REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7612959
Claricia Tolintino Aguiar1
Hamistenie Rossana Pinto de Sousa Soares Borges2
Liziane Ines Cantini3
Saionara Gomes Rodrigues4
Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
– Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Cecília Meireles
Este breve estudo, busca colaborar na produção de informações e refletir diante da tolerância social, para com uma problemática crescente em nosso país – a violência contra a mulher. O direito das mulheres, meninas e as lutas de gênero são direitos indeclináveis dos direitos humanos. O empoderamento das mulheres, o reconhecimento e investimento na igualdade de gênero são fatores multiplicadores para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 2030. Produzir conhecimento e ao mesmo tempo trabalhar a valorização, posicionamento, capacitação de mulheres e meninas para que tenham controle e decisão sobre suas escolhas, vida, casa, é contribuir para o desenvolvimento do fator humano, e também para o desenvolvimento local.
O presente estudo é bibliográfico e quantitativo com utilização de dados secundários, levantados na homepage da Secretaria de Segurança Pública e Instituto Igarapé[1]. Traz fontes primárias, através dos relatos, que foram gravados e posteriormente transcritos para compor o presente trabalho. As entrevistadas, não terão seus nomes revelados, e aqui, neste trabalho, serão chamadas de Esperanza 01 e Esperanza 02.
Esperanza 01, tem 49 anos, três graduações e quatro especializações, é advogada e tem filhos. Esperanza 02 tem 69 anos, vem de uma família de quatro irmãs, cuja mãe é descrita por ela como pessoa boa. Estudou até a sétima série e não concluiu o ensino médio porque se casou muito nova.
Os relatos transcritos no estudo, carregados de verdade e de sentimentos, tornam significativa a pesquisa quanto aos acontecimentos pessoais, e que, muitas vezes, ocorrem igualmente com um grande número de mulheres. Nesse sentido,
“As fontes orais são únicas e significativas por causa de seu enredo, ou seja, representam um caminho através do qual os materiais da história são organizados pelos narradores. Por meio dessa organização, cada narrador dá sua interpretação da realidade e situa-se nela juntamente com os outros. ” (PARENTE 2006 p. 300):
Martins (2007, p. 95) afirma que:
“A História de Vida produz uma descrição da experiência individual, bem como de representações sociais, levantando, dessa forma, tanto expressões conscientes quanto determinantes inconscientes da vida social e da ação histórica do indivíduo. A História Oral de Vida é a parte que revela o todo. Quem pronuncia a palavra faz a palavra. O sujeito acontece como pensamento, fala e ação, por isso a palavra é um ato de existência […]”
A história também mostra que até recentemente os direitos eram bem diferentes para homens e mulheres, onde estas eram consideradas como propriedade primeiro dos pais e depois do marido. O acesso à educação, a abertura no mercado de trabalho e o poder de votar veio muito mais tarde. Os direitos humanos de mulheres vêm sendo reconhecidos apresentando avanços significativos tanto, internacional quanto nacionalmente, sendo resultado de Movimentos de Mulheres pelo mundo todo na busca de igualdade e na conquista de direitos.
A evolução e os movimentos femininos, foram sentidos, pois traz o relato:
“Eu acredito que a minha geração é uma das principais gerações que entendeu que a liberdade da mulher não é condicionada ao parceiro. Ela é livre e o relacionamento deve ser mantido dentro do limite, que não venha tolir essa liberdade.”[2] (ESPERANZA 01, 12/2019).
As lutas enfrentadas, por feministas para vencer a supressão de direitos, em diferentes épocas, tempos e contextos, faz com que o caminho percorrido seja conhecido, entendido e assumido na busca por igualdade de condições e de gênero. Essa busca, passa por vários setores entre eles o econômico, que necessariamente precisa proporcionar acesso ao trabalho, com equidade salarial independente do gênero, o que demanda ações transformadoras do contexto social.
