REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8359349
Raíssa Falcão Spencer Hartmann
RESUMO
O presente trabalho tem como objeto a delimitação do alcance da imunidade tributária cultural contida no art. 150, IV, d, da Constituição da República. O estudo tem como pano de fundo as transformações políticas, históricas, sociais e culturais da realidade contemporânea, marcada pela democratização do acesso à internet e pelo avanço da tecnologia. A partir de uma interpretação finalística e evolutiva da imunidade tributária cultural, identifica-se a necessidade de adequação e conformação do Direito aos novos fenômenos da sociedade moderna, o que parece sinalizar a legitimidade do reconhecimento do beneplácito constitucional aos livros eletrônicos e suportes exclusivamente dirigidos a este fim, ainda que o legislador constituinte originário a eles não tenha feito menção expressa. A análise perpassa por orientações jurisprudenciais firmadas pelo Supremo Tribunal Federal sob a sistemática de repercussão geral, bem como pela recente aprovação da Súmula Vinculante 57, a consagrar o entendimento já delineado da Corte. Para tanto, utilizou-se o método hipotético-dedutivo, com esteio em revisões bibliográficas.
Palavras-chave: Imunidade tributária cultural. Tecnologia. Súmula Vinculante 57.
ABSTRACT
The present work has as its object the delimitation of the scope of the cultural tax immunity contained in art. 150, IV, d, of the Constitution of the Republic. The study has as a backdrop the political, historical, social and cultural transformations of contemporary reality, marked by the democratization of internet access and the advancement of technology. Based on a finalistic and evolutionary interpretation of cultural tax immunity, the need to adapt and conform the Law to the new phenomena of modern society is identified, which seems to signal the legitimacy of the recognition of the constitutional benefit to electronic books and supports exclusively aimed at this purpose, even though the originary constituent legislator has not made express mention. The analysis goes through jurisprudential guidelines signed by the Supreme Federal Court under the system of general repercussion, as well as the recent approval of the Binding Precedent 57, which enshrines the understanding already outlined by the Court. For this, the hypothetical-deductive method was used, supported by bibliographic reviews.
Keywords: Cultural tax immunity. Technology. Binding Precedent 57.
1 INTRODUÇÃO
A expansão da rede mundial de computadores, a disseminação do acesso à internet e a utilização, em larga escala, das mídias e redes sociais digitais são a tônica da sociedade moderna.
Nunca na história da humanidade foi tão simples pedir uma refeição ou efetuar uma transação bancária. A velocidade da informação e a facilidade da comunicação evidenciam o dinamismo das transformações tecnológicas, sociais, políticas e culturais, em uma era na qual a evolução digital é a pedra de toque.
Desse modo, é salutar que o Direito esteja atento às novas conformações da realidade contemporânea, assumindo um papel ativo para a efetivação das adaptações que se mostrem necessárias.
Assim é que a popularização dos aparelhos eletrônicos, tais como smartphones, tablets, notebooks, bem como e-books, audiobooks e e-papers, colocou o Poder Judiciário diante de um grande desafio.
A questão primordial gira em torno do enquadramento dos livros digitais no conceito de “livro”, o que, nos termos do art. 150, IV, d, da Constituição, autorizaria o gozo de imunidade tributária, em atenção à democratização do acesso à cultura.
Nesse contexto, exsurge a problemática relativa ao alcance da expressão “livros, jornais, periódicos e papéis destinados à sua impressão”, constante do dispositivo constitucional supra, para fins de delimitação de incidência da benesse tributária cultural.
A controvérsia consiste em perquirir em que medida o legislador constituinte pretendeu afastar a tributação: se restrita aos livros impressos, tal como se extrairia de uma interpretação literal, ou se ampla, a abarcar, também, os livros eletrônicos.
Por anos, a doutrina divergiu acerca dos exatos limites a serem conferidos ao alcance da expressão. De um lado, os defensores da não extensão do benefício aos livros eletrônicos, sob o fundamento de que o legislador histórico teria, expressamente, rejeitado a proposta de inclusão, nos idos de 1988. De outro, havia quem reconhecesse a extensão, sob o prisma de uma interpretação histórica e teleológica da norma constitucional, aliada à necessidade de adaptação aos avanços da tecnologia.
Em 2017, o Supremo pôs fim à discussão, mediante julgamento dos Recursos Extraordinários nº 330.817/RJ e nº 595.676/RJ, sob a sistemática de repercussão geral. O entendimento, já consolidado, foi consagrado, em definitivo, com a aprovação da Súmula Vinculante nº 57, em 2020, fato que revestiu de força normativa a orientação então firmada, em conformidade com o princípio da segurança jurídica e a uniformização das decisões judiciais.
Nessa conjuntura, o presente trabalho tem como objetivo geral o exame dos fundamentos e conclusões do STF, notadamente no julgamento dos recursos acima mencionados, para, então, identificar e delimitar o alcance interpretativo da imunidade tributária cultural, a contemplar, ou não, para além dos livros impressos, os livros digitais.
Por sua vez, o objetivo específico é analisar o deslinde dos novos fenômenos introduzidos e difundidos pela tecnologia, bem como os impactos e desafios de tais transformações na sociedade moderna, que impõem ao intérprete do Direito a adoção de soluções que melhor se adequem à realidade, em atenção à máxima efetivação da norma constitucional.
Para tanto, será utilizada como metodologia a revisão bibliográfica, mediante o estudo de trabalhos acadêmicos, assim como obras jurídicas de renomados doutrinadores do país, acórdãos de julgamento e votos de relatoria de Ministros do STF.
A escolha do tema se deu pela relevância da discussão acerca do papel do Poder Judiciário frente à chamada revolução digital, no sentido de empreender esforços para a conformação do Direito ao dinamismo da sociedade e, assim, efetivar princípios e valores fundamentais.
No tocante à estruturação de cada capítulo deste trabalho, em um primeiro momento será trazida a definição do poder de tributar, prerrogativa de que dispõem os entes políticos como regra no ordenamento jurídico. Posteriormente, será exposta a não incidência como uma das exceções ao poder de tributar, na qual se insere a hipótese de imunidade tributária. Ao adentrar no conceito de imunidade tributária, será destrinchada a definição de uma de suas espécies, a saber, a imunidade cultural, bem como apontadas suas características, alcance e objeto. Por fim, será levantada a discussão acerca da aplicabilidade da benesse em comento aos livros eletrônicos, por meio da análise de recursos extraordinários examinados pelo STF em 2017 e do teor da novel Súmula Vinculante 57.
