SAÚDE MENTAL E ATENÇÃO PSICOSSOCIAL – REVISÃO DA LITERATURA

MENTAL HEALTH AND PSYCHOSOCIAL CARE – LITERATURE REVIEW

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7341758


Lidiane Souza da Silva1
Fabianna Fernandes de Souza2
Daniel Cerdeira de Souza3


Resumo: A partir de 2015, foram observados diversos retrocessos na reforma psiquiátrica brasileira, onde modelos manicomiais passaram a ser encarados como “complementares” na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Assim, o objetivo deste estudo foi analisar a literatura sobre saúde mental e atenção psicossocial no Brasil, identificando os principais desafios de atuação na RAPS e as mudanças na política de saúde mental. Trata-se de uma revisão de literatura, onde analisamos 34 artigos colhidos na Biblioteca Virtual de Saúde e no Portal Periódicos Capes através da análise de conteúdo. Os resultados possibilitaram a construção de duas categorias: 1) Desafios na atuação na RAPS e 2) Mudanças na política de saúde mental. Foi possível observar que os principais desafios na atuação na RAPS envolvem a centralização do CAPS como articulador do cuidado em saúde mental e que nos últimos anos houve diversos retrocessos institucionais na gestão da saúde mental brasileira. Concluímos que é necessária a articulação coletiva em defesa dos avanços da reforma psiquiátrica e contra os retrocessos advindos de políticas conservadoras neoliberais.

Palavras-chave: Saúde Mental; Atenção Psicossocial; Reforma Psiquiátrica; Rede de Atenção Psicossocial.

Abstract: As of 2015, several setbacks were observed in the Brazilian psychiatric reform, where asylum models came to be seen as “complementary” in the Psychosocial Care Network (PCN). Thus, the objective of this study was to analyze the literature on mental health and psychosocial care in Brazil, identifying the main challenges of acting in the PNC and the changes in mental health policy. This is a literature review, where we analyzed 34 articles collected from the Virtual Health Library and Portal Periódicos Capes through content analysis. The results made it possible to construct two categories: 1) Challenges in acting in the PCN and 2) Changes in mental health policy. It was possible to observe that the main challenges in acting in the PCN involve the centralization of the CAPS as an articulator of mental health care and that in recent years there have been several institutional setbacks in the management of Brazilian mental health. We conclude that collective articulation is necessary in defense of advances in psychiatric reform and against setbacks arising from conservative neoliberal policies.

Keywords: Mental Health; Psychosocial Care; Psychiatric Reform; Psychosocial Care Network.

INTRODUÇÃO

Ao longo da história, a loucura foi encarada de diversas formas. Michel Foucault (1972) explica que na antiguidade clássica, a loucura era vista com um enfoque mitológico, religioso, passional ou a partir de disfunções somáticas. Já na idade média, a loucura passou a ser vista no ocidente a partir da ótica cristã, como uma possessão demoníaca. Com o passar do tempo, a perspectiva da loucura como algo fisiológico prevaleceu e em 1801, o Tratado Médico Filosófico Sobre a Alienação Mental de Philippe Pinel deu início a Psiquiatria como especialidade da medicina. O enfoque passa a ser então no diagnóstico e tratamento da loucura através do saber médico. 

De acordo com Almeida e Campos (2019), no Brasil, os primeiros olhares sobre a loucura datam do período colonial, onde o Estado e a Igreja controlavam os loucos a partir da segregação em instituições religiosas. A partir de 1830 até a constituição da república, houve uma mudança na atenção a esses sujeitos, que passaram a ser tratados a luz da psiquiatria, nas chamadas “Colônias”, onde recebiam cuidados pautados na segregação e em atividades laborais. Já a partir de 1960, observou-se a ampliação dos tratamentos a loucura, com a inclusão da eletroconvulsoterapia e da farmacoterapia, agregando novos interesses no tema da saúde mental no Brasil, como os interesses da indústria farmacêutica.

 Na década de 1970, em meio a luta pela redemocratização do país, críticas ao caráter privatista da saúde e elaborações de propostas alternativas para a saúde brasileira, constituiu-se o que foi chamado de “reforma sanitária”. Nesse período, a saúde mental (SM) era entendida a partir do que foi chamado de “indústria da loucura”, pois a união paga por diárias de leitos em hospitais psiquiátricos e aliado a essa questão, o modelo segregador de tratamento da loucura era pautado em maus tratos e violações de direitos humanos (AMARANTE, NUNES, 2018).

No contexto da reforma sanitária e na luta contra o autoritarismo, surgem os primeiros movimentos que intentavam transformar o cenário de descaso com a SM no país. Em 1978, surge o chamado Movimento dos Trabalhadores da Saúde Mental (MTSM), que reivindicavam melhores condições de trabalho e denunciavam o descaso e violência institucional contra as pessoas internadas em instituições psiquiátricas. Na década de 1980, o MTSM deixa de ser um movimento de trabalhadores e se torna um movimento social, com a participação de vários ativistas dos direitos humanos, pessoas com transtornos mentais e seus familiares, se transformando no movimento da Luta Antimanicomial (MLA) (TENÓRIO, 2002).

