ROMPENDO O SILÊNCIO SOBRE OS IMPACTOS NA SAÚDE MENTAL E AS ESTRATÉGIAS PARA ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER NO INTERIOR DA BAHIA: RELATO DE EXPERIÊNCIA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102502071350


Juliana Benevides Duarte de Souza1
Clarice Helena Viana Espínola2
Isabelle Katharine Gomes Ferreira3
Shirley Terezinha Cardoso Ferreira4
Tatiane Carvalho da Silva5
Wânia Jaguaracy de Sena Medrado6


RESUMO

A violência contra a mulher é um fenômeno complexo que afeta milhões de mulheres ao redor do mundo. Entretanto, discutir essa temática ainda se mostra um desafio na sociedade contemporânea, assim como as formas de enfrentamento. A violência é definida como qualquer ação ou conduta baseada no gênero que cause danos, morte, sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, independente da classe social em que convivam e está presente na realidade de muitas brasileiras. O principal objetivo é descrever um relato de experiência de uma mulher vítima de violência doméstica e as estratégias que ela usou para o enfretamento e superação da violência através da abordagem metodológica que se pautou num relato de experiência considerando não apenas a teoria, mas também quem o relata. Acredita-se que o relato de experiência relatado neste estudocontribui para que as vítimas de violência doméstica possam denunciar seus agressores bem como alertar a mulheres sobre os sinais sutis do início da violência além de emponderar e fortalecer mulheres para buscarem proteção e assistência através da lei,possibilitando assim, que outras mulheres compreendam a complexidade da violência e a urgência de uma abordagem multidisciplinar para seu enfrentamento.

Palavras-chave: Violência doméstica. Violência contra a mulher. Saúde mental. Lei Maria da Penha.

ABSTRACT

Violence against women is a complex phenomenon that affects millions of women around the world. However, discussing this topic still proves to be a challenge in contemporary society, as are the ways of coping. Violence is defined as any action or conduct based on gender that causes harm, death, physical, sexual or psychological suffering to women, regardless of the social class in which they live and is present in the reality of many Brazilian women. The main objective is to describe an experience report of a woman victim of domestic violence and the strategies she used to face and overcome violence through a methodological approach that was based on an experience report considering not only the theory, but also who the reports. It is believed that the experience reported in this study contributes to victims of domestic violence being able to report their aggressors as well as alerting women to the subtle signs of the onset of violence, as well as empowering and strengthening women to seek protection and assistance through the law. , thus enabling other women to understand the complexity of violence and the urgency of a multidisciplinary approach to combating it.

Keywords: Domestic violence. Violence against women. Mental health. Maria da Penha Law.

INTRODUÇÃO

Entende-se por violência contra a mulher é uma realidade presente na vida de muitas mulheres, independentemente de sua condição econômica, raça ou etnia e é definida como qualquer ação ou conduta baseada no gênero que cause danos, morte, sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher (Santos, 2017; Safioti, 2021).

A Lei nº 11.340/2006, mais conhecida como “Lei Maria da Penha”, no artigo 5º, define violência doméstica ou familiar contra a mulher como toda ação ou omissão, baseada no gênero, que cause morte, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral e patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer relação íntima de afeto, em que o agressor conviva ou tenha convivido com a agredida (BRASIL, 2006).

A violência doméstica contra a mulher no Brasil consiste em um grave problema de saúde pública, ocasionando à violação de direito humanos sendo um quadro bastante grave e com altas taxas de homicídios, abuso físico e/ou psicológico e que na maioria dos casos são exercidos por pessoas íntimas como maridos/companheiros (Lisboa e Pinheiro, 2005; Reichenheim et al., 2011). A edição 2023 do Relatório Atlas da Violência mostra que a taxa de homicídios femininos cresceu 0,3%, de 2020 para 2021 (Ipea, 2023). De acordo com os dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), a violência psicológica contra mulheres é a menos relatada, representando apenas 1,5% dos casos em todos os estados, enquanto a violência física lidera com uma cobertura nacional de 75,9% (Santos; Moura, 2024).

A violência doméstica promove prejuízos na vida dessas mulheres a curto e longo prazo, interferindo tanto no seu convívio familiar como no social, tornando-as mais vulnerável a violência em seus diversos aspectos (Nobre e Martins, 2020).

Diante do exposto, este artigo tem como objetivo principal descrever um relato de experiência de uma mulher vítima de violência doméstica e as estratégias que ela usou para o enfretamento e superação da violência, bem como chamar atenção da população para a importância da mulher agredida ser amparada Lei Maria da Penha e assistida pela Ronda Maria da Penha para que as mulheres em situação de violência doméstica perpetrada por seus parceiros, consigam superar a violência e romper o relacionamento denunciando seu agressor e desvelar a manifestação do processo de resiliência nas mulheres vítimas de violência doméstica.

METODOLOGIA

A abordagem metodológica deste trabalho se pautou num relato de experiência, um estudo descritivo, de abordagem qualitativa que se propõe a descrever precisamente uma experiência que venha contribuir de maneira pessoal e profissional, considerando não apenas a teoria, mas também quem o relata (Sanfelici e Figueiredo, 2014).

