SUPERAÇÃO DE PRECEDENTES FIRMADOS EM CONTROLE ABSTRATO PELA VIA DA RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL

REGISTRO DOI:10.69849/revistaft/th102411172329


Blenda Castilho Wanderosh Paiva1.


RESUMO

Os precedentes firmados em controle abstrato de constitucionalidade possuem irrescindibilidade por disposição expressa, com fundamento na segurança jurídica e na estabilização das relações jurídicas. No entanto, a questão da superação desses precedentes pela via difusa é exemplificada pela Reclamação 4.374, em que a Suprema Corte julgou improcedente a ação, apesar de a causa de pedir ter sido a reafirmação da decisão proferida na ADI 1.232, que havia declarado constitucional o §3º do art. 20 da LOAS. De forma incidental, o dispositivo legal que fora previamente considerado constitucional foi, então, declarado inconstitucional. Este cenário gera importantes implicações formais e materiais, uma vez que a superação de precedentes firmados em controle concentrado, pela via difusa e em sede de reclamação constitucional, pode abalar a previsibilidade das decisões judiciais e a confiança dos jurisdicionados no sistema jurídico. O presente trabalho pretende analisar essas consequências, considerando os impactos tanto na segurança jurídica quanto na ordem jurídica como um todo, além de discutir se a Reclamação Constitucional se apresenta como o meio processual adequado para essa finalidade, levando em conta o equilíbrio entre as funções típicas do controle concentrado e difuso de constitucionalidade.

Palavras-chave: Reclamação constitucional. Precedente. Irrescindibilidade

ABSTRACT

Precedents established in abstract judicial review of constitutionality possess irrevocability by express provision, based on legal certainty and the stabilization of legal relations. However, the issue of the overruling of such precedents through diffuse judicial review is exemplified by Constitutional Complaint (Reclamação) 4.374, in which the Supreme Court dismissed the action, despite the cause of action having been the reaffirmation of the decision rendered in ADI 1.232, which had declared the constitutionality of §3 of art. 20 of the LOAS. Incidentally, the legal provision that had previously been deemed constitutional was then declared unconstitutional. This scenario generates significant formal and material implications, as the overruling of precedents established in concentrated judicial review through diffuse review, and in the context of a constitutional complaint, can undermine the predictability of judicial decisions and the confidence of individuals in the legal system. This paper aims to analyze these consequences, considering the impacts on both legal certainty and the legal order as a whole,

while also discussing whether Constitutional Complaint is an appropriate procedural means for this purpose, taking into account the balance between the typical functions of concentrated and diffuse judicial review of constitutionality.

KEYWORDS: Constitutional complaint. Precedent. Irrevocability

  1. INTRODUÇÃO

O sistema de controle de constitucionalidade no Brasil combina dois modelos principais: o controle difuso e o controle concentrado. Esses mecanismos, essenciais para a manutenção da supremacia da Constituição, foram moldados ao longo da história, refletindo influências tanto do modelo americano quanto do europeu. No controle concentrado, os precedentes firmados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) possuem caráter irrevogável, conferindo previsibilidade e segurança às relações jurídicas.

Entretanto, a questão da superação desses precedentes pela via da Reclamação Constitucional, especialmente quando ocorre de forma incidental no controle difuso, levanta importantes desafios. A Reclamação 4.374 é um exemplo emblemático desse fenômeno, onde a Suprema Corte, ao julgar improcedente uma ação, acabou superando um precedente anteriormente firmado em controle abstrato,

declarando inconstitucional um dispositivo que antes havia sido considerado constitucional.

Essa situação gera sérias implicações para a estabilidade das decisões judiciais e a confiança do jurisdicionado no sistema jurídico, especialmente quando o precedente superado está diretamente relacionado à efetivação de direitos fundamentais. Diante desse cenário, este artigo se propõe a analisar os impactos da superação de precedentes em controle abstrato pela via da Reclamação Constitucional, discutindo a adequação desse instrumento processual para essa finalidade e seus reflexos na segurança jurídica e na ordem constitucional.

O estudo visa, ainda, a questionar se a Reclamação Constitucional, como instrumento de preservação da competência do STF e de suas decisões, é a via mais apropriada para a superação de precedentes, sem comprometer o equilíbrio entre o controle difuso e concentrado de constitucionalidade.