A violência física também resulta da desigualdade. É fator grave entre os pares e nunca vem só. Traz consigo outros tipos de violência como a sexual, de patrimônio, moral e psicológica, que afetam, destroem, eliminam muitas vezes a condição pessoal de recomeço:
“No primeiro ano que eu me casei, ele já começou a ser agressivo com palavras, com tom de voz, a maneira de tratar completamente diferente da maneira que eu era acostumada na minha região, por exemplo, meu pai na minha casa, ele tinha todo respeito para falar com a minha mãe, tinha toda uma delicadeza […] a figura que eu tinha de marido, era aquele pai que eu, que eu, via tratando sempre a minha mãe, com muito carinho, muito respeito, então para mim foi um choque. É tanto que, no primeiro ano de casamento nós nos separamos […] noventa por cento dos nossos atritos é por esse motivo porque ele é dominador, tem um ranço de coronel, e eu não […] não consigo ser submissa. Eu não consigo ter que pedir autorização para fazer algo. Eu não o vejo como autoridade sobre minha pessoa. Acredito que não tem necessidade né?”[3] (Esperanza 01).
“O meu casamento nos primeiros anos foi muito bom…muito bom nos primeiros anos […] com o passar dos anos a nossa vida foi ficando meio tumultuado por causa disso, por causa da bebida, e ele, começou se exceder…começou a se exceder na bebida, e foi até que um dia aconteceu o pior: a violência. A violência, foi a pior, que quase destruiu nossa família. ” (Esperanza 02)[4].
Reconhecer que existem relações de poder, é permitir que se forme um caminho de equilíbrio dentro dos diferentes contextos e abre perspectivas para que as lutas de gênero sejam amparadas por leis eficientes oportunizando as mulheres assumir o protagonismo, não só das lutas travadas, mas, de suas próprias vidas e escolhas.
Nesse sentido, pode-se trazer um recorte, onde Ertzogue e Parente et al (2006) transcrevem as palavras de Eva, quando esta define o que é ser “mulher de vida livre”, e que possibilita interpretação dentro de outro contexto, percebendo a mulher como aquela que tem pleno domínio de suas escolhas:
[…] porque eu faço o que quero: como a hora que quero, deito na hora que quero. Eu não tenho de dar satisfação pra ninguém: se eu quiser falar com a pessoa, eu falo, se eu não quiser não falo. Eu tenho minha vida, não dependo do financeiro de ninguém […] não tenho marido, mas, apesar de tudo, muitas mulheres casadas queriam ter a minha vida, fazer tudo o que eu fazia[…] (ERTZOGUE E PARENTE et al 2006, p. 296).
Esta segurança e autonomia presente nas palavras de Eva, traz o peso da trajetória de vida em particular, mas reflete, conquistas muito fortemente marcadas, resultado de anos de resistência.
Buscando entender essa trajetória a partir das palavras de Eva, abre-se aqui, um recorte histórico trazendo de modo breve, evoluções obtidas pela resistência e lutas pelo direito.
No século XVI, segundo as Ordenações Filipinas, o homem tinha permissão para matar a esposa em caso dela cometer adultério. Somente com o Código Civil de 1916, que algumas disposições deixaram de ter vigência no Brasil.
Em 1888, no Brasil, um decreto imperial garantiu acesso às mulheres ao ensino superior. Cinco anos mais tarde, na Nova Zelândia, foi concedido às mulheres seus direitos de voto. Porém a representatividade no Parlamento só veio em 1919.
No Brasil o direito a voto chegou em 1932 e somente em 1946 se torna obrigatório na Constituição Federal em seu artigo 133.
O primeiro Dia Internacional da Mulher, aconteceu em 1911, e foi celebrado na Áustria, Dinamarca, Alemanha e Suíça, sem definição de data fixa. Contudo, somente em 1990 é que a Suíça concede direito de votos irrestritos as mulheres, nas eleições nacionais e locais.
No Brasil em 1916, instituída a Lei 3.071 que no artigo 6º atribuía, incapacidade para as mulheres casadas, necessitando serem assistidas em seus atos, ou ratificados pelo pai ou pelo marido, inclusive para ter uma profissão ou receber uma herança. Esse quadro só iria mudar no ano de 1962, com a Lei 4.121 – que elimina a incapacidade da mulher casada, podendo ela tornar-se economicamente ativa, sem ter de pedir autorização ao marido, além do direito sobre os filhos em caso de separação. Em 1977 tem-se a conquista do divórcio somente por uma vez e somente mudou com a promulgação da CF de 88, podendo divorciar-se e recasar quantas vezes ela se permitir a novos relacionamentos.