Dessa forma, chamamos de Reforma Psiquiátrica (RP) o movimento histórico/social/político que questiona as práticas e o saber psiquiátrico clássico, bem como o sistema de SM nacional no intuito de produzir novas formas de se perceber/lidar com a loucura. Ela tem como base as ideias de Franco Basaglia, que defende que o manicômio é uma realidade dramática e opressora e que, portanto, deve ser impetuosamente refutada, fazendo-se necessário não só a destruição e superação dos muros hospitalares em si, mas do sistema ideológico em que se sustenta a violência e a exclusão que basearam a Psiquiatria em todo esse processo (BASAGLIA, 1985).

A RP tem quatro grandes eixos: 1) Teórico conceitual, que se refere ao rompimento com o paradigma da psiquiatria, demandando a produção de novos saberes sobre a loucura. 2) Técnico-assistencial, que envolve a construção de serviços pautados em saberes desisntitucionalizantes e que auxiliem no resgate da cidadania da pessoa em sofrimento psíquico. 3) Político-jurídico, que envolve a construção de legislações que garantam os direitos e a proteção das pessoas em sofrimento mental e a dimensão Sócio-cultural, que intenta mudar a concepção da loucura no imaginário social (Braga & d’Oliveira, 2019). A RP teve como vanguarda no Brasil, as práticas de SM realizadas em São Paulo no período de 1983/1986, que sob o governo do Partido dos Trabalhadores, basearam-se em pressupostos da desinstitucionalização e da reabilitação psicossocial e dispunha de amplo leque de espaços de assistência nas unidades próprias para os sujeitos em sofrimento psíquico (VIEIRA, MARCOLAN, 2016).

O marco legal da RP no Brasil é a Lei 10.2016/2001, que dispõe sobre a proteção dos direitos da pessoa portadora de transtorno mental e redireciona o modelo assistencial em SM. Pode-se dizer que a Lei 10.216/2001 tem três eixos: a desospitalização, que consiste no fechamento progressivo dos hospitais psiquiátricos; a desinstitucionalização, que intenta o resgate da cidadania e dignidade das pessoas em sofrimento mental; e a ressocialização, que objetiva trazer de volta a pessoa com transtorno mental a sociedade através do trabalho e convívio comum.

A operacionalização da Lei 10.216 se dá a partir da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que foi instituída pela portaria 3.088/2011 do Ministério da Saúde. A RAPS tem como objetivos promover um cuidado integral a pessoas com transtornos mentais e pessoas com necessidades advindas do uso de crack, álcool e outras drogas e é formada por diversos serviços nos três níveis de atenção do Sistema Único de Saúde (SUS), como a Atenção Básica; A atenção psicossocial especializada nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) (serviço substitutivo e norteador da Política Nacional de Saúde Mental); A urgência e emergência; A atenção residencial, A atenção hospitalar, Serviços de desinstitucionalização e reabilitação psicossocial. A partir do exposto, o objetivo desse estudo foi analisar a literatura sobre a atenção psicossocial no Brasil, destacando os desafios na atuação na RAPS e as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental.

De acordo com Lemos (2019) os transtornos mentais como uma das grandes causas de incapacidade em todo o mundo, mesmo assim, os recursos financeiros destinados aos tratamentos de tais morbidades é insuficiente e muitos países não possuem políticas públicas específicas de SM, onde muitas pessoas em sofrimento psíquico nem mesmo chegam a serem diagnosticadas de maneira adequada.

De acordo com Trevisan e Castro (2019), em torno de 12% da população brasileira pode ser considerada dependente de álcool, seguindo os critérios da 10º Classificação Internacional de Doenças (CID-10). Os autores continuam ao explicar que pelo menos 10% das populações dos centros urbanos (incluindo o Brasil) necessitam de assistência integral à saúde para eliminar ou minimizar os danos que o uso de substâncias pode causar.

Observamos ainda que após o golpe contra a presidente Dilma em 2016, com a instalação de políticas neoliberais no país, aconteceram diversos retrocessos a política de SM. O neoliberalismo diz respeito a uma doutrina política onde o Estado vai se eximindo da responsabilidade de garantir os direitos da população (CAMPOS, 2017). Com isso, a partir da Emenda Constitucional 95 (o teto de gastos), observamos o estrangulamento no financiamento dos serviços públicos, que tem como impacto a precarização dos serviços no SUS e consequentemente, na RAPS.

METODOLOGIA

O estudo consiste em uma revisão de literatura do tipo integrativa (RI) de caráter qualitativo. Esse tipo de revisão que é amplo, e inclui estudos teóricos e empíricos, sendo útil para compreender um objeto a partir de estudos anteriores, bem como auxilia na revisão de métodos de pesquisa, por exemplo. A metodologia seguirá o proposto por Whittemore e Knafl (2005) que explicam que a RI deve seguir os seguintes passos:

1) Identificação do problema: Diz respeito ao objetivo da RI, que neste caso foi analisar a literatura sobre a atenção psicossocial no Brasil, destacando os desafios na atuação na RAPS e as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental após 2016.