  1. BREVE RELATO HISTÓRICO DO CONTROLE DIFUSO E CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE

O direito brasileiro contempla um sistema de precedentes estabelecidos pela via de controle abstrato de constitucionalidade, consolidado pelo Constituinte de 1988 e, posteriormente, regulamentado pela Lei nº 9.868∕99 e Lei nº 9.882∕99.

No entanto, o contexto histórico nos mostra uma evolução paulatina desde o Império e no decorrer da construção do Estado Republicano, sendo fundamental a importação de modelos americanos e europeus, moldados para as necessidades e peculiaridades próprias da sociedade brasileira, formando um autêntico e original modelo de Direito Constitucional Slaibi Filho, (2008).

Na história da jurisdição constitucional, o sistema de precedentes se estabeleceu em duas feições: controle difuso (ou americano) e controle concentrado (austríaco ou europeu) (Mendes, 2016, P. 1080).

A priori, A essência do controle das normas surgiu no Estados Unidos da América, quando os juízes de “New Jersey (1780), Virgínia (1882) e Carolina do Norte (1887)”, decidiram que “poderiam deixar de aplicar a lei incompatível com as leis de maior importância” Slaibi Filho, (2008), surgindo a hierarquização das normas e a importância de verificar-se a compatibilidade dos preceitos normativos.

Mas, em verdade, tal sistema ganhou mais notoriedade no célebre caso Marbury vs. Madison, em 1803, no qual a Suprema Corte americana consolidou a possibilidade de controle difuso de constitucionalidade, ao decidir, incidentalmente, não aplicar uma lei infraconstitucional contrária à Paramount Law Slaibi Filho, (2008).

Diante do sistema de precedentes herdado do modelo britânico, o staredecisis, a decisão paradigma assegurou “a qualquer órgão judicial incumbido de aplicar a lei a um caso concreto o poder-dever de afastar a sua aplicação se a considerar incompatível com a ordem constitucional” Mendes, (2016).

  1. Controle difuso

Surgiu o controle difuso, porém apenas formal de constitucionalidade e de aplicabilidade interpars, até que a corte evolui para aferir a compatibilidade material em face dos “princípios implícitos que se extraem da Lei Maior […], pelo caráter de supremacia imanente à Constituição” Slaibi Filho, (2008).

No contexto de controle difuso, o maior impacto social foi o reconhecimento da supremacia da constituição e propagação da ideal separação de poderes e fortalecimento do Poder Judiciário, que foi incorporado em diversos países no decorrer da história.

No Brasil, a supremacia constitucional foi reconhecida na inaugural Constituição de 1824, que incorporou a separação de poderes (legislativo, judicial, executivo, moderador) (art. 10). Todavia, não estabeleceu um “controle stricto sensu de constitucionalidade” ao Poder Judiciário, pois temia-se os efeitos e as consequências desse poder no Judiciário, decorrente das notícias que percorriam o mundo acerca da Revolução Francesa Streck, (2014).

  1. Controles de constitucionalidade no poder legislativo

O controle de constitucionalidade adotado era exercido pelo Poder Legislativo, a quem competia “fazer Leis, interpretá-las, suspende-las, e revogalas (sic)” (art. 15, VIII), sob a responsabilidade de “velar na guarda da Constituição, e promover o bem geral da Nação” (art. 15, IX). Essa outorga ao Legislativo gerou graves problemas legais e arbitrários, pois garantia um controle ilimitado e, raramente, em prol do bem geral da Nação (Streck, 2014, 488)

A via difusa de constitucionalidade, exercida pelo Poder Judiciário, se instalou no Brasil nas vésperas da Assembleia Constituinte de 1891, com a edição do Decreto 848∕1890 e Decreto 1.420-A∕1891, ao conferir o poder de verificar se as normas “são conformes ou não a Constituição, e, neste último caso, cabe-lhe declarar que elas são nulas e sem efeito” (Exposição de motivos do Decreto 848).