Com a Lei 9.099/95, foi criado os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, podendo solucionar também os casos de violência doméstica considerados como crimes de menor potencial ofensivo. Até então, não aconteciam medidas protetivas e nem a prisão do autor da violência, no máximo punição de cestas básicas. No mesmo ano, instituiu-se a Lei 9100/95, com aprovação de cotas de até 20% para mulheres candidatas a vereadoras. Essas cotas, em 1997 foram aumentadas, sendo a mínima de 30% e a máxima de 70% para candidaturas de cada sexo.
No ano de 2001, com a Lei 10.224 – ocorreu a tipificação do crime de Assédio Sexual, que acrescentou alteração ao art. 216-A do Código Penal, “ato de constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”
Em 2004, a Lei 10.886, em seu artigo 129, tipificou o crime de violência doméstica que passa considerar como “ a agressão infligida por ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro que vive ou conviveu com a vítima. ”
Sancionada a Lei nº 11.340 no ano de 2006, passou a ser conhecida como Lei Maria da Penha em justa homenagem a Sr.ª Maria da Penha Maia Fernandes, cuja história e trajetória de vida, colaborou para mudar as leis de proteção para todas as mulheres no território nacional.
No ano de 2009, a Lei 12.015, trouxe a denominação de estupro para “qualquer ato libidinoso que seja praticado através de violência ou grave ameaça”. Em 2015, o feminicídio é incluído no rol de crimes hediondos, pela Lei 13.104/2015. Ainda no mesmo ano, as empregadas domésticas, através da lei complementar nº 150, tem o reconhecimento da profissão como atividade trabalhista íntegra. No ano seguinte, 2016, com a Lei 13.285 é instituído a preferência de julgamento nos casos de crimes hediondos.
Em 2018, a inserção de crimes praticados em computadores contra mulher passa a ser atribuição da Polícia Federal – Lei 13.642/18.
Quanto às medidas protetivas, está poderá ser dada pela autoridade judicial ou polícia, e foi estabelecido na Lei 13.827/2019 assim como a inclusão de registro nos bancos de dados mantidos pelo CNJ.
Ao considerar esta retrospectiva observa-se que nem sempre a violência contra as mulheres foi facilmente reconhecida. As conquistas resultaram de longos períodos que causaram marcas e cicatrizes. Para Ertzogue e Parente et al (2006), embora a injustiça atinja individualmente as mulheres, tem sido pensada de forma coletiva:
“Entretanto, como qualquer outra pessoa envolvida em alguma luta coletiva, ao invés de manter mudo este ressentimento ou de extravasá-lo de forma individual, estas pessoas reagem, atuam, divulgam e transformam suas experiências individuais em reflexão coletiva. Transformam este sentimento num movimento de mudança. Querem combater a injustiça. ” (ERTZOGUE E PARENTE et al 2006, p.270).
Por vezes a violência não é facilmente percebida. É contextual, disfarçada, mas presente na vida de muitas mulheres, sendo invisíveis aos olhos, mortais ao coração, mas capazes de provocar reflexão no coletivo.
Nos trechos abaixo, as expressões destacadas em negrito são carregadas de sentimentos, construídas no íntimo, onde percebem-se diante de um sonho que anunciadamente vai ruindo. Não apenas essas “Esperanzas” mas tantas outras, anônimas sem apoio, conhecimento, informação, ou perspectivas, passam por isso todos os dias:
“Eu acreditava que com o casamento ele mudaria. Mas ele não mudou. Aí eu acreditei que, com a vinda do primeiro filho(a) ele mudaria, mas ele também não mudou. E depois que o meu(a) filho(a) nasceu nós tivemos vários desentendimentos e em alguns momentos houve agressões físicas, houve xingamentos, agressões psicológicas.” (Esperanza 01- Relato de 12/2019)
“Chegou pedindo que a gente se arrumasse para ir para o casamento. Daí eu disse: como é que a gente vai no casamento se você está bêbado? Não tem condição da gente ir no casamento com você desse jeito. Aí ele falou: “se você não for, eu vou te surrar, aí tu vai ver, o que que é, a mulher não querer ir…dizer e ficar desobedecendo o marido…” (Esperanza 02- Relato de 12/2019)
Figura 1: Gráfico de incidência de local onde as mulheres sofrem violência
A maioria das ocorrências de violência contra a mulher acontecem no aconchego do próprio lar:
“Não é fácil relembrar essa cena…ele segurou meus pés…trancou minhas mãos, meus punhos e as vez em quando me levantava…me puxava pelos cabelos, me levantava do chão, puxava eu pelos cabelos e dava soco na minha cara, no meu rosto, na minha cabeça, até que uma hora eu consegui, soltar uma perna minha. E empurrei ele e nessa hora ainda, já que eu comecei a conseguir me livrar, as crianças já acordaram, também. Eu consegui escapar pela porta do fundo, da minha casa, pela cozinha e ele corria atrás de mim, que ele queria me pegar, queria me surrar mais, dizia que eu tinha vindo para casa de carona, eu não fui… não fui para minha casa de carona, eu fui com meus dois filhos de mãos dadas. Eu não fiz nada errado. E ele começou a correr atrás de mim, eu saia pela porta dos fundos e ele correndo atrás de mim…e eu entrando pela porta da frente e eu gritando e os vizinhos começaram a vir para o lado de fora da minha casa” (Esperanza 02, Relato 12/2019).
