RETRATO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA EM TEMPOS DE PANDEMIA: PERCEPÇÃO DE PROFISSIONAIS DA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102410071841


Mariângela Baeta Silva1
Laurentina Moreira dos Santos2
Maria Ivanilde de Andrade3


RESUMO

A violência intrafamiliar atinge parcela importante da população e reverbera  de forma significativa sobre a saúde das pessoas que convivem com o agressor. Configura-se um problema de saúde pública relevante e um desafio para os profissionais da Atenção Primária em Saúde (APS), que  devem estar atentos para detectar e  acionar o sistema de saúde para que a vítima tenha acesso a assistência  multidisciplinar garantida, conforme prevê a Legislação vigente. Na realidade, a violência intrafamiliar é uma questão de grande amplitude e complexidade. A pandemia trouxe consigo o acirramento da violência doméstica em virtude do isolamento, aumento do estresse, redução nos proventos, desemprego, consumo de álcool e outras drogas. Essas situações são gatilhos para contribuir com o aumento da violência. O presente artigo, busca observar essas nuances e o seus impactos nos índices de violência, bem como mostrar a percepção da violência sob o ponto de vista dos profissionais da APS.

Palavraschave: Covid-19. Violência doméstica. Distanciamento social. Atenção primária.

INTRODUÇÃO

A violência doméstica também denominada violência intrafamiliar constitui-se em uma inaceitável forma de violência contra os direitos das mulheres. É um problema complexo e grave, que afeta milhões de pessoas em todo o mundo, ocorrendo principalmente em relações íntimas e familiares.

A violência doméstica é definida por toda ação ou omissão que prejudique o bem estar, a integridade física, psicológica ou forma de negar às mulheres, principalmente, o exercício do direito à vida, à liberdade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. Pode ser cometida dentro ou fora de casa, por qualquer integrante da família que esteja em relação de poder com a pessoa agredida. Inclui também as pessoas que estão exercendo a função de pai ou mãe, mesmo sem laços de sangue (MIURA et al., 2018).

Sob o escopo jurídico, de acordo com o art. 5º da Lei Maria da Penha, violência doméstica e familiar contra a mulher é “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” (BRASIL, 2006). A violência doméstica pode assumir diversas formas, e suas consequências são devastadoras para as vítimas, podendo afetar seu bem-estar físico, emocional e psicológico.

As consequências da violência doméstica são vastas e devastadoras. No nível pessoal, as vítimas podem sofrer lesões físicas, problemas de saúde mental (como depressão, ansiedade, e transtorno de estresse pós-traumático), problemas de confiança, isolamento e dificuldades financeiras. Além disso, a violência doméstica tem impacto sobre os filhos, que, ao presenciarem o abuso, podem desenvolver traumas e replicar comportamentos violentos no futuro.

Exemplo disso foi o cenário da pandemia da Covid-19, que introduziu diversas estratégias de enfrentamento baseadas em medidas individuais como por exemplo: o isolamento social, lavar as mãos, o uso de máscaras com o objetivo de reduzir a transmissão do vírus via respiratória e por contato. As medidas de isolamento social elevaram o risco de violência doméstica, pois, aumentou o a exposição à estressores econômicos, psicológicos, uso indevido de álcool e outras drogas, dificuldade de se desvencilhar de relacionamentos abusivos devido às medidas restritivas (YOSHINO et al., 2021).

Nesse contexto, o aumento da violência intrafamiliar ocorreu de forma indiscriminada, atingindo todas as classes sociais e culturais, sendo atenuado pelo isolamento social. A violência doméstica, por si só, apresenta uma cortina de silêncio, medo e insegurança por parte da vítima, o que acaba protegendo os agressores. Essa invisibilidade está atrelada a dependência financeira e emocional ou até mesmo devido a ameaças do agressor. A pandemia da Covid-19 trouxe muitos desafios sociais e econômicos, e um dos impactos mais alarmantes foi o aumento da violência doméstica em várias partes do mundo.