RELATO DE EXPERIÊNCIA

          Nos últimos anos, dentro dos estudos sobre violência, começaram a surgir pesquisas que analisam a vivência, os relatos e a experiência de mulheres afetadas pelas situações de violência doméstica, porém ainda é preciso apurar o “olhar” para as diversas dimensões da experiência da violência: o momento da agressão propriamente dito, as interações com o agressor, as emoções que emergem nos momentos subsequentes (Almeida, 2020). Frente à percepção da realidade supracitada resolvemos experienciar através de um relato da luta de uma mulher contra a violência e os caminhos que ela percorreu para superar.

“Este relato é sobre o que vivi durante anos regados de muito medo, vergonha, humilhação, dor; mas, sobretudo, sobre a força que aos poucos, fui descobrindo dentro de mim. Ao compartilhar esse relato espero ajudar outras mulheres que possam estar vivendo o mesmo a reconhecer os tipos de violência e como sair dessa situação.”

“Sempre achei que a violência contra a mulher fosse algo distante da minha realidade, primeiro porque não se ouvia falar muito de casos de violência contra uma mulher branca e de classe média com nível superior, a sociedade nos fez acreditar que a violência acontecia em mulheres negras, periféricas e com baixa escolaridade. Assim, quando fui surpreendida por ela, não imaginava quão difícil seria perceber que aqueles atos tão sutis inicialmente eram formas de violência”

Ainda existe na sociedade uma padronização acerca dos perfis dos agressores e das vítimas. Sabe-se que a violência contra a mulher independe da classe social, raça, religião ou grau de instrução, entretanto existem alguns fatores considerados catalisadores deste fenômeno, entre eles o uso de álcool, a violência intergeracional, o baixo nível de escolaridade e o extrato socioeconômico baixo, estes fatores aumentam a chance de as mulheres serem dependente economicamente dos seus cônjuges fazendo que elas permaneçam na relação mesmo estando em sofrimento (Diniz et al., 2007). Entretanto, pode-se observar que

As mulheres com maior grau de instrução não estão livres da violência, estudos revelam que 52(5,8%) das vítimas possuem o ensino superior completo ou incompleto, havendo entre elas professoras, advogadas, uma assistente social, uma enfermeira e uma médica (Ribeiro et al., 2009), esses dados fragilizam a crença de que a violência contra a mulher só ocorre entre aquelas com menos escolaridade (Acosta, Gomes e Barlen, 2013).

CICLO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Apesar de a violência doméstica abranger vários aspectos, o Instituto Maria da Penha – IMP (2018) abordou a teoria desenvolvida pela psicóloga norte-americana, Lenore Walker, responsável por identificar que a violência cometida nesse contexto ocorre dentro de um ciclo que pode se perpetuar.  Segundo esta autora, esse ciclo divide-se em três fases: aumento da tensão, ataque violento e a “lua de mel”.

Fase 1: Aumento de tensão

          Esse primeiro momento ocorre quando o agressor se mostra tenso e irritado por pequenas questões do cotidiano e, assim, começa a violência psicológica através de insultos, humilhações, intimidações, crises de ciúmes, destruição de objetos, gerando conflitos e passa a se estabelecer uma relação de poder em que a mulher passa a se culpar por aquela situação, pois começa a pensar que fez algo de errado e por isso é merecedora daquilo (IMP, 2018)

Lembro-me que quando ele se chateava comigo, muitas vezes o motivo era porque eu ligava para saber se ele havia chegado bem de viagem, pois trabalhava pegando estrada. O fato de eu ligar já era o bastante para ele se irritar e me dar o “tratamento” do silêncio, por horas e até mesmo por dias, não atendia as minhas ligações, não respondia as mensagens e, quando aparecia dizia que eu o sufocava e que precisou de um tempo para respirar. Comecei a ficar muito angustiada a cada ligação não atendida e toda essa instabilidade começou a me deixar muito ansiosa, mas ele sempre dizia que era minha culpa e que estava apenas reagindo. Todo esse comportamento dele me deixava sempre confusa”.

Dessa maneira, segundo o Instituto Maria da Penha -IMP (2018), a mulher começa a achar justificativas para aquele comportamento do agressor, como: “ele teve um dia estressante no trabalho” ou “eu fiz isso sabendo que ele não gosta”. Assim, colocando-se num lugar de culpa, de merecedora daquilo.  Contudo, ao naturalizar esses momentos de tensão, eles tornam-se mais repetitivos e, assim, levará a próxima fase.

Fase 2: Ataque violento

Caracterizando os tipos de violência de acordo com publicação do Ministério da Saúde que aborda a Violência Intrafamiliar, a violência física é aquela que ocorre quando uma pessoa está em relação de poder sobre outra e causa, ou tem intenção de causar, dano pelo uso da força física ou de algum tipo de arma que pode provocar lesões (Brasil, 2001).

O Instituto Maria da Penha (2018) revela que espancar, ameaçar, constranger, humilhar, manipular, isolar (proibir de estudar e viajar ou de falar com amigos e parentes), vigilância constante, perseguir, insultar, chantagear, explorar, limitar o direito de ir e vir, ridicularizar, tirar liberdade de crença são atos que configuram a violência física. Os relatos a seguir demonstram as situações vivenciadas pela participante do estudo:

Com a primeira gestação, o comportamento agressivo ficou evidente, inclusive ele me culpava por ter engravidado. O momento que era para ser especial na minha vida, virou um turbilhão de sentimentos jamais imaginados até então. O primeiro sentimento experienciado com a notícia da gravidez, foi do abandono (…) ele me abandonou no mesmo dia que entreguei o resultado do exame de gravidez, além disso passei toda a gestação sofrendo humilhações, pressão psicológica e rejeição até que por volta dos 5 meses de gestação vieram as agressões físicas e verbais: empurrões, puxões de cabelo e xingamentos. Após o nascimento da primeira filha, ele pediu para reatar o namoro para que juntos pudéssemos cria-las e fomos morar juntos.  Eu acreditei que ele mudaria após o nascimento dela”