Para Silva (2017), a reclamação constitucional surgiu como uma necessidade de proteger a competência dos tribunais superiores e evitar a usurpação de suas funções. Ao longo dos anos, o STF tem ampliado o alcance da reclamação constitucional, reconhecendo sua utilização em casos que envolvem a preservação da autoridade de suas decisões e a garantia da jurisdição única.

Na Constituição de 1891, o art. 59, § 1º, a e b, ratificou o controle difuso como competência da Suprema Corte em última instância e, o art. 60, conferiu a possibilidade controle pelos juízes e tribunais, mas só foi firmado com a Lei 221, no art. 13, § 10, ao dizer que “os juízes e tribunais apreciarão a validade das leis e regulamentos e deixarão de aplicar aos casos ocorrentes as leis manifestamente inconstitucionais e os regulamentos manifestamente incompatíveis com as leis ou a Constituição”.

Nagib Slaibi Filho (2008), retrata que esse sistema não foi incorporado com facilidade no aspecto prático, pois as raízes que maculavam o Poder Judiciário faziam com que os juízes recusassem exercer qualquer tipo de controle sobre outro poder. Aliás, Rui Barbosa, que colaborou com edição da Lei 221, ao impetrar Habeas Corpus em face de ato praticado pelo Presidente da República, o Supremo denegou a ordem sob o argumento de impossibilidade de interferência em outro poder.

Mas o primeiro passo – conferido por Rui Barbosa – foi fundamental para iniciar no ordenamento jurídico a possibilidade de controle difuso, “embora quase inexistente, não só pela formação privatística do juiz acostumado ao sistema jurídico do Civil Law, como pela falta de instrumentos jurídicos que permitissem aos tribunais – e principalmente o Supremo Tribunal Federal – a plena efetividade de tais funções” Slaibi Filho,( 2008).

Nesse percurso histórico do desenvolvimento do controle difuso no ordenamento brasileiro, surgia na Europa uma nova modalidade de controle de constitucionalidade: o controle abstrato.

Em 1922 o controle abstrato de constitucionalidade “tem origem no pensamento de Kelsen, tendo sido pioneiramente implantado na Áustria e, em seguida, incorporado por outros países europeus” Nunes Junior; Sciorilli, (2014). Quando essa modalidade de controle foi inaugurada, a Áustria criou um tribunal constitucional para, “de modo concentrado e unicamente pela via de ação direta, exercitar o controle de constitucionalidade” Slaibi Filho, (2008).

Diferente do controle difuso, que ocorre incidentalmente, o novel controle garante a possibilidade de verificar diretamente a compatibilidade da lei infraconstitucional com a Lei Maior.

Kelsen ensinava que uma Constituição deve dispor de uma garantia para anulação dos atos inconstitucionais. “E não se afigura suficiente uma sanção direta ao órgão ou agente que promulgou o ato inconstitucional, porquanto tal providência não o retira do ordenamento jurídico” Mendes, (2016).

Assim, não é apropriado apenas a declaração a respeito de um ato normativo pela Corte Constitucional, pois isso não passaria de uma “vontade despida de qualquer força vinculante […], e essa carência de força obrigatória contrasta radicalmente com a aparência de rigidez outorga à Constituição” Kelsen, (2003).

Portanto, é indispensável não apenas uma sanção ao órgão ou agente que promulgou o ato inconstitucional, sendo “indispensável, igualmente, a existência de sanção qualificada, isto é, do procedimento de anulação do ato inconstitucional por órgão competente” Mendes, (2016).

Essa forma inovadora de garantir mais higidez constitucional por meio do reconhecimento da inconstitucionalidade ou constitucionalidade de ato normativo foi implantada no Brasil com o advento da Constituição de 1934, ao prever a representação para intervenção, denominada pela doutrina como “ação declaratória de inconstitucionalidade, pois a Corte Suprema simplesmente declarava a inconstitucionalidade, procedendo a comunicação ao Presidente da República para que este viesse com o decreto de intervenção” Slaibi Filho, (2008).

  1. CONSTITUIÇÃO E SUA ATUAÇÃO NO DECORRER DA HISTÓRIA

A Constituição de 1934 era clara no sentido de vedar ao judiciário o conhecimento de qualquer questão de ordem política, não conferindo nenhum poder coercitivo para o cumprimento de suas decisões (art. 68), ao contrário dos ensinamentos de Kelsen.