O isolamento social necessário para conter a disseminação do vírus forçou muitas vítimas de violência doméstica a ficarem confinadas com seus agressores, sem a possibilidade de sair ou buscar ajuda de maneira segura. Além disso, o uso excessivo de álcool e drogas, muitas vezes exacerbado em tempos de crise, também foi um fator relacionado ao aumento da violência doméstica. Com o fechamento ou a redução de operações de muitos serviços públicos e organizações de apoio durante a pandemia, as vítimas tiveram menos acesso a abrigos, linhas de apoio e outros recursos. Com os sistemas de saúde focados em combater a pandemia, os serviços de saúde mental e apoio às vítimas de violência doméstica ficaram sobrecarregados ou foram temporariamente suspensos. Isso afetou a capacidade das vítimas de receber o suporte necessário. Muitas vítimas, presas em casa com seus agressores, não conseguiam fazer chamadas de emergência sem serem ouvidas, e em muitos casos, tinham medo de retaliações.

Em muitas situações, as vítimas de violência doméstica não denunciaram o abuso por vários motivos, como vergonha, estigma social e falta de apoio. Em muitos casos, a vítima não encontra apoio suficiente em familiares, amigos ou instituições. Nesse sentido, os profissionais que atuam nas políticas públicas têm papel estratégico na prevenção das violências e podem ser os únicos a terem contato com as pessoas vulneráveis neste momento de pandemia. Por isso, é importante estar atento para as diferentes expressões da violência e as estratégias de cuidado disponíveis durante as possíveis fases da pandemia, a fim de possibilitar o acolhimento e a escuta, viabilizando a ajuda e formando uma rede de apoio que permita à vítima o acesso ao atendimento e ao cuidado (BRASIL, 2020).

As vítimas da violência doméstica em geral são: crianças, idosos e principalmente as mulheres. Desse modo, ao receber uma vítima de violência no serviço de saúde é importante que o profissional esteja preparado para identificar os sinais de violência e realizar a notificação compulsória de violência, que no âmbito da saúde é um instrumento de garantia de direitos (BRASIL, 2020).

 A realização do acolhimento adequado, a orientação, o apoio a pessoa em situação de violência e o acesso a rede intersetorial de proteção e cuidado são tão importantes quanto o ato de preencher a notificação. Pois, a ficha de notificação dever ser um instrumento disparador da linha de cuidado às pessoas em situação de violência. Para isso o sistema deve estar preparado, para não expor e vulnerabilizar ainda mais as vítimas de violência doméstica.

Outro fator importante que deve ser observado pelo profissional da saúde é a legislação específica aplicada em violência doméstica contra idosos, crianças e deficientes, pois nesses casos além de notifica-los é precioso acionar as autoridades competentes.

No caso de crianças e adolescentes, é obrigatória a comunicação ao Conselho Tutelar, conforme versa o Art. 13° da Lei 8.069/1990 que tem como atribuição verificar a situação e acionar o Ministério Público, a autoridade policial e a jjustiça, quando houver necessidade.

O Estatuto da Pessoa Idosa, estabelece, na  Lei nº 10.741 de 2003, Art. 9°, que os casos de violência praticada contra idosos serão obrigatoriamente comunicados à autoridade policial, Ministério Público e/ou Conselho da Pessoa Idosa. Quanto às pessoas com deficiência, a Lei nº 13.146 de 2015, determina que a Autoridade policial seja acionada.

No caso de mulheres adultas que não sejam nem idosas nem tenham deficiência, as equipes de saúde devem informar sobre os serviços da rede intersetorial de proteção social e sobre a importância da denúncia, mas não devem comunicar ou denunciar o caso sem a sua autorização. Em todos os casos, o atendimento deve respeitar a autonomia da mulher e seu direito de escolha e obedecer às normativas do Ministério da Saúde.