2 O PODER DE TRIBUTAR
Para a satisfação do bem comum, o Estado ostenta posição de destaque, em uma relação de verticalidade frente ao particular. Assim, o ordenamento jurídico assegura ao ente estatal o gozo de todas as condições materiais necessárias à consecução do seu desiderato maior: a promoção do interesse público.
Nessa senda, dispõe de um complexo de prerrogativas, entre elas o poder de instituir tributos. Trata-se da possibilidade de impor ao contribuinte, mediante lei, o recolhimento compulsório de certa quantia em dinheiro, a título de pagamento da exação. A esse respeito, confira-se a explanação de Ricardo Alexandre (2019, p. 126):
Uma das situações em que a prevalência é claramente visualizada é a possibilidade de cobrança de tributos. O Estado possui o poder de, por ato próprio – a lei –, obrigar os particulares a se solidarizarem com o interesse público mediante a entrega compulsória de um valor em dinheiro.
O poder de tributar é, enfim, uma das facetas da potestade pública, pela qual o Estado destaca parcela de sua soberania, outorgada pelo povo, para a consecução do interesse público. Nesse sentido, discorre Sacha Calmon Navarro Coêlho (2020, p. 79):
O poder de tributar é exercido pelo Estado por delegação do povo. O Estado, ente constitucional, é produto da Assembleia Constituinte, expressão básica e fundamental da vontade coletiva. A Constituição, estatuto fundante, cria juridicamente o Estado, determina-lhe a estrutura básica, institui poderes, fixa competências, discrimina e estatui os direitos e as garantias das pessoas, protegendo a sociedade civil.
Assim, se a prerrogativa estatal de instituir e cobrar tributos tem caráter compulsório e independe da vontade do contribuinte, também é de se reconhecer que essa mesma prerrogativa é produto de delegação do próprio povo, e tem suas diretrizes e limites delineados pela Constituição.
2.1 Noções gerais
De início, vale esclarecer que o poder de tributar, enquanto manifestação da soberania estatal, pressupõe a existência de poder político (jus imperii), sem o qual a instituição de tributo não se afigura legítima:
O poder de tributar somente pode ser exercido pelas entidades estatais que possuem atribuição constitucional para impor condutas, ou seja, competência para legislar. É imprescindível, portanto, a existência do poder político (ou poder de império) para o regular exercício do poder de tributar. (SILVA, 2010, p. 666 apud SANTOS, 2017)
De outra banda, como já sinalizado, há que se pontuar que a relação travada entre Estado e particular não se enquadra como mera relação de poder, mas como relação jurídica, norteada pelos ditames do direito. Não é por outra razão que a própria Constituição Federal impõe balizas e limitações ao poder de tributar.
Nesse sentido, alerta Ricardo Alexandre (2019, p. 126):
Percebe-se que o Estado possui um poder de grande amplitude, mas esse poder não é ilimitado. A relação jurídico-tributária não é meramente uma relação de poder, pois, como toda relação jurídica, é balizada pelo direito e, em face da interferência que o poder de tributar gera sobre o direito de propriedade, o legislador constituinte originário resolveu traçar as principais diretrizes e limitações ao exercício de tal poder diretamente na Constituição Federal. (grifei)
A esse respeito, convém realçar a lição de Coêlho (2020, p. 79):
O poder de tributar, modernamente, é campo predileto de labor constituinte. A uma, porque o exercício da tributação é fundamental aos interesses do Estado, tanto para auferir as receitas necessárias à realização de seus fins, sempre crescentes, quanto para utilizar o tributo como instrumento extrafiscal, técnica em que o Estado intervencionista é pródigo. A duas, porque tamanho poder há de ser disciplinado e contido em prol da segurança dos cidadãos.
Fica claro, portanto, que o poder de tributar possui duas vertentes fundamentais. Uma é a sua vitalidade para o Estado, enquanto fonte de arrecadação de receitas tendentes à satisfação do interesse público. A outra é a necessidade de disciplina e contenção desse poder, em observância aos direitos e garantias individuais dos contribuintes.
2.2 A não incidência como ressalva ao poder de tributar
No ordenamento jurídico pátrio, como visto, a regra é o pagamento de tributo. No entanto, há exceções a essa regra, cujos contornos são delineados pela própria Constituição.
Em um primeiro momento, cumpre esclarecer que tais limites compõem um gênero, do qual são espécies os princípios e as imunidades tributárias. Nesse sentido: “a expressão limitações ao poder de tributar alberga princípios e imunidades” (COÊLHO, 2020, p. 191).
Enquanto os princípios norteiam a elaboração das leis tributárias, as imunidades vedam a tributação em certas circunstâncias, ou sobre determinados bens, serviços ou pessoas.
Os princípios constitucionais dizem como devem ser feitas as leis tributárias, condicionando o legislador sob o guante dos juízes, zeladores que são do texto dirigente da Constituição. As imunidades expressas dizem o que não pode ser tributado, proibindo ao legislador o exercício da sua competência tributária sobre certos fatos, pessoas ou situações, por expressa determinação da Constituição (não incidência constitucionalmente qualificada). (COÊLHO, 2020, p.190)
Especificamente em relação ao instituto da imunidade, tem-se que esta é uma hipótese de não incidência tributária.
Na lição de Ricardo Alexandre (2019, p. 205), a não incidência corresponde a situações em que um fato não é abrangido pela tributação. Dentre tais situações, destaca-se a hipótese em que a própria Constituição delimita a competência do ente tributante, de sorte que o sujeito ativo tributário fica impedido de instituir tributo em determinados casos, previamente delineados pelo legislador constituinte.
É justamente aqui que se insere o instituto da imunidade, que, portanto, pode ser conceituado como uma não incidência constitucionalmente qualificada É dizer, “a norma constitucional amputa a competência, impedindo a incidência”. (ALEXANDRE, 2019, p. 206)
Situação diversa é a das isenções, que consistem na dispensa legal do pagamento de tributo (ALEXANDRE, 2019, p. 206). Trata-se, assim, de uma opção política do ente tributante que, competente, escolhe não cobrar a exação em determinadas circunstâncias.
Nota-se, pois, que as imunidades diferem das isenções, na medida em que estas atuam no campo do exercício da competência, enquanto aquelas operam na seara da delimitação da competência (ALEXANDRE, 2019, p. 208).
Também não se confunde com a não incidência a chamada alíquota zero, situação em que o ente possui competência para instituir o tributo, e assim o faz, e o fato gerador se materializa no mundo concreto. Todavia, por simples questão de cálculo, a obrigação tributária resultante é igual a zero (ALEXANDRE, 2019, p. 206).
