SEGURANÇA PÚBLICA NO TRÂNSITO E DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE: A DUALIDADE ACERCA DA TIPIFICAÇÃO DO HOMICÍDIO DECORRENTE DO CRIME DE RACHA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10142561


Nélio Carneiro Silva
Edy César dos Passos (Orientador)


RESUMO

O presente artigo possui a seguinte temática: A dualidade acerca da tipificação do ho­micídio decorrente do crime de racha. O Código de Trânsito pátrio possui como principal tutela jurídica a proteção à vida e bem estar do ser humano. Esse é o seu maior objetivo. Em razão disto, pode-se dizer que o Código de Trânsito é um importante diploma legal de proteção ao bem da vida da socie­dade, estabelecendo penalidades àqueles que descumprem os seus dispositivos. Entretanto, diante o imenso número dos acidentes de trânsito no país, de modo que esta seja uma das maiores causas de morte não decorrente de doenças, as leis de trânsito restam como primordiais para a manutenção da ordem. Contudo, problemas de interpreta­ção em alguns conceitos legais ainda perduram. Assim, injustiças podem ser praticadas pelo aplicador da lei, caso este seja criterioso em suas análises e intervenções no âmbito da vida no trânsito.

Palavras-Chave: Trânsito. Dolo eventual. Culpa consciente.

1. INTRODUÇÃO

O dolo eventual e a culpa consciente nos delitos de trânsito é um tema bastante controverso e por muitas vezes de arriscada análise para aqueles que se debruçam sobre o seu estudo. Isso porque é difícil distinguir, na prática um de outro. A própria doutrina vacila quanto a questão, não encontrando consenso de quando se aplica um ou quando o outro deverá ser utilizado.

Erros quanto á análise poderão prejudicar seriamente à equidade nas decisões judiciais. Enquanto no dolo eventual o agente assume o risco do resultado, na culpa consciente o agente prevê a possibilidade do resultado, espera que o mesmo nunca ocorra.

Ora, para se ter uma ideia da complexidade, a título de exemplo, muito se fala em dolo eventual quando o motorista dirige embriagado. Ora, fica difícil aceitar essa assertiva tendo em vista que o motorista também corre risco de vida e, logo, insustentável a tese de que ele agisse dolosamente para arriscar a si mesmo.

A culpa consciente também encontra os mesmos dissabores, haja vista que não há ponderar de forma contundente a sua ocorrência. Ambos são subjetivos e o próprio conceito de ambos poderão encontrar dissenso. Na esfera penal o dolo e a culpa possuem penas distintas, apesar de na praticar ser bastante difícil diferenciar o dolo eventual da culpa consciente.

Afinal, conforme preceituado pelo artigo 186 do Código Civil Brasileiro, é estabelecida a responsabilização civil daquele que cause danos, por dolo ou culpa. Ocorre que o dolo poderá ter uma penalização maior que a culpa, fazendo com que as penalidades entre o dolo eventual e da culpa consciente também sejam distintas.

Apesar de ambos os conceitos serem parecidos, o dolo eventual e a culpa consciente possuem distintos tratamentos penais. Em razão disto, necessário se faz traçar as diferenciações objetivas e subjetivas de cada um dos institutos e suas consequências, apontando posicionamentos da doutrina e jurisprudência. Para distinguir um instituto do outro, bem como fazer uma análise global sobre os requisitos de cada um e como o operador do direito deve proceder para diferenciar, no caso concreto, o dolo eventual da culpa consciente.

O homicídio culposo de trânsito é previsto no artigo 308, §2º, do CTB, enquanto o homicídio doloso (dolo eventual) é previsto no artigo 121 do Código Penal. A principal diferença entre eles é a forma de julgamento: enquanto o primeiro é julgado pelo rito ordinário, o segundo é julgado pelo rito do júri. O Tribunal do Júri é o órgão do Poder Judiciário que detém a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida. Logo, é possível que uma conduta aparentemente idêntica possa ter um rito totalmente diferente.

Desse modo, a fim de elucidar tal nuance, o presente trabalho tem por objetivo abordar diferentes decisões judiciais referentes à conduta descrita no artigo 308, §2º, do Código de Trânsito Brasileiro, identificando quais as circunstâncias fáticas que levaram o juízo a considerar uma diferente tipificação para o homicídio decorrente do crime de “racha”.

Ante o exposto, a metodologia do estudo em tela se constituiu por intermédio de revisão bibliográfica, caracterizada pela análise de doutrinas, leis e jurisprudências, referentes ao tema proposto. O estudo é dividido em capítulos. No primeiro capítulo foi enfocado o Direito Penal sob o prisma dos elementos do crime, do dolo eventual e da culpa consciente. O segundo capítulo enfocará a responsabilidade penal no acidente de trânsito em sede de dolo eventual e culpa consciente, enfocando julgados acerca da aplicabilidade de tais institutos.

2. DA EMBRIAGUEZ ASSOCIADA À DIREÇÃO

O crime de homicídio é o mais nefasto dos crimes e o que causa maior clamor social, quase sempre gerando grande repercussão, seja na esfera da família da vítima ou na sociedade. Para muitas religiões, além de crime, é inadmissível para os padrões religiosos atentar contra a vida de um ser humano.

