TATUAGEM: IDENTIDADE E AUTOESTIMA NA PELE – ESTUDO SOBRE A TATUAGEM COMO EXTENSÃO DA IDENTIDADE E SEU EFEITO TRANSFORMADOR NA AUTOESTIMA DO INDIVÍDUO.

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202505082338


Anderson Souza Rocha1


Resumo

O presente artigo tem como proposta analisar a tatuagem por um viés psicológico e sociológico, entendendo tatuar-se como a materialização da arte no corpo. Partindo do pressuposto que a tatuagem tem um elo estreito com busca por robustecer a identidade e alavancar a autoestima, mesmo que de forma subjetiva por parte do indivíduo. Essa busca pela construção da identidade e da autoestima através de uma narrativa de identidade corpórea é o objetivo do estudo e é através da pesquisa qualitativa e bibliográfica que obtemos recursos para a exploração concreta do tema. Mediante uma pesquisa semiestruturada e análise de conteúdo foi possível um conhecimento fenomenológico, que atendem as experiências desse estudo a partir de cada indivíduo abordado na amostragem. Além de, pesquisa bibliográfica para o suporte teórico. Os resultados reforçam o pressuposto do artigo. Apesar do ato de tatuar-se ter motivações próprias para cada pessoa, grande parte delas apontam para uma busca de externalização de sua identidade e/ou elevação da autoestima, mesmo que em um primeiro momento de forma inconsciente.

Palavras-chave: Tatuagem, Identidade, Autoestima, Expressão Pessoal.

Introdução

A tatuagem e a história da humanidade se entrelaçam, já que há evidências arqueológicas de que a prática de pigmentar a pele acontece há milhares de anos (Deter-Wolf, 2016). O ato de marcar permanentemente o corpo já ocupou diversos papeis na sociedade como, por exemplo, estando associada a rituais, pertencimento de grupos e até como meio de alcançar um certo status social. Também, já foi considerado um tabu e até ocupou um lugar de marginalização na sociedade, mas na contemporaneidade, a tatuagem se consolidou como uma forma de arte corporal e uma poderosa ferramenta de expressão individual (Kosut, 2006). Assim, cada vez mais, a tatuagem tem se tornado uma técnica popular, sendo encontrada em qualquer parte do corpo, em diferentes cores, modelos, tamanhos e, principalmente, significados.

A arte de tatuar a pele, de alguma forma, sempre posicionou o indivíduo na sociedade e “é justamente porque a relação social é intercorporal que uma dada corporalidade se presta a ser fonte de sociabilidades ou de rejeições, se presta a ser fonte de autoconfiança e de prazer ou, pelo contrário, de baixa autoestima e de sofrimento.” (Fernandes & Barbosa, 2016, p.72)

Para além de uma arte eternizada na própria pele, a tatuagem ocupa um papel social detendo a capacidade de comunicar, marcar experiências, reforçar identidades, embelezar o corpo e representar o pertencimento a um grupo específico no qual o indivíduo está inserido. Segundo David Le Breton (2003), o corpo é uma construção social e simbólica, sendo constantemente interpretado e ressignificado.

Indivíduos optam por marcar seus corpos permanentemente com símbolos, palavras, imagens ou desenhos que carregam algum tipo de significado ou representação, seja para si ou para a sociedade no qual está estabelecido. Essas marcas podem ter inúmeras representações de vida, valores, crenças, validações em determinados grupos ou puramente ter um apelo estético pessoal (Braunberger, 2000). Assim, pode-se dizer que a modificação corporal atua como uma extensão da identidade do indivíduo em um determinado período de vida, que pode ser induzido pelo contexto social no qual está inserido.

A imagem como uma forma de comunicação entre sujeitos e, ainda, portadora de elementos que informam “se define como um objeto produzido pela mão do homem, em um determinado dispositivo, e sempre para transmitir a seu espectador, sob forma simbolizada, um discurso sobre o mundo real” (AUMONT, 2009, p. 260).

As imagens fazem do mundo um relato inesgotável, ao mesmo tempo sempre idêntico e sempre renovado elas introduzem o inteligível ou o olhar lá onde reina a incoerência ou o invisível. A ampliação que elas operam no fluxo do real, ou nos entrelaçamentos das coisas, frequentemente deforma seu conteúdo, mas elasoferecem essas realidades de outra maneira inapreensíveis em sua espessura e em sua complexidade, uma imagem que permite começar a compreendê-las, a aproximar-se mais delas. (LE BRETON, 2016, p. 242).