Recortes que são o retrato de histórias de muitas outras mulheres, que lutam interna e externamente para manter-se firmes, em pé e com dignidade. Segundo Luft (2005) o fato de ser mulher torna mais complexo o drama, talvez por estar convencionado, desde o tempo das cavernas que o homem seja mais forte e a mulher mais frágil, sendo o homem o dono do dinheiro e a mulher dependente de mesada. Segundo a autora, muitas mulheres ainda trazem o dinheiro do seu trabalho, para que o marido o administre, porque sentem-se incapazes ou temem que sendo capazes deixe o marido inseguro e agressivo.
“A culpa não deixa. O medo de perder o parceiro não permite. O receio da solidão, pior ainda. Tudo fica como está: por debaixo das aparências corre o rio turvo do lento e tácito suicídio a dois, físico ou moral. É a morte das alegrias e da ternura, um acordo fatal no qual a esperança é revogada. […] nem falo da guerra surda que se desenrola tão seguidamente entre casais – ou comodismo, nos impedem de agir. Levantam aquelas intransponíveis colunas de Hércules que serão derrubadas algum momento mais tarde com violência e dor, ou serão o monumento em honra de duas existências boicotadas” (LUFT, 2005 p.85).
Por conseguinte, Parente (2006), afirma que cada pessoa traz consigo diferentes versões de um mesmo contexto, pois apoiam-se em suas vivências, cultura, influências do meio, conhecimento sendo estes criados ou compartilhados, o que torna a história oral tão singular e significativa. Através do relato o indivíduo, dá-se o conhecer da história: “conta não apenas o que fez, mas o que gostaria de ter feito, o que acreditava estar fazendo e o que agora pensa que fez” (PARENTE, 2006, p.300).
Segundo o site do Instituto Igarapé[5], entre os anos de 2015 e 2018 no Brasil, mais de 17 mil mulheres foram assassinadas. Neste mesmo período mais de 650 mil mulheres foram estupradas e mais de 250 mil mulheres reportaram lesão corporal dolosa. Os casos de homicídio doloso chegaram a 15 mil e mais de 2 mil mulheres foram vítimas de feminicídios no mesmo período. Somente no ano de 2018, mais de 130 mil mulheres reportaram violência moral.
Em 2019, infelizmente, 52%, das violências acometidas em mulheres, ficaram na maioria das vezes embiocados. Ou seja, a grande maioria das vítimas nada faz em relação ao fato ocorrido, uma série de fatores desde os mais pessoais, familiares ou econômicos influenciam quanto a essa atitude. Apenas 10,3% das mulheres denunciou em uma Delegacia da Mulher e 8,0% dos casos foram denunciados em uma Delegacia comum. Já para o ano de 2020, com o processo de isolamento social devido à pandemia de COVID-19 que assolava o planeta, constatou-se que houve redução na maior parte dos registros de crimes contra a mulher. Isso deve-se provavelmente em função do maior tempo de permanência junto ao agressor e consequente manipulação física e psicológica sobre a vítima. (RELATÓRIO VISIVEL E INVISIVEL, 2021).
Ainda se percebe que a procura de ajuda acontece dentro da própria família em 15,2% dos casos; e com os amigos corresponde a 9,6% e da igreja em 7,6% dos casos.