Por derradeiro, importa destacar que, embora o legislador constituinte tenha previsto normas imunizantes ora relativas a impostos, ora a taxas, ora a contribuições para a seguridade social, em nenhuma dessas ocasiões se valeu da expressão “imunidade”, tendo empregado nomenclaturas diversas para a ela se referir. A esse respeito, alerta Ricardo Alexandre (2019, p. 210) que “não importa a terminologia usada. Se a limitação consta da própria Constituição, trata-se de imunidade”.
Esse é, inclusive, o entendimento pacificado do Supremo Tribunal Federal, senão vejamos:
A jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal já identificou, na cláusula inscrita no art. 195, § 7º, da Constituição da República, a existência de uma típica garantia de imunidade (e não de simples isenção) estabelecida em favor das entidades beneficentes de assistência social. (BRASIL, 1996 apud ALEXANDRE, 2019, p. 2010)
3 A IMUNIDADE TRIBUTÁRIA
Como mencionado, a Constituição Federal trata, em seção específica, das “limitações ao poder de tributar”, na qual são dispostas restrições à potestade pública de instituir tributo, materializadas em duas modalidades: os princípios constitucionais e as imunidades tributárias. Nesse contexto, assevera Carvalho (2013, p. 774 apud SANTOS, 2017):
Segundo Kildare Gonçalves Carvalho, a “Constituição, nos artigos 150 a 152, estabelece um conjunto de princípios e vedações que delimitam o poder de tributar do Estado, garantindo o contribuinte contra o Fisco”. E prossegue apresentando um rol de princípios tributários e, por fim, a vedação nominada imunidade fiscal.
Cumpre assinalar que tais limitações compõem rol meramente exemplificativo, o que se extrai do fragmento constitucional “sem prejuízo de outras (…) asseguradas ao contribuinte”, como bem lembra Ricardo Alexandre (2019, p. 126). Segundo o autor, outras limitações “decorrem do regime e dos princípios adotados pela própria Carta ou dos tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil seja parte” (ALEXANDRE, 2019, p. 126).
3.1 Noções introdutórias
Como exposto, as imunidades são espécies de limitações constitucionais ao poder de tributar. Por sua vez, há diversas categorias de imunidade tributária, as quais têm supedâneo em valores e princípios fundamentais. Vale dizer, a preocupação do legislador constituinte em livrar certos bens, pessoas ou serviços do ônus tributário não é infundada. Ela tem a finalidade última de proteger valores caros à sociedade e princípios essenciais consagrados na ordem constitucional.
Sobre o tema, colaciona-se trecho de rico voto do Ministro Marco Aurélio, relator do Recurso Extraordinário nº 595.676/RJ:
As normas de imunidade tributária constantes da Carta visam proteger valores políticos, morais, culturais e sociais essenciais, não permitindo que os entes tributem certas pessoas, bens, serviços ou situações ligadas a esses valores. Onde há regra constitucional de imunidade, não poderá haver exercício da competência tributária e isso em razão de uma seleção de motivos fundamentais. (BRASIL, 2017, p. 14)
No mesmo sentido é o entendimento de Borges (2011, p. 221), citado pelo referido magistrado, também no voto mencionado supra:
Consoante José Souto Maior Borges, as imunidades servem a “assegurar certos princípios fundamentais ao regime, a incolumidade de valores éticos e culturais consagrados pelo ordenamento constitucional positivo e que se pretende manter livres das interferências ou perturbações da tributação” (BORGES, José Souto Maior. Teoria Geral da Isenção Tributária. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 221). (BRASIL, 2017, p. 14).
No tocante às imunidades tributárias em espécie, urge destacar a imunidade tributária recíproca, que ostenta status de cláusula pétrea, por ter como finalidade a proteção do pacto federativo, de sorte que um ente federado não fica submetido ao poder de tributar dos demais (ALEXANDRE, 2019, p. 215).
Outra importante imunidade é a religiosa, que blinda os templos de qualquer culto da incidência de impostos. Para Ricardo Alexandre (2019, p. 229), o sentido finalístico da regra imunizante é evitar que o Estado utilize a tributação como meio de tumultuar o livre funcionamento das entidades religiosas.
Ainda a título exemplificativo, a imunidade conferida aos partidos políticos e fundações por eles mantidas consagra o pluralismo político, sob a égide do Estado Democrático de Direito (ALEXANDRE, 2019, p. 231).
3.2 A imunidade tributária cultural
Para o fim do presente estudo, dentre as diversas espécies de imunidades tributárias existentes no ordenamento constitucional, importa analisar os contornos da imunidade cultural. Esta encontra previsão no art. 150, VI, d, da Carta Magna (BRASIL, 1988), senão vejamos:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
VI – instituir impostos sobre: (Vide Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.
A ratio da referida imunidade é fomentar a livre manifestação do pensamento e a difusão da cultura, em consonância com os princípios e valores do Estado Democrático de Direito. Nessa senda, explica Ricardo Alexandre (2019, p. 240):
A imunidade visa a baratear o acesso à cultura. Por facilitar a livre manifestação do pensamento, a liberdade de atividade intelectual, artística, científica e da comunicação e o acesso à informação – todos direitos e garantias individuais constitucionalmente protegidos (CF, art. 5º, IV, IX e XIV) –, configura cláusula pétrea.
Não é outra a orientação do Supremo Tribunal Federal, conforme ementa de julgamento do Recurso Extraordinário nº 330.817/RJ:
A teleologia da imunidade contida no art. 150, VI, d, da Constituição, aponta para a proteção de valores, princípios e ideias de elevada importância, tais como a liberdade de expressão, voltada à democratização e à difusão da cultura; a formação cultural do povo indene de manipulações; a neutralidade, de modo a não fazer distinção entre grupos economicamente fortes e fracos, entre grupos políticos etc; a liberdade de informar e de ser informado; o barateamento do custo de produção dos livros, jornais e periódicos, de modo a facilitar e estimular a divulgação de ideias, conhecimentos e informações etc. (BRASIL, 2017, p. 1)
Conclui-se, pois, que o sentido finalístico da imunidade cultural é a facilitação do acesso à cultura, com o nítido propósito de reduzir o custo de produção dos livros e, assim, efetivar postulados constitucionais de alta relevância, tais como o direito à informação e a liberdade de expressão.
Superada a análise acerca da teologia da norma imunizante, cumpre tecer breves comentários acerca das razões históricas que levaram ao reconhecimento da imunidade cultural.