No Código Penal Brasileiro, o homicídio é previsto pelo artigo 121, o qual estabelece que a pena é de seis a vinte anos para o delito em tela. Conforme Damásio de Jesus, o homicídio é a destruição da vida de um homem por outro homem. (JESUS, 2020)

Fragoso também define o homicídio como a destruição da vida de alguém por outrem., sendo um crime por excelência, visto ser o maior de todos os crimes. Afinal, não existe bem jurídico maior que o da vida. (FRAGOSO, 2018)

No ambiente de trânsito, os delitos de homicídio que venham a ser perpetrados pelo motorista que tenha consumido álcool provocam intenso debate e revolta social. Isso porque, em virtude da chamada Lei Seca, é inadmissível beber e dirigir em um mesmo contexto fático. Se esse ato resulta em morte, a situação penal do motorista infrator é imensuravelmente maior.

Há casos, que conforme a interpretação do operador do Direito, são denunciados e julgados conforme os ditames da culpa consciente. Não obstante, outras situações são apresentadas ao judiciário, por intermédio de ação penal, com posterior condenação como dolo eventual. A doutrina e a jurisprudência é dividida quanto a questão, não encontrando, ainda, consenso.

Tendo em vista que não há consenso, necessário se faz explicitar os motivos que cada corrente argumenta, para que assim se compreenda o porquê do dissenso.

O crime de homicídio, também é previsto no Código de Trânsito Brasileiro, no artigo 302. No entanto, a previsão é para homicídio culposo. Afinal, o legislador se posicionou na vertente de que o motorista não deseja matar outra pessoa, por isso não prevendo a modalidade do crime doloso. Por isso, quando ocorre homicídio em virtude do consumo de substâncias alcoólicas ou análogas associado ao volante, parcela da doutrina defende se tratar de homicídio na modalidade culposa.

Para relembrar o conceito de culpa, vale frisar Fukassawa:

é a culpa com previsão e tem características mais graves que a culpa sem previsão. O agente prevê como possível o resultado, mas sem tê-lo desejado, embora devesse preveni-lo e tomando as precauções necessárias para evitá-lo, abstendo-se da ação.(FUKASSAWA, 2019, p. 12)

Em virtude do exposto nota-se que o motorista alcoolizado deveria, para essa corrente, responder por homicídio culposo visto que não queria o resultado, não o desejou, apesar de poder ter prevenido o mesmo por intermédio das precauções necessárias. A culpa consciente é a modalidade mais comum nesse tipo de acidente, para parte da doutrina. (SOUZA, 2018, p. 28)

Mesmo as dores e transtornos inerentes ao homicídio de alguém e a gravidade extrema desse crime, não se pode transformar uma conduta culposa em dolosa por influência da sociedade ou da mídia. O direito deverá levar em consideração a lei e ocaso concreto, pouco importando a opinião pública, a qual por vezes pode estar contaminada pelo senso comum e influência da mídia.

A defesa da incidência da culpa nesses tipos de crime possui, também, o aval de Wunderlich apud Pepeu (2019). Conforme o autor é um contrassenso levar ao júri acusados de homicídio em um contexto de direção associada ao álcool. Isso porque o dolo eventual estaria se esticando alem dos seus limites legalmente impostos. O direito, conforme o autor, não poderá se curvar aos caprichos e ditames do senso comum.

Caso contrário poderia se afirmar que as leis seriam fruto da vingança social, algo incompatível com os princípios mais elementares do Direito. Ressalta-se que os defensores da incidência da culpa consciente como a modalidade de delito interente a quem tenha praticado homicídio no trânsito sob o efeito de álcool afirmam que a bebida alcoólica associada à direção não é um fato por si só válido a ponto de afirmar que o agente assumiu o risco do resultado de sua ação (qual seja, a de beber e dirigir). Dizem, que o agente não quis o resultado necessariamente.

Aguiar ressalta que:

a crescente consideração do dolo eventual nos crimes de trânsito demonstra simplesmente que o Judiciário, implicitamente, percebe o descompasso entre a lei e as demandas da sociedade e utiliza um artifício para atender à opinião pública. (AGUIAR, 2019, p. 1)

O órgão judicial, por vezes, acaba tendo uma tendência ao instituto do dolo na modalidade eventual no tratamento daquele que tenha matado alguém sob o efeito do álcool na direção. Consequentemente, passam a ser levados ao Tribunal do Júri, onde serão julgados pelos seus pares. As penas, nesses casos, são significativamente mais severas que no homicídio culposo.

Wunderlich elucida que: 

Diga-se, então, que o dolo eventual nos crimes de trânsito é uma ficção jurídica utilizada fantasiosamente para compensar uma legislação inadequada e, assim, atender aos reclamos da mídia. Diga-se, ainda, que serve para acabar com aquilo que a mídia (odiosa imprensa leiga) e os profetas dos “movimentos”, mais das vezes mulados pela mesquinhez de ideologias “baratas”, classificam de impunidade. Mas, não se diga que, com base na teoria do delito existe fundamento jurídico plausível e consolidado sobre a demarcação do conceito de dolo eventual, mormente, no sentido amplo, chegando a cogitar-se que o agente consinta com seu possível suicídio. (WUNDERLICHI, 2019, p. 4)

Ressalta-se que o Código de Trânsito foi elaborado e publicado com o fulcro de abordar apenas os crimes de trânsito, sem dispor a respeito da figura do dolo eventual. Nem mesmo na chamada Lei Seca (Lei n° 11.705/2008) foi mencionado o instituto do homicídio na modalidade dolosa.

No entanto, há quem defenda a incidência de dolo eventual em sede de homicídios praticados no trânsito. Os argumentos dessa corrente também são muito contundentes.

No dolo eventual há por parte do agente, a representação da probabilidade e consequente previsão do resultado de sua ação de dirigir sob o efeito do alcool e, embora não queira produzi-lo, continua agindo e admitindo a sua eventual produção. (FUKASSAWA, 2019, p. 13).

Desse modo, no dolo eventual, o agente sabe que o seu ato poderá, sob o crivo da probabilidade, acarretar resultado nefasto a determinado bem jurídico.