O objetivo desse trabalho foi analisar, sob a percepção dos profissionais da saúde que atuam na Atenção Primária à Saúde (APS), como a pandemia da Covid-19 impactou no aumento de casos de violência doméstica na população.

METODOLOGIA

Para construção de argumentos que sustentasse o presente trabalho, optou-se pelo uso de métodos dialéticos e quantitativos. Valendo-se de mecanismo de busca em artigos científicos, legislação, monografias, revistas e estatísticas de instituições oficiais, onde aplicou-se a metodologia de revisão bibliográfica. Foram revisados artigos na língua portuguesa, tendo como bases cientificas: PubCovid-19, a qual está indexada na Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos (PubMed), Scielo, além de Órgãos de Saúde Pública e livros a respeito da violência contra vulneráveis. Foram usados os seguintes descritores: Covid-19, violência doméstica, distanciamento social, atenção primária e pandemia.

RESULTADOS

O acirramento da violência doméstica na pandemia da Covid-19

A violência não se limita a agressão física, conforme dispõe no artigo7º.da lei 11.340/2006 “Lei Maria da Penha”.

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:  – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;  II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause danos emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;  IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;  – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria (BRASIL, 2006). 

Ainda que o sob o ponto de vista legal e o olhar do Ministério da Saúde as violências denominadas domésticas sejam classificadas e diferenciadas, essas formas de violência fazem parte de uma trama única que são entrelaçadas.

Quando se investiga a violência doméstica articulam-se violência psicológica e a física. De modo que, o conceito de violência doméstica é ampliado conforme consta na Declaração sobre a Eliminação da Violência Contra a Mulher, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1993, onde se lê:

 Todo ato de violência baseado em gênero, que tem como resultado, possível ou real, um dano físico, sexual ou psicológico, incluídas as ameaças, a coerção ou a privação arbitrária da liberdade, seja a que aconteça na vida pública ou privada. Abrange, sem caráter limitativo, a violência física, sexual e psicológica na família, incluídos os golpes, o abuso sexual às meninas, a violação relacionada à herança, o estupro pelo marido, a mutilação genital e outras práticas tradicionais que atentem contra mulher, a violência exercida por outras pessoas – que não o marido – e a violência relacionada com a exploração física, sexual e psicológica e ao trabalho, em instituições educacionais e em outros âmbitos, o tráfico de mulheres e a prostituição forçada e a violência física, sexual e psicológica a perpetrada ou tolerada pelo Estado, onde quer que ocorra (OMS, 1998, p.7).

Para a maioria das mulheres que sofrem agressão física, esse não é um evento isolado, mas parte de um padrão contínuo de comportamento abusivo, ou seja, muitas vezes os atos de violência física acontecem de maneira sistemática dentro da dinâmica do casal, ocorrendo frequentemente, podendo chegar até a episódios diários. Nesse aspecto, o abuso de álcool e outras drogas são considerados como um fator associado à violência física entre os parceiros.

Em uma pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020) indicou que caiu violência na rua e aumentaram agressões dentro de casa. Os autores das agressões que mais apareceram foram: pai, mãe, irmão, irmã, e outras pessoas do convívio familiar. Comparada as pesquisas anteriores, houve um aumento do número de casos de agressão dentro de casa, que passaram de 42% para 48,8%, em contrapartida foi observada uma queda no número de violência nas ruas (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020).

No Brasil, durante a pandemia, a violência doméstica. A redução do contato social como uma das medidas para evitar a disseminação do vírus Sars-Cov-2 e o consequente confinamento fizeram com que as mulheres ficassem reclusas com seus agressores, o que levou ao acirramento da violência (MARQUES et al., 2020).

Dados divulgados no Anuário de Segurança Pública apontam que o confinamento fez crescer os casos de feminicídio. Somente no primeiro semestre de 2020, houve um aumento de 1,9% de casos se comparado ao mesmo período de 2019, totalizando a morte de 648 mulheres vítimas dessa violência (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020).