“Eu já fazia mais ou menos um ano e pouco que eu tava indo no AA, para aprender a tratar dele… que ele sempre dizia que tinha motivo para beber… só que motivo… não tinha nenhum, para ele beber. Mas toda pessoa que gosta de beber sempre acha motivo. […] Meu filho mais velho com 13…14 anos ele viu meu sofrimento e um dia resolveu falar com o pai dele. Mandou que sentasse na sala e disse para o pai dele assim: “pai o senhor não faz falta nenhuma nessa casa. Eu já estou trabalhando… em uma loja e eu vou fazer o seguinte pai…eu trabalho…eu estudo de manhã e trabalho na parte da tarde. Então nós vamos fazer o seguinte: Eu vou começar a trabalhar o dia inteiro e a minha irmã, a gente põe no colégio que fique desde a parte da manhã até de tarde, e a mãe, também vai procurar um trabalho e a gente vai se sustentar. Então o senhor pega sua mala e vai embora que o senhor não faz falta nenhuma nessa casa.” (Esperanza 02, Relato 12/2019).
Ainda no ano de 2019, uma Pesquisa Datafolha apontou que a violência causada por indivíduos conhecidos chega a 76,4%, sendo que o cônjuge, companheiro ou namorado são os responsáveis em 23,8% dos casos; e o vizinho(a) 21,1%. Os ex-relacionamentos também estão presentes nesta estatística sendo ex-cônjuge / ex-companheiro / ex-marido, totalizando 15,2% dos casos. Este mesmo relatório ainda afirma, que as mulheres negras são as que mais sofrem violência, o que vem engrossar as estatísticas da desigualdade racial. Porém os dados apresentados, trazem uma realidade parcial, podendo esta ser muito maior, pois nem sempre as vítimas denunciam seus agressores.
“Eu fui criada vendo desenho animado de princesas e fadas na minha cabeça e pela minha educação, o casamento era algo assim maravilhoso, quando a gente encontra um príncipe encantado e aí: felizes para sempre. Mas às duras penas eu entendi que a vida real é completamente diferente. Mas hoje, com vinte e dois anos de casados, nós tivemos inúmeros atritos. Foram várias, várias, vários momentos que as discussões culminaram em agressões físicas e verbais. Físicas da parte dele e verbais minha e dele. Mas estamos juntos até hoje. E já tiveram outras brigas e discussões, e até hoje nós não conseguimos alinhar. Essa é a verdade. Até hoje a gente não consegue alinhar o relacionamento. A gente não consegue harmonizar a relação. É uma relação conflituosa, falta muito respeito. […]Porque eu vi que ele não ia…. ele não cede, ele não muda, eu comecei a responder no tom que ele me responde. Então não é uma relação harmoniosa. Mas o que, que ocorre? Porquê que eu estou nessa relação até hoje?” (Esperanza 01 – relato de 12/2019).
São muitas as questões internas impostas a si mesmas tornando-as, apesar da singularidade, iguais a tantas outras “Esperanzas”, deixando em aberto uma das perguntas mais comuns e mais importantes, que surgem diante das relações que machucam: “Porque, eu estou nessa relação até hoje?”
Em março de 2020, teve início a pandemia de covid-19 no país. O Fórum de Segurança Pública (FBSP/2022) apresentou em publicação que até dezembro de 2021 foram registrados 2.451 feminicídios e 10.393 casos de estupro, estupro de vulnerável de vítimas do gênero feminino. Outro dado impressionante neste levantamento aponta que no ano de 2021, uma mulher foi vítima de feminicídio a cada 7 horas, assim como, a cada 10 minutos, uma menina ou mulher sofreu estupro, considerando-se somente os dados que chegaram as autoridades competentes.[6]
Segundo o artigo ‘Gênero, injustiça e segurança no Brasil e na Colômbia: como prevenir e tratar da violência contra mulheres?”[7] (2018, p. 3):
“A violência contra mulheres está profundamente relacionada à desigualdade de gênero, que se manifesta pela prevalência de um status inferior às mulheres. As consequências incluem salários inferiores, expectativas sobre seu papel na sociedade e até mesmo diversas formas de violência em razão do gênero, entre outras.”
Figura 2: Índice de violência no Brasil – 2017
Atualmente a sociedade busca vencer as barreiras e a invisibilidade quanto ao termo “gênero”. Enquanto essa invisibilidade continuar afirmada vai ficando cada vez mais longe de conquistar a equidade de direitos. Segundo o relatório: “Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil (2019 p. 28):
“[…]uma entre quatro mulheres sofreu algum tipo de violência em 2018, sendo que, na maioria dos casos, o perpetrador era conhecido da vítima (76,4%).