Rizzardo, por sua vez:: 

Diante do quadro que presentemente se descortina, há dolo eventual sempre que se dá a adesão ao resultado previsível, e assim quando alguém arremessa um veículo contra outrem, quando se imprime desenfreada velocidade em via perigosa e com pedestres em seu leito, quando o motorista se lança na direção encontrando-se embriagado, dentre outras hipóteses. (RIZZARDO, 2019, p. 23)

A doutrina que acata o dolo eventual nesses tipos de crimes, acredita que ele poderá diminuir os índices de acidentes de trânsito dado o seu caráter pedagógico e moralizador da grave situação que se encontra o trânsito no país. Com isso, afirmam que a pessoa poderá pensar ‘duas vezes’ antes de associar álcool e direção.

Fukassawa explica que:

 […] não tão raramente, alguns casos de homicídio no trânsito, posto identificado corretamente ou não o dolo eventual, são levados ao julgamento popular do júri, não sem antes ser decretada prisão preventiva, de um lado, amarga para o autor que não pode compreender um antecipado enclausuramento por causa de sua negligência e, de outro lado, necessária aos sentimentos e anseios do povo que não compadece com a aparente impunidade daquele que, sob certas e incomuns circunstâncias ou condições, à direção de um veículo vitima uma ou várias pessoas, quando haveria de ser exemplarmente punido. Rodrigues por sua vez afirma que “é pacífico na Jurisprudência que, na dúvida entre o dolo e a culpa, prevalece o dolo, pois a competência do Júri é Constitucional (“in dubio pro societate”). (FUKASSAWA, 2019, p. 13)

Os seguidores dessa corrente, utilizam do argumento da pedagogia para a incidência do dolo eventual. Esse instrumento jurídico poderá assegurar a devida punição daquele que agiu inconsequentemente no trânsito, acarretando a morte de alguém. A condenação por crime culposo poderia, para esses teóricos, não acarretar os efeitos necessários, no que tange à proporcionar exemplos para a sociedade.

Assim, a simples associação do volante com o álcool já deveria, segundo essa corrente, caracterizar em dolo eventual. O julgamento pelo Tribunal do Júri acarretaria uma intimidação nos ‘aventureiros’ que dirigem sob o efeito do álcool. O dolo representa uma pena muito mais severa que a culpa. Sua punição ocorrerá em conformidade com o artigo 121 do Código Penal, vez que o Código de Trânsito não prevê a possibilidade de homicídio doloso, mas tão somente na modalidade culposa.

Observa-se, assim que a questão é pacífica, encontrando dissenso doutrinário. Assim, conforme o caso concreto e a corrente adotada pelos operadores da justiça, o condutor que tenha ocasionado a morte de alguém no trânsito poderá responder por homicídio doloso ou culposo.

Não obstante, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela incidência de crime culposo, em um caso no qual o motorista estava embriagado, o que ensejou em óbito de terceira pessoa, conforme explanado abaixo:

Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu, na tarde de hoje (6), Habeas Corpus (HC 107801) a L.M.A., motorista que, ao dirigir em estado de embriaguez, teria causado a morte de vítima em acidente de trânsito. A decisão da Turma desclassificou a conduta imputada ao acusado de homicídio doloso (com intenção de matar) para homicídio culposo (sem intenção de matar) na direção de veículo, por entender que a responsabilização a título “doloso” pressupõe que a pessoa tenha se embriagado com o intuito de praticar o crime. Ao expor seu voto-vista, o ministro Fux afirmou que “o homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção perante a embriaguez alcoólica eventual”. Conforme o entendimento do ministro, a embriaguez que conduz  à responsabilização a título doloso refere-se àquela em que a pessoa tem como objetivo se encorajar e praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo. O ministro Luiz Fux afirmou que, tanto na decisão de primeiro grau quanto no acórdão da Corte paulista, não ficou demonstrado que o acusado teria ingerido bebidas alcoólicas com o objetivo de produzir o resultado morte. O ministro frisou, ainda, que a análise do caso não se confunde com o revolvimento de conjunto fático-probatório, mas sim de dar aos fatos apresentados uma qualificação jurídica diferente. Desse modo, ele votou pela concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao acusado para homicídio culposo na direção de veículo automotor, previsto no artigo 302 da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro)”.(STF, On line)

Nesse caso, o STF entendeu que o agente não assumiu o risco, haja vista que beber e dirigir não significa para aquela corte que o motorista esteja se ‘encorajando’ a cometer alguma atrocidade. A discussão, no entanto, não foi encerrada com a decisão da Suprema Corte.

3. DOS CRIMES DE RACHA E O HOMICÍDIO NO TRÂNSITO E O ENFOQUE EM JULGADOS

Os crimes de racha trata-se de comportamentos imprudentes que poderão gerar nefastas consequências para o motorista e sociedade. Em virtude de, principalmente nas grandes cidades, a prática de racha ser bastante comum, surge a seguinte indagação jurídica: caso haja um resultado (como morte ou lesão corporal), o motorista infrator responde por dolo ou dano?

A distinção é bastante significativa. Veja-se, por exemplo o crime de homicídio decorrente de racha. Enquanto homicídio culposo tem a pena base de 2 a 4 anos (cominada pelo Código de Trânsito) ou de 1 a 3 anos (de acordo com o Código Penal), no homicídio doloso, de acordo com o artigo 121 do Código Penal, a pena é de 6 a 20 anos.

Existe dissenso doutrinário.

Os autores favoráveis afirmam que querer o perigo proporcionado pelo racha ou aceitar o risco de sua ocorrência é consentir com o resultado, praticando assim dolo eventual. (MIRABETE, 2016, p. 21).