Abordagem dos profissionais de saúde às mulheres vítimas de violência doméstica

A violência, não necessariamente, precisa estar explícita no corpo da mulher para indicar situações de agressão. Antes de iniciar uma conversa, é preciso que o profissional esteja aberto ao diálogo, disposto a ouvir e acolher uma vítima que ainda tem vergonha e medo de contar o que sofreu.

É importante que os profissionais estejam atentos a outros sinais que costumam estar atribuídos à violência e que podem contribuir para um atendimento mais ativo do profissional, como casos de depressão, problemas relacionados à saúde reprodutiva, DSTs (Doenças Sexualmente Transmissíveis), abortos, queixas vagas e uso continuado do serviço com pouca resolução (MELO et al, 2020).

Um documento elaborado pelo Grupo de Trabalho de Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC, 2020) orienta os profissionais de saúde a identificar possíveis sinais de violência doméstica.

Os profissionais devem ficar alertas aos sinais que a mulher pode apresentar durante o acolhimento com a equipe de enfermagem e ou durante a consulta médica. Entre os sinais estão sintomas de ansiedade, como cefaleia, náuseas, alterações no sono ou na fome, dor no peito e sensação de falta de ar. É preciso estar atento aos diagnósticos diferenciais, considerando também que a violência pode ser um fator desencadeante para descompensações de outros agravos (MARQUES et al., 2020).

Salienta-se o aspecto jurídico, que traz a obrigatoriedade do profissional da saúde a notificar o atendimento de mulheres vítimas de violência. A Lei nº 10.778/2003 obriga os serviços de saúde, públicos ou privados, a notificar casos suspeitos ou confirmados de violência de qualquer natureza contra a mulher. Nesse rol, está incluso os profissionais de saúde, como médicos e enfermeiros, e também os estabelecimentos, como postos e hospitais (BRASIL, 2003).

O estudo realizado pela Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC, 2020), retratou maior possibilidade de violência e comportamentos opressores por parte do parceiro durante as consultas, observando uma demora na busca por atendimento de saúde após algum problema, ferimentos incompatíveis com a história clínica e falta de autonomia para decidir sobre o planejamento familiar. Além do uso da situação de pandemia pelo parceiro como motivo para controlar ou manipular a paciente.

A abordagem pelo médico/ enfermeiro com o uso de perguntas abertas pode ajudar na identificação de mulheres que estivessem sofrendo violência. Nesse sentido, a SBMFC (2020), elaborou as seguintes perguntas:

Como estão as coisas em casa em tempos de isolamento?

As pessoas têm ficado mais nervosas?

Alguém já chegou a ser agressivo com você ou com seus filhos?

Alguém já lhe agrediu ou a seus filhos?

Você se sente segura em casa?

Como estão as relações sexuais nesse período de quarentena? Tem tido alguma dificuldade nessa área? (SBMFC, 2020).

Estas perguntas estimularam as pacientes a relatar algum comportamento que pudesse ser interpretado pelo profissional de saúde como uma resposta às agressões sofridas. Em tempos de pandemia, a APS passou por muitos desafios, no entanto, a identificação e a abordagem de mulheres em situação de violência precisaram ser mantidas como agenda prioritária nesse nível da atenção. O atendimento remoto, as teleconsultas e o apoio dos Agente Comunitários de Saúde (ACS) foram estratégias que as equipes da APS dispuseram para continuar cuidando de maneira integral, longitudinal e acessível de seus pacientes, principalmente daqueles mais vulneráveis (BRASIL, 2016).

Fatores que ampliaram a vulnerabilidade de mulheres à violência doméstica no contexto da pandemia

As medidas emergenciais necessárias para lutar contra a Covid-19 aumentaram o trabalho doméstico e o cuidado com crianças, idosos e familiares doentes. Restrições de movimento, limitações financeiras e insegurança generalizada também encorajaram os abusadores, dando-lhes poder e controle adicionais (ONU, 2020).

