida! 

“O cidadão ilustre” é um convite à reflexão das condutas humanas, uma autocrítica que – não só personagens – mas todos nós deveríamos fazer. A letra da música “Ninguém é igual a ninguém”, do grupo Engenheiros do Hawaii, é um detalhe na busca por tecer um texto, que dialogue com a obra cinematográfica. As entrelinhas da canção reforçam perspectivas do filme, revelando-nos a eterna busca do ser. 

A nossa busca por revelar quem somos, de fato, diante do outro que também é! Todos iguais, tão desiguais, mas uns mais iguais que os outros.  

CAPÍTULO 2 – O filme 

Neste capítulo iremos apenas apresentar uma sinopse – direta e objetiva – do filme “O cidadão ilustre”, com a finalidade de contextualizar o leitor e ambientá-lo com a trama.  

O escritor argentino Daniel Montavani (Oscar Martínez), que vive há décadas na Europa (Barcelona), é premiado com o Nobel de Literatura. Durante a cerimônia de premiação, o escritor faz duras críticas ao processo de sua escolha como vencedor, e revela seu sentimento de declínio como artista.  

Segundo ele, sua obra passou a atender ao gosto e necessidades de jurados, especialistas, acadêmicos e reis. Para Montovani, o reconhecimento unânime de sua obra sintetiza a própria derrocada, a ponto de mencionar ser “um artista mais cômodo para vocês”.  

Para o escritor, sua obra precisa interpelar, sacudir, questionar, transgredir e se inconformar. E, ao final do discurso, lamenta com profundo pesar sua canonização artística e o fim de sua aventura criativa. 

Daniel passa os cinco anos seguintes recluso, evitando cerimônias e premiações em diversos países. Ignora convites para palestrar em universidades famosas e até mesmo, a venda de direitos autorais de um determinado livro, que poderia ser adaptado ao cinema.  

Mas, um convite vindo de Salas, interior da Argentina, e sua terra natal; palco de suas personagens e histórias no decorrer de toda sua trajetória literária; traz total inquietação ao escritor, que num primeiro momento se recusa a retornar ‘para casa’. 

Daniel é convidado a receber o título de cidadão ilustre de Salas, e a participar de algumas solenidades. E, acaba decidindo retornar! Voltar para a terra de onde seus personagens nunca puderam sair e ele – Daniel – nunca pôde voltar. O escritor passou toda a sua vida tentando fugir deste lugar, no entanto, é preciso retornar e encarar de frente todos os seus ‘demônios’. 

Afinidades e diferenças sempre o ligaram a Salas, bem como a toda gente daquela comunidade, gente simples e modesta, com suas idiossincrasias, outrora narradas nas histórias do famoso escritor.   

A volta do ‘filho pródigo’ é carregada de conflitos e perturbações, num ambiente real, que a todo momento se mescla e, confunde-se, com a ficção de seus romances. Daniel versus Salas é um confronto que se torna inevitável durante a trama, onde vencedores e vencidos são todos, conforme cada ponto de vista. 

Os moradores de Salas que cruzam o caminho de Montovani despertam no escritor, os mais variados tipos de sentimentos e, a reciprocidade, verdadeira ou não, dá um toque ácido ao filme, que em alguns momentos, são um ‘soco no estômago’, como já mencionado.  

CAPÍTULO 3 – Ninguém 

A música “Ninguém = Ninguém” é a primeira faixa do álbum Gessinger, Licks & Maltz, lançado em 1992 pela gravadora Universal Music Brasil. Este capítulo é dedicado à divulgação da letra de este sucesso, que marcou época. E, posteriormente, iremos entrelaçar os diálogos existentes nas entrelinhas – do filme e música. 