Por outro ângulo, Edmundo José Bastos Júnior (2016) ressalta que quando a atitude psíquica do agente não se revelar inequívoca a solução deve ser pautada o princípio in dúbio pro reo. Com isso, deve-se optar pelo entendimento mais benéfico ao réu, qual seja, o da incidência da culpa consciente. autor ressalta ainda que há, ainda, o risco para o próprio agente condutor do veículo, de modo que não o condutor, em plena sanidade psíquica, não seria indiferente a perder a sua própria vida. Certamente o argumento possui certa validade na medida que resta difícil imaginar um motorista seja indiferente à perca da própria vida. Para o autor, o motorista está ciente do resultado mas busca evitá-lo a qualquer momento, o que caracterizaria culpa consciente, e não dolo eventual.

No entanto, existe forte tendência jurisprudencial no sentido de determinar o dolo eventual nos crimes de racha. Eis o que decidiu o Supremo Tribunal Federal:

HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO E LESÃO CORPORAL EM CONCURSO FORMAL NO TRÂNSITO (ARTS. 121, § 2o., I E 29, CAPUT, C/C 70, TODOS DO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO). FUNDAMENTAÇÃO ADEQUADA DA DECISÃO DE PRONÚNCIA E INEXISTÊNCIA DE EXCESSO DE LINGUAGEM NO ACÓRDÃO QUE A CONFIRMOU. DECISÃO QUE SE LIMITOU A NOTICIAR O CRIME SUPOSTAMENTE PRATICADO PELO PACIENTE E APONTAR AS PROVAS QUE CORROBORAM A TESE ACUSATÓRIA. EXISTÊNCIA OU NÃO DE DOLO EVENTUAL NA CONDUTA A SER AFERIDA PELO TRIBUNAL DO JÚRI […].  A hipótese, não se mostra evidente, como pretende a impetração, de ausência de dolo eventual, existindo elementos probatórios nos autos aptos a sustentar a tese acusatória, qual seja, de que o paciente estava em alta velocidade e participando de competição automobilística não autorizada (racha); dessa forma, concluir, desde logo, em sentido contrário implicaria dilação probatória incompatível com o mandamus, além de usurpação da competência do Tribunal do Júri.” (HC 136809 / RJ HABEAS CORPUS 2009/0096409-5 Relator(a) Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO (1133) Órgão Julgador T5 – QUINTA TURMA – STJ Data do Julgamento 17/11/2009 Data da Publicação/Fonte DJe 14/12/2009)

Observa-se que a Suprema Corte entendeu que cabe ao Tribunal do Juri julgar o caso, o que enseja no entendimento de que o STF seguiu a tese do dolo eventual. Caso contrário, não ‘‘deixaria’’ o caso continuar no Tribunal do Júri, colegiado responsável por julgar os crimes dolosos contra a vida.

Ainda, no que diz respeito aos crimes de racha, o Superior Tribunal de Justiça também entendeu pela incidência do dolo eventual, haja vista a clara intenção do condutor em arrisca a sua vida e a de outrens, com o fulcro de se divertir.

Eis o teor da decisão do colegiado:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIOS DOLOSOS.PRONÚNCIA. DESCLASSIFICAÇÃO. DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE.QUAESTIO FACTI E QUAESTIO IURIS. REEXAME E REVALORAÇÃO DA PROVA.I – É de ser reconhecido o prequestionamento quando a questão, objeto da irresignação rara, foi debatida no acórdão recorrido.II – É de ser admitido o dissídio pretoriano se, em caso semelhante, no puctum saliens, há divergência de entendimento no plano da valoração jurídica. III – Não se pode generalizar a exclusão do dolo eventual em delitos praticados no trânsito. Na hipótese de “racha”, em se tratando de pronúncia, a desclassificação da modalidade dolosa de homicídio para a culposa deve ser calcada em prova por demais sólida. No iudicium accusationis, inclusive, a eventual dúvida não favorece os acusados, incidindo, aí, a regra exposta na velha parêmia in dubio pro societate. IV – O dolo eventual, na prática, não é extraído da mente do autor mas, isto sim, das circunstâncias. Nele, não se exige que resultado seja aceito como tal, o que seria adequado ao dolo direto, mas isto sim, que a aceitação se mostre no plano do possível, provável – O tráfego é atividade própria de risco permitido. O “racha”, no entanto, é – em princípio – anomalia que escapa dos limites próprios da atividade regulamentada. VI – A revaloração do material cognitivo admitido e delineado no acórdão reprochado não se identifica com o vedado reexame da prova na instância incomum. Faz parte da revaloração, inclusive, a reapreciação de generalização que se considera, de per si, inadequada para o iudicium acusationis. Recurso provido, restabelecendo-se a pronúncia de primeiro grau. (REsp 247263 / MG RECURSO ESPECIAL 2000/0009914-7).

