RUPTURA DE VESÍCULA BILIAR ASSOCIADO A LACERAÇÃO HEPÁTICA SECUNDÁRIA A TRAUMA ABDOMINAL FECHADO EM CRIANÇA: RELATO DE CASO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10122734


Danilo José Fiorindo Faria1;
Mario Furhmann Neto1;
Claudio Luiz Pelarigo1;
Juliana Nosenzo de Barros1;
Nadine Gomes de Souza2.


Introdução

O trauma no paciente pediátrico é uma importante causa de internação e óbito na população pediátrica[1]. A grande maioria dos traumas pediátricos, cerca de 80%, são contusos, principalmente relacionadas à veículos motorizados, bicicletas e outros traumas contusos diretos[1]. Nesse tipo de trauma, encontra-se com maior frequência lesões de vísceras maciças, como lesões esplênicas, hepáticas isoladas, traumas pancreáticos, renais e menos frequentemente lesões de vísceras ocas, como duodenais ou intestinais[1,2,3]. Revisando a literatura médica, há poucos relatos sobre trauma de vesícula biliar[3].  A ruptura de vesícula biliar em trauma fechado é um achado raro, ocorrendo em menos de 2% dos traumas abdominais fechados[4,5,6]. Devido à raridade do caso, podemos observar que são diagnosticados de maneira tardia, tendo como quadro clinico mais descrito como dor abdominal, com irritação peritoneal insidiosa e tardia, náuseas, vômitos e icterícia[5,7,8]. A tomografia (TC) de abdome auxilia muito o diagnóstico precoce, sendo possível suspeitar a partir do achado de líquido livre perivesicular e vesícula biliar murcha ou vazia[9,10]. Em decorrência da raridade e demais fatores citados acima relatamos um caso de ruptura de vesícula biliar secundária a trauma abdominal fechado em criança de 7 anos.

Relato de Caso 

D. C. D. S., 7 anos, foi trazido a um hospital da zona leste de São Paulo, devido a trauma abdominal fechado secundária a queda de bicicleta e trauma direto do guidom em região epigástrica e hipocôndrio direito (HCD). Na chegada, paciente apresentava náuseas e vômitos, alem de dor no local. Ao exame físico, apresentava dor abdominal à palpação de HCD, além de eritema circular no local, sugestivo de “marca de guidom”. Os exames laboratoriais mostraram ausência de alterações de enzimas hepáticas, pancreáticas e canaliculares, hematimetria dentro da normalidade, porém com leucocitose, sem desvio.  Exames radiológicos foram solicitados. O ultrassom (US) evidenciava sinais ecográficos sugestivos de contusão / laceração hepática, associada a líquido livre em moderada quantidade no abdome e vesícula biliar vazia de avaliação limitada. A TC de abdome inicial apresentava laceração hepática de aproximadamente 8 cm, em segmento V/VI, além de vesícula biliar de paredes irregulares, vazia ao método e mínima quantidade de líquido livre abdominal. Em decorrência do diagnóstico inicial de trauma hepático e estabilidade hemodinâmica, baseado em literatura[11], optado inicialmente por tratamento conservador, não cirúrgico, com controle analgésico, controle de sinais vitais e parâmetros laboratoriais e radiológicos, em unidade de terapia intensiva (UTI). Paciente evoluiu com manutenção do quadro de dor em HCD e flanco direito, associado a hiporexia, mantendo estabilidade nos controles hematimetricos, sendo realizado 5 dias apos o acidente TC de controle com manutenção de laceração hepática, manutenção de vesícula biliar de paredes irregulares e aumento da quantidade de liquido livre abdominal comparativamente ao primeiro exame. Em virtude do quadro abdominal, do tipo e persistência da dor, não condizente com evolução favorável da hipótese inicial de laceração hepática, optado por videolaparoscopia (VLP) diagnóstica, com hipóteses de lesão de via biliar, lesão de vesícula biliar ou irritação peritoneal por sangue, associado ou não a bile, secundário a lesão hepatobiliar. No inventário da cavidade, observado 600ml de bile na cavidade abdominal, lesão hepática em segmento IV e V, sem sangramento ativo, ruptura de vesícula biliar em região de corpo com extravasamento de bile, não evidenciado saída de bile por parênquima hepático. Vias biliares sem alterações visíveis. Realizado Colecistectomia VLP sem intercorrências. Optado em não realizar exploração radiológica das vias biliares em decorrência da ausência de achados intra-operatórios sugestivos de lesão de via biliar, e optado por realização de colangiorressonância no pós operatório. Paciente evoluiu com melhora importante da dor, aceitação da dieta sem restrições e estabilidade de exames laboratoriais,  com alta hospitalar 2 dias após a cirurgia. Foi realizada colangiorressonância, não havendo qualquer alteração nas vias biliares intra ou extra hepáticas.