Há tantos quadros na parede 
Há tantas formas de se ver o mesmo quadro 
Há tanta gente pelas ruas 
Há tantas ruas e nenhuma é igual a outra 
Ninguém é igual a ninguém 
Me espanta que tanta gente sinta 
(Se é que sente) A mesma indiferença 

Há tantos quadros na parede 
Há tantas formas de se ver o mesmo quadro 
Há palavras que nunca são ditas
Há muitas vozes repetindo a mesma frase:
Ninguém é igual a ninguém
Me espanta que tanta gente minta 
(Descaradamente) a mesma mentira 

Todos iguais, todos iguais 
Mas uns mais iguais que os outros 
Todos iguais, todos iguais 
Mas uns mais iguais que os outros
Todos iguais, todos iguais
Mas uns mais iguais 

Há pouca água e muita sede 
Uma represa, um apartheid 
(A vida seca, os olhos úmidos) 
Entre duas pessoas 
Entre quatro paredes 
Tudo fica claro 
Ninguém fica indiferente 
Ninguém é igual a ninguém 
Me assusta que justamente agora 
Todo mundo (tanta gente) tenha ido embora 

Todos iguais, todos iguais 
Mas uns mais iguais que os outros 
Todos iguais, todos iguais 
Mas uns mais iguais que os outros 
Todos iguais, todos iguais 
Mas uns mais iguais, mas uns mais iguais, mas uns mais iguais
Que os outros 

O que me encanta é que tanta gente 
Sinta (se é que sente) ou 
Minta (desesperadamente)
Da mesma forma 

Todos iguais, todos iguais 
Mas uns mais iguais que os outros 
Todos iguais, todos iguais 
Mas uns mais iguais que os outros 
Todos iguais, todos iguais 
Todos iguais, todos iguais 

Tão desiguais, tão desiguais 
Tão desiguais, tão desiguais
Todos iguais, todos iguais 

CAPÍTULO 4 – A caçada… aos diálogos das entrelinhas  

A cena do flamingo morto no início e ao final do filme, apresenta uma perspectiva interessante sobre o desenrolar da película “O cidadão ilustre”, que é apresentado em forma de capítulos.  

O lançamento do último livro de Daniel Montavani (de mesmo nome do filme), ao fim da trama, coloca o espectador na condição de leitor, de uma história que acaba de ser contada cinematograficamente. O espectador-leitor presencia uma narrativa contada através do filme, que é mais um sucesso literário de Daniel. 

O cinema ajuda a pensar a diversidade cultural e não fica restrito simplesmente a uma noção de estética, como propõe Bolz (1991, p. 95), considerando as reflexões de Walter Benjamin sobre cinema, cuja estética cinematográfica é concebida como doutrina da percepção humana: 

Benjamin não mais pensa no conceito da estética no sentido tradicional para nós, no sentido de uma teoria das belas artes, nem mesmo no sentido de uma teoria das artes, mas pensa na estética a partir de sua etimologia grega, isto é, da “aisthesis”, ou seja, como doutrina da percepção. E, enquanto uma tal doutrina da percepção, a estética não é um departamento entre outros, mas é para Benjamin, uma nova ciência diretriz. (BOLZ, 1991).  

É essa doutrina da percepção humana que alimenta o filme-romance de Daniel, personagem real e fictício de sua obra literária, cuja persona foi colocada por ele mesmo, no centro da narrativa, ratificando sua vaidade e egocentrismo, como o próprio escritor admite na coletiva de imprensa, durante o lançamento do agora livro, O cidadão ilustre

Vale à pena lembrar que o cinema possibilita novos modos de visão… mesmo depois de concluído o filme, ele ainda dialoga com o espectador. “O cidadão ilustre” continua a causar sensações em seus espectadores, que acabam se tornando leitores, mesmo sem o contato íntimo com as páginas do livro. 

E quando buscamos os diálogos nas entrelinhas do filme, bem como na canção do grupo Engenheiros do Hawaii, deparamo-nos com singularidades e subjetividades que reforçam o comportamento humano, desnudando e mostrando as mazelas, típicas e características da humanidade. 

“Há tantos quadros na parede… Há tantas formas de se ver o mesmo quadro”. 