Tais razões remontam ao Estado Novo (1937 a 1945), período em que o Governo, de um lado, impunha alta carga tributária sobre os jornais que pregavam ideias contrárias ao regime então vigente, e, de outra banda, concedia benefícios fiscais aos jornais que o defendiam.
Nesse cenário, confira-se excerto do voto do Ministro Dias Toffoli (RE 330.817/RJ):
A imunidade de que se trata está intimamente ligada à temática das ações censórias. Recordo que, em passado não tão distante, vivia o Brasil no denominado Estado Novo, período compreendido entre os anos de 1937 e 1945, marcado politicamente pelo autoritarismo. A Constituição outorgada, a forte centralização do poder e a alegada necessidade de se afastar o suposto “perigo vermelho” criaram um cenário favorável para a instituição de censuras aos órgãos de comunicação e imprensa. (BRASIL, 2017, p. 9)
E arremata o ilustre Ministro:
A par da censura direta, o governo ainda coagia a propagação de ideias contrárias ao regime mediante pesada tributação das importações do papel de imprensa (o papel linha d’água) e o controle, de forma insidiosa, da isenção aduaneira sobre esse insumo. A concessão do benefício da intributabilidade era facilitada aos jornais partidários do regime e dificultada, ou até impedida, aos que propugnavam por ideologia tida por nociva ou inapropriada (Decreto-Lei nº 300/38; art. 135, f, do Decreto-Lei nº 1.949/39). Com isso, o produto final dos veículos de comunicação saía mais caro e o acesso à informação se tornava mais restrito e, como decorrência disso, poucos órgãos de mídia suportavam a carga tributária. (BRASIL, 2017, p. 9)
Em resposta a essa reprimenda, e para conter a censura estatal, as Constituições seguintes trataram de imunizar o insumo “papel” e, de igual forma, o livro, como ensina Márcio André Lopes Cavalcante (2020):
A Constituição Federal de 1946, com o intuito de acabar com este controle estatal da imprensa, conferiu imunidade tributária ao “papel” e, além disso, com o objetivo de estimular a produção editorial, também estendeu esta imunidade para os livros.
A Constituição Federal de 1967 manteve a imunidade, prevendo que era vedado criar imposto sobre “o livro, os jornais e os periódicos, assim como o papel destinado à sua impressão” (art. 20, III, d).
A Constituição Federal de 1969 (para alguns, apenas uma Emenda Constitucional à CF/67) manteve a imunidade, com pequena alteração em seu texto.
Assim, a Constituição de 1988 segue a mesma lógica das que a antecederam, ao rechaçar o viés censório e reafirmar a democratização do acesso à informação.
Com efeito, a imunidade tributária cultural é classificada doutrinariamente como imunidade objetiva. É dizer, a regra imunizante incide sobre o livro objetivamente considerado, mas não contempla os sujeitos integrantes da cadeia produtiva.
Nesse contexto, discorre Ricardo Alexandre (2019, p. 240):
Assim, por exemplo, como o objeto livro é imune, não se cobra ICMS quando este sai do estabelecimento comercial, nem IPI quando sai da indústria, nem II quando é estrangeiro e ingressa no território nacional. Por outro lado, como o sujeito livraria não é imune, deve pagar IR pelos rendimentos que obtém com a venda dos livros, bem como o IPTU relativo ao imóvel de que é proprietário. (grifei)
Outro ponto digno de nota é a inexistência de diferenciação quanto ao conteúdo, para fins de incidência da imunidade. Dessa forma, é irrelevante perquirir sobre a qualidade artística, científica ou cultural do livro, uma vez que a Constituição não impôs esse condicionamento para a aplicação da benesse.
Portanto, “não é lícito ao intérprete restringir direitos ou garantias conferidas de forma irrestrita pelo legislador constituinte” (ALEXANDRE, 2019, p. 241).
Na mesma linha, ensina Márcio André Lopes Cavalcante (2020) que “um livro sobre piadas, um álbum de figurinhas ou uma revista pornográfica gozam da mesma imunidade que um compêndio sobre Medicina ou História”.
Nessa esteira, confira-se o entendimento da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, exarado no julgamento do RE 221.239/SP, de relatoria da então Ministra Ellen Gracie:
O Constituinte, ao instituir essa benesse, não fez ressalvas quanto ao valor artístico ou didático, à relevância das informações divulgadas ou à qualidade cultural de uma publicação. Não cabe ao aplicador da norma constitucional em tela afastar este benefício fiscal instituído para proteger direito tão importante ao exercício da democracia, por força de um juízo subjetivo acerca da qualidade cultural ou do valor pedagógico de uma publicação destinada ao público infanto-juvenil. (BRASIL, 2004, p. 2)
Note-se, pois, que a interpretação emprestada à norma tem como escopo extrair o máximo de efetividade possível, senão vejamos:
Assim o foi na decisão de se reconhecerem como imunes: a) as revistas técnicas, em razão da importância de suas publicações e da grande circulação (RE nº 77.867/SP); b) a lista telefônica, por seu caráter informativo e sua utilidade pública (RE nº 101.441/RS); c) as apostilas, por serem simplificações de livros e veicularem mensagens de comunicação e de pensamento em contexto de cultura (RE nº 183.403/SP); d) os álbuns de figurinha, por estimular o público infantil a se familiarizar com os meios de comunicação impressos (RE nº 221.239/SP); e) mapas impressos e atlas geográfico, em razão de sua utilidade pública (RE nº 471.022/RS). A contrario sensu, não foram reconhecidos como imunes os calendários, por não serem veículos de transmissão de ideias (RE nº 87.633/SP). (BRASIL, 2017, p. 53) (grifei)
4 A (IN)APLICABILIDADE DA BENESSE AO LIVRO ELETRÔNICO
Traçados os contornos fundamentais da imunidade tributária cultural, resta demarcar o alcance interpretativo da norma constitucional imunizante, sem perder de vista o contexto histórico-cultural em que se insere a problemática.
Cuida-se, enfim, de levar em consideração predicativos-chave da realidade contemporânea, notadamente a o avanço da tecnologia, e definir se tais elementos são aptos a nortear a aplicabilidade da imunidade em comento, de modo a agasalhar, também, os livros em formato eletrônico.
4.1 Embates doutrinários iniciais
Durante anos, houve intenso debate doutrinário em torno da possibilidade de extensão da imunidade cultural ao livro eletrônico. De um lado, despontou a corrente, majoritária, defendendo a aplicação da benesse. O argumento principal era que o silêncio do legislador constituinte de 1988 não poderia ser interpretado como restrição da regra imunizante aos livros impressos.