Sob esse aspecto houve maior dificuldade em buscar por ajuda, proteção e alternativas que ficaram suspensas em locais de acolhimento social, que ofereceram atividades em igrejas, creches, escolas e serviços de proteção social.  Durante a pandemia, a prioridade dos serviços de saúde focou nas ações de assistência aos pacientes com sintomas respiratórios e casos suspeitos e confirmados de Covid-19. Esses fatores contribuiram e favoreceram a manutenção e o agravamento das situações de violência já instaladas (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020).  

Frente ao cenário da pandemia, o profissional de saúde, muitas vezes, manteve uma atitude de isenção, mesmo com a suspeita de que o agressor estivesse próximo à vítima, na qual a abordagem teve que ser isenta de qualquer conotação moral, de acusação ou de censura, mantendo as intenções de esclarecer a suspeita ou confirmação dos maus-tratos. O objetivo foi contribuir para a proteção da mulher contra novas agressões. Na abordagem, o profissional precisou ser empático, uma vez que, na maioria das vezes, a intervenção teve como um dos objetivos contribuir para a reorganização dos vínculos familiares. No diálogo com a mulher, o profissional manteve o cuidado para que a abordagem do assunto não causasse ainda mais sofrimento à vítima (MELO et al, 2020).

Nesse aspecto, a pandemia impactou nas relações interpessoais e conjugais, o maior tempo de convivência com o agressor é crucial. Ademais, ao se reduzir o contato social da vítima com amigos e familiares, reduzem-se as possibilidades de a mulher criar e/ou fortalecer uma rede social de apoio, buscar ajuda e sair da situação de violência. A convivência ao longo de todo o dia, especialmente entre famílias de baixa renda vivendo em domicílios de poucos cômodos e grande aglomeração, reduzem a possibilidade de denúncia com segurança, desencorajando a mulher a tomar esta decisão (BARBOSA; BOFF, 2021).

Ante a situação de violência, a presença do profissional de saúde, sobretudo os da APS, que são os profissionais próximos da vítima, foi de extrema relevância, para detectar sinais e sintomas relacionados a agressão, visto que a vítima teve dificuldade de acesso a amigos e familiares que poderiam ajudá-la a sair da situação de violência. A pandemia também serviu de estopim para o agravamento da violência no âmbito individual, pois gerou o aumento do nível de estresse do agressor gerado pelo medo de adoecer, a incerteza sobre o futuro, a impossibilidade de convívio social, a iminência de redução de renda especialmente nas classes menos favorecidas, em que há grande parcela que sobrevive às custas do trabalho informal. Todas essas situações somadas ao consumo de bebidas alcoólicas ou outras substâncias psicoativas (BARBOSA, BOFF, 2021).

O medo da violência também atingir seus filhos, restritos ao domicílio, foi mais um fator paralisante que dificultou a busca de ajuda. Por fim, a dependência financeira com relação ao companheiro em função da estagnação econômica e da impossibilidade do trabalho informal em função do período de quarentena foi outro aspecto que reduziu a possibilidade de rompimento da situação, desse modo, muitas mulheres se calaram e preferiram sofrer as agressões sem relatá-las, em função da estabilidade financeira e proteção dos filhos (BARBOSA; BOFF, 2021).

No contexto incerto da pandemia, o profissional da APS, muitas vezes, foi a única pessoa que pode auxiliar a vítima a sair de uma situação de agressão. Os profissionais da APS devem passar por treinamentos periódicos, buscando sempre uma abordagem humanizada, para que não haja a revitimização da mulher no momento em que busca ajuda (FREITAS et al., 2013).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo evidenciou que o confinamento, durante a pandemia, ampliou a violência doméstica e familiar contra as mulheres no Brasil. Violência essa que abarca não apenas as agressões físicas e psicológicas, mas que deixa marcas indeléveis, nem sempre passíveis de recuperação, fazendo com que muitas dessas mulheres se isolem do convívio familiar e social. Neste contexto, ficou claro a importância dos profissionais de da APS na abordagem e identificação de mulheres em situação de violência intrafamiliar.