2) O segundo passo corresponde a coleta dos dados, onde toda literatura relevante sobre o tema de análise será incluída. Os passos da coleta neste estudo iniciaram-se na definição dos descritores de busca, sendo “Política Nacional de Saúde Mental”, “Rede de Atenção Psicossocial” validados nos Descritores da Biblioteca Virtual de Saúde (Dec’s BVS). As bibliotecas virtuais de coleta de dados de coleta foram o Portal Periódicos CAPES (http://www-periodicos-capes-gov-br.ezl.periodicos.capes.gov.br/) e a Biblioteca Virtual de Saúde – BVS (https://bvsalud.org/), que foram escolhidas devido ao seu caráter de acesso público aos artigos científicos e por agregarem diversas bases científicas. A coleta foi realizada entre os dias 14 e 15 de outubro de 2022. Os critérios de inclusão foram: Artigos publicados em revistas indexadas revisadas por pares sobre o tema da pesquisa, publicados em língua portuguesa, entre janeiro de 2016 a setembro de 2022, sendo que, considerando a amplitude da coleta, para os resultados muito acima de 100, aplicamos o critério de relevância da base. A escolha do recorte temporal se deu por conta do marco histórico brasileiro do Golpe contra a presidente Dilma Rousseff, onde entendemos que a partir de então, a gestão das políticas públicas brasileiras tomou um caminho neoliberal. A utilização o critério de relevância se deu por conta da grande quantidade de manuscritos presentes nos portais, sendo que, devido a problemas de indexação, muitos manuscritos não correspondiam ao tema deste estudo. Adotou-se como critério de relevância, este sendo o retorno dos 50 artigos mais citados, o que nos permitiu uma coleta com melhor qualidade, otimizando o tempo dos autores. Como critérios de exclusão, removemos outras formas de publicação (artigos de jornal, artigos de anais de eventos, artigos de jornais e outros veículos midiáticos não científicos, livros, dissertações, tese, editoriais, resenhas e afins), artigos publicados fora da temporalidade especificada e em línguas diferentes da portuguesa. O total de resultados coletados foi de 200 conforme detalhado a seguir.

No Portal Periódicos CAPES foram coletados 100 resultados, sendo: a partir da aplicação dos descritores “Política Nacional de Saúde Mental” emergiram 2.217 resultados e 50 mais citados foram coletados, seguindo o critério de relevância da CAPES. Com os descritores “Rede de Atenção Psicossocial”, emergiram 742 resultados, e da mesma forma que a anterior, os 50 primeiros foram colhidos seguindo o critério de relevância do portal.

Na Biblioteca Virtual de Saúde também obtivemos 100 resultados, onde com a aplicação dos descritores “Política Nacional de Saúde Mental”, obtivemos 237 resultados e os 50 mais citados foram coletados, seguindo o critério de relevância da biblioteca. Com a aplicação dos descritores “Rede de Atenção Psicossocial”, obtivemos 397 resultados, onde os 50 mais citados foram coletados, seguindo o critério de relevância.

3) O terceiro passo correspondeu a avaliação dos dados coletados. Assim, os foram lidos os títulos, resumos e palavras-chave dos 200 resultados coletados. Do Portal periódicos Capes, excluímos 52 resultados e do Portal BVS, excluímos 64. Os motivos das exclusões foram: artigos que não versavam sobre o tema do estudo e resultados que não estavam no formato de artigos científicos, mas que estavam indexados nos portais. O próximo passo foi a exclusão dos artigos repetidos entre as bases. Listamos os 84 artigos restantes em uma planilha Excel e 3 foram excluídos.

4) A quarta etapa foi a análise e interpretação dos dados: Para essa etapa, restaram 81 artigos, os quais passaram por leitura completa. Utilizamos um instrumento, chamado “protocolo de RI”, que nos auxiliou na análise descritiva inicial dos artigos. Este protocolo baseia-se no estudo de Evans e Pearson (2001) e conteve: a pergunta da revisão, os critérios de inclusão e as estratégias de busca, assim descritos:  i) a identificação (título do artigo, título da revista em que foi publicado o artigo, área do periódico, base de dados, ano e autores e país da publicação); ii) metodologia do estudo; iii) as principais considerações/resultados e pergunta da pesquisa e iv) um campo para que se justifique caso o estudo seja excluído da amostra final. Após a análise, o revisor deu seu parecer de “selecionado” ou “não selecionado” para cada artigo, seguindo o critério de relevância do estudo para a amostra. Nessa etapa foram excluídos 47 artigos, por não contemplarem o tema deste estudo.

O universo final desta revisão foi composto então, por 34 artigos e para analisar os dados extraídos destes, foi utilizada a técnica de Análise de Conteúdo. Esse procedimento organiza-se em três fases, segundo Bardin (2011): I) Pré-Análise: É a organização de todos os materiais utilizados na coleta dos dados (correspondente a organização e leitura dos artigos no protocolo). II) Exploração do Material: que consiste nas operações de codificação em função das regras que já foram previamente formuladas (após a leitura no protocolo, criou-se as categorias). III) Tratamento dos resultados: É a fase de análise propriamente dita, onde os resultados brutos serão tratados de maneira a serem significativos.

RESULTADOS

Apresentaremos os 34 artigos analisados nessa revisão no quadro 1.