O crime de racha deverá ser analisado da seguinte maneira, de tal modo que possa se entender o porquê da incidência do dolo eventual: os competidores sabem que vão ter que correr, conhecem os perigos de sua ação para si e outrem, preveem a possibilidade de ‘algo dar errado’ resultando em um acidente. Essas pessoas, pouco se importando com o resultado de suas condutas, em um desejo egoístico, perpetram o racha, sabendo da possibilidade do resultado, e aceitando a sua ocorrência em seu íntimo. Isso acarreta dolo eventual.(NINNO, 2017, p. 32)

Observa-se, diante do exposto, que existe clara manifestação doutrinária e jurisprudencial no sentido de aceitar o dolo eventual como inerente aos crimes de racha, diante a franca aceitação do motorista no resultado de suas ações, as quais poderão ensejar em homicídio doloso. Em sendo reconhecido o dolo eventual, não mais se aplicará o artigo 308 do Código de Trânsito Brasileiro, mas sim o artigo 121 do Código Penal, que, além de possuir uma pena em abstrato maior, sujeita o agente ao rito do Tribunal do Júri, tendo em vista ser um crime doloso contra a vida. Assim, uma simples interpretação distinta pode ocasionar grandes prejuízos ao réu. No intento de pôr fim a esse impasse, o Código de Trânsito Brasileiro sofreu alterações em 2014, através da Lei nº 12.971/14, que acrescentou ao artigo 308 os parágrafos primeiro e segundo, quais sejam as qualificadoras do tipo penal, que, conforme visto acima, deixam claro que se trata de um crime culposo de trânsito.

Todavia, mesmo após a referida alteração, os tribunais, por vezes, consideram o homicídio decorrente de racha como homicídio doloso, conforme decisão do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

JÚRI. HOMICÍDIO SIMPLES. TRÂNSITO. RACHA. DOLO EVENTUAL. Não decorrido, entre os marcos interruptivos do curso do prazo prescricional (recebimento da denúncia e prolação da decisão de pronúncia), lapso temporal que leve à prescrição da pretensão punitiva do Estado, não há cogitar da extinção da punibilidade dos acusados. Vindo aos autos dados informativos dando conta de que os réus, por ocasião do fato, realizavam racha na via pública, em zona de alta densidade populacional, quando um dos envolvidos na disputa veio atropelar a vítima, o que fez ao tentar ultrapassar o outro, subsiste a decisão de pronúncia, porquanto as circunstâncias precitadas apontam para o proceder doloso eventual na conduta observada pelos agentes. Pronúncia mantida. RECURSOS DESPROVIDOS. (Recurso em Sentido Estrito Nº 70076476084, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Honório Gonçalves da Silva Neto, Julgado em 08/08/2018). (grifei).

Da leitura da decisão supra, tem-se que, segundo entendimento do relator, ao participar de uma corrida automobilística ilegal em via pública, os envolvidos assumem o risco de produzir danos a si e a terceiros, imputando-lhes o dolo eventual, contrariando o disposto no Código de Trânsito Brasileiro. O Supremo Tribunal Federal também já posicionou acerca do tema, reforçando o entendimento adotado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO EM RECURSO ORDINÁRIO. [..] A Lei 12.971/14 não altera a aplicação do dolo eventual em crimes praticados na direção de veículos automotores, não se tratando, portanto, de novatio legis in mellius. O critério de distinção entre os tipos penais do homicídio (CP) e do homicídio de trânsito (CTB) segue sendo o dolo e a culpa. Mesmo que assim não fosse, não haveria ofensa direta à Constituição Federal. A questão envolve a interpretação sobre a aplicabilidade da lei nova ao caso concreto. Não se negou aplicação à lei reputada incidente e mais benéfica […]. NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO. (ARE 1037746 AgR, Segunda Turma, Supremo Tribunal Federal, Relator: Min. Gilmar Mendes, Julgado em 01/08/2017). (grifei).

Dessa maneira, a corte suprema fixa entendimento de que, em que pese a Lei 12.971/14 tenha inovado o ordenamento jurídico, esta não impede a aplicação do dolo eventual em crimes praticados na direção de veículos automotores, de maneira a afastar a incidência da culpa consciente.

Grande parte da doutrina discorda de tal posicionamento, ressaltando a interferência que a sociedade tem sobre julgamentos de casos populares. Rogério Greco (2012, p.207), compartilha da mesma opinião, veja-se:

O clamor social no sentido de que os motoristas que dirigem embriagados e/ou em velocidade excessiva devem ser punidos severamente, quando tiram a vida ou causam lesões irreversíveis em pessoas inocentes, não pode ter condão de modificar toda a nossa estrutura jurídico-penal. Não podemos, simplesmente, condenar o motorista por dolo eventual quando, na verdade, cometeu a infração culposamente.

Em outro julgado, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul admitiu a consunção do racha pelo homicídio doloso, mantendo a medida administrativa de suspensão do direito de dirigir prevista no artigo 308 do Código de Trânsito Brasileiro:

HABEAS CORPUS. DELITO DE TRÂNSITO. HOMICÍDIO. DETERMINAÇÃO DE SUSPENSÃO DA CARTEIRA DE HABILITAÇÃO. […] O fato de o magistrado, ao prolatar a sentença de pronúncia, ter aplicado o princípio da consunção com relação ao delito de trânsito previsto no art. 308 do CTB, não impede a manutenção da medida cautelar de suspensão da habilitação para dirigir, porque, é bom grifar, ela está sendo aplicada para garantia da ordem pública. Porque os réus foram pronunciados somente por crime de homicídio, descabe a medida cautelar em comento que a lei a prevê só para crimes de trânsito? Entendo, permissa vênia, que não. O crime de racha (art. 308 do CTB) foi descrito na inicial acusatória e foi tomado como crime meio do delito de homicídio. O reconhecimento da consunção, portanto, não o torna inexistente, mas somente absorvido. Ausência de constrangimento ilegal. ORDEM DENEGADA. (Habeas Corpus, Nº 70075626325, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Antônio Cidade Pitrez, Julgado em: 22-02-2018) (grifei).

Depreende-se da decisão que, mesmo o agente respondendo penalmente apenas pelo homicídio doloso (dolo eventual), as medidas administrativas do crime absorvido, previstas no Código de Trânsito Brasileiro, permanecem aplicadas no caso concreto, haja vista a garantia da ordem pública. Reforça o desembargador que o reconhecimento da consunção não torna o crime de racha inexistente, apenas “oculto”.