O instrumento de intervenção possuí apenas um legitimado para propositura, o Chefe do Ministério Público, para a apresentar ao Judiciário em “caso de violação dos princípios constitucionais sensíveis, [constituindo] processo de natureza objetiva, independentemente da existência de efeitos concretos da lei impugnada” Slaibi Filho, (2008).

A Constituição de 1934 também inovou em relação ao controle difuso, estabeleceu que toda decisão proferida pela Suprema Corte deve ser remetida ao Senado, ao qual competia suspender a execução da lei, adquirindo efeitos ex nunc e erga omnes (art. 91, IV), enquanto isso, “qualquer juiz ou tribunal poderia continuar a aplicá-la” Streck, (2014)

Veja que, nesse momento, implantou-se do Brasil as duas feições de controle de constitucionalidade: o difuso e o concentrado, embora de formas restritas e particularizadas.

No decorrer dos anos, adveio o notório período em que os militares assumiram o poder da República e outorgaram a Constituição de 1937, “a polaca”, culminando no enfraquecimento das instituições e, consequentemente, das frágeis modalidades de controle das normas. Nesse período o controle de constitucionalidade ficou restrito ao “ato ou lei do Presidente da República” (art. 96), não mais à compatibilização com os princípios sensíveis da Lei Maior. O presidente podia submeter a decisão ao Senado que, por 2∕3 dos votos, afastaria os efeitos da decisão (art. 96, Parágrafo único).

Todavia, a Constituição Polaca foi suspensa em estado de emergência (art. 170) e, com isso, obstou-se qualquer modalidade de controle de constitucionalidade.

Após o período militar, ocorreu a redemocratização do país com a promulgação de uma nova Constituição em 1946, que garantiu a repristinação das inovações de controle de inconstitucionalidade pela intervenção federal, estabelecido na Constituição de 1934, Slaibi Filho, (2008).

Em 1964 instaurou-se um novo “Estado burocrático-militar” Streck, (2014) que, em 1965, por meio da Emenda Constitucional nº 16, introduziu o controle concentrado de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual em face da Constituição, lei ou ato do município em face da Constituição Estadual. Todavia, o legitimado para a propositura ainda era exclusividade do Chefe do Ministério Público (art. 101 e 124).

Interessante registrar que, por não existir controle para declarar a constitucionalidade, não era raro o Chefe do Ministério Público propor buscar a constitucionalidade uma norma, mas, para tanto, devia arguir a inconstitucionalidade e, ao fim, emitir parecer pela constitucionalidade

A grande celeuma que surgiu nesse período de expansão da atividade jurisdicional diz respeito à necessidade de a Suprema Corte ou o Tribunal de Justiça do Estado, necessariamente, enviar a sua decisão de controle difuso ou concentrado ao Poder Legislativo para, só então, suspender a eficácia e operando o efeito erga omnes (art. 13, da Constituição de 1946).

Acontece que o Poder Legislativo não via dever algum sequer analisar a decisão da Corte, ocasionando um número excessivo de demandas idênticas fundadas na decisão proferida pelo Supremo ou Tribunal de Justiça, pois os demais entes não obedeciam a decisão judicial, pois era desprovida de qualquer poder de vinculação ou de efeitos erga omnes Slaibi Filho, (2008).

Seguindo os preceitos da Constituição de 1946 em relação ao controle de constitucionalidade, adveio a Constituição de 1967 sem maiores alterações ou soluções sobre a eficácia geral das decisões do Supremo.

Durante esse período, a Suprema Corte recebeu inúmeras representações de inconstitucionalidade com pedido de medida cautelar, que culminou em uma importante decisão proferida na Representação nº 933, sob relatoria do Ministro Thompson Flores, que, por maioria, a concedeu para antecipar os efeitos erga omnes sem prescindir da resolução do Poder Legislativa para suspender a lei ou ato normativo.