Quadro 1: Artigos analisados na revisão

ARTIGOAUTORESREVISTA/ANO
Concepções de Profissionais de Saúde sobre as Atribuições de um Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil.Belotti, M. et al.Psicologia: Teoria e pesquisa/2018
A perspectiva da desinstitucionalização: chaves de leitura para compreensão de uma política nacional de saúde mental alinhada à reforma psiquiátrica.Braga, C. P.Saúde Sociedade/2019
Articulação da rede de atenção psicossocial para o cuidado às crises  Andrade, K., Zeferino, M. T., Fialho, M. B.Psicologia Em Estudo/2016
O desvelar de violações dos direitos humanos em serviços residenciais terapêuticos.Bressan, V. R.; Marcolan, J. F.Psicologia em Estudo/2016
A política brasileira sobre drogas e a rede de atenção psicossocial.Bulla, L. C.; Santos, C. B.Textos & Contextos/2021
Retrocesso da Reforma Psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019.Cruz, N. F. O.; Gonçalves, R. W.; Delgado, P. G.G.Trabalho, Educação e Saúde/2020
Residência integrada em saúde mental: cuidado à rede de atenção psicossocial. Evangelista, A. L. de P. et al.Revista Brasileira Em Promoção Da Saúde/2018
Índice de Cobertura Assistencial da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) como ferramenta de análise crítica da reforma psiquiátrica brasileira.Fernande, C. J. et al.Cadernos de saúde pública,/2020
Conhecimento de gestores sobre a Política Nacional de Saúde Mental.Fernandes, R. L. et.al.Revista Bras, de Enfermagem/2018
Os profissionais da Atenção Primária à Saúde diante das demandas de Saúde Mental: perspectivas e desafios.Gama, C. A. P. et al.Interface (Botucatu)/2021
Concepções de residentes em saúde mental sobre o cuidado ofertado em rede de atenção psicossocial.Leite, M. D.; Barros, M. M.Rev. Interinst. Bras. Ter. Ocup./2018
Política de saúde mental brasileira: uma análise a partir do pensamento de Franco Basaglia.Kantorski, L. P. et al.J. nurs. Health,/2021
Desinstitucionalizar o cuidado e institucionalizar parcerias: desafios dos profissionais de Educação Física dos CAPS de Goiânia em intervenções no território.Furtado, R. P. et. al.Saúde e Sociedade/2017
A Rede de Atenção Psicossocial sob o olhar da complexidade: quem cuida da saúde mental?Lima, D. K. R. R.; Guimarães, J.SAÚDE DEBATE/2019
Educação interprofissional e educação permanente em saúde como estratégia para a construção de cuidado integral na Rede de Atenção Psicossocial.Sousa, F. M. S. et al.Physis: Revista de Saúde Coletiva/2020
(Re)Visitando a reforma psiquiátrica brasileira: perspectivas num cenário de retrocessos.Silva, T. A. et al.Av Enferm/2020
Rede de atenção psicossocial: adequação dos papéis e funções desempenhados pelos profissionais.Santos R. C. A.; Junior, J. M. P., Miranda, F. A.Rev Gaúcha Enferm/2018
Reabilitação psicossocial e inclusão social de pessoas com problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas: impasses e desafios.Sanches, L. R.; Vecchia, M. D.Interface (Botucatu)/2020
Entre o enclausuramento e a desinstitucionalização: a trajetória da saúde mental no Brasil.Sampaio, M. L.; Júnior, J. P. B.Trabalho, Educação e Saúde/2021
Aspectos que dificultam o tratamento do adolescente usuário de crack na rede de atenção psicossocial.Ribeiro, J.P. et al.J. nurs. Health/2019
Saúde mental de adolescentes internados no sistema socioeducativo: relação entre as equipes das unidades e a rede de saúde mental.Ribeiro, D. S.; Ribeiro, F. M. L.; Deslandes, S. F.Cadernos de saúde pública/2018
A construção de políticas públicas de saúde mental com foco no trabalhador rural.Pezzini, C, F.; França, R.N.C.SMAD, Rev Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog./2021
Experiências de adolescentes em uso de crack e seus familiares com a atenção psicossocial e institucionalização.Paula, M. L. et alCiência e Saúde Coletiva/2017
As Oficinas Terapêuticas e a Lógica do Cuidado Psicossocial: Concepções dos(as) Coordenadores(as).Oliveira, A. L. de M.; Peres, R.Psicologia: Ciência e Profissão/2021
Articulação das políticas públicas de saúde mental e economia solidária – Iniciativas de geração de trabalho e renda.Oliveira, F.B. et. al.Holos/2018
Reforma e contrarreforma psiquiátrica: análise de uma crise sociopolítica e sanitária a nível nacional e regional.Nunes, M. de O. et alCiência e saúde coletiva/2019
Desafios para o cuidado em saúde mental em contextos rurais.Neto, M. C.; Dimesten, M.Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia/2021
Das proposições da política às práticas dos serviços: há novidades nos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas?Machado, A. R.; Modena, C. M.; Luz, Z. M. P.Physis: Revista de Saúde Coletiva/2020
Articulação da Rede de Atenção Psicossocial e continuidade do cuidado em território: problematizando possíveis relações.Lima, D. K. R. R.; Guimarães, J.Physis: Revista de Saúde Coletiva/2019
Consumo de drogas por pessoas com diagnósticos psiquiátricos: percursos possíveis em uma rede de atenção psicossocial.Vieira, F. de S. et al.Physis Revista de Saúde Coletiva/2017
Atenção básica e cuidado colaborativo na atenção psicossocial de crianças e adolescentes: facilitadores e barreiras.  Teixeira, M. R.; Couto, M. C. V.; Delgado, P. G. G.Ciência & Saúde Coletiva/2017
Dispositivos e conexões da rede de atenção psicossocial (RAPS) de Porto Alegre – RS.   Zanardo, G. L. de P.; Bianchessi, D. L. C. & Rocha, K. B.Estudos Interdisciplinares em Psicologia/2018
Internações e reinternações psiquiátricas em um hospital geral de Porto Alegre: características sociodemográficas, clínicas e do uso da Rede de Atenção Psicossocial.ZanardoI, G. L. de P. et al.Rev bras epidemiol/2017
O cuidado a Pessoas em Situação de Rua pela Rede de Atenção Psicossocial da Sé.Wijk, L. B. V.; Mângia, E. F.Saúde Debate/2017
Fonte: elaborado pelos autores a partir da revisão da literatura, 2022

A partir de agora, expressaremos as categorias resultantes da AC, como resultados da revisão.