Recentemente, no ano de 2020, o mesmo órgão julgador, porém, prolatou acórdão em que reconhecera a incidência do homicídio culposo de trânsito, mesmo o agente estando praticando corridas não autorizadas em via pública:

APELAÇÃO. HOMICÍDIO CULPOSO NO TRÂNSITO. IMPRUDÊNCIA. PARTICIPAR, NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR, DE CORRIDA NÃO AUTORIZADA PELA AUTORIDADE COMPETENTE, GERANDO SITUAÇÃO DE RISCO À INCOLUMIDADE PÚBLICA OU PRIVADA. […] Conduta imprudente do acusado Leandro que, na condução de veículo automotor, não tomou as devidas cautelas ao conduzir veículo, tendo, após ingerir bebida alcoólica, empregado velocidade acima da permitida para a via, disputando corrida com o corréu, perdendo o controle do veículo e saindo da pista, capotando o automóvel e ocasionando a morte da vítima, que tripulava seu veículo. […] 3. DOSIMETRIA. […] a própria conduta culposa adotada pelos réus, não desbordando do ordinário, as circunstâncias do fato acentuaram a gravidade do crime, uma vez que praticado “racha” pelos acusados, o que foge aos limites dos riscos aceitáveis aos delitos de trânsito, pondo em risco não só a vida deles e de seus passageiros, mas também de quem transitava pela via. Apelação Criminal, Nº 70081450603, Oitava Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Fabianne Breton Baisch, Julgado em: 30-09-2020) (grifei).

Da leitura do acórdão supracitado, tem-se que o fato dos corréus estarem praticando racha em via pública, gerando perigo de dano para a vida de outrem, fora valorada na primeira fase da dosimetria penal para aumentar a pena-base do delito de trânsito, não havendo incidência do homicídio doloso previsto no Código Penal. A situação narrada na decisão envolve dois crimes de trânsito: a embriaguez ao volante (artigo 306 do CTB) e a disputa automobilística ilegal com resultado morte (artigo 308, §2º, do CTB).

O artigo 121, parágrafo 3° do Código Penal e o artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro preveem a figura do homicídio culposo. Enquanto no primeiro abarca a tipificação penal aberto, haja vista que envolve qualquer caso de homicídio culposo, no segundo existe tão somente a previsão para o homicídio culposo perpetrado na atmosfera do trânsito.

De acordo com José da Costa Junior:

De acordo com o referido princípio a lex specialis derrogat legi generali, ou seja, a norma especial prevalece sobre a norma geral. Isto porque a norma especial é dotada de todos os elementos que compõem a norma geral e mais alguns específicos, que justifica sua existência e aplicação ao caso concreto. (COSTA JÚNIOR, 2019, p. 23)

Conforme o autor alerta, a lei especial derroga a lei mais genérica, prevalecendo sobre esta. Isso porque a lei especial possui característica que englobam melhor o elemento delituoso sob análise. Cássio Mattos Honorato por sua vez:

O legislador do novo Código de Trânsito Brasileiro inaugurou a parte especial dos crimes de trânsito criando um tipo penal especial em relação ao homicídio culposo, previsto no art. 121 § 3º, do Código Penal. Utilizando-se o Princípio da Especialidade para solucionar o conflito aparente entre essas duas normas penais incriminadoras, conclui-se que toda conduta culposa daquele que conduz veículo automotor, a partir de 22 de janeiro de 1998, que venha a matar alguém, poderá adequar-se ao tipo penal previsto no art. 302 da Lei 9503/97. (HONORATO, 2019, p. 410)

O crime de homicídio culposo no trânsito foi inaugurado pelo legislador no Código de Trânsito Brasileiro como uma norma especial, que passou a imperar, a despeito da existência de outra norma no Código Penal mais genérica, no ambiente do trânsito.

O mesmo ocorre com o crime de lesão corporal culposa, que possui previsão especial no Código de Trânsito Brasileiro, em seu artigo 303, a saber:

Artigo 303 – Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor. Pena: detenção de seis meses a dois anos e a suspensão ou proibição de se obter a permissão ou habilitação para dirigir veículo automotor.

Para que exista especialidade é necessário, portanto, que a lei especial, possua por obrigação lógica, todos os subsídios da lei geral e mais o componente particularizado, que abona sua existência. Desde que esta analogia subsista entre duas normas, a legislação genérica deve proporcionar lugar à de lei mais específica. É forçoso, ainda, que as leis em relação de gênero e espécie sejam assentadas na tutela de um mesmo bem jurídico penalmente protegido, e tenham igual objetividade jurídica. (BETTIOL, 2019, p. 307)

Edmund Mezger explana que:

O tipo especial prefere ao geral, podendo estar na mesma lei ou leis diversas. A composição é abstrata. A especialidade é aceita por todos. O princípio da especialidade tem de peculiar o seguinte: por seu conteúdo lógico, permite comparação em abstrato sobre as leis a serem aplicadas, enquanto os demais exigem um confronto in concreto das normas que incidem sobre o fato. (MEZGER, 2017, p. 134)

De acordo com o autor o princípio da especialidade permite uma confrontação entre as leis, de tal modo que se veja que ambos versam sobre o mesmo bem jurídico, apesar de uma ser mais especifica que outra fazendo com que o tipo penal seja mais bem relacionado à norma. Fernando Y. Fukassawa, quanto ao concurso aparente de normas, ressalta que:

Os tipos previstos no Código de Trânsito Brasileiro, de homicídio culposo e lesão corporal culposa (arts. 302 e 303), são especiais em face dos tipos gerais de idênticos crimes previstos nos arts. 121, § 3º e 129, § 6º, do Código Penal. É elemento especializante a situação ou condição de fato em que se encontra o agente: “na direção de veículo automotor”. Dessa forma, não será difícil, através de comparação abstrata, concluir que deixará de ser crime de trânsito o caso em que o condutor saindo do veículo para fazer algo, o estaciona mal por isso se desgoverna rua abaixo colhendo um transeunte que vem sofrer lesões ou morte. (FUKASSAWA, (2019, p. 150)

O princípio da especialidade, desse modo, deverá prevalecer sobre qualquer questão que envolva duas leis, sendo uma mais especifica que outras. A lei especifica prevalece, em virtude da vontade do legislador em tipificar um crime de maior especificada de forma mais clara.