Nagib Slaibi Filho (2008) retrata que após a primeira “cautelar antecipando os efeitos da resolução de órgão legislativo, o Supremo Tribunal Federal viu ser desnecessário comunicar a decisão ao Poder Legislativo, “ficando, assim, reservada a comunicação ao órgão legislativo somente para os casos de reconhecimento incidental de inconstitucionalidade”

Em seguida, no ano de 1977, a Emenda Constitucional nº 7, alterou a redação do art. 119, alínea i, o e p da Constituição de 1965, para dispor da concessão de medida cautelar quando presentes o “imediato perigo de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou às finanças públicas”.

Vimos até o presente que o controle de constitucionalidade sofreu grandes alterações no decorrer da história republicana, iniciando com o modelo de controle difuso ou americano, para resolver os casos concretos e com efeito entre as partes, mas apenas com efeito vinculativo nos países que adotam o staredecisis quieta movere, sendo deficiente e rejeitado por muitos juízes na República Velha; passamos pela instituição de um modelo de controle concentrado por meio de representação interventiva para assegurar os princípios sensíveis da Constituição; enfrentamos o período restritivo e de enfraquecimento das instituições na era militar; redemocratização e instauração de um estado burocrático-militar, que expandiu o modelo de controle concentrado; dilemas em relação aos efeitos erga omnes dos precedentes do Supremo até a possibilidade de concessão de medida cautelar para antecipar os efeitos da resolução legislativa.

Esse percurso histórico serve para demonstrar a necessidade de existir mecanismos para aferir a compatibilização de leis ou atos com a Constituição Republicana, a fim de pacificar a ordem e garantir a segurança jurídica das relações sociais e do Estado de Direito.

Nesse sentido, a Constituição de 1988, impulsionada pelos movimentos de redemocratização no mundo, alterou substancialmente o sistema de controle de constitucionalidade do país e garantiu mais autonomia e executoriedade às decisões da Suprema Corte.

A Carta Maior consagrou o tradicional modelo difuso de competência de qualquer juiz para, incidentalmente, reconhecer a validade ou não de uma norma para solução do caso concreto (arts. 97, 102, III, a a c, 105, II, a e b). Também inovou no modelo de controle concentrado de constitucionalidade, prevendo a ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade (incluído pela Emenda Constitucional 3∕93), ação de inconstitucionalidade por omissão, representação interventiva e ação de descumprimento de preceito fundamental (art. 103). Diante do contexto histórico, o legislador infraconstitucional conferiu ao controle abstrato uma ampla proteção jurídica, revestindo a decisão de caráter irrescindível e irrecorrível (art. 26, Lei nº 9.868∕99, art. 12, Lei nº 9.882∕99), para assegurar a estabilidade das relações jurídicas.

Ainda nesse espeque, a Carta Magna consagrou um instrumento coercitivo, na linha do pensamento de Kelsen, a ação de Reclamação Constitucional para a preservação de competência e garantia e efetividade da autoridade das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (art. 102, inciso I, alínea l), que será aprofundada nos tópicos a seguir.

  1. PRECEDENTES FIRMADOS EM CONTROLE ABSTRATO PARA ESTABILIZAÇÃO DAS RELAÇÕES JURÍDICAS

No atual estágio de construção democrática, o país enfrenta um elevado número de demandas judiciais para efetivação de direitos, pois o Poder Judiciário assumiu um papel fundamental em prol da concretização dos direitos consagrados na Constituição Federal.

O Ministro Luís Roberto Barroso (2013) destaca esse alto índice em duas razões: “em primeiro lugar, pela redescoberta da cidadania e pela conscientização das pessoas em relação aos próprios direitos. Em seguida, pela circunstância de haver o texto constitucional criado novos direitos.”.

Nessa nova perspectiva, o Poder Judiciário tem se destacado no exercício de pacificação e uniformização dos conflitos e direitos, essencialmente perante o extenso rol de direitos amplamente amparados na Lei Fundamental. Em verdade, nesse novo ambiente institucional, o juiz tem a obrigação ou poder-dever de interferir na vida da sociedade para garantia da ordem e paz social, conforme preceitua o inciso XXXV da Constituição Republicana.

Assim, os meios de controle de constitucionalidade são essenciais para firmar precedentes com força vinculante, ou seja, com efeito erga omnes e de aplicação obrigatória para o próprio Poder Judiciário e ao Poder Executivo em todas as esferas (art. 103, § 2º).