E entre os muitos quadros no filme, apenas um, chamou a atenção de Daniel. Como jurado de um concurso de pintura, o escritor desaprovou praticamente todas as obras. Apenas um quadro, por ter sido pintado em um cartaz de propaganda, mereceu considerações.  

De acordo com ele, o quadro não deveria ficar na parede e sim no meio do salão, onde pudesse ser contemplado frente e verso, numa perspectiva crítica. Na frente, uma simples paisagem e no verso, uma propaganda! Uma provocação, que poderia levar a reflexões sobre a arte, independente se era essa, ou não, a intenção do artista. 

Essa ‘provocação’ observada por Daniel, provocou – a ira – em Florêncio (Marcelo D’Andrea), presidente da Associação dos Artistas Plásticos de Salas, contenda que expõe a fragilidade do comportamento humano dos envolvidos na trama. De acordo com Florêncio, um dos romances de Daniel caracteriza os moradores de Salas “como brutos e pervertidos, capazes de praticarem as piores condutas humanas”.  

E se essa era realmente a visão de Daniel sobre as pessoas de sua terra natal, a visão de Florencio sobre o escritor também não era das melhores, afirmando que o escritor fez fortuna difamando a cidade; não tendo consciência de sua origem, de onde ele saiu. 

“Há tanta gente pelas ruas… Há tantas ruas e nenhuma é igual a outra… Ninguém é igual a ninguém”.  

Há muita gente pelas ruas de Salas, há ruas diferentes e ninguém é igual a ninguém. Daniel é cosmopolita, culto e sofisticado e está diante de pessoas – diferentes e simples – numa cidade que é comum a todos eles, mas, difamada pelo escritor “que não teve sequer, a dignidade de voltar a Salas para enterrar o próprio pai”, segundo palavras de Florêncio. 

E é justamente nas ruas, que o escritor se encontra com algumas pessoas do povoado, gente que o trata como um conhecido íntimo, mas que não tem a mesma reciprocidade por parte de Daniel, como é o caso de Renato (Daniel Kargieman), que insiste que o escritor vá jantar com ele e sua mamãe. 

Renato traz consigo uma gratidão imensa por Daniel, já que em uma de suas obras, existe um personagem, um entregador de recados. Para Renato, este personagem é seu papai, imortalizado – de certa forma – em um dos livros do escritor.   

Em um encontro anterior com Renato, o vencedor do Nobel de Literatura é um pouco mais simpático, no entanto, na rua, diante da insistência do morador de Salas, Daniel não poupa suas verdades e manifesta toda sua indiferença, diante daquele convite e diante daquele homem. Afirmando inclusive, que Renato não o conhecia, e não representava nada para ele. Há gente pelas ruas de Salas, ruas diferentes, com pessoas diferentes.  

“Me espanta que tanta gente sinta… (Se é que sente) A mesma indiferença”.  

Indiferença – se é que sente, realmente – pontuada alguma vezes no filme, tanto pelo escritor, quanto por alguns cidadãos salenses.  

Daniel, num primeiro momento, é completamente indiferente ao pedido de dinheiro por parte do pai de um jovem cadeirante. Coberto de suas razões e convicções, o escritor demonstra total falta de habilidade, diante de uma questão sensível. Por mais que tivesse razão em relação à forma apelativa como o pedido foi feito, Daniel não poupa as palavras e dispara: “seria perverso e contrário aos meus princípios. Ajudar seria como se eu fosse uma divindade, um ajudador. Não sou um religioso e acho o seu pedido apelativo”. 

Indiferença que se multiplica por parte dos moradores de Salas que tentam intimidar o escritor; jogam tinta vermelha em sua recém-inaugurada estátua, num tom ameaçador; atiram uma bomba em frente ao hotel em que está hospedado; o chamam de “traidor, filho da puta”; atiram ovos nele… atiram em Daniel! Total indiferença! Com o premiado escritor, vencedor do Nobel de Literatura? Não! Com um ser humano, conterrâneo, gente, como aquela gente; gente, daquela gente! 