Desafios na atuação na RAPS

Na realidade brasileira observamos inúmeros desafios a serem enfrentados no âmbito da SM. A literatura cita a questão da infraestrutura dos serviços, os quais muitos não possuem estrutura física própria, sendo a maioria adaptados em casas alugadas, sem privacidade e condições físicas para atender adequadamente os usuários e seus familiares (SANTOS, JUNIOR, MIRANDA, 2018; WIJK, MÂNGIA, 2017). Com relação às equipes, observa-se a grande rotatividade de profissionais na RAPS, que pode sugerir preconceito de profissionais pela área da SM, bem como poucos investimentos deem políticas públicas e o despreparo, e a precarização dos vínculos profissionais e os baixos salários (SANCHES, VECCHIA, 2020; LIMA, GUIMARÃES, 2019).

Ainda se faz necessário superar práticas manicomiais nos serviços substitutivos (LEITE, BARROS, 2018; FURTADO et. al., 2017). Essa questão pode apontar para a necessidade constante de formação continuada dos profissionais da RAPS através de estratégias de educação permanente em saúde (EPS) (SANTOS, JUNIOR, MIRANDA, 2018; SOUSA et al., 2020; GAMA et al., 2021; EVANGELISTA et al., 2018; BRESSAN, MARCOLAN, 2016).

Ainda é sugerido que uma das principais dificuldades de atuação na RAPS é a articulação entre serviços na rede (GAMA et. al., 2021) pois há uma centralização do CAPS como organizador do cuidado em SM em território (LIMA, GUIMARÃES, 2019). Na pesquisa de Fernandes et.al. (2018), os gestores entrevistados limitaram suas respostas sobre a RAPS a atuação do CAPS, desconsiderando outras iniciativas da rede. Isso retira da atenção básica o protagonismo nesse processo (LIMA, GUIMARÃES, 2019; RIBEIRO, RIBEIRO, DESLANDES, 2018; TEIXEIRA, COUTO, DELGADO, 2017). Isso retira da atenção básica o protagonismo nesse processo. Outro ponto se volta a ausência de mecanismos de monitoramento e avaliação da RAPS (LIMA, GUIMARÃES, 2019; RIBEIRO, RIBEIRO, DESLANDES, 2018; TEIXEIRA, COUTO, DELGADO, 2017). A discrepância entre concepções de cuidado que norteiam os serviços (algumas baseadas no modelo psicossocial e outras no modelo psiquiátrico clássico) e os encaminhamentos indiscriminados e não compartilhados também prejudicam a construção do trabalho intersetorial (WIJK, MÂNGIA, 2017; BELOTTI et al., 2018; ANDRADE, ZEFERINO, FIALHO, 2016).

É sugerido que a falta de articulação da rede de serviços substitutivos faz com que o hospital psiquiátrico ainda seja a principal referência de atendimento em SM na percepção populacional e essa questão influencia no fenômeno chamado “porta giratória”, que corresponde as reinternações psiquiátricas frequentes (ZANARDO, BIANCHESSI, ROCHA, 2018). No estudo de Zanardo et al. (2017) foi encontrada uma ocorrência de 36,5% de reinternações frequentes, onde ela muitas vezes era utilizada como porta de entrada para o cuidado em SM. Isso estava relacionado a cultura da hospitalização como o tratamento “resolutivo” para os transtornos mentais, pois usuários e familiares traziam um discurso em que essa estratégia seria a melhor forma de tratamento, mas também pode apontar para o desconhecimento sobre os demais serviços da rede.

É levantada a problemática da dificuldade de alcance da RAPS as populações rurais, já que historicamente a zona rural tem pouca atuação governamental, principalmente no que se refere à promoção da saúde e assistência social. Essa carência é anunciada em todos os níveis da federação, com grande negligência ao campo da SM a nível nacional (PEZZINI, FRANÇA, 2021). Os desafios a produção de cuidado em SM nesse contexto envolvem a organização de redes territorializadas e passa pela superação de modelos tradicionais de gestão e de práticas profissionais manicomiais, chegando até dificuldades em se ter uma compreensão ampliada acerca do cuidado psicossocial a partir da perspectiva da determinação social da SM (NETO, DIMESTEN, 2021).

Em relação aos desafios na atuação na RAPS diante de pessoas como necessidades advindas do uso de álcool e outras drogas, na pesquisa de Machado, Modena e Luz (2020) entre os CAPS-Ad pesquisados, foram encontrados práticas desistitucionalizantes e redução de danos, mas também foram encontradas práticas que desconsideram a cidadania e a subjetividade das pessoas que usam drogas, privilegiando os saberes e fazeres biomédicos e adotam lógicas disciplinares e punitivas. Estas aproximações e diferenças permitem compreender as práticas de atenção dos Caps-Ad como produções sociais, que apresentam singularidades que as políticas de atenção podem favorecer, mas não assegurar.