A violência sexual inclui desde proibir que a mulher use anticoncepcional, exigir que ela engravide ou que faça um aborto contra a vontade, ou expô-la intencionalmente a doenças sexualmente transmissíveis (Morrison e Loreto, 2000). É importante destacar que a violência sexual também se fez presente, como pode ser visto no relato da vítima:

“Meses depois de reatarmos a relação veio a segunda gestação e com ela, o pior de todos os pesadelos. Ele marcou a interrupção da gravidez em outra cidade. Era tudo muito confuso, como pode um pai de uma filha de 6 meses que dizia amá-la querer que cometer tal ato?

“(…) Dali para frente foi o caos, as agressões, puxões de cabelo, empurrões e chutes na minha barriga de 7 meses de gestação até mesmo me deixava presa em casa e sem comida estando grávida. Era muita humilhação. Ali a venda nos meus olhos caiu, mas eu estava extremamente vulnerável e mergulhada num sentimento de vergonha e medo de julgamentos por ter retornado à relação. Então, me calei.”

Mesmo tendo consciência de que o agressor está fora de controle e tem um poder destrutivo grande em relação à sua vida, o sentimento da mulher é de paralisia e impossibilidade de reação. Aqui, ela sofre de uma tensão psicológica severa (insônia, perda de peso, fadiga constante, ansiedade) e sente medo, ódio, solidão, pena de si mesma, vergonha, confusão e dor (IMP, 2018). As humilhações presentes no relacionamento causam danos morais e psicológicos que, não raramente, evoluem para um quadro de depressão e ansiedade, e está diretamente relacionado à manipulação e ao jogo emocional ocorridos na relação (Camyle e De Oliveira, 2023)

Fase 3: “Lua de mel”: apaziguamento e promessas de mudanças

A terceira fase, conhecida como “lua de mel” é caracterizada pelo arrependimento do agressor que passa a proporcionar momentos bons para a mulher, um clima de “lua de mel” e por causa disso, essa fase é um período consideravelmente calmo, já que há essa ilusão de que o agressor se tornará uma pessoa mais controlada. Desse modo, a mulher se sente pressionada a dar outra chance ao seu relacionamento, com um misto de sentimentos de medo, remorso, culpa e ilusão.  (Silva, 2017; Silva; Alves, 2019).

O mais difícil num relacionamento de violência, talvez seja essa fase, pois a cada agressão, seja ela de qualquer tipo, sempre era precedida de um pedido de desculpa. Era o momento em que ele me fazia acreditar que dali para frente não aconteceria mais agressões, ele era tão convincente em suas palavras que era impossível duvidar

É nessa fase que o agressor se desculpa de forma abundante, tenta ajudar a vítima, demonstra remorso e amabilidade, a enche de presentes e promessas. A mulher, por sua vez, confia no agressor e crer que ele vai mudar e que os eventos de agressão não voltarão a acontecer (IMP, 2018).

Dificuldades encontradas para o rompimento do ciclo

Perfil sutil do agressor

O agressor é uma pessoa considerada comum, trabalhador, pagador de impostos, boa reputação e muitos chegam a dizer trata-se de um bom amigo, boa pessoa e é exatamente por isso que quando a mulher consegue superar suas barreiras pessoais e expõe a violência que este indivíduo a submete, tem suas palavras desacreditadas porque as pessoas não conseguem relacionar aquele cara “gente boa”, bom amigo, com um agressor, então é como se ela estivesse mentindo ou exagerando (Henriques e Regadas, 2018).

“Costumava ouvir que todo agressor já mostrava seu perfil violento desde o início, mas comigo foi diferente, o meu agressor era o homem perfeito, gentil e fora de qualquer suspeita para a sociedade.

O autor da violência em suas primeiras manifestações não lança mão de agressões físicas na maioria dos casos ele antes dele poder ferir de forma física sua companheira, precisa baixar a sua autoestima de tal forma que ela tolere as agressões cometidas por ele (Miller, 2002). Isso, infelizmente, pode ser vivido pela mulher do nosso relato.

“No início do relacionamento, ele sempre atencioso e preocupado, mas com o passar do tempo, sinais começaram a aparecer de forma sutil. As críticas começaram a ser frequente, como “Você fala e rir muito alto”, criticava até a cor do esmalte que eu usava e sempre proferia palavras pejorativas a mulheres que pintavam unhas de vermelho assim como eu; pediu para retirar meu piercing e criticava minha tatuagem. No começo, eu acreditava que essas falas eram sinais de cuidado e preocupação com minha imagem e somente anos depois percebi que ele havia minado minha autoestima.”

A violência psicológica na maioria vezes acontece de forma sutil como críticas frequentes que vão degradando a autoestima da mulher, minando sua capacidade de ver claramente as coisas e a sua capacidade de resistência, chegando muitas vezes até a depressão e ansiedade (Lima, 2022).

IMPACTOS DA VIOLÊNCIA NA SAÚDE MENTAL DA MULHER

A violência psicológica é qualquer conduta que venha a causar dano emocional e redução da autoestima, ou que possa prejudicar o pleno desenvolvimento ou vise desmoralizar ou controlar as ações, comportamentos, crenças e decisões, através do uso de ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição, insulto, chantagem, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à saúde psicológica e a autodeterminação (Brasil, 2006).