De outra banda, surgiu uma segunda corrente, que afastava a incidência da benesse, com fundamento em uma interpretação histórica da norma. Para os defensores dessa tese, houve uma clara intenção do constituinte originário em afastar a aplicação do benefício, pois teria expressamente recusado a proposta de extensão da imunidade aos livros físicos. É como leciona Ricardo Alexandre (2019, p. 243):
Isso porque, durante a elaboração da Constituição Federal de 1988, a Assembleia Nacional Constituinte teve a oportunidade de apreciar o projeto que estendia a imunidade a outros meios de difusão de cultura, mas expressamente optou por rejeitar tal redação, o que demonstra não ter sido a falta de conhecimento, e sim o desejo de imunizar apenas o meio papel, que resultou na redação final dada ao dispositivo constitucional em tela.
A controvérsia logo foi submetida à apreciação do STF, que, entretanto, tinha jurisprudência vacilante, embora tendesse a acolher a segunda tese:
No âmbito do STF, os posicionamentos não eram muito claros, mas parecia inclinar-se pelo não reconhecimento da imunidade, sob a justificativa de que a mídia que dá suporte físico ao livro eletrônico (CD-ROM ou outra) não poderia ser confundida nem assimilada com papel. (ALEXANDRE, 2019, p. 243)
A orientação então firmada pelo Supremo conflitava com a ratio da norma e não acompanhava a evolução da sociedade, o que frustrava a implementação do objetivo perseguido pelo constituinte originário. Nesse sentido, discorre Ricardo Alexandre (2019, p. 243):
Em edições passadas desta obra, por diversas vezes foi ressaltada a necessidade de evolução da jurisprudência da Suprema Corte relativa à matéria, sob pena de, numa sociedade que passa por uma rápida disseminação dos livros em meio eletrônico (e-books), ser frustrado o objetivo que presidiu a elaboração da regra imunizante ora estudada, qual seja o de baratear a difusão da cultura e do pensamento.
Outro não é o entendimento de Eduardo Sabbag (2016, p. 392 apud SANTOS, 2017), para quem os livros difundidos em meios ópticos seriam sucedâneos dos livros em papel. Assim, não se poderia desconsiderar o avanço tecnológico que existe no mercado editorial, sob pena de desvirtuar o viés de desoneração delineado na Constituição.
No ano de 2017, houve importante evolução jurisprudencial, na medida em que o STF, sob a sistemática de repercussão geral, firmou o entendimento de que os livros impressos são destinatários da imunidade tributária cultural.
A Suprema Corte, reconhecendo o papel da tecnologia na sociedade moderna, consignou a importância dos novos fenômenos sociais, culturais e tecnológicos. Ainda, registrou a inconsistência do argumento de que o constituinte originário teria optado por restringir a imunidade ao livro impresso, em razão da interpretação histórica, teleológica e evolutiva dada à norma imunizante.
Nessa esteira, ensina Márcio André Lopes Cavalcante (2020), citando o voto do Ministro relator do RE 330.817/RJ, Dias Toffoli:
Segundo defendeu o Min. Dias Toffoli, o argumento de que a vontade do legislador histórico foi restringir a imunidade ao livro editado em papel não se sustenta em face da própria interpretação histórica e teleológica do instituto.
Ainda que se partisse da premissa de que o objetivo do legislador constituinte de 1988 tivesse sido restringir a imunidade, seria de se invocar, ainda, a interpretação evolutiva, método interpretativo específico das normas constitucionais.
E arremata o insigne professor:
Os fundamentos racionais que levaram à edição do art. 150, VI, “d”, da CF/88 continuam a existir mesmo quando levados em consideração os livros eletrônicos, inequívocas manifestações do avanço tecnológico que a cultura escrita tem experimentado.
Utilizando-se de uma interpretação evolutiva da norma, chega-se à conclusão de que os livros eletrônicos estão sim inseridos no âmbito dessa imunidade tributária. (CAVALCANTE, 2020)
Segundo decidiu o STF, os métodos escrito e eletrônico, hoje, convivem harmonicamente, de sorte que “o invento de Gutemberg mantém utilidade e relevância, mas agora acompanhado e integrado aos meios digitais e aos elementos eletrônicos”.
Portanto, a Suprema Corte pôs fim à discussão doutrinária que girava em torno da aplicação da benesse aos livros impressos, invocando e necessidade da interpretação evolutiva da Constituição, a fim de emprestar concretude aos desígnios do constituinte originário e reconhecer os avanços tecnológicos da realidade social atual.
4.2 O Recurso Extraordinário nº 330.817/RJ
No presente tópico, convém analisar os principais fundamentos e conclusões exaradas pelo STF para estender a imunidade cultural aos livros eletrônicos, no julgamento do RE 330.817/RJ.
O argumento central suscitado pelo Supremo é a relação de acidentalidade (e não essencialidade) entre o suporte (tangível ou intangível) e o livro em si. Nessa esteira, o suporte das publicações, seja ele físico ou eletrônico, é mero continente (corpus mechanicum) que alberga o conteúdo (corpus misticum), de modo que não se revela como essencial ou condicionante para a incidência da benesse. (BRASIL, 2017, p. 55)
Tanto é assim que a própria história aponta que os livros já foram confeccionados das mais diversas maneiras, senão vejamos:
A propósito, os estudiosos do assunto mostram que os livros já foram feitos dos mais variados materiais: entrecasca de árvores; folha de palmeira; bambu reunido com fios de seda; a própria seda; placas de argila; placas de madeira e marfim; tijolos de barro; papiro; pergaminho (proveniente da pele de carneiro). (BRASIL, 2017, p. 23)
Diante disso, entendeu o STF que “a variedade de tipos de suporte (tangível ou intangível) que um livro pode ter aponta para a direção de que ele só pode ser considerado como elemento acidental no conceito de livro”. (BRASIL, 2017, p. 23)
Importa destacar que o simples fato de os livros eletrônicos viabilizarem uma maior interação com o leitor, quando comparado com os livros impressos, não obsta ao reconhecimento da benesse. Para Márcio André Lopes Cavalcante (2020), citando o Ministro relator, Dias Toffoli, trata-se de um processo natural relacionado à evolução do método escrito, com o incremento de funcionalidades que facilitam a difusão da cultura.