É sugerido que a rede tem dificuldades em alcançar os familiares das pessoas atendidas por essa questão, pois problemas relacionados ao uso de substâncias acabam sendo encarados como um problema individual e julgados a partir de perspectivas morais, contribuindo para o estigma (SANCHES, VECCHIA, 2020; RIBEIRO et al., 2019). Outro ponto dentro dessa demanda é que a geração de trabalho e renda por meio de oficinas específicas aparece como uma atividade ainda incipiente na RAPS (OLIVEIRA, PERES, 2021) ou quando a atividade existe, ela não é levada em conta pela maioria das participantes (FERNANDES et al., 2018). De acordo com Oliveira et al. (2018), o trabalho e a geração de renda no âmbito da SM é um importante dispositivo de reabilitação psicossocial, de emancipação e o número de empreendimentos solidários para geração de renda passou de 151 em 2005 para 1008 em 2013 (ano do último levantamento pelo Ministério da Saúde/Coordenação Nacional de Saúde Mental).

É relatado ainda que a combinação entre o consumo de drogas e transtornos psiquiátricos é percebida na RAPS de maneira cada vez mais frequente. Apesar disso, historicamente, as políticas públicas em SM dividem as ofertas de tratamentos em dois tipos de serviços: aqueles que atendem pessoas com diagnósticos de transtornos mentais e aqueles que oferecem tratamento para problemas com o consumo de drogas. Essa divisão pode prejudicar o atendimento integral dos sujeitos, na medida em que os serviços podem não se responsabilizar pelos acompanhamentos, tornando os encaminhamentos constantes (VIEIRA, MINELLI, CORRADI-WEBSTER, 2017).

Em relação a crianças e adolescentes com necessidades decorrentes do uso de substâncias, mesmo com a implementação da RAPS, o tratamento ainda segue por meio de práticas de controle e punição, tendo a abstinência como única finalidade, onde observamos a preservação de práticas da psiquiatria clássica e morais-religiosas baseadas no tratamento moral e disciplinar, com privação de liberdade sustentadas muitas vezes pela família que acreditam que os serviços substitutivos não são eficazes (PAULA et al., 2017).

Mudanças na política de saúde mental

Os retrocessos na RP remontam a crise política do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff. Em dezembro de 2015, é nomeado para a coordenação geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas um histórico defensor do modelo manicomial, sujeito que foi diretor do maior asilo manicomial da América Latina na ditadura militar. A mudança na gestão da SM foi decorrente da nomeação de um parlamentar do hoje chamado MDB (Movimento Democrático Brasileiro) para o MS, no contexto de rearranjo da base de apoio para enfrentar a crise política. A partir de 2016, com o impeachment da presidente e a ocupação de grupos conservadores no governo federal, foram publicados em torno de 14 documentos oficiais que evidenciam os retrocessos na RP brasileira (CRUZ, GONÇALVES, DELGADO, 2020) e no âmbito econômico, a medida de principal impacto foi a aprovação da emenda constitucional 95/2016, que estabeleceu o teto de gastos por até vinte anos.

Em 2017, entrou em vigor a resolução n. 32 e a portaria n. 3.588, ambas do MS, que representam a desestruturação da lógica organizativa da RAPS. Dentre as principais alterações, vale destacar a recriação dos hospitais-dia e dos ambulatórios, o incentivo às comunidades terapêuticas, a inserção do hospital psiquiátrico na RAPS (mesmo com EC 95, tal portaria aumentou o valor da diária de internações em hospitais psiquiátricos em mais de 60%), o aumento das enfermarias de leitos de SM em hospital geral e dessa maneira, a desinstitucionalização passou a não ser mais sinônimo de fechamento de leitos e de hospitais psiquiátricos (SAMPAIO, JÚNIOR, 2021; NUNES et al., 2019). Dentre as principais alterações, vale destacar a recriação dos hospitais-dia e dos ambulatórios, o incentivo às comunidades terapêuticas, a inserção do hospital psiquiátrico na RAPS (mesmo com EC 95, tal portaria aumentou o valor da diária de internações em hospitais psiquiátricos em mais de 60%) e possibilita o aumento das enfermarias de leitos de SM em hospital geral e dessa maneira, a desinstitucionalização passou a não ser mais sinônimo de fechamento de leitos e de hospitais psiquiátricos (SAMPAIO, JÚNIOR, 2021; NUNES et al., 2019).

A portaria 3.588/2017, institui o CAPS-Ad IV, que desvirtua a lógica de cuidado dos demais CAPS ao se apresentar como um serviço capaz de prestar “assistência a urgências e emergências”, em detrimento da atenção à crise pautada no vínculo terapêutico, como até então. Apresenta a característica estrutural de um pequeno hospital psiquiátrico, uma vez que tem “enfermarias” (e não “acolhimento noturno”, como o CAPS III) de até 30 leitos. Em 2018, a portaria MS n. 2.434 aumentou o financiamento das internações psiquiátricas de mais de 90 dias, mesmo havendo um consenso de que internações tão longas não têm função terapêutica (CRUZ, GONÇALVES, DELGADO, 2020; NUNES et al., 2019; BRAGA, 2019).

Ao meso tempo em que se aumentava o financiamento de recursos hospitalocêntricos, observou-se o contingenciamento de recursos da atenção de base territorial, onde a implementação anual de CAPS sofreu uma diminuição expressiva. Entre 2004 e 2015, o incremento de CAPS situava-se em média de 130 novos serviços anuais. Nos anos de 2017 e 2018 houve uma queda expressiva no ritmo de implantação, que se estagnou em 2018, com a implantação de apenas 30 serviços (SAMPAIO, JÚNIOR, 2021).