“Há palavras que nunca são ditas… Há muitas vozes repetindo a mesma frase: ninguém é igual a ninguém”.  

Há momentos em que as palavras não precisam ser ditas, os gestos dizem por si só. A cena de Daniel Montovani com o motorista, depois que o carro fura o pneu, é emblemática. Num primeiro momento, o escritor rasga as páginas do próprio livro para acender uma fogueira. Algo bastante significativo para aquele que ‘está morto’ para a Literatura. 

E, posteriormente, o motorista também rasga algumas páginas do livro para se limpar. Ele se afasta do carro, abaixa as calças e defeca! As páginas do livro… cada letra, cada frase, cada ideia e pensamento registrados, não servindo para mais nada… o excremento, simbolicamente, sacramenta o fim de sua obra. São muitas as vozes repetindo que ninguém é igual a ninguém. Será mesmo? 

“Me espanta que tanta gente minta… (Descaradamente) a mesma mentira”.  

Mentira refletida em alguns pontos da trama cinematográfica, inclusive na noite de premiação do concurso de pintura. Quando num discurso vazio, o prefeito tenta enaltecer a cultura, dizendo que esta, é essencial para o desenvolvimento de uma sociedade. Mas, omite dos convidados, que aquelas obras não foram selecionadas pelo júri. 

Neste momento o escritor se revolta e diz que a melhor política cultural é não ter nenhuma política. “A cultura é indestrutível, sobrevive a qualquer hecatombe. Estas não são as obras selecionadas e tampouco premiadas”, afirma Daniel. Mentiras que não se sustentam, mas que ao mesmo tempo, trazem o ‘equilíbrio’ para aquela sociedade. Não é de se espantar que tanta gente minta, descaradamente. 

“Há pouca água e muita sede… Uma represa, um apartheid… (A vida seca, os olhos úmidos)”. 

Em “O cidadão ilustre” a escassez de água chega ao ponto de uma lagoa inteira, represada em tempos passados, encontra-se completamente seca. Na cena nas proximidades da lagoa, o escritor está com Irene (Andrea Frigerio), sua namorada de outrora, dos tempos de juventude. 

Irene acompanhou toda a carreira do escritor de longe, leu todos os seus livros, segundo o marido dela, Antônio (Dady Brieva), que em outra cena do filme conversa com Daniel sobre o fato de ele – Antônio – ter vencido Daniel, já que aquele se casou com a mocinha. 

A vida de Irene é vazia! Por mais que se esforce em dar aulas e cumprir com suas atividades familiares e obrigações junto à comunidade, ela represou seus sentimentos por Daniel durante anos. A separação – de Daniel e de momentos passados vividos com ele – deixou sua vida seca, os olhos úmidos durante os três primeiros anos longe do escritor, deixaram as lágrimas – agora secas – no passado. 

O beijo entre Daniel e Irene dentro do carro, não faz muito sentido para o escritor. Talvez faça, para ela, que mesmo mantendo um distanciamento, busca estar perto dele em vários momentos do filme, principalmente nas situações mais críticas. Neste momento o escritor confessa que nunca conseguiu escrever nada, referente ao período vivido na Europa. Sua escrita está diretamente ligada à sua infância, sua juventude e à sua gente. 

“Entre duas pessoas… Entre quatro paredes… Tudo fica claro… Ninguém fica indiferente… Ninguém é igual a ninguém… Me assusta que justamente agora… Todo mundo (tanta gente) tenha ido embora”. 

No quarto do hotel, Daniel é surpreendido por Julia (Belén Chavanne), filha de Antônio e Irene, mas, até este momento, o escritor não sabia de quem se tratava. O sexo com uma jovem – bem mais jovem do que ele – é um convite ao prazer, a ponto de ele desmarcar todos os compromissos naquela noite.  

Nem tudo é tão claro e Daniel fica indiferente. Não sabe nada da ‘garota’, como ele mesmo se refere a ela, na hora de acordá-la. Uma prostituta disposta a fazer o que ele quisesse e com iniciativa sem limites. Foi essa a descrição que Daniel fez sobre Julia, ao pai da moça, sem saber do laço entre eles, obviamente.  