Daí por que os audiobooks também são alcançados pela imunidade cultural, sendo prescindível que o consumidor “tenha necessariamente que passar sua visão pelo texto e decifrar os signos da escrita”. (BRASIL, 2017, p. 24)
A título ilustrativo, recorda o Ministro Dias Toffoli, em seu voto:
Historicamente, o processo de leitura associava-se à declamação e à escuta, e isso perdurou por muito tempo. Assim, dizia-se que a leitura na mesopotâmia era pública e oral, significando as tabuletas de argila a própria palavra falada. Nesse sentido, “os juízes na babilônia, por exemplo, poderiam falar sobre o conteúdo da tabuleta como a sua ‘boca’, afirmar publicamente ter ‘ouvido’ a tabuleta” (FISCHER, Steven Roger. História da Leitura. São Paulo: UNESP, 2006, p. 17). (BRASIL, 2017, p. 24)
Por fim, o respeitável magistrado ressalta que tal conclusão vai ao encontro da teologia da norma e “está intimamente ligada à liberdade de ser informado, à democratização e à difusão da cultura, bem como à livre formação da opinião pública”. (BRASIL, 2017, p. 9)
Pela mesma razão, o DVD que contenha um livro digital será imune à tributação. No caso em tela, o DVD funcionará como mero suporte do livro, isto é, como simples corpus mechanicum. Logo, o suporte (continente) e o livro (conteúdo) são contemplados pela norma imunizante. É como leciona Márcio André Lopes Cavalcante (2020):
Neste caso, o DVD é apenas um corpo mecânico ou suporte. Aquilo que está nele fixado (seu conteúdo textual) é o livro. Por essa razão, tanto o suporte (o DVD) quanto o livro (conteúdo) estão abarcados pela imunidade do art. 150, VI, “d”, da CF/88.
Interessante notar que o mesmo fundamento da intepretação evolutiva e teleológica foi utilizado, pelo Supremo, para admitir a incidência da regra imunizante aos e-readers e e-papers.
Conforme assinala Cavalcante (2020), trata-se de aparelhos eletrônicos cujo fim exclusivo é servir de suporte para a leitura de livros digitais, como Kindle (Amazon), Lev (Saraiva) e Kobo (Livraria Cultura).
No voto do Ministro Dias Toffoli (RE 330.817/RJ), restou consignado que os referidos aparelhos “se equiparam aos tradicionais corpos mecânicos dos livros físicos”. (BRASIL, 2017, p. 26)
E mais: eles são contemplados pela benesse, ainda que eventualmente possuam funcionalidades acessórias, como o acesso à internet e a iluminação de texto. A esse respeito, veja-se fragmento do voto do magistrado:
Em meu entendimento, elas estão igualmente abrangidas pela imunidade em tela, já que se equiparam aos tradicionais corpos mecânicos dos livros físicos, mesmo que estejam acompanhadas de funcionalidades acessórias ou rudimentares, como acesso à internet para o download de livros digitais, dicionários, possibilidade de alterar o tipo e o tamanho da fonte, marcadores, espaçamento do texto, iluminação do texto etc. (BRASIL, 2017, p. 26)
Ainda, trouxe o Ministro questões como tecnologia e sustentabilidade, a reafirmar a complexidade e o dinamismo da sociedade moderna, e a justificar o emprego da expressão “livro” em seu sentido lato. Confira-se:
De igual modo, as mudanças históricas e os fatores políticos e sociais presentes na atualidade, seja em razão do avanço tecnológico, seja em decorrência da preocupação ambiental, justificam a equiparação do “papel”, numa visão panorâmica da realidade e da norma, aos suportes utilizados para a publicação dos livros. (BRASIL, 2017, p. 28)
Se os audiobooks, e-readers e e-papers são destinatários da norma imunizante, o mesmo não ocorre com os smartphones, tablets e notebooks.
Nessa senda, relevante mencionar a ressalva feita pela Suprema Corte, na medida em que o gozo da imunidade é condicionado à exclusividade do fim a que se destina o suporte. Vale dizer, somente são abarcados pela benesse os suportes cujo objetivo único é fixar um livro eletrônico.
Com efeito, aparelhos como smartphones e notebooks são multifuncionais, o que impede sua equiparação aos livros impressos, conforme se extrai do excerto a seguir:
Embora esses aparelhos não se confundam com os livros digitais propriamente ditos (e-books), eles funcionam como o papel dos livros tradicionais impressos e o propósito é justamente mimetizá-lo. Enquadram-se, portanto, no conceito de suporte abrangido pela norma imunizante. Esse entendimento não é aplicável aos aparelhos multifuncionais, como tablets, smartphone e laptops, os quais vão muito além de meros equipamentos utilizados para a leitura de livros digitais. (BRASIL, 2017, p. 28)
4.3 O Recurso Extraordinário nº 595.676/RJ
Outro julgado que norteou a aplicação da imunidade cultural aos livros digitais foi o relativo ao Recurso Extraordinário nº 595.676/RJ, também submetido à sistemática de repercussão geral, no ano de 2017.
A questão principal era a incidência ou não da imunidade sobre componentes eletrônicos acoplados em material didático. Para a contextualização do tema, traz-se a didática indagação do professor Márcio André Lopes Cavalcante (2020):
Imagine a seguinte situação: determinada editora comercializa fascículos (uma espécie de apostila) nas quais ensina como montar computadores. O consumidor que compra esses fascículos recebe também, dentro deles, pequenos componentes eletrônicos para que ele possa aplicar, na prática, aquilo que está lendo na apostila. Quando a editora vai adquirir esses componentes eletrônicos para colocar nos fascículos, tais bens serão também imunes?
O caso submetido à apreciação do Supremo referia-se a um material didático comercializado conjuntamente com um material demonstrativo. O primeiro era uma espécie de apostila (fascículos), e correspondia à parte impressa. Já o segundo consistia em componentes eletrônicos. A reunião de ambos os materiais tinha como intuito ensinar como montar placas de computadores.