No ano de 2019, o governo Bolsonaro aprovou a “nova” Política Nacional de Drogas, por meio do Decreto 9.761. O texto dispõe sobre a adoção da abstinência total como diretriz, em substituição à redução de danos. Além disso, o decreto assumiu posição expressamente contrária à legalização das drogas e pauta abertamente o incentivo e expansão das comunidades terapêuticas por meio de incentivos financeiros, deixando claro o caminho da mercantilização da SM (BULLA, SANTOS, 2021). Esta política fere a laicidade do estado ao propor o reconhecimento da “espiritualidade”, aqui mencionada especificamente no contexto das comunidades terapêuticas religiosas (CRUZ, GONÇALVES, DELGADO, 2020).

Também em 2019 o governo federal lança a Nota Técnica no 11/2019, intitulada “Nova Saúde Mental”, que reordena a RAPS de substitutiva para a ideia de “rede complementar”, não fomentando mais fechamento de unidades de qualquer natureza. A nota defende a ampliação de leitos em hospitais psiquiátricos e de comunidades terapêuticas; o financiamento para a compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia a serem usados nos serviços hospitalares (ignorando os registros históricos de que essa terapia fora empregada enquanto instrumento de tortura e punição nas instituições manicomiais anteriormente à  RP) (KANTORSKI et al., 2021); e, também propõe a conversão de serviços de atendimento a demandas relacionadas a álcool e drogas em instituições que poderão praticar a internação de adolescentes como forma de tratamento de dependência química ( a nota técnica cita que “não há qualquer impedimento legal para a internação de pacientes menores de idade em Enfermarias Psiquiátricas de Hospitais Gerais ou de Hospitais Psiquiátricos) (FERNANDE et al., 2020). Pode-se citar, também, o incentivo destinado à criação de ambulatórios “especializados” para quadros menos graves em detrimento da cobertura dos serviços da Atenção Básica através do apoio matricial (SILVA et al., 2020)

Além disso, a Nota Técnica 11 oficializa a separação da, agora, “Política Nacional Sobre Drogas” da “Política Nacional de SM”. Esta separação entre as duas políticas pode inviabilizar os princípios que regem a atenção psicossocial, especialmente que o cuidado realizado em liberdade seja aplicado aos usuários de álcool e outras drogas. Em julho de 2019 a promulgação do decreto n. 9.926 reconfigurou a composição do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas. A nova reordenação retirou a participação da sociedade civil da composição desse conselho. Instituições como os Conselhos Federais de Psicologia, de Medicina, de Enfermagem e de Assistência Social e a Ordem dos Advogados do Brasil, dentre outras, perderam representação nesse fórum (SAMPAIO, JÚNIOR, 2021).

A atual política nacional de saúde mental não reinstaura necessariamente o modelo manicomial, que preconizava o isolamento de longa duração das pessoas com transtornos mentais, entretanto, não abole seu retorno de todo. A nova configuração congrega o supostamente mais avançado dos tratamentos neurobiológicos com o mais arcaico tratamento moral e segregador, atualmente destinado, de forma mais contundente, aos usuários de drogas. Satisfazem-se, de um lado, a indústria farmacêutica, com o fortalecimento dos ambulatórios especializados em patologias e, de outro, as comunidades religiosas neopentecostais, grandes beneficiárias o financiamento público das comunidades terapêuticas (BULLA, SANTOS, 2021). Em 2019, o valor de financiamento das comunidades terapêuticas subiu para 153.7 milhões de reais e o governo ampliou para 496 as instituições credenciadas. Por outro lado, em 2017, foram registrados apenas 406 CAPS-Ad (NUNES et al., 2019).

DISCUSSÃO

As duas categorias expressas nessa revisão expressam uma RP como um processo histórico ainda em andamento e que sofre vários riscos. A primeira categoria, sobre os desafios de atuação na RAPS sugerem que a atuação profissional ainda enfrenta desafios que vão desde uma formação inicial que pode apontar para práticas manicomiais nos sistemas substitutos até estigmas que dificultam a atuação profissional para a garantia dos direitos da pessoa em sofrimento psíquico e fere a Lei 10.2016/2001, que assegura um tratamento humano e livre de preconceitos a usuários da RAPS.

Nesse sentido, a EC 95/2016 prejudica estruturalmente o bom funcionamento da RAPS, já que estrangula os serviços ao limitar os recursos destinados a política de SM. Isso tem impacto estrutural na RAPS, já que precariza todo um sistema, que vai desde a implementação de serviços de atendimento em lugares distantes dos centros urbanos, como a áreas rurais até a rotatividade dos profissionais atuantes nesse setor e o cenário de mão de obra da SM acaba sendo agravado ainda pela Reforma Trabalhista de 2017, que precariza os vínculos profissionais.

Um olhar atento na revisão nos permitiu a percepção de que a atenção básica enfrenta desafios na organização do cuidado em SM. Foi possível perceber que a RAPS pode ser reduzida a atuação do CAPS, e isso pode culminar numa inversão dos papéis de cuidado na rede. De acordo com a Política Nacional de Atenção Básica (BRASIL, 2017) a AB é responsável pela organização do cuidado integral no território e atua de maneira o mais descentralizada o possível, sendo responsável pela resolutividade de mais de 80% das demandas em saúde da população. Em relação a SM, a AB possui o chamado Apoio Matricial, que corresponde a um auxílio de profissionais especializados aos integrantes da Estratégia de Saúde da Família (ESF). O apoio matricial é realizado principalmente pelo Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF) e tem como principal objetivo potencializar o atendimento em SM para evitar encaminhamentos desnecessários. Ou seja, a centralidade do cuidado em SM no CAPS, fere o princípio do matriciamento. Será que demandas que chegam ao CAPS poderiam ser resolvidas diretamente na AB?