O IMP (2018) diz que distorcer e omitir fatos para deixar a mulher em dúvida sobre sua memória ou sanidade (gaslighting) também são atos que configuram violência. Fato que pode ser experienciado pela mulher do estudo:

“Ele me chamava tanto de louca e desequilibrada que eu cheguei a duvidar da minha sanidade mental (…) ele tinha o poder de me fazer culpada por tudo até mesmo após sofrer as agressões físicas, eu chegava a pedir desculpa porque ele dizia que eu deixava ele nervoso”

A violência doméstica é caracterizada como um problema crescente de saúde pública que gera grandes consequências bem como danos irreversíveis não só a mulher vítima como toda a família como distúrbios psicopatológicos como o comprometimento da autoestima ocasionando sintomas de ansiedade, depressão, pensamentos e tentativas de suicídio e estresse pós-traumático. (Fontes e Diniz, 2017; Lima, et al., 2017)

A violência psicológica é uma das formas mais cruéis de violentar emocionalmente uma mulher por ser uma forma invisível do fenômeno da violência e por não deixar marcas físicas, pois as feridas são feitas na autoestima e caracteriza-se por atos ou omissões no intuito de controlar e degradar emocionalmente a pessoa através de manipulações, ameaças, coerção ou qualquer outro mecanismo que implique no desenvolvimento do indivíduo (Figueredo, Custódio e Souza, 2009).

As consequências da violência doméstica são negativas e perturbadoras na vida social e psicológica destas mulheres, os sintomas podem ser vistos imediatamente ou podem demorar muito para aparecer. O adoecimento mental é a consequência mais comum e pode levar à solidão, depressão, impotência, desconfiança, irritabilidade, baixa autoestima, ansiedade, depressão, irritabilidade, impotência, abuso de álcool e outras drogas, síndromes de pânico (Cabral, 2008). Além disso, em relação aos impactos na saúde mental, as mulheres em situação de violência possuem sua honra ferida, autoconfiança destruída, se encontram constrangidas, sem graça, com muito medo e vergonha de tudo que estão vivendo, como se fossem culpadas. Tudo isso aliado à dependência financeira, filhos, sendo alguns dos motivos que impedem muitas vítimas a denunciarem seu algoz; para quebrar este ciclo se faz necessário em primeiro lugar reconhecer os sinais dos diversos tipos de violência doméstica, romper com questões como vergonha e medo e denunciar; pois o silêncio apenas fortalece o agressor, o qual certamente não admite ter nenhuma responsabilidade sobre o evento (Vieira, Cruz e Lacerda, 2022).

É importante destacar que a violência psicológica não afeta somente a vítima de forma direta, ela atinge a todos que presenciam ou convivem com a situação de violência, como por exemplo, os filhos que testemunham a violência psicológica entre os pais podem passar a reproduzi-la por identificação ou mimetismo, passando a agir de forma semelhante com a irmã, colegas de escola e, futuramente, com a namorada e esposa/companheira.  De modo geral, as consequências da violência doméstica em crianças são: ansiedade, que pode desencadear sintomas físicos, como dores de cabeça, úlceras, erupções cutâneas ou ainda problemas de audição e fala; dificuldades de aprendizagem; preocupação excessiva; dificuldades de concentração; medo de acidentes; sentimento de culpa por não ter como cessar a violência e por sentir afeto (amor e ódio) pelo agressor; medo de separar-se da mãe para ir à escola ou a outras atividades cotidianas; baixa autoestima; depressão e suicídio; comportamentos delinquentes (fuga de casa, uso de drogas, álcool etc.); problemas psiquiátricos (Miller, 2002). Alguns dos sintomas descritos pelos autores supracitados, foram identificados pela mãe desde a primeira infância:

“Minhas filhas começaram a recusar a ficar a sós com o pai em sua residência, sendo muitas vezes levadas à força por ele que também privava elas de terem contato comigo nos seus finais de semana e metade das férias. Essa situação gerava medo nelas de serem separadas de mim (…) como a mais nova relatou a psicóloga ‘eu tenho medo de papai não me devolver para mamãe’, já a mais velha sempre no dia anterior da visitação ela começava a apresentar enjoos e dores de barriga e de cabeça”

“Por volta dos sete anos de idade, minha filha mais velha começou a se autoagredir toda vez que o pai ia buscá-la em casa, ela tentava se esconder embaixo do sofá, chorava e gritava. Para mim, isso essa era a forma dela pedir socorro e então passei a não deixar ele levá-las à força, e sim, somente quando manifestavam vontade e conforto em ir, mas lembro também que quando isso acontecia ameaça me processar por alienação parental, dizendo que eu dificultava o acesso dele as filhas. Isso era uma verdadeira tortura!”

As filhas do ex-casal hoje são adolescentes e por presenciarem tamanha violência sofrida pela mãe e padrões de violência psicológica do próprio genitor contra elas, como chantagens, continuam apresentando sinais e sintomas compatíveis com adoecimento mental.

“Minha filha mais velha, começou a apresentar dificuldades de concentração com baixo rendimento escolar e irritabilidade (…) já tem laudo neuropsicológico de ansiedade, depressão e TDAH, faz acompanhamento psiquiátrico com medicação para tais patologias e com novo encaminhamento do psiquiatra para dar continuidade as psicoterapias por tempo indeterminado.”