Ir embora de Salas, assim como Daniel se foi um dia. Esse é o desejo de Julia, que não suporta aquela cidade e não quer acabar como sua mãe, num casamento de conveniências. E se para sair de Salas é preciso transar com Daniel e, talvez conquistá-lo, no hay problema, vale

“O que me encanta é que tanta gente… Sinta (se é que sente) ou… Minta (desesperadamente)… Da mesma forma”

A glamourização em torno do filho mais ilustre de Salas, o vencedor do Nobel de Literatura, é algo que mexeu com todo o povoado. Mas, até que ponto? Todos aqueles gestos de admiração, respeito e carinho para com o escritor (em algumas cenas pontuais), seriam mesmos sinceros? E a percepção real sobre o significado de ganhar uma premiação tão importante como o Nobel? Era algo compreendido pelos moradores? 

Na mesa de jantar com Irene e Antônio, ela se dirige ao escritor dizendo não saber se ele é um ingênuo, ou um egocêntrico por achar que ninguém em Salas poderia se ofender com suas histórias. Uma cidade e um povo conhecidos mundialmente, por suas mazelas, eternizados na obra de Daniel Montovani. Uma comunidade que ‘abraça’ esse filho ilustre, num primeiro momento. Para expulsá-lo depois… “O que me encanta é que tanta gente… Sinta (se é que sente) ou… Minta (desesperadamente)… Da mesma forma”! 

“Todos iguais, todos iguais… Mas uns mais iguais que os outros… Todos iguais, todos iguais… Todos iguais, todos iguais… Tão desiguais, tão desiguais… Tão desiguais, tão desiguais… Todos iguais, todos iguais”. 

“O cidadão ilustre” é um filme sobre a humanidade e o comportamento humano. Daniel, assombrado por seus personagens fictícios, precisava acertar suas dívidas com os personagens reais de Salas. Não é possível fugir de questões pendentes, presas ao passado e, por mais que evitasse esse confronto, o escritor sabia que precisava retornar.  

Mesmo sendo contrário a seus princípios, ele resolve ajudar o rapaz cadeirante e liga para Nuria (Nora Navas), sua assessora, pedindo que compre a cadeira ou que envie dinheiro para a família do rapaz. Um gesto simbólico, de quem tenta pagar suas dívidas com aquela população.  

Ao ser atacado com ovos durante a premiação do concurso de pintura, Montovani devolve a medalha de cidadão ilustre e menciona sua satisfação pela revolta do povo contra uma instituição, nesse caso, o próprio escritor. “Continuem igual! Essa sociedade hipócrita e orgulhosa de sua ignorância e brutalidade. Continuem fazendo de Salas este paraíso”, diz Daniel e deixa o recinto. 

Ir embora não é deixar de estar. A cidade de Salas e toda sua gente nunca saiu de Daniel. “Todos iguais, todos iguais, mas uns mais iguais que os outros”. Já numa das cenas finais, saindo para a caçada… Em cima da caminhonete, Daniel revê vários personagens do povoado. Sua mente divaga e ele ouve vozes… ‘somos todos de Salas, senhor’! 

A obra de Daniel Montovani aborda temas universais, criada a partir do cotidiano íntimo de pessoas do lugar onde ele nasceu e passou sua juventude. Fugir desse lugar – e dessa gente – sempre foi a obstinação dele, que passou mais de três décadas sem pisar na cidade.  

“Tão desiguais, tão desiguais… Tão desiguais, tão desiguais… Todos iguais, todos iguais”. Durante a caçada, um tiro e o reconhecimento por parte do escritor que na morte, tudo se ordena.  

Já na coletiva de lançamento do romance O cidadão ilustre, quando questionado por um jornalista sobre o fato de ele ser o personagem principal da história passada em Salas, e que isso seria demasiado egocêntrico, Montovani responde que a vaidade e o egocentrismo são ferramentas fundamentais para a escrita. 