Esse mecanismo ganhou ainda mais força com a Emenda Constitucional 45∕04, ao conferir ao Supremo o poder de editar súmulas vinculantes, fixando tese de aplicabilidade obrigatória por meio de uma síntese clara e objetiva e limitada de aplicabilidade de sua decisão, a fim de facilitar a compreensão do Poder Executivo e dos próprios Juízes e Tribunais do Poder Judiciário, consolidando o efeito erga omnes.

O Código de Processo Civil de 2015 garantiu mais uma salvaguarda para os precedentes, uma espécie de vinculação que se aproxima do staredecisis, estabelecendo que os juízes e tribunais devem seguir os seguintes paradigmas firmados:

Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

I – asdecisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II – os enunciados de súmula vinculante;

– os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

  1. – os enunciados das súmulasdo Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
  2. – aorientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados – grifo nosso.

Se num primeiro momento tínhamos apenas o efeito vinculante e erga omnes no controle abstrato e de aplicabilidade obrigatória pelo Poder Executivo e o Judiciário, o desenvolvimento da legislação processualista garantiu mais um mecanismo de vinculação, porém, voltado apenas aos órgãos do Poder Judiciário em relação às demais formas de pacificação social, firmadas por meio de súmulas do STJ, decisões em recurso extraordinário e especial repetitivos, orientação do plenário ou órgão especial dos Tribunais, etc.

Para garantir a aplicabilidade dos precedentes, o Código de Processo Civil estabelece que a não obediência do paradigma importa em nulidade da decisão por falta de fundamentação (art. 489, § 1º, VI). Observe-se a projeção e importância de pacificar os conflitos levados para o judiciário dirimir, a fim de garantir a uniformização e segurança jurídica das relações sociais.

No entanto, é importante frisar que, de um lado, temos um controle abstrato capaz de vincular o Poder Executivo e Judiciário e, de outro, um sistema de precedentes que podem vincular todos os órgãos do Poder Judiciário.

Essa distinção de vinculação é importante para realçar o papel de sobreposição que o controle de constitucionalidade abstrato exerce perante os demais meios de pacificação dos conflitos, e as consequências que uma decisão em controle abstrato pode ocasionar no Estado de Direito.

Isso se torna mais notável quando o legislador infraconstitucional confere às ações direta e de declaração de constitucional o caráter de irrecorribilidade e impossibilidade de ser objeto de ação rescisória (Lei nº 9.868∕99, art. 26), nesse sentido também se porta a arguição de descumprimento de preceito fundamental (Lei nº 9.882∕99, art. 12).Diferente das decisões proferidas em Recurso Extraordinário, que podem ser objeto de overruling, isto é, a superação da tese jurídica em situações excepcionais Neves( 2016), trataremos desse assunto em tópico específico.

Aliás, oportuno mencionar que não são poucos os casos de grande impacto na vida social decididos pela Suprema Corte para pacificar a ordem social e estabilizar as relações jurídicas, desde questões ordem tributária, administrativa, familiar, previdenciária, criminal, civil, entre outros, entre os quais destacamos:

  1. ADPF 186, constitucionalidade da instituição de cotas raciais em universidades.
  2. ADI 3662, decretou a inconstitucionalidade de norma do Mato Grosso sobre contratação temporária de servidores com efeitos prospectivos, ocasionando a exoneração de diversos servidores no ano de 2018;
  3. ADI 4277 e ADPF 132, reconhecimento de uniões do mesmo sexo: homoafetiva;
  4. ADPF 54, declarou a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, I e II, do CP;
  5. ADI 3510, constitucionalidade do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas para fins terapêuticos.
  6. RE 574706, considerou que “o ICMS não compõe a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da Cofins”;
  7. RE 630501, reconheceu o direito ao melhor adquirido ao melhor benefício que o segurado da previdência fizer jus;
  8. RE 381367, 661256, 827833, considerou inviável o recalculo da aposentadoria por desaposentação sem previsão legal;
  9. ARE 964246, possibilidade de execução da pena após condenação em segunda instância;
  10. RE 837311, direito de não ser preterido em concurso público.