Em seu voto, o relator Ministro Marco Aurélio assim delimitou a controvérsia:
O tema é objeto de grande polêmica na doutrina e tem dividido a jurisprudência dos Tribunais – definir o alcance da imunidade tributária, prevista no artigo 150, inciso VI, alínea “d”, da Constituição Federal, considerado o comércio de “bens e materiais eletrônicos” que cumprem função didática e informativa em auxílio aos livros e periódicos impressos em papel. Apenas os meios tradicionais de ensino e informação gozam da imunidade ou os componentes eletrônicos, quando desempenham papel didático e informativo complementar, em auxílio aos primeiros, também são abrangidos pela norma constitucional? (BRASIL, 2017, p. 8)
O pano de fundo do debate, mais uma vez – e como não poderia deixar de ser –, foi o avanço tecnológico da sociedade digital, e a necessidade premente de se acompanhar a evolução dos meios de informação e comunicação. Para o magistrado, é papel do Direito assumir o protagonismo e promover as adaptações à nova realidade:
Mais do que resolver problema de ordem jurídica, trata-se de enfrentar desafios promovidos pela modernidade, pelas alterações cada vez mais rápidas e profundas decorrentes do avanço da tecnologia. Como consequência direta dessa evolução, mudam a sociedade e os comportamentos humanos. O Direito, a Constituição e o Supremo não podem ficar alheios às transformações, sob pena de assistirem passivamente a inocuidade das normas constitucionais ante o avanço dos fatos. O Direito sofre influência dessa nova realidade, à qual deve se ajustar e, a um só tempo, conformá-la. (BRASIL, 2017, p. 8)
Nessa toada, alerta o Ministro que a interpretação da norma constitucional deve se compatibilizar com os novos fenômenos sociais, culturais e tecnológicos, sob pena de se colocar em xeque a própria efetividade da Constituição:
A abordagem teleológica e sistemática da imunidade discutida deve, portanto, conformar a Constituição de 1988 à evolução tecnológica vivida já nesta segunda década do Século XXI. Deve ser a interpretação do texto constitucional, mas do texto que se pretende compatibilizar com as transformações operadas pelos meios eletrônicos, magnéticos e digitais relativamente aos campos da educação, cultura e informação. (…) Considerada a realidade fático-tecnológica, pode-se dizer que negar a imunidade aos novos formatos de transmissão de educação, cultura e informação resulta, hoje, em amesquinhar a norma constitucional e, amanhã, esvaziá-la por completo. 9BRASIL, 2017, p. 26-27)
Com fundamento na conjuntura ora exposta, a resposta à indagação feita alhures tende a ser afirmativa. Vale dizer, a norma imunizante deve ser interpretada de tal maneira que abarque também os itens eletrônicos, pois são integrantes de um mesmo conjunto.
Assim, argumentou o insigne Ministro que a imunidade deve recair não só sobre o material impresso, mas também sobre as peças e componentes que acompanham as publicações, mesmo porque o constituinte não fez qualquer ressalva expressa. A esse respeito, confira-se o excerto adiante recortado:
Nada ocorre sem uma causa, e o constituinte diferenciou, propositalmente, a imunidade dos produtos, dos meios de veicular a educação, a cultura e a informação, daquela dos insumos, de modo que, não sendo textual e expressamente exigido que esses veículos sejam imunes apenas quando revestirem forma em papel, tem-se como possível o sentido que resulte no alcance da norma constitucional aos livros, jornais e periódicos em formato digital ou eletrônico e, com a mesmíssima razão, às publicações mistas, integradas partes impressas e componentes eletrônicos ou digitais como um todo didático ou informativo, caso retratado neste processo. (BRASIL, 2017, p. 23-24)
Também não era de se esperar que o legislador histórico houvesse previsto tamanho avanço tecnológico, a ponto de prever expressamente a extensão da imunidade aos livros digitais:
A ausência de previsão expressa do formato eletrônico ou digital desses meios pode ser explicada pela realidade tecnológica em 1988. Sem dúvida, imunizar veículos nesse formato inovador não podia ser preocupação do constituinte. (BRASIL, 2017, p. 31)
Pelo exposto, a conclusão a que chegou o STF foi a de que os componentes eletrônicos integrantes de unidade didática com fascículos também são imunes, por formarem um todo unitário e indissociável, em consonância com a interpretação teleológica e evolutiva da Constituição.
Por derradeiro, cumpre anotar importante ressalva feita pelo Ministro Luís Roberto Barroso, acompanhando o voto do relator, Ministro Marco Aurélio. É que a imunidade não se presta a beneficiar a “venda dissimulada de mercadorias”, sendo imprescindível que haja a unidade didática e a razoabilidade da complementaridade. Nesse sentido:
Assim, não é possível lançar uma coleção de fascículos sobre pedras preciosas brasileiras e, aí, vender o fascículo junto com uma esmeralda a cinco mil reais, ou, quem sabe a história do automóvel, junto com o fascículo, o sujeito pode comprar uma Mercedes C. É indispensável a unidade didática e a razoabilidade dessa complementaridade (…) (BRASIL, 2017, p. 33)
Diante do exposto, é razoável concluir que, embora vacilante em um primeiro momento, a jurisprudência do Supremo Tribunal acabou sinalizando reconhecimento da imunidade cultural aos livros eletrônicos, especialmente quando do julgamento dos recursos ora mencionados.
4.4 A Súmula Vinculante 57
É certo que o STF já havia firmado orientação no sentido de estender a imunidade cultural aos livros digitais e suportes próprios para sua leitura, notadamente quando do emblemático julgamento dos Recursos Extraordinários nº 330.817/RJ e nº 595.676/RJ, sob a sistemática de repercussão geral, no ano de 2017.
Ocorre que, em 2020, fazendo uso da atribuição que lhe foi conferida pelo art. 103-A, da CF/88, a Suprema Corte sedimentou definitivamente o entendimento em tela, ao aprovar Proposta de Súmula Vinculante elaborada pela Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (Brasscom).
A súmula vinculante é instituto jurídico de envergadura constitucional e importante instrumento de uniformização da jurisprudência e de reforço à segurança jurídica. Nesse sentido, estabelece a Constituição (BRASIL, 1988):
Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.
§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.
§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.
Para Pedro Lenza (2020, p. 949), a essência da norma em comento guarda pertinência com vetores principiológicos, mormente a segurança jurídica, a proteção à confiança e a isonomia, sob a égide da concepção da dignidade da pessoa humana.
É possível afirmar que a introdução da súmula vinculante do direito brasileiro remonta à sistemática do stare decisis, em que “o precedente judiciário é fonte de direito, isto é, detém valor normativo” (AGRA, p. 122-123 apud LENZA, 2020, p. 950).
Desta feita, a criação dos precedentes tem como escopo evitar o risco de instabilidade e de decisões conflitantes, em atenção à coerência e à uniformização das decisões judiciais.
Ademais, explica o referido autor que o instituto em epígrafe, exclusivo do STF, foi introduzido pela Emenda Constitucional 45/2004, e produz efeitos de vinculação para os demais órgãos do Poder Judiciário, bem como para a Administração Pública (LENZA, 2020, p. 955).