Os prejuízos na saúde mental apresentados pelas filhas enquanto crianças e adolescentes podem ser esclarecidos por Zerk, Mertin e Proeve (2014) que destacam que interações familiares conflituosas, permeadas por estresse e perturbações, vivenciadas na infância podem influenciar o desenvolvimento mental e intelectual adequado das crianças. A violência doméstica torna as crianças e os adolescentes vulneráveis a diversas morbidades, comprometendo, ainda, o desempenho escolar, o que gera baixo desempenho no aprendizado, evasão e a limitação de oportunidades para realizações pessoais e profissionais futuras (Cordeiro et al., 2019). O sofrimento psíquico resultante da violência sofrida quando criança poderá dificultar o crescimento e o desenvolvimento saudável, tornando-a um adulto vulnerável (Oliveira et al., 2014)

ESTRATÉGIAS PARA O PROCESSO DE ENFRENTAMENTO E RUPTURA DO CICLO DA VIOLÊNCIA

Denúncia: Início do rompimento do ciclo de violência

O ciclo de violência perpetua-se através de mecanismos de controle psicológico, emocional e físico, criando uma armadilha da qual é extremamente difícil escapar, tanto pela dependência emocional quanto pela ameaça constante de novos episódios de violência (Santos e Moura, 2024).

Para enfrentar o vivido, foi necessário eu abandonar o ambiente permeado pela violência dando um basta no relacionamento, afinal ninguém se cura no ambiente em que adoeceu. No entanto, as agressões não pararam e aos cinco meses de gestação após ele arrastar com o carro com meu corpo preso para fora, decidi recorrer à DEAM para registrar meu primeiro boletim de ocorrência onde consegui uma medida protetiva, o que foi crucial para dar continuidade ao processo de rompimento do ciclo de violência.”

“Contudo, somente após quase 2 anos do nascimento da minha segunda filha, onde eu já não me reconhecia, não tinha autoestima e vivia ansiosa e infeliz diante de tantas agressões inclusive na presença das duas filhas, eu tive forças mesmo fragilizada, para dar um fim naquele sofrimento, mas foi quando levei o “golpe” mais baixo de todos. Toda vez que ela falava em término, ele ameaçava ir ao juiz alegando abandono de lar e como eu não entendia de leis e já não tinha mais emprego porque ele me convenceu a sair do trabalho para cuidar das filhas, dependia financeiramente dele e não tinha coragem de contar a minha família por tamanha vergonha. Mas, um dia após me dar um chute por trás com minha filha pequena nos braços e cairmos no chão, eu decidi dar um fim ainda que me custasse um longa briga na justiça para provar que aquele homem tão calmo para a sociedade era um agressor cruel e perverso.

“Após o fim da relação, ele se adiantou e já procurou à justiça configurando ao magistrando um papel de pai presente, dedicado, preocupado e disposto a ofertar uma pensão alimentícia justa bem como regulamentação das visitas. Eu achei que não era apenas o fim de uma relação tóxica, mas também o fim para tantos abusos psicológicos e agressões físicas. Mas, o violentador, ele não quer perder a sua vítima, ele encontra meios para continuar violentando, humilhando, ameaçando tirar minhas filhas de mim pois alegava que eu era “louca” e que não tinha a menor condição emocional de cuidar das crianças. Ele sabia que meu maior medo era ficar sem minhas filhas e me fez “refém” psicologicamente da sua violência novamente com essas ameaça.”

Psicologicamente este ciclo gera danos à autoestima, à identidade e o desenvolvimento pessoal de forma geral e destacam que essas fases são chamadas de ciclo exatamente porque sempre se repetem e podem durar anos, sendo que os autores supracitados revelaram que um dos motivos da continuação deste ciclo é o fato da dificuldade das mulheres de falar pelo que estão passando por medo de se expor e vergonha do que os outros vão pensar e que na cabeça da mulher fica a ideia do casamento para toda vida, preocupação dos filhos serem criados longe do pai, por isso continuam vivendo nesta situação de violência por mais tempo (Vieira, Cruz e Lacerda, 2022).

Contribuição da Psicoterapia e Psiquiatria

          Para o desenvolvimento do empoderamento das mulheres em situação de violência, é necessário um trabalho interdisciplinar, considerando que, em muitas situações de violências, as mulheres passam a desenvolver psicopatologias como fibromialgias, depressão, síndrome do pânico, entre outras. Relata também que as mulheres nesta situação são constantemente desqualificadas, humilhadas, culpabilizadas, fatos que acabam rebaixando sua autoestima e a autoconfiança e, ressalta que uma questão entendida como prioritária para estes casos é o atendimento psicológico (Biella, 2005)

“Assim que findamos o relacionamento, tive muito medo de não dar conta financeiramente, de como ficaria o emocional das minhas filhas. Então, procurei a terapia para que pudesse ressignificar todo aquele sentimento de dor e impotência para que respingasse o mínimo possível em minhas filhas tendo em vista do que já haviam presenciado desde muito pequenas”

“Quando comecei o processo terapêutico não foi fácil porque a cada atendimento era como vivenciar tudo novamente, a dor era a mesma e, às vezes, parecia ser bem maior porque eu me culpava muito por não ter percebido antes, por ter acreditado nele e, principalmente, por ter me calado por tanto tempo e em consequência disso, minhas filhas terem se afetado emocionalmente. Essa era a maior de todas as culpas”

As marcas da violência não se limitam às feridas visíveis e esse agravo vai definhando aos poucos as defesas da mulher, que muitas vezes se sente culpada pela violência sofrida e que a somatização de tal vivência compromete a saúde mental das mulheres, estando associada ao isolamento, medo, ansiedade, baixa autoestima, depressão e estresse. Tal quadro reafirma a necessidade de profissionais na área de psicologia para melhor suporte às mulheres (Gomes, 2014).O acompanhamento psicológico é crucial, pois a mulher inserida nessas situações por vezes fica presa a um ciclo vicioso, da qual não se permite sair e valida que buscar seus direitos de proteção é essencial (Biachini, 2023).