No entanto, não seria suficiente apenas a declaração do judiciário sobre um determinado tema e a previsão de aplicabilidade erga omnes, faz-se necessário a figura de um instrumento coercitivo, o qual consubstancia-se na ação de Reclamação Constitucional (art. 102, I, l, da CR), para garantir a efetivação dos precedentes, quando desrespeitados pela Administração Pública ou pelo próprio Judiciário.

4.1 Reclamação constitucional como instrumento de garantia e

preservação da autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal A reclamação é um instrumento de “ação” Wambier, (2016) de ordem constitucional, cuja causa de pedir pode assumir duas feições: (i) preservar a competência e (ii) garantir a autoridade das decisões (CR, art. 102, I, l), “prendese ao objetivo específico de salvaguardar a extensão e os efeitos dos julgados [da] Suprema Corte […], vocacionado à imediata restauração do ‘imperium’ inerente à decisão desrespeitada” STF, Rcl 18.636∕PB, rel. Min. Celso de Mello, DJ (10. 11. 2015).

Nos ensinamentos de Wambier e Talamini (2016), os efeitos decorrentes desse instrumento se materializam em: (i) eficácia declaratória para reconhecer a violação ou aplicação indevida do precedente ou competência; (ii) eficácia desconstitutiva para anular ou cassar o ato; (iii) eficácia mandamental para determinar à adoção de uma medida nos moldes do paradigma, apto para resultar em coisa julgada material (CPC, art. 502).

A teoria da mutação constitucional, defendida por Konrad Hesse (1991) e Peter Häberle (1997), deve ser considerada para entender como as mudanças interpretativas podem ocorrer sem alteração formal do texto constitucional. Esta teoria é relevante para fundamentar a possibilidade de revisões e atualizações jurisprudenciais via reclamação constitucional

A aplicação da reclamação constitucional no Brasil tem gerado um debate significativo entre os estudiosos do direito. De acordo com Barroso (2019), um dos desafios mais relevantes reside na delimitação do seu campo de aplicação, uma vez que o STF e o STJ têm adotado interpretações variadas sobre o cabimento desse instituto.

Em relação aos processos judiciais, oportuno mencionar que a reclamação cujo paradigma seja uma decisão proferida em recurso extraordinário com repercussão geral ou não, só caberá quando esgotado a via ordinária, isto é, após a decisão proferida por tribunal de segunda instância (CPC, art. 988, § 5º, II); igual restrição ocorre aos processos administrativos que violem súmula vinculante, sendo cabível somente após o exaurimento da via administrativa (art. 7º, § 1º, da Lei nº 11.417∕2006).

O mesmo não ocorre em relação às decisões proferidas em controle abstrato, que podem ser objeto de reclamação assim que ocorrer a violação ao paradigma, desde a primeira instância judicial ou ato administrativo (CPC, arts. 988, I, II, III). Por tanto, o paradigma invocado pelo reclamante deve, necessariamente, ter sido “proferido com eficácia vinculante, na linha do magistério jurisprudencial consagrado [pelo STF]” (RTJ 187/150-152), Rel. Min. Celso de Mello.

Nessa assentada, a reclamação não é possível para fazer prevalecer uma decisão proferida em processo de índole subjetiva, salvo se o reclamante compôs um dos polos da ação paradigma (STF, Rcl 18.636∕PB, rel. Min. Celso de Mello, DJ 10. 11. 2015).

Aliás, seguindo esse entendimento, o Código de Processo Civil ratificou o entendimento da Suprema Corte ao estabelecer que a reclamação é cabível para “garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade” (art.

988, III).

O mecanismo reclamatório surge dos ensinamentos de Kelsen (2003) sobre a necessidade de haver meios coercitivos, sob pena de às decisões permanecerem no campo das meras abstrações, sem qualquer efeito prático.

Assim, via de regra, quando alguma decisão for desobedecida, não haverá a necessidade de percorrer todo o processo de conhecimento judicial até chegar ao Supremo pela via de recurso extraordinário, pois a reclamação transpassa do período de cognoscibilidade ao de execução imediatamente ordenada pelo Supremo.