[…]o Brasil teve 16.424 notificações de estupro de crianças e adolescentes menores de 19 anos de idade. Desse total, 86,6% dos casos foram de meninas, contabilizando 14.217 vítimas do gênero feminino. No que diz respeito à exploração sexual, foram notificados 781 casos, dos quais 85,5% das denúncias referem-se às vítimas do gênero feminino. ”
É importante deixar registrado que muitas localidades ainda não possuem a Delegacia Especializada de Apoio à Mulher. Outra questão fundamental é quanto ao preparo dos policiais que atendem mulheres vítimas de alguma violência baseada em gênero. Seriedade e celeridade, nos casos de violência doméstica são pontos também importantes no processo pois, pôr fim à impunidade, pode colaborar para que mais mulheres que sofrem algum tipo de agressão sintam-se incentivadas a procurar os órgãos oficiais.
“No outro dia eu fui procurar um advogado…cheguei lá no advogado ele pediu pra eu fazer um BO…. Eu fui fazer um BO. Mas o delegado lá não me deu muita importância…. não me deu a mínima importância. Disse que isso era coisa…normal que acontecia entre casais e não me deu a mínima importância. Mas, eu, com meu advogado, já tinha falado que era pra eu ir fazer um corpo de delito… daí eu fui lá… fiz…eu tinha manchas pelo corpo tinha roxos…roxos pelo rosto…fiquei vários dias inclusive com aquelas marcas no meu rosto, preto nos olhos… a cabeça doía muito… meu olho doía muito.”[8] (Esperanza 02).
Breve análise dos casos no Tocantins
Segundo Oliveira (2019) o Tocantins tem área de 277.620,9 Km², o que corresponde a 7% da região Norte, e 3,3% do território nacional. A capital do estado é Palmas. Entre o período de 2000 a 2010 a população cresceu 22,5%, sendo considerado um crescimento médio. O desenvolvimento econômico e a urbanização do estado, só aconteceram nos primeiros anos do século XXI.
O estado se subdivide em 139 municípios (IBGE, 2010), porém apenas 12 localidades contam com Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher e Vulneráveis, muitas com implementação recente. Nos demais municípios, os casos de violência doméstica, assim como outros, são atendidos pelas Delegacias de Polícias. Vale destacar que a grande maioria das DEAMVs estão localizadas ao longo da BR-153 (Belém-Brasília) praticamente no eixo central do Estado.
Figura 3: Ocorrências de violência contra mulher no Tocantins – 2019
No ano de 2019, ocorreu em nível nacional o “I Fórum Permanente de Enfretamento à Violência Contra a Mulher – CONCPC”. O fórum ocorreu com o objetivo de determinar uma força tarefa para dar cumprimento à mandados judiciais, verificar as medidas protetivas de urgência e denúncias referentes a crimes de violência doméstica e familiar contra mulheres. No estado do Tocantins, foram presas 12 pessoas, cumpridas 74 medidas protetivas e lavrados 22 autos de prisão em flagrante. A operação recebeu o nome de Marias “fazendo referência e homenagem, à Maria da Penha que é o ícone da violência doméstica”.
O número de casos, sem dúvida nenhuma é muito mais expressivo do que aquele que aqui se mostra, haja visto que, a grande maioria dos municípios tocantinenses não tem a presença desta delegacia especializada.
No Balanço da Segurança 2019, Estatísticas Criminais, Período de Análise: Comparativo Anual 2018 – 2019[9], no item Crimes Violentos Letais e Intencionais, registrou-se em 2018, no Tocantins, um total de 6 casos de feminicídios e em 2019, uma pequena redução para 5 casos. Já no item Outros Crimes, os casos de estupro atingiram o número de 160 casos em 2018, e 163 casos em 2019. Os números são mais expressivos ainda quanto aos casos de estupro de vulnerável atingindo 485 casos em 2018 e 479 casos em 2019.
No mesmo relatório, no item de Produtividade das Forças de Segurança Pública referente a Atendimentos de Ocorrências, registrados e realizados pela Polícia Militar os números são assustadores, quanto aos casos de violência doméstica. Foram registrados em 2018 um total de 1.926 casos atendidos e no ano seguinte de 2019, houve um aumento de 5,0% um total de 2.022 casos, atendidos e registrados pela Polícia Militar no Tocantins.