Mas é preciso entender que a percepção de centralidade do CAPS no cuidado em SM é vista principalmente em profissionais atuantes na área. Na percepção populacional, foi sugerida a centralidade da intervenção medicamentosa e da internação como cuidados mais efetivos. Esse ponto pode sugerir que ainda há muito a trabalhar para mudar os significados do sofrimento psíquico na sociedade. A RP tem como um de seus eixos o trabalho cultural para mudar a relação que a sociedade tem com a loucura, mas entraves no financiamento para projetos culturais no atual governo dificultam o trabalho nesse eixo.

Pode-se dizer que houve uma mudança no direcionamento das políticas públicas no Brasil a partir do golpe contra a democracia de 2016. O Estado saiu de uma proposta de bem-estar social para uma proposta neoliberal conservadora. O conservadorismo tem seu fundamento no pensamento de Edmund Burke e parte da lógica de não distribuição de direitos a todos. Essa postura também é comumente ligada à aderência a ideologia do mercado, envolvendo desde a defesa da mercantilização da vida até a agenda de combate aos avanços dos direitos humanos (SOUZA, 2016). O conservadorismo encontra sua execução nas políticas neoliberais. O neoliberalismo diz respeito a uma ideologia política onde o Estado vai se eximindo da responsabilidade de garantir os direitos da população (CAMPOS, 2017).

Nesse sentido, a partir de 2016, a lógica de mercantilização da SM foi retomada. Diversos documentos oficiais demonstraram uma mudança ideológica na maneira de se tratar a SM no país. Essa mudança foi aprofundada na gestão Jair Bolsonaro. A lógica de substituição de serviços manicomiais foi trocada pela lógica de “complementação de serviços”. Apesar de a lei 10.2016/2001 não determinar expressamente o fechamento de hospitais psiquiátricos, a lógica de atendimento a partir dessa lei se deu com o oferecimento de serviços comunitários e a internação só é indicada quando os recursos comunitários se mostrarem insuficientes. A lógica da Nota Técnica MS 11/2019 afronta a Lei da RP ao trazer a internação não como uma exceção, mas como um recurso corriqueiro.

De fato, a RP é uma luta constante e há interesses tanto mercadológicos quanto político-ideológicos nessa questão. Observemos: o aumento do financiamento público para recursos manicomiais beneficia principalmente a iniciativa privada, resgatando o modelo de assistência em SM da época da ditadura militar, em que o governo custeava leitos em hospitais psiquiátricos, mas beneficia também a indústria farmacêutica, no fornecimento de medicamentos. Mas um outro ponto é que, na gestão Bolsonaro, o financiamento de comunidades terapêuticas aumentou exponencialmente. Sabe-se que uma das principais bases de apoio do governo federal são as comunidades cristãs e que a pauta do uso de substâncias é uma pauta de interesse dessa classe, desse modo, a mudança no direcionamento da política de drogas da redução de danos para a abstinência total e o financiamento de comunidades terapêuticas religiosas estaria ligado com o interesse de agradar e engajar essa base de apoio para fins de capitalização eleitoreira?

Assim, observamos que a combinação entre o conservadorismo e o neoliberalismo, aliado a ideologias manicomiais tem culminado em retrocessos históricos na RP brasileira, ferindo diversos princípios constitucionais.

CONCLUSÃO

O objetivo deste estudo foi analisar a literatura sobre a saúde mental e a atenção psicossocial no Brasil, identificando os desafios na atuação na RAPS e as mudanças na política de SM. Encontramos 34 artigos que expressaram que as dificuldades de atuação na RAPS envolvem a presença de saberes e fazeres manicomiais nos serviços substitutivos, aliado a dificuldade de articulação do CAPS com os outros serviços da rede, principalmente com a atenção básica. A formação continuada apareceu como uma necessidade constante e como uma possibilidade de superação de fazeres tradicionais, mas depende de investimentos governamentais.

As mudanças na política se SM afrontam a Lei da RP e apontam para um retorno de práticas as quais a RAPS foi criada para superar. A postura neoliberal e conservadora da atual gestão federal fragiliza a produção de conhecimento emancipatório sobre a loucura e, portanto, fere o eixo assistencial, tornando aceitável práticas que reforçam o estigma sobre a loucura e dificulta o resgate da cidadania da pessoa em sofrimento psíquico. O eixo político-jurídico da RP tem seguido a ideologia conservadora que joga a loucura novamente ao enclausuramento, reforçando a distância entre a sociedade e a pessoa com transtorno mental ou que tem necessidades advindas do uso de crack, álcool e outras drogas.

As limitações deste estudo envolvem a questão de que não foram observadas estratégias de resistência aos retrocessos na política de SM e diante disso, deixamos esse tema como sugestão para pesquisa futuras. Ademais, a RP é um movimento vivo ainda em construção, que demanda o comprometimento de diversos atores para a sua efetivação, principalmente diante do cenário de desmonte do atual governo.

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1 Acadêmica de Psicologia da Faculdade Fametro.
2 Acadêmica de Psicologia da Faculdade Fametro.
3 Doutor em Psicologia Social e Cultura pela Universidade Federal de Santa Catarina.