REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7650541
Roberta Furtado Stivanin Rachid Novais1
Bartolomeu E. da Câmara França1
RESUMO
A solução de continuidade de parede uterina ocorre raramente na obstetrícia, com alta morbi-mortalidade materna e fetal e pode ser classificada como deiscência de cicatriz ou rotura propriamente dita. O principal fator de risco é a cicatriz por cesariana anterior e sua ocorrência é maior no terceiro trimestre. Apresenta-se com dor abdominal intensa de início súbito, dificuldade de ausculta de sons cardíacos fetais e cessação das contrações uterinas, além de sangramento vaginal e choque. O tratamento é cirúrgico e as prioridades são a retirada rápida do feto da cavidade peritoneal e a correção da hemorragia. A inserção anterior baixa de placenta em provável sítio de cicatrizes cesarianas anteriores poderia estar ligada a rotura do útero no primeiro e segundo trimestres gestacionais.
Palavras-chave: Rotura Uterina; Complicações na Gravidez; Medicina de Emergência.
ABSTRACT
The solution of continuity of the uterine wall occurs rarely in obstetrics, with high maternal and fetal morbidity and mortality and can be classified as scar dehiscence or rupture itself. The main risk factor is the scar from a previous cesarean section and its occurrence is greater in the third trimester. It presents with sudden onset severe abdominal pain, difficulty in auscultating fetal heart sounds and cessation of uterine contractions, in addition to vaginal bleeding and shock.
Treatment is surgical and the priorities are the rapid removal of the fetus from the peritoneal cavity and the correction of bleeding. The low anterior placental insertion in a probable site of previous cesarean scars may be linked to rupture of the uterus in the first and second gestational trimesters.
Keywords: Uterine Rupture; Pregnancy Complications; Emergency Medicine.
RESUMEN
La solución de continuidad de la pared uterina ocurre raramente en obstetricia, con alta morbimortalidad materna y fetal y puede clasificarse como dehiscencia de cicatriz o ruptura propia. El principal factor de riesgo es la cicatriz de una cesárea anterior y su ocurrencia es mayor en el tercer trimestre. Se presenta con dolor abdominal intenso de inicio súbito, dificultad para auscultar los ruidos cardíacos fetales y cese de las contracciones uterinas, además de sangrado vaginal y shock. El tratamiento es quirúrgico y las prioridades son la extracción rápida del feto de la cavidad peritoneal y la corrección de la hemorragia. La inserción anterior baja de la placenta en un sitio probable de cicatrices de cesáreas previas podría estar relacionada con la ruptura uterina en el primer y segundo trimestre de gestación.
Palabras clave: Rotura uterina; Complicaciones del Embarazo; Medicina de emergencia.
INTRODUÇÃO
A rotura uterina (RU) é uma solução de continuidade da parede uterina e é entidade rara e grave com alta incidência de morbi-mortalidade materna e morte fetal intraútero¹. Não há consenso sobre a definição, porém a RU pode ser descrita como deiscência ou rotura da parede do útero, precedendo eventos sintomáticos ou clinicamente significativos². A principal causa seria por deiscência da cicatriz uterina anterior por cesariana prévia,¹ ³ e geralmente ocorre durante o terceiro trimestre da gravidez ou intraparto². Podem ser classificadas como traumáticas, devido a trauma obstétrico ou não obstétrico, ou espontâneas, ocorrendo em 80% dos casos das roturas³. Classifica-se como completa, quando há total rotura da parede uterina, sendo urgência obstétrica, ou incompleta, permanecendo o peritôneo visceral intacto, podendo permanecer assintomática após um parto vaginal¹.
A incidência varia muito dependendo do país, de 1 a cada 585 partos a 1 a cada 6.673 partos¹. Os principais fatores de risco além de cicatriz cesariana são: cicatriz uterina prévia, curetagem uterina com perfuração, miomectomia, acretismo placentário, trauma abdominal, anomalias uterinas, hiperdistensão uterina, uso inapropriado de ocitocina¹.
As manifestações clínicas incluem¹:
- Deterioração do padrão dos batimentos cardíacos fetais;
- Gestante com queixa de dor aguda, de forte intensidade;
- Sangramento vaginal;
- Parada das contrações;
- Subida da apresentação ao toque vaginal;
- Partes fetais palpáveis facilmente no abdome materno;
- Taquicardia importante e hipotensão grave.