Na Tabela 01 são apresentados dados extraídos da página de Secretaria da Segurança Pública do Tocantins, NUCAE – Núcleo de Coleta e Análise Estatística, no Painel de Monitoramento da Incidência Criminal no Tocantins.[10]
Os dados apresentados na Tabela 01, pós pandemia, possibilitam questionamentos para mais estudos e análises sobre questões que envolvem violência doméstica e gênero. Algumas indagações parecem evidentes: a) qual fator desencadeante faz com que a grande maioria das incidências aconteçam no Domingo?; b) há relação entre fator populacional X número de casos por munícipio, visto o estado do Tocantins ter municípios com baixo número de habitantes.
Tabela 1: Estatísticas de Violência, Lei Maria da Penha no estado do Tocantins
Fonte: Secretaria da Segurança Pública do Tocantins, NUCAE – Núcleo de Coleta e Análise Estatística, no Painel de Monitoramento da Incidência Criminal no Tocantins, 2022.
Abre-se aqui precedentes para novos estudos, pesquisas e ações para estudos de tal panorama de violência.
Oportuno registrar a ausência de políticas públicas que trabalhem de modo mais efetivo a conscientização dos envolvidos.
CONCLUSÃO
Muitos contatos foram mantidos antes de poder colher os relatos de cada uma das mulheres trazidas neste estudo. Como tantas outras “Esperanzas”, elas trouxeram suas cicatrizes, ora percebidas pelos suspiros, pelas pausas na busca das palavras certas, pela tensão da lembrança, pelas justificativas pessoais que por vezes são injustificáveis, e as perspectivas de querer saber se o que se faz, é realmente o correto, ou se não haveria outra saída para essas situações. Os depoimentos refletem, uma problemática atual envolvendo violência contra a mulher, que apesar de chocar a sociedade, continuam a acontecer.
Leis específicas foram efetivadas, porém ainda não foi possível conquistar a liberdade frente ao abismo da luta de gênero. A luta é árdua em busca da igualdade de condições e de direitos. O pré-conceito que se esgueira e esconde, embotado na sociedade, ainda marca o sentimento de posse, força e domínio de um gênero sobre o outro. Não é apenas o direito feminino, de interesse pessoal, mas, é o direito do coletivo, que traz também outras representações e que precisa gritar e manifestar-se para então, não mais acontecer.
O apoio, às leis mais eficientes, o conhecimento, a acessibilidade e a condição econômica precisam estar lado a lado no desenvolvimento humano, para poder propiciar uma identidade firme quanto a imposição de gênero.
Os dados apresentados, representam apenas uma parcela da realidade referentes aos casos de violência contra a mulher no estado. Infelizmente, ainda a grande maioria dos municípios tocantinenses, não tem instalado uma DEAM em seu município. Outro fator a ser destacado é que a partir da instalação de um sistema informatizado no ano de 2019, as Delegacias de Polícia, conseguiram realizar relatórios constantes, o que tornou o monitoramento e levantamento de estatísticas mais eficaz, e pode colaborar na propositura de ações de prevenção e de proteção visando a redução de casos.
As medidas passíveis de serem adotadas na prevenção, precisam ter foco em tratar os fatores desencadeadores das agressões e assim atuar na prevenção junto a sociedade, antes dos acontecimentos violentos. Nesse sentido, um estudo mais detalhado, a coleta de dados e a própria disseminação e publicação desses dados, pelos órgãos oficiais, deveria acontecer em separado dos demais índices, com tópico específico atendendo as tipificações da Lei Maria da Penha o que pode então, favorecer a realização de um diagnóstico preciso. Assim como, trabalhos de pesquisa, palestras, capacitações, sensibilização e combate aos fatores de risco, podem contribuir também, para construção da igualdade de gênero e redução da violência quanto a mulher e meninas.
Mas, é preciso que toda sociedade faça parte, que as políticas públicas aconteçam de modo eficaz quanto aos serviços de assistência, proteção e saúde voltados às mulheres e meninas que sofrem ou sofreram algum tipo de violência.
Outros fatores altamente eficazes na prevenção são: o acesso à educação, aos cursos profissionalizantes, esporte, arte, espaços seguros, campanhas de respeito ao gênero, políticas com foco multissetoriais, além de maior participação feminina na mobilização e junto a movimentos sociais.