“Foram oito anos de terapia com duração de uma hora semanal. Confesso que todo o processo foi árduo e lento. Mas, ao final de cada atendimento eu saia mais convicta e fortalecida de que eu precisava transformar toda aquela dor para dar à volta por cima. A única coisa que eu queria era paz para mim e para minhas filhas. E a terapia foi libertador, costumo dizer que foi minha carta de alforria, me libertei de toda culpa que ele jogava em mim, mas que não era minha, resgatei minha autoestima e descobri uma força que nem eu sabia que tinha. Devo muito ao que sou hoje à minha psicóloga e a minha psiquiatra que me medicou para que eu ficasse estável da ansiedade e da síndrome do pânico. Hoje posso repetir duas frases que li: ‘Nada é mais forte que uma mulher que se reconstruiu’ e ‘e curo em voz alta porque quase morri em silêncio’. Essas frases me representam!”

Tendo em vista que na maioria das vezes as mulheres se culpam, estas acabam tornando esses ciclos de violência algo natural e o Psicólogo entra nesse cenário fazendo com que as vítimas tenham uma tomada de consciência, dando suporte para que essas mulheres consigam se libertar desse ciclo vicioso (Da Silva, Campos e Reis, 2020).

Apoio Familiar

O apoio familiar para mulheres que passam por qualquer tipo de violência é primordial, além de atuar como um fator que pode ajudar no desvinculamento com o próprio agressor, a mulher passa a se sentir mais segura, enxerga outras possibilidades além da que o único caminho é continuar na situação que se encontra. Esse apoio vindo da família é como um alicerce para que a vítima possa encontrar conforto e enxergar novos sentidos em sua vida (Vargas, 2012).

“Só vim contar a minha família tudo que passei quando já havia terminado a relação. Eu não contei antes por vergonha, por medo e por não querer vê-los tristes ao me ver naquela situação. Quis contar quando eu já estava decidida e um pouco mais fortalecida. O apoio da minha mãe, irmãos e cunhado foi de extrema importância, achei que esse apoio me deu mais força para continuar.”

Contribuição da Lei Maria da Penha

A violência contra a mulher ganha relevância na década de 1980 quando o Brasil promulga a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, que havia sido aprovada pelas Nações Unidas em 1979 e também com a criação das Delegacias Especializadas de Defesa da Mulher (DEAMs) nos anos 80 para fazer parte da evolução da luta pela proteção das mulheres proporcionando às vítimas, que quisessem denunciar seus agressores, um local com equipe técnica multiprofissional adequada para atendê-las (Almeida; Borba, 2022).

 Entretanto, somente no dia 7 de agosto de 2006, foi aprovada a lei nº 11.340, intitulada Lei Maria da Penha (LMP) com intuito de criar mecanismos para combater e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. A LMP denomina como tipos de violência contra a mulher as violências física, psicológica, sexual, moral e patrimonial. Podemos observar que nos últimos anos as discussões e informações sobre as diversas manifestações de violência aumentaram e corroboram com o enfrentamento desse fenômeno (Lima, 2022).

A LMP é um marco na legislação nacional no tocante à adoção de políticas afirmativas que visam garantir a integridade física e psicológica da mulher no país consolidando a proteção ao direito mais básico da mulher, que é o direito à vida sem violência (Dos Anjos e Barroso, 2022; Côrrea e Bittencourt, 2023). Esta lei propõe que toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia ou orientação sexual, deve ser assistida pelos direitos fundamentais, visando a promoção de uma vida sem violência, com acesso a oportunidades, preservando a saúde física e mental e o aprimoramento moral, intelectual e social, com plenas condições para a garantia dos direitos à vida, à segurança e à saúde (Brasil, 2006).

Além da LMP, temos ainda como outra importante medida de enfrentamento a Lei nº 13.104, criada em 2015, conhecida como Lei do Feminicídio, a qual qualifica o crime de homicídio contra as mulheres no Brasil como crime hediondo, decorrente de violência doméstica e familiar, a partir do menosprezo ou discriminação à condição de mulher (Brasil, 2015).

Assistência da Ronda Maria da Penha e a fiscalização das medidas protetivas de urgência

Diante do cenário de violência contra a mulher, evidencia-se que a implantação de um serviço adequado, que sirva para monitorar e fiscalizar o cumprimento das medidas protetivas e da própria Lei Maria da Penha (LMP) não estava proposto no plano de intervenção inicialmente recomendado pela Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Visando, então, sanar essa “falha” na Lei, é criada em 08 de março de 2015 a Ronda Maria da Penha (RPM-PMBA), período no qual os indicadores de violência de gênero situavam a Bahia no segundo lugar do ranking nacional de homicídios de mulheres (IPEA, 2015).