Nesse diapasão, cumpre colacionar excerto do relatório da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, que assim aduz:
Parece-nos evidente que a súmula vinculante tende a promover os princípios da igualdade e da segurança jurídica, pois padronizará a interpretação das normas, evitando-se as situações propiciadas pelo sistema vigente, em que pessoas em situações fáticas e jurídicas absolutamente idênticas se submetem a decisões judiciais diametralmente opostas, o que prejudica em maior medida aqueles que não têm recursos financeiros para arcar com as despesas processuais de fazer o processo chegar ao Supremo Tribunal Federal, onde a tese que lhe beneficiaria fatalmente seria acolhida. (BRASIL, 2004 apud LENZA, 2020, p. 963)
Digno de nota é o fato de que não foi necessária a aprovação de um projeto de emenda constitucional que alterasse, textualmente, o dispositivo em tela, a fim de fazer constar, ipsis litteris, o livro eletrônico em seu corpo. (GRASSI; SANTOS, 2020)
Com efeito, trata-se, tão somente, de extrair da norma constitucional sua máxima efetividade e eficácia, por meio de uma interpretação histórica, finalística e evolutiva, em conformidade com as exigências da sociedade moderna, e sob a égide de um instrumento constitucionalmente apto a este fim: a súmula vinculante.
Superada a demonstração relativa à origem, fundamento e definição da súmula vinculante, convém trazer à baila o teor do verbete sumular nº 57, objeto de análise do presente tópico:
Súmula Vinculante 57: A imunidade tributária constante do art. 150, VI, d, da CF/88 aplica-se à importação e comercialização, no mercado interno, do livro eletrônico (e-book) e dos suportes exclusivamente utilizados para fixá-los, como leitores de livros eletrônicos (e-readers), ainda que possuam funcionalidades acessórias. (BRASIL, 2020)
Dessa forma, cumpre assinalar que os embates doutrinários uma vez existentes, ora pugnando pela interpretação restritiva da norma, ora defendendo a extensão da benesse aos livros digitais, foram definitivamente apaziguados pelo STF.
A Suprema Corte, enquanto guardiã da Constituição, exerceu seu mister de intérprete máximo, e pôs termo à contenda, valendo-se, em última análise, da aprovação de súmula vinculante, com o fim precípuo de conferir estabilidade, coerência e segurança jurídica às decisões exaradas pelos juízes singulares e tribunais do país.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora o poder de tributar seja prerrogativa estatal consentânea com a indisponibilidade do interesse público, é razoável concluir que tal poder não é ilimitado.
Não só porque se trata de relação eminentemente jurídica, pautada nas balizas do direito, como também pelo fato de a Constituição, em seu próprio texto, haver traçado diretrizes que põem restrições à instituição de tributos pelos entes políticos.
Com efeito, as limitações constitucionais ao poder de tributar, embora previstas em seção específica, nela não se esgotam, na medida em que a Constituição contempla outras normas imunizantes, dispersas em seu corpo. Tampouco a disciplina constitucional consagra rol taxativo (numerus clausus), uma vez que outras limitações decorrem dos vetores constitucionais, e mesmo dos tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil seja parte.
De mais a mais, é certo que as limitações estabelecidas pelo legislador constituinte possuem, cada qual, um fundamento. A ratio essendi, seja dos princípios constitucionais tributários, seja das imunidades tributárias, guarda pertinência com princípios fundantes e estruturantes do Estado, bem como com um plexo de valores políticos, éticos, sociais e culturais.
No que tange à imunidade cultural, o valor essencial que a norma visa a proteger é a liberdade de manifestação do pensamento, notadamente a democratização da informação e a difusão da cultura, por meio do barateamento dos livros, jornais, periódicos e papel destinado à sua impressão.
A fim de emprestar máxima concretude aos desígnios do constituinte originário, o Supremo Tribunal Federal fez uso de uma interpretação histórica, evolutiva e teleológica para estender a proibição constitucional de instituição de impostos também sobre os livros eletrônicos e suportes destinados exclusivamente a este fim, embora não haja previsão textual expressa na Constituição.
Atendendo aos anseios e exigências de uma sociedade dinâmica e plural, reconheceu a Suprema Corte que o legislador histórico, em 1988, não era capaz de prever os avanços tecnológicos vindouros, daí por que não cabe pressupor que seu silêncio, à época, importou rejeição à extensão da norma imunizante.
Em última análise, reconheceu-se que o Supremo não pode ficar alheio aos novos fenômenos sociais, tecnológicos e culturais. Assim, há uma necessidade inarredável de que o Direito acompanhe, no mesmo passo, as transformações da sociedade moderna.
Destarte, na era digital, é inconcebível restringir o alcance da imunidade cultural aos livros impressos, sob pena de esvaziar o sentido finalístico da norma imunizante e desvirtuar o objetivo fundamental perseguido pelo legislador constituinte.
Nesse contexto, vale ressaltar que a jurisprudência do STF, desde o ano de 2017, estava consolidada, quando em 2020 consagrou definitivamente a extensão da imunidade cultural aos livros digitais, por meio da aprovação da súmula vinculante nº 57.
A publicação do verbete, enfim, mais do que pôr termo a qualquer discussão acerca do alcance do beneplácito constitucional, confere força normativa à orientação do Supremo, nos termos do art. 103-A da Constituição, além de prestigiar a estabilidade, uniformidade e coerência da jurisprudência, e densificar os princípios da segurança jurídica, proteção à confiança e isonomia.
Dedico este trabalho inteiramente à memória de meus avós, Lúcia e Falcão, a quem devo todo o meu amor e gratidão.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE nº 330.817. Reclamante: Estado do Rio de Janeiro. Reclamado: Elfez Edição Comércio e Serviços LTDA. Relator: Ministro Dias Toffoli. DJE nº 195, divulgado em 30/08/2017. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 17 mar. 2021.
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CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Nova Súmula Vinculante 57 comentada. 15 abr. 2020. Disponível em: <https://www.dizerodireito.com.br/2020/04/nova-sumula-vinculante-57-comentada.html> Acesso em: 16 mar. 2021
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
GRASSI, Ana Carolina Casanova. SANTOS, Gustavo Abrahão dos. A Súmula Vinculante nº 57 do STF: a imunidade tributária para e-books e o meio ambiente cultural. Disponível em: < https://uniesp.edu.br/sites/_biblioteca/revistas/20201125002429.pdf> Acesso em: 19 mar. 2021
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
SANTOS, Marcelo Gonçalves dos. O reconhecimento da imunidade tributária aos livros eletrônicos. Disponível em: <http://www.anima-opet.com.br/pdf/anima17/16-O-reconhecimento-da-imunidade-tributaria-aos-livros-eletronicos-Santos.pdf> Acesso em: 19 mar. 2021.
STF aprova súmula vinculante sobre imunidade tributária para livros eletrônicos. Notícias STF. 16 abr. 2020. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441499&ori=1> Acesso em: 15 mar. 2021