Quanto à proteção, ela surge depois da violência acontecida, acolhendo, dando assistência e proporcionando segurança tanto a mulheres ou a meninas que tenham sofrido alguma situação de violência. Algumas ações já acontecem no estado referente ao acesso à justiça; canal de denúncia, trabalho com agressores, entre outros.
Ter forças para criar, inovar, vencer e renascer é algo inevitável, e deve brotar de dentro para fora – numa construção pessoal, na busca do caminho para vencer o direito lesionado. Abre-se aqui, margem para maiores estudos e pesquisas e propositura de ações diante da crescente quantidade de casos. Sem dúvida nenhuma, é preciso buscar meios para vencer a desigualdade e o desrespeito quanto ao gênero. Força e empoderamento às mulheres!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Balanço da Segurança 2019, Estatísticas Criminais, Período de Análise: Comparativo Anual 2018 – 2019, Secretaria de Segurança Pública, Governo do Estado do Tocantins. Disponível para Download em: https://central3.to.gov.br/arquivo/489005/ >aceso em 16.02.2020, 11:50h.
Brasil, III Relatório Luz da Sociedade Civil da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável, 2019.
Ciências Sociais em Perspectiva, v. 15 – nº. 29: p. 153 – 169; 2º sem. 2016 – Revisitando o pensamento do Gunnar Myrdal e Amartya Sen sobre o estado de bem-estar social – Nilton Marques Oliveira e Udo Strassburg.
Desenvolvimento regional e territorial do Tocantins/ Nilton Marques de Oliveira. – Palmas/TO: Universidade Federal do Tocantins / EDUFT, 2019.
Ertzogue, Marina Haizenreder& Parente, Temis Gomes. História e sensibilidade / Marina Haizenreder Ertzogue, Temis Gomes Parente et alii – Brasília : Paralelo 15, 2006.
Fórum Brasileiro de Segurança Pública – Visível e Invisível: A vitimização de mulheres no Brasil, 2ª Edição-2019.
Fórum Brasileiro de Segurança Pública – Visível e Invisível: A vitimização de mulheres no Brasil, 3ª Edição-2021.
Instituto Igarapé, Gênero, Justiça e segurança no Brasil e na Colômbia: como prevenir e tratar da violência contra mulheres, Artigo Estratégico 30 março de 2018 – disponível para Download. https://eva.igarape.org.br/.
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Secretaria de Segurança Pública do Tocantins. Disponível em <https://www.ssp.to.gov.br/> acesso em 02/12/2019 e 03/02/2020.
[1] https://eva.igarape.org.br/ acesso em 28.11.2019 às 22:17h.
[2] Relato colhido em 12/2019.
[3] Relato colhido em 12/2019.
[4] Relato colhido em 12/2019.
[5] https://eva.igarape.org.br/ acesso em 29.11.2019 às 17:08h.
[6] https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/03/violencia-contra-mulher-2021-v5.pdf Acesso em 17/08/2022. Disponível para download.
[7] Instituto Igarapé – disponível para download.
[8] Relato colhido em 29/12/2019.
[9] Secretaria de Segurança Pública, Governo do Estado do Tocantins. Disponível para Download em: https://central3.to.gov.br/arquivo/489005/
[10] NUCAE – Núcleo de Coleta e Análise Estatística. Disponível em: https://www.to.gov.br/ssp/estatisticas/37s2impwz72k – Acesso em 14/08/2022
1Bacharel em Direito pelo Centro Luterano de Palmas, Especialista em Teoria da Decisão Judicial – ESMAT-TJTO.
2Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Tocantins-UFT. Especialista em Gestão de Obras e Projetos pela Universidade Cruzeiro do Sul – SP. Mestre em Desenvolvimento Regional-UFT.
3[1]Licenciatura em Normal Superior, Pedagogia e História; Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Tocantins-UNITINS, Especialista em Gestão Educacional e Metodologia do Ensino de Linguagem – Língua Portuguesa, Artes e Educação Física; Psicopedagogia Institucional e Direito do Trabalho. Mestre em Desenvolvimento Regional-UFT.
4Graduada em Administração de Empresas pela pela Universidade Estadual do Tocantins-UNITINS, especialista em Auditoria e Perícia – UNITINS, e mestre em Desenvolvimento regional-UFT.