Quando outro jornalista questiona o escritor sobre o que seria ficção ou realidade naquele romance, ele mostra o ferimento a bala e pergunta ao repórter do que se trata… Ironicamente o manda fazer o dever de casa e, logo em seguida, o editor encerra a coletiva e libera o momento para fotos. 

Daniel Montovani, que em outras cenas do filme dizia não gostar de fotos, deixa ser fotografado. Centenas de cliques e flashes refletem contra o rosto do escritor, que não disfarça seu ar de satisfação, vaidade e egocentrismo.  

CAPÍTULO FINAL  

Todos iguais… Cidadãos de Salas ou não, somos todos iguais! Volpe (1998, p. 15), menciona o fato de o texto estar em constante movimento.  

O importante é que tanto o leitor quanto o espectador percebam os vestígios, as marcas de texto anteriores, sendo ainda capazes de completar-lhes o sentido (já que um texto encontra-se em constante movimento, isto é, aberto a novas leituras e interpretações), de captar o sentido da ironia, ampliando assim sua leitura. De fato, a obra de arte submete o leitor/espectador a uma intensa atividade muitas vezes inconsciente, em que [ele] ora formula hipóteses construtivas sobre o significado do texto, ora estabelece conexões implícitas […], faz deduções […] sempre baseado no seu conhecimento do mundo […] e das convenções literárias. (VOLPE, 1998). 

Este artigo não teve a pretensão de esgotar as múltiplas possibilidades de análises e interpretações sobre o filme “O cidadão ilustre”, ao contrário, objetivou apenas contribuir com uma perspectiva ancorada na canção “Ninguém é igual a ninguém”, proporcionando diálogo (entre) as entrelinhas.  

O diálogo proposto neste artigo pretendeu uma construção textual que possa se multiplicar em sua leitura, releitura e nas formas mais variadas de interpretações. Assim como não há limites para a arte, não existem limites referentes à perspectiva, ao olhar e à análise.  

Não há, um, ponto de vista; ou, o ponto de vista! “Há muitas formas de se ver o mesmo quadro” e este texto é apenas, uma, dessas muitas formas. Todos são – somos – iguais, assim como o cidadão ilustre; mas uns, mais iguais que os outros!  

REFERÊNCIAS 

BOLZ, Norbert. Teoria da mídia em Walter Benjamin. In: Sete perguntas a Walter Benjamin. Revista USP. São Paulo, 1991. 

CALLAI, Cristiana; SOUZA, Marcelly. Ensaiando escritas nos rastros do coelho pensante. Textura – Ulbra, v. 21, p. 260-274, 2019. 

CLAIR, Jean. De immundo. Paris: Galilée, 2004. 

COUTINHO, Afrânio. Notas de Teoria Literária. 2. ed, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. 

FONSECA, Rubem. Natureza-podre ou Franz Potocki e o mundo. In: Os prisioneiros. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 

SITE LETRAS. Gessinger, Licks & Maltz. Engenheiros do Hawaii. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/engenheiros-do-hawaii/discografia/gessinger-licks-e-maltz1992/> Acesso em: 10 de setembro de 2019.

VOLPE, Miriam Lídia. Resgate de um sonho: cidadão Kane e Kubla Kan. São Paulo: Cone Sul, 1998.


1Mestre em Ensino, Universidade Federal Fluminense (UFF); Especialista em Relações Públicas e Comunicação Contemporânea, Universidade de Araraquara (UNIARA); Especialista em Docência do Ensino Superior, Universidade do Norte do Paraná (UNOPAR); MBA em Gestão de Pessoas (UNOPAR); Graduado em Comunicação Social/Jornalismo, Centro Universitário São José de Itaperuna (UNIFSJ); Graduado em Ciências Contábeis, Faculdade de Filosofia de Itaperuna (FAFITA); Graduado em Letras/Português (UNOPAR). ORCID https://orcid.org/0009-0003-2614-4491. E-mail: euzebio_dornelas@id.uff.br