Nesse percurso, trazemos alguns casos objetos de reclamação no STF:

ADC 16: declarou a constitucionalidade do art. 71, § 1º, da Lei de Licitações, que veda a transferência automática – ou por presunção – da responsabilidade por encargos trabalhistas não adimplidos por agentes terceirizados. A reclamação constitucional é o instrumento utilizado para afastar o reconhecimento automático da responsabilidade da administração pública por encargos trabalhistas (Rcl 11.917/SP, Rel. Min. Luiz Fux; Rcl 12.828/PE, Rel. Min. Celso de Mello; Rcl 13.272-MC/MG, Rel. Min. Rosa Weber; Rcl 14.658/SP, Rel. Min. Dias Toffoli).

ADC 19: declarou a constitucionalidade do art. 41 da Lei Maria da Penha que afastar a aplicabilidade da Lei dos Juizados Especiais (Lei nº 9.099/95) aos crimes e, também, às contravenções penais, desde que praticados contra a mulher no âmbito doméstico e/ou familiar. Por meio da reclamação constitucional é possível afastar a decisão do juízo que aplicou a Lei dos Juizados Especiais aos delitos praticados contra a mulher no âmbito doméstico e∕ou familiar (Rcl 26806∕RJ, Rel. Min. Celso de Mello; Rcl 22004∕RJ, Rel. Min. Rosa Weber: Rcl 19884∕MG, Rel. Min. Teori Zavascki; Rcl 18565∕SP, Rel. Min. Luiz Fux)

ADPF 130 Ú ADI 4451: declarou não recepcionada a totalidade da Lei de Imprensa nº 5.250∕1967, impossibilitando a censura prévia no Brasil; declarou a inconstitucionalidade de dispositivos que censuravam a liberdade nas campanhas políticas.

As decisões administrativas ou judiciais que implique em censuras ao exercício da liberdade de expressão podem ser afastadas por meio da reclamação constitucional (Rcl 25075∕PB, Rel. Min. Luiz Fux; Rcl 18566, Rel. Min. Celso de Mello; Rcl 16074∕SP, Rel. Min. Roberto Barroso; Rcl 18186∕RJ, Rel. Min. Cármen Lúcia).

Dessa rápida digressão, é possível observar uma estrutura muito sólida e que se mostra no aspecto formal e material – suficiente para manter o imperium das decisões de índole objetiva, essencialmente às proferidas em controle abstrato, a fim de preservar a estabilidade das relações jurídicas e a segurança jurídica, em prestígio ao papel pacificador da ordem jurídica interna exercida pela Corte.

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho abordou a complexa questão da superação de precedentes firmados em controle abstrato pela via da Reclamação Constitucional, destacando as implicações materiais e formais no sistema jurídico brasileiro. Observamos que, apesar de os precedentes estabelecidos em controle concentrado de constitucionalidade conferirem previsibilidade e segurança jurídica, a possibilidade de sua superação, mesmo que incidental, desafia a estabilidade das decisões judiciais.

A análise do caso da Reclamação 4.374 revelou que a superação de precedentes, quando tratada na via difusa, pode abalar a confiança dos jurisdicionados no ordenamento jurídico, levantando questionamentos sobre a eficiência e adequação dos mecanismos utilizados. A Reclamação Constitucional, nesse contexto, emerge como um importante instrumento de preservação da autoridade e competência das decisões do Supremo Tribunal Federal, mas a sua utilização para a superação de precedentes firmados no controle abstrato exige cautela.

Dessa forma, conclui-se que há uma necessidade urgente de reflexão sobre os limites e as consequências da superação de precedentes. O equilíbrio entre o controle difuso e concentrado deve ser mantido para garantir a integridade do sistema constitucional, evitando a volatilidade das decisões e assegurando a estabilidade das relações jurídicas.

Sugerimos, portanto, um debate mais aprofundado sobre a aplicação da Reclamação Constitucional como meio para modificar precedentes, propondo, se necessário, ajustes legislativos que reforcem a previsibilidade sem comprometer a dinâmica necessária para a evolução do direito. O Poder Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal, deve continuar desempenhando um papel fundamental na pacificação social e na manutenção da segurança jurídica, sem perder de vista a flexibilidade necessária para acompanhar as transformações sociais.

REFERÊNCIAS

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1 Graduanda do Curso de Direito do Centro Universitário Fametro. E-mail: blendacastilho786@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0009-0004-0477-0413