Imagem 1- Evidência de equimose em HCD causada pelo guidon.

Imagem 2 – TC ‘de entrada com laceração hepática e vesícula biliar de paredes irregulares.

Imagem 3 – TC de controle com laceração hepática, vesícula de paredes irregulares e liquido livre.

Imagem 4 – Videolaparoscopia evidenciando liquido livre de aspecto bilioso

 Imagem 5 – Videolaparoscopia evidenciando laceração hepática e ruptura da vesícula.

Discussão

A ruptura de vesícula biliar em trauma abdominal fechado é um evento raro devido à localização anatômica da vesícula biliar e sua proteção pelo fígado, gradil costal, omento e intestino[4,5,6].  A causa mais comum é devido a colisão de automóvel[2]. Na população pediátrica, alguns fatores que podem predispor ao trauma são vesículas saudáveis e de pacientes em jejum devido à distensão vesicular pelo jejum e ausência de inflamação crônica ou fibrose[7,12].

Existem poucos relatos de ruptura de vesícula biliar em crianças, sendo mais descritas em adultos[7]. Comumente está associada a outros traumas abdominais, em ordem de prevalência, fígado, como nosso paciente, intestino delgado, baço, rim e pâncreas[5].

O fígado é um dos órgãos mais frequentemente lesados em traumas abdominais[1]. As lesões traumáticas do fígado são classificadas em graus de 1 a 6, de acordo com Associação Americana de Cirurgia do Trauma (AAST), compreendendo desde lesões superficiais e hematomas pequenos até avulsão completa do órgão, conforme tabela 1. Baseada na evolução clínica favorável da maioria dos pacientes com trauma hepático, existem critérios estabelecidos para o tratamento não operatório sendo eles estabilidade hemodinâmica, imagem inicial para classificação da lesão, ausência de lesões intra e retroperitoneais e observação em local adequado com equipe especialista disponível[11]. Durante o tratamento não operatório, no caso de complicações como icterícia, febre, dor abdominal progressiva, queda de hemoglobina e instabilidade, são indicados novos exames de imagem de controle e reavaliação do caso e da indicação cirúrgica[11].

O diagnóstico da lesão da vesícula biliar costuma ser difícil, visto que a clínica é pouco especifica, com aparecimento de sintomas de maneira tardia[4,5]. Alguns dos sintomas citados na literatura são dor abdominal em hipocôndrio direito ou epigástrica, raramente acompanhado de sinais de peritonite, náuseas e icterícia, além de sinais de comprometimento sistêmico em casos mais graves como febre, hipotensão e taquicardia[13,14]. Para diagnóstico da lesão, a tomografia é utilizada como melhor exame diagnostico. São achados presentes na imagem: liquido perivesicular; contorno mal definido da parede vesicular; hemorragia intraluminal; efeito de massa no duodeno e mais raramente colapso da vesícula[9,10]. Além disso, pode-se usar o ultrassom, ressonância, cintilografia com isótopos biliares, videolaparoscopia e colangiopancreatografia endoscópica retrograda[5].

A perfuração da vesícula é classificada em quatro subtipos segundo Neimeier e Anderson et al, conforme a tabela 2, sendo o tipo 1, uma lesão aguda, associada a perfuração livre da vesícula como a descrição do caso deste relato. O tratamento para esse tipo de lesão é cirúrgico, sendo a colecistectomia de escolha devido ao risco da efusão continua de bile para a cavidade abdominal[6,12]. Existe bom prognóstico para o quadro, sem relatos na literatura de óbitos após tratamento cirúrgico do quadro[4]. Apesar da mortalidade relacionada a lesão da vesícula biliar ser baixa, quando associada a lesões dos ductos biliares, sobe-se a taxa para cerca de 24%, sendo de extrema importância a identificação dessa lesão e exclusão de lesão nos ductos tanto intra-hepáticos quanto extra-hepáticos[7]. 