O isolamento, decorrente da pandemia, além de trazer repercussões às próprias mulheres vítimas de violência, a exemplo da ideação suicida, trouxe também a necessidade de espraiar seus reflexos aos filhos e familiares, resultando em diversas consequências negativas que reverberam, direta ou indiretamente, no contexto da sociedade.

O acolhimento realizado de forma minuciosa pelos profissionais de saúde se faz de extrema importância. A notificação dos casos de violência contra as mulheres, propicia a criação de políticas públicas voltadas para mitigar esse tipo de violência e o mais importante, que ao identificar a violência e a vítima, os profissionais podem oferecer assistência e apoio social à mesma, que pode buscar por vias legais a punição do seu agressor.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, V. K.; BOFF, R. O acirramento da violência doméstica contra a mulher no Brasil durante a pandemia da COVID-19. Trayectorias Humanas Trascontinentales, v. 9, 2021.

BRASIL. Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003. Estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil: seção 1, Brasília, DF, p. 1, 25 nov. 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.778.htm. Acesso em: 28 set. 2024.

BRASIL. Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 8 ago. 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 28 set. 2024.

BRASIL. Ministério da Saúde (org.). Violência doméstica e familiar na covid-19: saúde mental e atenção psicossocial na pandemia covid-19. Brasília: Fiocruz, 2020. 22 p.

BRASIL. Ministério da Saúde. Protocolos da Atenção Básica: Saúde das mulheres.1ª ed, 1ª. Reimp, p. 224, Brasília: Editora MS: 2016.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Relatório [ou título do documento]. São Paulo, 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/. Acesso em: 28 set. 2024.

FREITAS, W. M. F et al. Concepções dos profissionais da atenção básica à saúde acerca da abordagem da violência doméstica contra a mulher no processo de trabalho: necessidades (in)visíveis. Saúde em Debate. 2013, v. 37, n. 98, pp. 457-466.

MARQUES, E. S et al. A violência contra mulheres, crianças e adolescentes em tempos de pandemia pela COVID-19: panorama, motivações e formas de enfrentamento. Cadernos de Saúde Pública [online]. v. 36, n. 4, e00074420.

MELO, B. D et al. (org). Saúde mental e atenção psicossocial na pandemia Covid-19: violência doméstica e familiar na Covid-19. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2020, 22 p.

MIURA, P. O. et al.. Violência doméstica ou violência intrafamiliar: análise dos termos. Psicologia & Sociedade, v. 30, p. e179670, 2018.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. (ONU.) Nações Unidas Brasil. Relatora da ONU: Estados devem combater violência doméstica na quarentena por COVID-19. Disponível em: https://nacoesunidas.org/relatora-da-onu-estados-devem-combater-violencia-domestica-na-quarentena-por-covid-19.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Relatório Mundial sobre Violência e Saúde. Genebra: OMS, 1998. p. 7.

SOCIEDADE BRASILEIRA DE MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE (SBMFC). Recomendações da SBMFC para a APS durante a pandemia de Covid-19. Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. 1ª Edição,16 de maio de 2020.

YOSHINO, F et al. Violência Doméstica na Pandemia. Persp Med Legal Pericia Med, v. 6: e210304, 2021.


1Médica da Secretaria Municipal de Jaboticatubas. Mestranda em Gestão de Serviços da Atenção Primária (FUNIBER). Docente do Curso de Medicina – FASEH, Vespasiano/MG, Brasil;

2Biomédica. Especialização em Gestão Pública em Saúde (UFSJ) e Vigilância Sanitária com ênfase em Saúde Coletiva (PUC-MG). Prefeitura Municipal de Jaboticatubas;

3Enfermeira. Gerontóloga. Mestre em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local. Doutoranda em Biotecnologias em Saúde (UNP/RN). Docente e Professora TI em Pesquisa do Curso de Medicina da FASEH, Vespasiano/MG, Brasil. E-mail: vaninhaenf@hotmail.com