A abordagem cirúrgica é o tratamento e deve ser feito o mais rápido possível, confirmando o diagnóstico e permitindo avaliar a extensão e a localização da mesma. As prioridades no tratamento são a retirada do feto e a correção da hemorragia. A seguir, deve ser decidido se o reparo será suficiente ou se é necessária a histerectomia.4
CASO CLÍNICO
Gestante de 33 anos, previamente saudável, sem realizar pré-natal, com aproximadamente 16 semanas pela data da última menstruação, com antecedente de duas gestações sem intercorrências, ambas terminadas por cesariana indicadas por parada de progressão, a primeira ocorrida 14 anos antes do evento de rotura uterina, com recém-nato (RN) a termo pesando 3.000g, e a segunda há 10 anos, com RN a termo de peso 2.800g. Alega que cinco meses antes do evento relatado neste trabalho, sofreu abortamento completo espontâneo em primeiro trimestre gestacional, não necessitando portanto de realizar wintercuretagem. Foi atendida na admissão da Maternidade do Hospital Conde Modesto Leal por dor abdominal súbita, que a acordou na madrugada e estava relacionada à mudança de decúbito. No momento se encontrava assintomática.
Apresentava-se lúcida e orientada em tempo e espaço, normotensa, eupnéica, afebril, acianótica, anictérica, com exame físico demonstrando tônus uterino normal, abdômen inocente, batimento cardio-fetal (BCF) positivo e exame ginecológico com colo posterior, grosso e fechado, sem sinais de hemorragia vaginal. A ultrassonografia obstétrica demonstrava feto único tópico, com normodramnia e BCF positivo, correspondendo a 15/16 semanas. Em fossa ilíaca direita observou-se massa ecogênica, heterogênea, fixa, com moderada quantidade de líquido livre ao seu redor e espaço subfrênico. Não observadas anormalidades nos demais órgãos. Ao exame laboratorial, hemoglobina: 9,3g/dl, hematócrito:28,1%, leucócitos totais: 10.300/mm³, bastões : 1 %, plaquetas: 171 mil/mm³, uréia: 27mg/dl, creatinina: 0,62 mg/dl, fosfatase alcalina: 54 U/L, Gama GT: 12 U/L, Bilirrubina Total: 0,20, Direta: 0,04, Indireta: 0,16 mg/dl, TGO: 19 U/L, TGP: 10 U/L, amilase: 54 U/L, lipase: 6 U/L e urina tipo I com 40 piócitos, células epiteliais numerosas, hemácias de 8, hemoglobina +, flora bacteriana intensa. Sem demais alterações.
Durante a reavaliação, paciente queixou-se de dor infradiafragmática intensa, com dificuldade de realizar o decúbito dorsal. Com o uso de analgésico, referiu melhora importante, mantendo-se hemodinamicamente estável e responsiva durante toda a investigação. Realizada ressonância nuclear magnética de abdômen e pelve onde se visualizava feto tópico e vivo e pequena quantidade de líquido livre em cavidade. Sem demais alterações. Em radiografia de tórax póstero-anterior e perfil, observou-se ligeiro aumento da hemicúpula diafragmática à direita, podendo corresponder a alteração anatômica, sem demais alterações. Decidiu-se pela centese de fundo-de-saco, direito e esquerdo, porém a mesma mostrou-se negativa. Em novo hemograma, com a queda de hemoglobina: 8,3 g/dl, hematócrito: 24,8%, além de leucócitos totais: 11.600/mm³, bastões: 2%, plaquetas: 173 mil/mm³, tempo de protrombina INR: 1,43, tempo de tromboplastina parcial ativada: 32 e desidrogenase láctica: 314 U/L fica definido sangue como etiologia do líquido livre em cavidade, o que é confirmado por nova ultrassonografia demonstrando saco gestacional livre em cavidade abdominal. Realizada laparotomia, onde se diagnosticou implantação baixa placentária, ístmico-anterior, com rotura e laceração da parede expondo parte do saco gestacional íntegro fora da cavidade uterina. Feita a exérese do corpo uterino, por dificuldade de hemostase; conservação do colo e anexos bilaterais. O controle laboratorial pós-operatório, demonstrou necessidade de transfusão de 01 concentrado de hemácias.
A conclusão do histopatológico demonstrou endométrio de padrão deciduóide, placenta compatível com terceiro trimestre e anexos exibindo alterações vasculares isquêmicas sugestivas de sofrimento fetal, com áreas de necrose. Feto sem anormalidades à macroscopia e policongestão visceral inespecífica.
Após cirurgia, a paciente evoluiu satisfatoriamente, recebendo alta hospitalar cinco dias após a intervenção.
DISCUSSÃO
A RU é uma complicação rara associada a elevada morbi-mortalidade materno-fetais, ocorrendo no termo ou durante o trabalho de parto¹, principalmente quando houver antecedentes de cesariana, ocorrendo em aproximadamente 0,1% dos casos.5
Além de cesariana prévia, são fatores de risco: placenta anormalmente aderente, antecedentes de cirurgia uterina, multiparidade, ocitocina ou prostaglandinas na indução/aceleração do trabalho de parto, manobras de versão cefálica externa, parto com fórceps, macrossomia fetal, obesidade materna, desproporção feto-pélvica, apresentação fetal anômala, esvaziamento uterino ou histeroscopia e malformações uterinas.5
No presente caso clínico contamos com o principal fator de risco, ou seja, duas cesarianas prévias, além de inserção placentária baixa, provavelmente nas cicatrizes dessas cirurgias anteriores.