Assim, a imagem tem o objetivo de representar simbolicamente, de forma externada, aquilo que desperta o desejo intrínseco do sujeito ou, ainda, uma alternativa para a representar um lugar na sociedade. Com isso, a imagem pode ser considerada uma trama de relações codificadas, que sempre podem ser reveladas com novas abordagens. Aguilar e colaboradores (2017) dizem que toda escritura tem obrigação de transmitir uma mensagem, seja por sinais figurativos ou simbólicos.

Com o notório aumento da popularidade da tatuagem na modernidade é pertinente abordar questões relevantes em torno do tema, como seu impacto psicológico – particularmente – em relação à autoestima. A decisão (por meio da tatuagem) de marcar o corpo, o processo de escolha da imagem e/ou mensagem e o ato de exibir a tatuagem podem influenciar a maneira como os indivíduos se percebem e são percebidos e, também, como interagem com o mundo (Swami & Furnham, 2007).

A partir disso, a tatuagem pode ser considerada como uma forma de “capital social” (Boudieu, 1984, citado por Atkinson, 2004), tal como um procedimento de cirurgia plástica ou a tonificação do corpo, porque eles tem a capacidade de tornar o corpo esteticamente melhor e mais valorizado, de acordo com cada contexto. Por isso, viu-se a necessidade de propor uma investigação sobre a tatuagem como um elemento fundamental na construção e expressão da identidade e seu potencial efeito transformador na autoestima.

1. Tatuagem de Construção da Identidade

A identidade é um conceito complexo, porque “ser é o conceito mais universal e o mais vazio. Como tal, resiste a toda tentativa de definição. Esse conceito mais universal e, por isso, indefinível prescinde de definição.” (Heidegger, 1997, p.27). A tatuagem, enquanto um modo de modificação corporal e repleta de significado, emerge como um elemento tangível na externalização e afirmação da identidade do indivíduo. Essa identidade é multifacetada e moldada por experiências individuais, interações sociais e influências culturais (Erikson, 1968).

A tatuagem, portanto, é um meio de busca e encontro de expressão do eu em relação ao todo no qual o indivíduo insere-se. Essa expressão racional ou não, é intencional. Seja de perpetuar a história, demonstrar sentimentos, superações, comunicar ou representar. O fato é que marcar definitivamente a pele reflete de modo perceptível a busca pela singularidade do ser. Isto é, pretensão de uma comunicação mais explícita do seu eu perante a percepção do todo, seja para diferenciação de um grupo, seja por pertencimento.

1.1 Expressão do Self

No âmbito da psicologia e das ciências sociais, o self é entendido como a percepção do indivíduo em relação a si mesmo, através de um conjunto complexo de crenças, valores, memórias, afetos e representações simbólicas que compõem a sua identidade. Mead (1934) refere-se ao self como uma estrutura social, por este emergir no cerne das relações sociais. Então, o self e o corpo são duas estruturas distintas, já que o self diferencia-se do corpo por ter uma estrutura composta de sujeito e objeto – enquanto pode haver experiências corporais que não necessariamente envolvam o self. Isso é possível através da consciência, que carrega essa capacidade por meio de processos de abstração, que consequentemente preparam o indivíduo para as interações sociais. Porque, é durante essas interações sociais que se dá a conscientização dos discursos, que de tal forma significativa passa a ter efeito no próprio indivíduo.

A tatuagem, neste contexto, proporciona um sentido perceptível ao discurso consciente proveniente das interações sociais no qual o indivíduo é alocado. Seja através da escolha do símbolo, da localização do corpo e/ou até mesmo o significado que é atribuído, a tatuagem tem a capacidade de refletir aspectos únicos da individualidade de cada ser. Assim, o ato de marcar a pele pode representar uma paixão, uma superação, um ente querido ou um marco importante na vida do indivíduo, tornando-se uma narrativa visual inscrita na pele.

Analisando por um viés mais contemporâneo, sobretudo com o advento das redes sociais e a participação massiva da sociedade – de modo geral – nesse contexto, a tatuagem, também, atua como uma linguagem visual de pertencimento, validação ou diferenciação. Atuando, de certa forma, como um código cultural, que pode também servir para uma identificação coletiva.