É , inclusive o que ocorre, além do homicídio e lesão corporal, com outros tipos penais como, por exemplo, no estupro de vulnerável, no latrocínio, no infanticídio entre outros delitos especiais, que possuem tipificação mais especificada, de acordo com a situação que o legislador quis prever no tipo penal.

Desse modo, ocorrendo a incidência de lesão corporal ou homicídio em sede de culpa consciente no trânsito, prevalecerá os dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro.

Ressalta-se que o crime de lesão corporal dolosa (previsto no Código Penal, artigo 129) e o de natureza culposa são julgados pelo juízo singular. Diferente é o que ocorre nos crimes de homicídio doloso e culposo, que serão julgados respectivamente pelo Tribunal do Júri e juiz singular.

No homicídio culposo, a ação deverá ser publica incondicionada. A justiça competente é a comum, sem olvida a competência do Juizado Especial Criminal. Não é admitindo, para Fukassawa, o sursis processual, haja vista que a pena mínima é de dois anos. (FUKASSAWA, 2019, p. 21)

Conforme Mattos Honorato o homicídio culposo em sede de trânsito, não poderá ser acatado como delito de menor potencial ofensivo. Aplica-se, desse modo, o procedimento sumário, previsto na lei processual penal. (HONORATO, 2019, p. 364)

A doutrina é pacífica no que tange ao rito sumário em sede de crimes culposos no trânsito. A previsão para esse tipo de rito está prevista no Código de Processo Penal.

Fernando Capez entende que para os crimes de homicídio culposo na direção, por ser pena de detenção de dois a quatro anos, deve também ser seguido o rito sumário, não podendo ser aceitas , no entanto, a realização de audiência preliminar e a proposta de suspensão condicional do processo. (CAPEZ, 2019, p. 4)
Enfim, caso seja corroborada a materialidade do delito bem como a autoria do mesmo, ocorrendo a incidência dos elementos caracterizadores do homicídio culposo, ocorrerá o procedimento do rito sumário, previsto artigo 593 do Código Processo Penal.

O homicídio culposo no trânsito, conforme já mencionado, possui previsão no Código de Trânsito Brasileiro. No entanto, não existe no aludido diploma uma tipificação penal especifica para o homicídio doloso. Por não existir uma norma especial, deverá ser observada a disposição prevista no artigo 121 do Código Penal.

Fernando Y. Fukassawa ressalta que “não tão raramente, alguns casos de homicídios no trânsito, posto identificado corretamente ou não o dolo eventual, são levados ao julgamento popular do júri”. (FUKASSAWA, 2019, p. 32)

Os crimes cuja competência é do tribunal do júri possuem a previsão explicitada no artigo 74 § 2º, Código de Processo Penal, o qual estatui in vervis:

compete ao tribunal do júri o julgamento dos crimes previstos nos arts. 121, §§ 1º e 2º, 122, parágrafo único, 123, 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, consumando ou tentado.

No entanto, antes de ir para o tribunal do júri, o juiz deverá fazer a sentença de pronúncia, onde pronunciará, ou não, o réu para o mencionado órgão colegiado. Esse rito é, diferente do homicídio culposo, conhecido por ser escalonado.

Com isso, na primeira fase, que começa com denúncia oferecida pelo parquet e termina com a sentença de pronuncia (judicium accusationis). A segunda fase inicia-se com o recebimento do processo pelo juiz presidente do tribunal do júri e termina com o julgamento perpetrado pelo tribunal do júri o qual pode, inclusive, absolver o réu ou desclassificar o crime para culposo. (CAPEZ, 2019, p. 42)

De acordo com Capez, na pronúncia o juiz faz apenas um juízo prévio de prelibação, no qual admite ser possível a imputação, encaminhando os autos para o júri. (CAPEZ, 2019, p. 586)

O juiz não entra no mérito, restringindo apenas à verificação do fumus boni iuris, admitindo as acusações que ao menos tenha probabilidade de procedência. Trata-se, para o autor, de decisão interlocutória, mista e não terminativa, a qual encerra a primeira fase do procedimento escalonado.

O juiz, no entanto, caso entenda pela desclassificação para infração não dolosa, assim deverá fazê-lo, desde que fundamente sua decisão. Nesse caso, existe a chamada impronuncia, quando o juiz não se convenceu da existência do dolo eventual.

Questão interessante é a que versa sobre a possibilidade do juiz não pronunciar o réu em caso de dúvida ou pronunciá-lo, isso porque existem dois princípios anacrônicos, quais sejam, o do in dúbio pro réu e também o do in dúbio pro societa.