Uma possibilidade para o desfecho deste caso, que ocorreu na ausência de trauma local ou contrações, seria gravidez em cicatriz de cesariana que é um tipo de gravidez ectópica, em que o saco gestacional está completamente rodeado por miométrio e pelo tecido fibroso da cicatriz, no segmento uterino ístimico-anterior.6 Ocorre em 6,1% das gravidezes ectópicas, nas mulheres com antecedente de pelo menos uma cesariana, em primeiro e segundo trimestres gestacionais.6 Classifica-se em dois tipos diferentes, o primeiro resulta da implantação na cicatriz prévia, com saco gestacional desenvolvendo no espaço cérvico-ístmico e/ou cavidade uterina. O segundo tipo tem implantação na cicatriz e cresce em direção à bexiga e à cavidade abdominal.7 Ao longo da última década, percebeu-se aumento do número de casos descritos por provável aumento da incidência das cesarianas em todo mundo e pelo uso generalizado da ultrassonografia transvaginal, permitindo assim diagnóstico precoce.8 A causa e o mecanismo exato desta condição permanecem desconhecidos, bem como o intervalo de tempo entre a cesariana e a implantação da gestação subsequente, assim como se o risco aumenta com a quantidade de cesarianas prévias.6,8 A sintomatologia em 39% das gestantes é a hemorragia vaginal indolor, 16% queixam-se de hemorragia associada a dor nos quadrantes inferiores do abdômen e 9% apresentam apenas dor abdominal; no entanto até um terço são assintomáticas.6
O diagnóstico de RU exige um elevado grau de suspeição, constitui uma emergência obstétrica e é um desafio clínico, principalmente em fase precoce da gestação. Os sinais e sintomas mais sugestivos são a dor contínua no local da cicatriz de cesariana, hemorragia vaginal e a desaceleração prolongada da frequência cardíaca fetal.5 Neste artigo, tratamos de gravidez com possível implantação placentária na cicatriz cesariana e progressão da gestação para a cavidade uterina, com posterior rotura uterina progressiva e extravasamento gradual do saco gestacional para a cavidade abdominal.
Permanecendo a paciente estável e oligossintomática durante maior parte do tempo, com ausência de sangramento vaginal, exame físico preliminar inocente, culdocentese negativa, exames laboratoriais inicialmente pouco alterados para a gestação e presença de pequena quantidade de líquido livre em cavidade no exame de ressonância magnética, o diagnóstico tornou-se desafiador, e foi a evolução da rotura, que mostrou-se gradativa, gerando dor e alterações dos exames laboratoriais e de imagem, que possibilitou a suspeita diagnóstica confirmada na laparotomia.
PROTEÇÃO DE PESSOAS E ANIMAIS
Os autores declaram que os procedimentos seguidos estavam de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos responsáveis da Comissão de Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsinque da Associação Médica Mundial.
CONFIDENCIALIDADE DOS DADOS
Os autores declaram ter seguido os protocolos do seu centro de trabalho acerca da publicação de dados.
CONFLITOS DE INTERESSE
Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.
FONTES DE FINANCIAMENTO
Os autores declaram que o presente trabalho não foi objeto de qualquer financiamento.
REFERÊNCIAS
1. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção A Saúde. Gestação de alto risco. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2012
2. MachadoLO, MoraesFRR (2017) Rotura uterina: uma revisão de literatura. Revista de Patologia do Tocantins,4(4):65-72
3. Martínez-Garza, Pablo Andrade, Robles-Landa, Luis Pablo Alessio, Roca-Cabrera, Mario, Visag-Castillo, Víctor José, Reyes-Espejel, Lucero, García-Vivanco, Diego, Rotura uterina espontánea: reporte de dos casos. Cirugía y Cirujanos [Internet]. 2012;80(1):81-85. Recuperado de: http://portal.amelica.org/ameli/jatsRepo/66223253015
4. GOEBEL, Matheus Assunção et al. Ruptura uterina. Rev. méd. Minas Gerais, p. S64-S67, 2010.
5. Ayres-de-Campos D. Hipóxia fetal aguda. In: Ayres-de-Campos D, Santos Silva I, Costa FJ. Emergências Obstétricas. Lisboa: Lidel; 2011. p. 9-27.
6. Rotas MA, Haberman S, Levgur M. Cesarean scar ectopic pregnancies: etiology, diagnosis, and management. Obstetrics and gynecology 2006;1076:1373-81.
7. Vial Y, Petignat P, Hohlfeld P. Pregnancy in a cesarean scar. Ultrasound in obstetrics & gynecology: the official journal of the International Society of Ultrasound in Obstetrics and Gynecology 2000;166:592-3.
8. Uysal F, Uysal A, Adam G. Cesarean scar pregnancy: diagnosis, management, and follow-up. Journal of ultrasound in medicine: official journal of the American Institute of Ultrasound in Medicine 2013;327:1295-300
1Universidade Federal Fluminense – Niterói- RJ