1.2. Pertencimento e Diferenciação

Paradoxalmente, a tatuagem tem a capacidade de gerar sentimento de pertencimento a um grupo com valores e interesses em comum e, também, funciona para reafirmar a individualidade e a diferenciação em relação ao todo. Já que segundo Le Breton (2003) o corpo não é apenas biológico, mas também simbólico e social, sendo um espaço onde o indivíduo projeta sua subjetividade e inscreve seus códigos culturais.

Em relação a uma narrativa comum, a tatuagem pode inserir o indivíduo em um determinado grupo, através – por exemplo – de símbolos como logotipo de bandas, personagens de seriados, representações culturais, emblema de movimentos sociais e tantos outros. Segundo Michel Maffesoli (2001), os sujeitos contemporâneos tendem a buscar tribos — comunidades afetivas onde compartilham gostos, valores e estéticas. A tatuagem se torna um elemento que visualmente sinaliza a integração a essas tribos, funcionando como uma marca identitária coletiva.

Por outro ângulo, a tatuagem também é utilizada como um dispositivo de individualização. Nesse sentido, a técnica diferencia o sujeito ao comunicar suas singularidades. Marcando o corpo com um gosto específico, uma memória pessoal ou até um valor íntimo, tornando assim, o corpo uma tela onde se aplicam escolhas identitárias únicas. Anthony Giddens (1991), afirma que o sujeito – na modernidade – vive um processo de “autoidentidade reflexiva”, ou seja, constantemente constroi e reconstroi sua imagem para si e, também, para os outros. Assim, a tatuagem é usada como marcador de unicidade, tornando o corpo uma biografia visível.

1.3. Identidade Narrativa

David Le Breton (2003) diz que o corpo é o primeiro espaço de expressão identitária. Assim, a tatuagem traduz a vontade de dar forma visível à interioridade do sujeito. Nessa ótica, podemos compreender a tatuagem como um elemento da “identidade narrativa” (McAdams, 2001), onde o indivíduo tem inúmeras possibilidades de marcar permanentemente o corpo para eternizar um capítulo importante dessa narrativa, auxiliando na comunicação da própria história. Ou seja, uma forma de narrativa visual, na qual o indivíduo projeta memórias, experiências e afetos na própria pele.

De acordo com Paul Ricoeur (1991), a identidade narrativa é construída quando o sujeito organiza sua trajetória por meio de histórias que dão coesão ao eu. A tatuagem, nessa perspectiva, torna-se uma materialização simbólica dessas histórias, através da escolha da imagem projetada e eternizada na pele. Assim, a tatuagem associa-se à narrativa de cada indivíduo, mesmo que a identidade não seja algo fixo, mas sim um processo contínuo de narração de si (Ricoeur, 1991).

Afinal, parece existir uma coerência entre o significado atribuído aos símbolos tatuados na pele com o desenvolvimento da própria identidade. Isso pode ocorrer com a finalidade de recordar fases da vida, fixar momentos ou pessoas específicas, expor gostos, ou ainda, a inserção em um núcleo através da identidade corporal. Todas essas escolhas intencionais acabam por agregar na narrativa de cada indivíduo, afinal “a tatuagem é uma linguagem da carne, uma inscrição durável do que não quer ser esquecido” (Le Breton, 2003).

2. O Efeito da Tatuagem na Autoestima

A autoestima, definida como a avaliação subjetiva que um indivíduo faz de seu próprio valor, é um aspecto crucial do bem-estar psicológico (Rosenberg, 1965). A relação entre a tatuagem e a autoestima é complexa e pode ser influenciada por diversos fatores, incluindo a motivação para a tatuagem, o significado atribuído a ela e a reação social ao indivíduo tatuado. Sendo assim, a técnica pode, também, atuar como um recurso de afirmação e reconstrução da autoestima.