Conforme Saulo Brum Leal, deverá ocorrer o princípio do in dubio pro societa, haja vista que o juiz deverá decidir, na dúvida, em favor do júri, órgão competente para julgar crimes dolosos contra a vida e, consequentemente, a quem cabe dirimir a questão. (apud LOPES JÚNIOR, 2019)

Há autores, de correntes mais garantistas, que afirmam não ser possível a aplicabilidade do princípio in dúbio pro societa, conforme faz exemplo o doutrinador Auri Lopes Júnior:

Segundo a doutrina tradicional, nesse momento decisório, deve o juiz guiar-se pelo ‘‘interesse da sociedade’’ em ver o réu submetido ao Tribunal do Júri, de modo que, havendo dúvida sobre sua responsabilidade penal, deve ele ser pronunciado. A jurisprudência brasileira está eivada de exemplos de aplicação do brocardo […] Pois bem, discordamos desse pacífico entendimento. […] Não se pode admitir que os juízes pactuem com acusações infundadas, escondendo-se atrás de um princípio não recepcionado pela Constituição, para, burocraticamente, pronunciar réus, enviando-lhes para o Tribunal do Juri e desconsiderando o imenso risco que representa o julgamento nesse complexo ritual judiciário. […] Nessa linha, vale o in dúbio por réu para […] desclassificar para o crime culposo as abusivas acusações por homicídio doloso (dolo eventual) em acidentes de trânsito, onde o acusador não fez prova robusta da presença do elemento subjetivo. (LOPES JÚNIOR, 2019, p. 1001).

O juiz, para o autor, deverá desclassificar, na dúvida entre homicídio doloso ou culpa consciente, o crime para homicídio culposo, em virtude do princípio in dúbio pro societa não ser previsto na Carta Magna, ao contrário do princípio do in dúbio pró réu.

Paulo Rangel também entende que é impraticável o princípio do in dúbio pro societa, haja vista que o mencionado postulado não é compatível com o Estado Democrático de Direito, que não permite a possibilidade da dúvida piorar a situação do réu. (apud LOPES JUNIOR, 2019)

O autor destaca que não existe nenhum dispositivo legal que autorize explicitamente a ocorrência do in dúbio pro societa. Segundo o autor, o fato do Ministério Público não ter sido bem sucedido na produção de provas, no que tange ao dolo eventual, não poderá resultar em situação jurídica desfavorável ao acusado.

No entanto, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, a exemplo de outros julgados solidificados no sistema jurídico brasileiro, fortalece entendimento de que, em caso de dúvida se é dolo eventual ou culpa consciente, o réu deverá ser pronunciado e, consequentemente, ser julgado pelo Tribunal do Juri, em virtude do princípio in dúbio pro societate.

Eis o entendimento do Tribunal:

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – ACIDENTE DE TRÂNSITO – MAGISTRADO QUE NA FASE DA PRONÚNCIA OPERA A DESCLASSIFICAÇÃO PARA A MODALIDADE CULPOSA DO HOMICÍDIO – ACUSADO SOB FORTE INFLUÊNCIA DO ÁLCOOL E QUE DIRIGIA EM EXCESSO DE VELOCIDADE – ANUÊNCIA AO RISCO DE MATAR ALGUÉM QUE NÃO SE MOSTRA DE TODO IMPLAUSÍVEL – TESE DO DOLO EVENTUAL POSSÍVEL – MATÉRIA CUJA SOLUÇÃO DEFINITIVA COMPETE AO TRIBUNAL DO JÚRI. (TJSC – Recurso Criminal n. 2005.022651-3, Rel. Juiz José Carlos Carstens Köhler – 30/08/2005).

De acordo com o julgado, o dolo eventual poderá ser possibilitado na ocorrência de elementos que levem o magistrado a entender desse modo. Mesmo que persista dúvida, o júri deverá ser o órgão competente, sob o risco de afrontar o princípio da soberania do júri.

4. CONCLUSÃO

No Brasil, desde meados do século passado, nota-se uma evolução nas ações voltadas ao transporte urbano e rodoviário, razão do desenvolvimento proposto pelas autoridades públicas da época. Assim, a malha rodoviária se expandiu gradativamente.

Com uma frota de veículos muito elevada, os índices de óbitos em acidentes cresceram a cada ano, do mesmo modo que o desejo da coletividade na aplicação de penas mais severas para os motoristas infratores. Diante essa realidade, o Código Brasileiro de Trânsito foi aprovado em 1997. Daí em diante, começaram a discriminar os crimes cometidos por motoristas.

Em virtude da clara e gradativa incidência de crimes, violência e condutas lesivas no ambiente de trânsito, muito se debate a respeito. Nos jornais sempre se ressalta a conduta de motoristas embriagados bem como os crimes de racha. Diuturnamente, se vê nos telejornais ações incompatíveis com um trânsito saudável. A população, por outro turno, vítima de acidentes de trânsito poderá ter sequelas terríveis, muitas vezes chegando ao óbito.

Os Tribunais passam a, gradativamente, ser mais rigorosos quanto a esses crimes, buscando entendimentos que reforcem a necessidade de se cuidar do bem à vida no ambiente de trânsito. O dolo eventual nos crimes de trânsito,seja nos crimes de racha, em excesso de velocidade ou do álcool associado à direção, passa a ter conotações mais concretas. Por outro ângulo, existe um clamor da sociedade no sentido de se cobrar posturas mais adequadas dos motoristas, no que tange à direção com segurança e em respeito às leis e normas de trânsito existentes.

Igualmente, o operador do direito, para obter uma resposta satisfatória, deve cuidar para a criteriosa análise do dolo eventual e da culpa consciente nos crimes de trânsito e, conseguintemente, as reais possibilidades de enquadramento deste ou daquele nos diversos crimes existentes no trânsito, tais como excesso de velocidade; competição não autorizada em via pública; ultrapassagem proibida ou forçada, entre outros.

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