Na Polícia Militar da Bahia, a Ronda Maria da Penha integra a REDE de enfrentamento à violência contra a mulher, no acompanhamento das mulheres com medida protetiva instaurada pela Justiça. No município de Juazeiro/BA, em data de 19/11/2015, veio a ser implantada a primeira RMP por meio de uma parceria entre o Governo do Estado, Prefeitura, e da Polícia Militar (PM), sendo a primeira no interior da Bahia. Com a finalidade de reforçar as ações no enfrentamento à violência contra a mulher, buscando sua maior proteção no município e proporcionar maior segurança e auxiliar no atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica e na garantia do cumprimento das Medidas Protetivas de Urgência, bem como na repressão ao descumprimento da ordem judicial.

A comandante da Ronda Maria da Penha, a Tenente PM Tatiane Carvalho da Silva, conta com o efetivo de doze policiais militares e um funcionário civil, que são qualificados no atendimento a demanda e ressalta que todos os policiais fazem curso de qualificação para poder servir nessa unidade especializada e têm à disposição uma viatura quatro rodas. A comandante destaca que dentre as atribuições da RMP estão: recepcionar, acolher e fiscalizar as medidas protetivas de urgência; realizar ações preventivas por meio do policiamento ostensivo; fomentar a criação de projetos; formar banco de dados para estatística municipal, estadual e nacional; manter relações institucionais com órgãos da Rede de Proteção e enfretamento à violência contra a mulher.

O desenvolvimento do serviço da RMP se dá tento de forma protetiva quanto de forma preventiva. Dentre as ações protetivas estão a fiscalização de medidas protetivas de urgência, prisão em flagrante, cumprimento de mandado de prisão; e dentre os serviços de prevenção a RMP realiza blitz educativa; palestras, rodas de conversas em diversas instituições, inclusive em escolas; eventos temáticos, entrevistas e debates, para divulgar o trabalho da Ronda e sanar as dúvidas das mulheres que vivenciam um relacionamento abusivo, seja ele de qualquer tipo e da população em geral que necessita conhecer acerca da abrangência da Lei 11340/06-Lei Maria da Penha e sobre a especificidade do trabalho da Ronda Maria da Penha, para que promova uma mudança cultural.

A fiscalização das medidas protetivas de urgência se dá através da parceria com a Vara da Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, que é exclusivo para tratar da violência contra a mulher, ministério público, delegacia e poder público municipal. Com as informações acerca de cada processo, a equipe estabelece uma assistência de acordo o grau de risco que o caso requer, confeccionam um cronograma pré-estabelecido de visitas, em consonância com a assistida, que informa o melhor dia e horário para as visitas. Nesse acompanhamento é feito relatórios pela guarnição, informando o que ocorrera durante a visita.

As medidas de proteção que obrigam o agressor são focadas na limitação das suas condutas e comportamentos. Elas impõem, por exemplo, proibições com o objetivo de frustrar os meios que ele obtém para praticar os atos violentos como a proximidade que ele tem com a vítima com a qual se relaciona. Por isso, que dentre as proibições encontram-se a de frequentar determinados locais, a de se aproximar e manter contato com a vítima, os familiares dela e com as testemunhas (Brasil, 2018).

“As medidas protetivas de urgência por si só não afastavam o agressor, ele não cumpria e não mantinha a distância necessária, somente quando a ronda Maria da Penha começou a fazer as visitas domiciliares que foi crucial para que eu, de fato, me sentisse segura, pois quando ele descumpria a medida eu comunicava à ronda. Ele até chegou a ser chamado na DEAM pelo descumprimento. Confesso, que somente depois da assistência deles que eu e minhas filhas pudemos ter um pouco de paz (…). Sou muito grata à toda guarnição da RMP e sempre faço questão de falar às pessoas como a assistência deles me fortaleceram e me emponderaram para que eu possa estimular outras mulheres a denunciarem seus agressores. Hoje eu me considero um exemplo de força, coragem e resiliência para muitas mulheres vítimas de violência”

Em certos casos, deferir medidas protetivas de urgência ou decretar a prisão do agressor não são suficientes para proteger a mulher e a família, pois estando o agressor novamente em liberdade novos atos de violência podem ser consumados sendo necessário que a ofendida e seus dependentes tenham um lugar para se abrigar até que o mandado de prisão se cumpra (Viza, 2017). As estatísticas indicam que a aplicação exclusiva da medida protetiva de urgência não tem garantido a segurança e a paz necessárias para as mulheres em tal situação, pois mesmo quando  amparadas  por  esse  recurso,  muitas  vezes,  as  mulheres  enfrentam reincidências de agressões, violência e, em alguns casos, até mesmo homicídios, motivados por diversas razões, como o término de um relacionamento, conflitos conjugais, ou um sentimento de posse sobre a parceira (Gerhard, 2014)

Entretanto, caso o agressor seja flagrado pela equipe em situação de descumprimento é imediatamente conduzido a autoridade competente. A Lei 13.641/2018 promoveu uma alteração na Lei Maria da Penha com a inclusão de uma nova Seção no Capítulo II. Agora, a Lei nº 11.340/2006 passa a prever o crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência. Descrito no art. 24-A da lei, esse novo tipo penal comina uma pena de detenção de três meses a dois anos para aqueles que descumprirem a decisão judicial que defere as medidas de proteção. Esse novo dispositivo deixa claro em seu § 1º que não importa para a configuração do crime qual a competência do juiz que expediu a medida, seja aquela civil ou criminal. Por sua vez, o § 2º indica que caberá apenas à autoridade judicial a concessão da fiança em caso de prisão em flagrante e o §3º prevê a possibilidade do cabimento de outras sanções para além da imposta no novo artigo (Brasil, 2018).