Esse elo entre a tatuagem e a autoestima pode, ainda, ser observado de forma subjetiva e objetiva. Por uma visão mais subjetiva a tatuagem pode ser realizada com o objetivo de embelezar o corpo e aplicar uma arte na pele, de fato, como um ornamento – contendo, claro, suas simbologias e motivações de acordo com cada indivíduo. Já, por uma ótica mais objetiva entre autoestima e tatuagem, a técnica de marcar a pele tem a finalidade de cobrir cicatrizes e, ainda, por exemplo, reconstruir (como em muitos casos) a aréola de seios de mulheres que, por algum motivo, foram retiradas. Assim, a tatuagem tem um propósito mais objetivo em relação a busca e elevação da autoestima. Portanto, a tatuagem pode ser um meio de alinhamento entre autoimagem e identidade desejada, como argumenta Fernandes & Barbosa (2016) a corporalidade é central na construção da identidade e autoestima do indivíduo.

2.1. Empoderamento e Autonomia

O processo de decidir realizar uma tatuagem, escolher o símbolo e vivenciar a experiência em si – na qual o indivíduo sente a dor da execução na pele – pode gerar um sentimento de controle sobre o próprio corpo e de autonomia. O que de certo modo tem a capacidade de contribuir para a elevação da autoestima. Para Anthony Giddens (1991), o indivíduo busca construir narrativas coerentes sobre si mesmo. A tatuagem entra aqui cumprindo esse papel de construir narrativas, revelando escolhas conscientes e personalizadas.

Assim, o ato de tatuar-se pode representar a capacidade de decidir sobre o próprio corpo, reafirmando a autonomia frente às normas culturais ou familiares. Para Le Breton (2003) o corpo tatuado é um corpo que se liberta da passividade, tornando-se linguagem. Ao transformar o corpo em superfície de arte e escolha, há um sentimento de potência. A escolha do que tatuar, levando em conta como e onde, pode estar relacionada a reivindicações de identidade, ancestralidade, dor, resistência ou liberdade – o que muito particular de cada um neste processo.

A tatuagem, dado seu papel notório na história, está longe de ser apenas moda ou tendência. Pode sim, ser lida como uma expressão concreta de autonomia e empoderamento – que reflete consideravelmente na percepção da imagem que o indivíduo constroi sobre si mesmo. Afinal, o ato de tatuar-se propõe ao sujeito uma maior autoria sobre sua imagem no contexto social no qual ele está posto.

2.2. Aceitação e Valorização do Corpo

Para alguns indivíduos, a tatuagem funciona como um meio de aceitar ou transformar partes do corpo considerados motivos de insatisfação. Uma tatuagem bem colocada e significativa pode aumentar a percepção de atratividade e a satisfação com a imagem corporal, elevando a autoestima (Swami et al., 2012). Considerando o cenário atual onde a cultura da imagem, frequentemente, impõe padrões de beleza quase inalcançáveis, a tatuagem atua como um meio do indivíduo reconciliar-se com o próprio corpo, reconstruindo nele uma visão mais subjetiva, simbólica e até amorosa.

A escolha de tornar o corpo um suporte artístico contribui para a valorização da singularidade. A tatuagem tem a capacidade de ofertar a liberdade estética, permitindo que cada indivíduo recrie sua imagem de acordo com a sua subjetividade. Trazendo para o contexto atual, atua em oposição ao corpo moldado pelos filtros digitais e pelas cirurgias padronizadas. Isso, gera um movimento de autoestima, onde o corpo não tem propriamente a necessidade de padronização, mas personalizado com sentido. Afinal, “a imagem nunca é neutra: ela é atravessada por valores, ideologias e contextos socioculturais.” (AUMONT, 2009)

Por uma visão mais objetiva, a tatuagem assume um papel de extrema relevância para indivíduos que passaram por situações de rejeição corporal como, por exemplo, distúrbios alimentares, doenças, gestações ou mudanças físicas significativas. Assim, a tatuagem atua como um instrumento de resgate da autoestima, proporcionando uma maior aceitação do próprio corpo. Seja através de uma representação narrativa visual desse processo, seja por meio da cobertura de cicatrizes com a aplicação da arte na pele.

2.3. Expressão Autêntica e Confiança

A tatuagem, que é uma forma de expressão corporal, tem se consolidado como um instrumento de comunicação visual profundamente atrelado à construção da identidade e da autoconfiança. Em um contexto onde o corpo é compreendido como uma linguagem (AUMONT, 2009), tatuar-se uma prática de afirmação do self.