Tabela 1 – Classificação Lesão Hepática (AAST)

GrauLesãoCaracterísticas à TC
IHematomaLaceraçãoSubcapsular < 10% da área de superfícieRuptura Capsular < 1 cm de profundidade no parênquima
IIHematoma
Laceração
Subcapsular 10 a 50% da área de superfície; Intraparenquimatoso < 10 cm de diâmetro1 a 3 cm de profundidade no parênquima; < 10cm de extensão
IIIHematoma

Laceração
Subcapsular > 50% da área de superfície ou em expansão; Ruptura subcapsular ou hematoma pareqnuimatoso; Intraparenquimatoso > 10 cm de diâmetro ou em expansão> 3 cm de profundidade no parênquima
IVLaceraçãoDilaceração do parênquima envolvendo 25 – 75% do lobo hepático ou 1 – 3 seguimentos de Coinaud no mesmo lobo
VLaceração
Vascular
Dilaceração do parênquima envolvendo > 75% do lobo hepático ou > 3 seguimentos de Coinaud no mesmo loboLesões de Vv Justahepáticas ou Vv hepáticas ou V Cava retrohepática
VIVascularAvulsão Hepática

Tabela 2 – Tipos de Perfuração de Vesícula Biliar (Niemeier modifcada por Anderson et al)

TipoInícioDescrição
1AgudoPerfuração aguda livre
2SubagudoAbscesso pericolecístico subagudo
3CrônicoFístula Colecistoentérica crônica
4CrônicoFístula Colecistobiliar

Referências Bibliográficas:

1.Pereira Jr GA, Andreghetto AC, Basile-Filho A, Andrade, JI. Trauma no paciente pediátrico. Medicina (Ribeirão Preto). 1999;32(3):262-281.

2.Saladino RA, Conti K, Woodward GA, Kim WG. Pediatric blunt abdominal trauma: Initial evaluation and stabilization. UpToDate. 2018.

3.Sparnon A, Ford WDA. Bicicle handlebar injuries in children. J Pediatr Surg. 1986;21:118-119.

4.Ndour O, Moustapha H, Ndoye NA, NGom G. Isolated gallbladder perforation after blunt abdominal trauma in children. African Journal of Paediatric Surgery. 2013;10:41-2.

5.Le MTP, Herrmann J, Groth M, Reinshagen K, Boettcher M. Traumatic Gallbladder Perforation in Children – Case Report and Review. Rofo. 2021 Aug;193(8):889-897.

6.Jackson WL, Bonasso PC, Maxson, RT. Pediatric traumatic gallbladder rupture. Journal of Surgical Case Reports. 2016;12.

7.Kwan BYM, Planting P, Ross I. Isolated traumatic rupture of the gallbladder. Radiol Case Rep. 2015;10:1029. 

8.Burtt K, Villegas A, Athas V, Davis B, Lozada J. Gallbladder perforation in blunt traumatic injury. 2022; 172(3):29-30.

9.Wittenberg A, Minotti AJ. CT diagnosis of traumatic gallbladder injury. AJR2005;185:1573–1574.

10.Erb RE, Mirvis SE, Shanmuganathan K. Gallbladder injury secondary to blunt trauma: CT findings. J Comput Assist Tomogr. 1994 Sep-Oct;18(5):778-84

11. Stassen NA, Bhullar I, Cheng JD, Crandall M, Friese R, Guillamondegui O, Jawa R, Maung A, Rohs TJ, Sangosanya A, Schuster K, Seamon M, Tchorz KM, Zarzuar BL, Kerwin A. Nonoperative management of blunt hepatic injury: an Eastern Association for the Surgery of Trauma practice management guideline. J Trauma Acute Care Surg. 2012 Nov;73(5 Suppl 4):S288-93

12. Epstein MG, Silva DL, Elias NC, Sica GT, Fávaro MDL, Ribeiro Jr MA. Isolated rupture of the gallbladder following blunt abdominal trauma: case report. Einstein (São Paulo). 2013 Apr-Jun;11(2):227-228.

13. Kohler R, Millin R, Bonner B, Louw A. Laparoscopic treatment of an isolated gallbladder rupture following blunt abdominal trauma in a schoolboy rugby player. British journal of sports medicine. 2002;36(5):378-379.

14. Wiener I, Watson LC, Wolma FJ. Perforation of the gallbladder due to blunt abdominal trauma. Archives of Surgery. 1982;117(6):805-807.


1Departamento de Cirurgia Pediátrica do Hospital e Maternidade São Cristóvão – São Paulo – SP – Brasil;
2Residente de Cirurgia Geral do Hospital e Maternidade São Cristóvão – São Paulo – SP – Brasil