Resiliência

O enfrentamento da violência está diretamente relacionado com a resiliência da mulher que passou pela situação de violência, bem como a sua capacidade de responder os obstáculos vividos de maneira positiva. A compreensão da importância sobre o modo em que as mulheres vítimas de violência utilizam do seu enfrentamento pode ser também uma ferramenta que norteia aos centros de apoio às mulheres agredidas com objetivo de facilitar a construção da autonomia dessas mulheres em relação à violência de gênero. Este enfrentamento não é somente da mulher que sofreu violência, mas também é coletivo, tendo em vista a complexidade do fenômeno e a importância que as redes sociais de apoio e das políticas públicas passam a desempenhar para essas mulheres (Sulsbach, 2008).

“Olhar para o que vivi não é fácil, mas hoje, após todo o sofrimento, percebo que o processo de superação me exigiu coragem, apoio e força coletiva. Enfrentar o medo, buscar ajuda, romper o silêncio e denunciar foram passos difíceis e, muitas vezes dolorosos, mas fundamentais para a minha liberdade, segurança e paz. Sem dúvidas, a trajetória que percorri até aqui me mostrou que, mesmo nos momentos de maior fragilidade, é possível se reerguer”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 A violência contra a mulher é um fenômeno complexo que afeta milhões de mulheres ao redor do mundo. Entretanto, discutir essa temática ainda se mostra um desafio na sociedade contemporânea, assim como as formas de enfrentamento. A Lei Maria da Penha, como marco jurídico no Brasil, tem sido fundamental no combate à violência doméstica.

O ciclo da violência descrito neste relato pode contribuir para o conhecimento de todas as formas de violência, destacando a violência psicológica pelo fato de até hoje ter menor visibilidade quando comparada às violências física e sexual, além de chamar a atenção de outras mulheres para medidas legais e punitivas através da aplicabilidade da Lei Maria da Penha, as estratégias de enfrentamento baseadas em uma abordagem integrada incluindo apoio psicológico e familiar, denúncia, capacitação profissional e fortalecimento das redes de proteção demonstrando terem sido fundamentais para combater esse ciclo de violência, possibilitando compreender que somente por meio de um esforço coletivo, é possível construir uma realidade em que todas as mulheres possam viver com dignidade, respeito e sem ferir seu direito básico que é a vida.

Ao relatar sua forma de enfrentamento, essa mulher possibilita ainda que outras mulheres possam compreender as diferentes faces e ângulos da violência contra a mulher e a urgência de uma abordagem multidisciplinar para seu enfrentamento, pois a violência em suas diversas formas, não causa impactos apenas na vida da vítima, mas também afeta todo o círculo familiar. Para ela, a vivência dessa situação ultrapassou os limites da experiência física, pois também envolveu sofrimento psicológico, emocional, econômico e social.

Assim, ao revelar a relação violenta e as estratégias de enfrentamento capazes de minimizar os impactos em sua saúde física e mental gerados pela convivência com a violência e romper com o silêncio, contribui não só para que outras vítimas de violência doméstica tenham a coragem para denunciar seus agressores, mas também para alertar a mulheres sobre os sinais sutis do início da violência além de emponderar e fortalecer mulheres para buscarem proteção e assistência através da lei, ressaltando a importância de um esforço coletivo e contínuo de conscientização e transformação sociocultural, promovendo espaços de acolhimento e proteção para as vítimas. Por estes motivos, acreditamos que esse relato tem grande relevância social e findamos com uma mensagem da participante que relatou sua experiência.

.         “Acredito que, ao compartilhar minha experiência, posso contribuir para que outras mulheres saibam que não estão sozinhas e que existem formas de romper com o ciclo da violência por mais difícil que seja. Cada passo, por menor que pareça é motivo para continuar. A minha luta foi pela minha saúde mental, pela minha dignidade, pela minha paz e pela minha segurança. Hoje, a luta contra a violência doméstica virou uma causa de vida e é por todas as mulheres que, assim como eu, merecem ser respeitadas e protegidas. Torço para que minha vivência sirva de esperança e de incentivo para que outras mulheres também possam encontrar sua voz.”

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1 Graduanda em Fisioterapia (FAFIS) e Graduanda em Medicina. Faculdade Estácio/Juazeiro-Ba. E-mail: julianabenevides77@gmail.com

2 Graduanda em Medicina. Faculdade Estácio/Alagoinhas-Ba. E-mail: claricehelenavesp@gmail.com

3 Graduada em Direito (FACAPE) e Graduanda em Medicina. Faculdade Estácio/Juazeiro-Ba. E-mail: isabelecatarineadv@gmai.com

4 Graduada em Direito (FACAPE). Graduanda em Medicina. Faculdade Estácio/Juazeiro-Ba. E-mail: scferreira.adv@gmail.com

5 Comandante da Ronda Maria da Penha de Juazeiro-Ba. E-mail: tatianeaesp2020@gmail.com

6 Graduada em Direito (PUC/MG) e Graduanda em Psicologia. Faculdade (FTC/Petrolina-Pe). E-mail: wania.medrado@gmail.com

Autora correspondente:

Juliana Benevides Duarte de Souza. E-mail: julianabenevides77@gmail.com