“Indivíduos com tatuagens são frequentemente percebidos como mais autoconfiantes e independentes, refletindo uma necessidade psicológica de singularidade e autoexpressão.” (Swami & Furnham, 2007). Nesse sentido, a tatuagem exterioriza aspectos internos da personalidade e concede ao indivíduo uma sensação de autenticidade que, consequentemente, reflete em confiança em si mesmo e em sua história.

Ao marcar a pele de forma definitiva, o indivíduo transforma o corpo em um território simbólico, no qual ele reivindica – mesmo que inconscientemente – o direito de dizer quem ele é e como deseja ser visto. Por tanto, a tatuagem perpassa por diversas camadas desde um adorno até uma forma de representar uma narrativa pessoal, fortalecendo a autoestima por meio da construção de uma identidade visual, intencional e autêntica. Afinal, “existe uma relação complexa entre tatuagem e imagem corporal, com algumas evidências sugerindo que as tatuagens podem melhorar a satisfação corporal ao permitir que o indivíduo recupere o controle sobre sua aparência” (Swami & Furnham, 2007).

Metodologia

Quando estamos no campo da psicologia, sociologia e arte, principalmente, levando em conta o tema abordado aqui é quase inevitável não enveredar para a análise qualitativa que é “uma tentativa de se explicar em profundidade o significado e as características do resultado das informações obtidas através de entrevistas ou questões abertas, sem a mensuração quantitativa de características ou comportamento” (OLIVEIRA, 2016, p. 59). Essa é uma análise interpretativa e foi enfatizado o entendimento do entrevistado sobre a relação entre suas tatuagens com as motivações e as interpretações de seus símbolos eternizados na pele.

Quanto à pesquisa bibliográfica, como um procedimento técnico ela fornece todo o embasamento teórico para articulação do pensamento nas diferentes áreas adentradas neste artigo, auxiliando em amarrar temas de campos distintos para a construção da escrita.

No que diz respeito à coleta de dados, o método utilizado foi uma pesquisa semiestruturada através de entrevista, pois ela permite o acesso em profundidade a realidade da amostra. Com a premissa de não induzir o entrevistado, o tema da pesquisa só foi apresentado posteriormente à aplicação da entrevista. Foi, também, esclarecido que não haviam respostas certas ou erradas e nem obrigatoriedade de resposta. Ainda concernente a este tópico, é relevante referir que era sempre frisando o caráter confidencial e privado da entrevista, para salvaguarda dos participantes.

A entrevista se justifica por estabelecer uma relação entre entrevistador e entrevistado, visto que é uma técnica de comunicação. Para González Rey (2010)

“a comunicação é uma via privilegiada para conhecer as configurações e os processos de sentido subjetivo que caracterizam os sujeitos individuais e que permitem conhecer o modo como as diversas condições objetivas da vida social afetam o homem. Por intermédio da comunicação, não conhecemos apenas os diferentes processos simbólicos organizados e recriados nesse processo, estamos tentando conhecer outro nível diferenciado da produção social, acessível ao conhecimento somente por meio do estudo diferenciado dos sujeitos que compartilham um evento ou uma condição social.”

Por isso, a entrevista semiestruturada com a finalidade de dar mais liberdade ao entrevistado, logo, deixá-lo mais à vontade para discorrer acerca dos questionamentos e também para elucidá-los em caso de dúvidas, sem induzi-los a nenhuma resposta de interesse.

A amostra compreende trinta entrevistados, sendo dezoito do gênero masculino e doze do gênero feminino, entre 20 e 40 anos – sendo a faixa etária com maior número de participantes dos vinte aos trinta – todos brasileiros, residentes no estado do Rio Grande do Sul. O critério para delinear a amostra foi o participante ter mais de cinco tatuagens pelo corpo.

A análise dos dados foi realizada a partir das respostas dos entrevistados, já que a metodologia qualitativa permitiu captar percepções subjetivas e experiências pessoais. Assim, as entrevistas foram gravadas e transcritas de forma precisa, levando em conta informações contextuais relevantes como pausas e ênfases. Ainda, as entrevistas foram organizadas de forma sistemática, numerando cada entrevistado e atribuindo códigos para manter o anonimato dos participantes. A partir disso, foram identificadas as respostas dos participantes em relação à identidade e autoestima em conexão com as suas tatuagens.

Resultados

Com embasamento no resultado da pesquisa viu-se a necessidade de apresentar categorias e subcategorias que emergiram da análise de conteúdo acerca da temática, assim como a discussão dos temas. Sendo essa uma discussão crítica, com a finalidade de debater congruências e/ou incongruências em relação às referências teóricas e enriquecer o debate sobre a temática.

1. A Tatuagem como Expressão e Extensão da Identidade

A análise dos dados revela que a tatuagem vai muito além de uma prática estética ou de um mero modismo: ela atua como uma forma potente de comunicação de si mesmo, assumindo o papel de extensão simbólica da identidade. Conforme Erikson (1968), a construção identitária é um processo contínuo de afirmação e reconhecimento de si em relação ao mundo. Nesse contexto, a tatuagem surge como um marcador narrativo visível, que comunica ao outro — e também a si mesmo — aspectos centrais do indivíduo.

Ao relatar a tatuagem como resposta a vivências marcantes, os participantes reforçam a ideia de que o corpo tatuado opera como uma extensão de memórias, uma espécie de linguagem visual composta por afetos, subjetividade e intenção. O que permite não apenas lembrar, mas também ressignificar acontecimentos que moldaram a trajetória do indivíduo.

1.1. Manifestação de Valores e Crenças

Uma grande fração dos entrevistados relataram que parte das suas tatuagens simbolizam valores pessoais e crenças. Uma participante (E12) com uma tatuagem de mandala explica: “para mim simboliza a cura e tem, também, um toque de espiritualidade”. Outro participante (E25) com um filtro dos sonhos nas costas diz: “este é meu amuleto, que me protege de coisas ruins e bom de estar tatuado é que está sempre comigo”.

Isso mostra que “a imagem nunca é neutra: ela é atravessada por valores, ideologias e contextos socioculturais” (AUMONT, 2009). Podemos perceber então que, a escolha do símbolo na tatuagem não é aleatória, ela carrega uma narrativa a partir do indivíduo e/ou um contexto social.

1.2. Representação de Experiências de Vida

“A imagem tem uma capacidade única de condensar o sensível e o inteligível em uma única forma” (AUMONT, 2009, p. 74). Por isso, as tatuagens – frequentemente – funcionam como marcos visuais de eventos significativos, superações e memórias relevantes. Assim, nesses casos, cada indivíduo recorre a um símbolo para representar esses momentos e, de modo geral, esses símbolos têm uma representação consensual na sociedade, facilitando o entendimento por parte do outro.

O entrevistado (E7) com um corvo tatuado no braço compartilhou: “essa tatuagem representa um momento delicado da minha vida, após uma experiência de quase morte que tive há alguns anos”. Por outro lado, a participante (E19) com os nomes dos filhos tatuados expressou: “meus filhos são a coisa mais importante da minha existência, então, por que não eternizar esse amor no meu corpo?!”

1.3. Expressão da Individualidade e Singularidade

A tatuagem tem a capacidade de expressar a individualidade de cada ser. Afinal, “a tatuagem é uma gramática silenciosa que comunica o desejo de ser único” (Le Breton, 2003). Assim, a tatuagem é meio para a mensagem do eu em relação ao outro. Dessa forma, o indivíduo deve buscar os recursos certos, por meio da arte da tatuagem, para conseguir alcançar uma comunicação efetiva.

Um participante (E28) com um design abstrato, criado de forma exclusiva por seu tatuador a partir de seu briefing comentou: “queria algo que fosse só meu, que não tivesse um significado óbvio para os outros, mas que significasse pra mim”. Outro participante (E3) com diversas pequenas tatuagens no antebraço afirmou: “queria representar tudo que eu gosto em um único lugar, quem ver essa tatuagem, com certeza, vai me conhecer melhor”.

1.4. Conexão com Grupos e Subculturas

Para alguns participantes, as tatuagens facilitaram o sentimento de pertencimento a grupos com interesses ou valores compartilhados. Esse sentimento acontece quase que de forma inconsciente. Afinal, a lógica de raciocínio nesse contexto – percebida através da pesquisa – é a de que o indivíduo já faz parte de um grupo e, por isso, quer reafirmar esse posicionamento através da tatuagem. E, não, necessariamente, fazer tatuagem para poder, então, pertencer.

Um entrevistado (E15) com uma tatuagem relacionada a uma banda musical explicou: “a música deles me representa, fez parte da minha adolescência (…) é uma tatuagem comum entre os fãs”. Para Giddens (1991) “o corpo torna-se um projeto, que é constantemente moldado, revisado e mantido à luz dos estilos de vida que escolhemos adotar”.

2. O Impacto da Tatuagem na Autoestima

O impacto da tatuagem com relação à autoestima está fortemente ligado à experiência de autonomia estética e simbólica. Ao escolher imagens que representam valores, crenças ou experiências pessoais, os participantes demonstram engajamento com sua própria imagem de maneira ativa, o que favorece um maior senso de valor pessoal. A tatuagem, nesse sentido, rompe com o olhar alheio como centro de validação, deslocando o eixo da autoestima para a autopercepção.

O sentimento de controle sobre o próprio corpo também está presente nos relatos e se conecta com a ideia de autonomia. Assim, a tatuagem permite a construção de uma aparência que traduz subjetividades diversas, transformando o corpo em espaço autônomo de (re)afirmação.

Por fim, mesmo diante de julgamentos, os participantes reforçaram a importância de manterem-se fieis às suas escolhas. Isso evidencia que o valor simbólico da tatuagem está ligado não apenas à imagem, mas também à coerência entre o que se sente, o que se escolhe e o que se comunica ao mundo.

2.1. Aumento da Confiança e do Orgulho do Corpo

Quase a totalidade dos participantes relatam um aumento na confiança e na satisfação do corpo após a realização de uma tatuagem, desejando até expor mais o corpo. A entrevistada (E21) com uma tatuagem que cobre uma marca de queimadura expressou: “me sentia insegura, sempre usava calças para esconder a marca, fiz a tatuagem para esconder e me sentir confortável em usar um saia, um shot, um vestido”. Esse relato mostra a tatuagem atuando de forma objetiva na autoestima do indivíduo, transformando a percepção de si mesmo em relação a seu corpo.

Ainda, por uma visão mais subjetiva, outro participante (E9) afirmou: “me senti mais interessante depois das minhas tatuagens, me sinto mais eu mesmo e sinto que as pessoas me observam mais”. Abordar o tema autoestima é sempre complexo, porque contém inúmeras nuances e, no âmbito da tatuagem, ela pode ter inúmeras ramificações de acordo com a trajetória singular de cada indivíduo e suas emoções e motivações individuais. Ou seja, estamos aqui diante de processos e experiências únicas, onde há uma dificuldade de compilar um conceito concreto.

2.2.  Sentimento de Empoderamento e Autocontrole

De acordo com Atkinson (2004), a modificação corporal, neste contexto da tatuagem, funciona como um método para o indivíduo romper com as expectativas ditas normais em uma sociedade. Assim, as pessoas com tatuagens têm um sentimento, mesmo que não consciente, de empoderamento em relação ao próprio corpo e isso leva a uma ligação ao autocontrole já que é o indivíduo que tem o poder de decidir o que e onde o símbolo será eternizado.

Essa narrativa é confirmada a partir da análise dos entrevistados, como exemplo, temos a participante (E5) que comentou: “por muito tempo vivi sob o controle excessivo dos meus pais, quando tive a oportunidade logo fiz minha primeira tatuagem para me conectar comigo mesma e mostrar como me sinto”. Aumont (2009) em sua abordagem sobre a imagem diz que ela pode cristalizar um afeto ou um trauma, então a tatuagem pode atuar nessas duas frentes, comunicando um ou outro. Mas, o que podemos perceber é que a tatuagem proporciona a administração desses sentimentos através da expressão artística corporal.

2.3.  Expressão Autêntica e Congruência

Através da pesquisa foi possível perceber que ao buscar autenticidade – por meio da tatuagem – há um entrelaçamento entre o eu e o todo. Afinal, é preciso levar em conta o eu para poder compreender e externar gostos, crenças e vivências. Contudo, também é necessário ter em vista o todo para, assim, poder encontrar a maneira mais efetiva de causar a diferenciação desejada em relação a um grupo ou até mesmo na sociedade como um todo. E é consensual que a tatuagem detêm inúmeros recursos para proporcionar uma identidade mais autêntica, como a escolha dos estilos, cores, tamanhos e símbolos, tudo isso usando da criatividade para uma expressão mais coerente em relação ao indivíduo.

Para reforçar isso, o entrevistado (E17) explicou: “minhas tatuagens me representam, foi a forma que eu encontrei de mostrar quem eu sou por dentro e sinto que as pessoas entendem isso”. Percebe-se aqui que há uma congruência entre o interior de cada indivíduo em relação ao exterior, usando a tatuagem como forma de externalizar o que cada um acredita ser importante ser explorado e exibido. Como que uma forma de compilar a mensagem que precisa de ser transmitida e, através da tatuagem, é simbolizada para comunicar o que se deseja.

Conclusão

Pode-se concluir, através do embasamento teórico e da análise da pesquisa, que o pressuposto do artigo é confirmado, mesmo que em um primeiro momento a tatuagem possa ser vista como um procedimento puramente estético – inclusive para os entrevistados – aprofundando-se no assunto é possível atravessar camadas e chegar ao ponto mais profundo das motivações, sejam pessoais ou coletivas. Percebendo, assim, que há um estímulo mais profundo – psicologicamente – desde a decisão de se tatuar, o símbolo escolhido e até a parte do corpo no qual ele está inserido.

Os temas aqui relacionados com a tatuagem: a identidade e a autoestima, através da pesquisa, pode-se perceber que não são temas excludentes um do outro. Isso significa que, a tatuagem pode ser uma busca por identidade e autoestima, ao mesmo tempo ou, ainda, pode ser uma busca individual por cada um deles. Mas, sempre há, necessariamente, uma relação com um desses temas – de forma explícita ou não. Ainda, de forma consciente ou não. Então, o conceito de identidade e autoestima está diretamente ligado ao ato de tatuar-se.

Na perspectiva da identidade, a tatuagem atua como um suporte artisticamente visível de apresentar uma narrativa, fortalecendo o senso de pertencimento a si mesmo. Assim, a partir da pesquisa, foi possível compreender que os entrevistados têm uma visão quase que consensual sobre seu corpo, onde este desempenha um papel ativo na construção da identidade, sendo visto como um objeto ativo de comunicação nesse processo. A decisão de tatuar-se não fica à margem das experiências significativas do indivíduo. Mas sim, tem um papel de externar marcas que representem valores, crenças, afeitos e vivências. O ponto importante aqui é salientar que em um primeiro momento esse papel não é, necessariamente, consciente. Mas, aprofundando-se no assunto, percebe-se que – quase majoritariamente – há uma narrativa acompanhada dos símbolos aplicados na pele através da tatuagem.

Com relação à tatuagem no âmbito da autoestima, os entrevistados entram em consenso de que a arte aplicada na pele teve um impacto positivo na percepção de si mesmo, seja no campo objetivo ou subjetivo. A imagem aplicada através da tatuagem, por ser uma escolha pessoal – e em grande parte das vezes carregada de sentidos – contribui para a valorização da própria imagem, reforçando a autoconfiança por meio do orgulho corporal e de uma maior congruência entre a identidade interna e externa. Deste modo, “o corpo torna-se um projeto, que é constantemente moldado” (GIDDENS, 1991), assim a busca pela autoconfiança acontece em diferentes momentos da vida do indivíduo e pelas mais diversas motivações e necessidades.

Pode-se concluir que essa pesquisa reforça a compreensão da tatuagem como um fenômeno psicológico e social complexo e significativo. Ao atuar na externalização de aspectos cruciais da identidade e ao fomentar sentimentos positivos em relação ao próprio corpo e à auto expressão, a tatuagem emerge como uma prática com potencial transformador na autoestima. Dessa forma, se distanciando de um ato puramente estético e adentrando em um campo mais profundo da compreensão do indivíduo, haja vista que no plano de fundo há fundamentos psicológicos e sociais.

Portanto, para arrematar o assunto, a tatuagem sob a ótica da identidade e da autoestima, constitui-se como uma forma legítima de construção simbólica do self. Ela é, ao mesmo tempo, narrativa, manifestação e transformação. Estudar a tatuagem dentro da sociologia e da psicologia é reconhecer o corpo como território de significados e entender que aquilo que se marca na pele reverbera nas estruturas mais profundas do ser e, ainda, no contexto social no qual o indivíduo está alocado.

Referências

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