REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102412140930
Kaio Matheus Peralva Dantas¹
Mariana Miranda²
Resumo
Objetivo: Refletir, a partir de publicações acerca da temática e dos dispositivos legais brasileiros, acerca da ressocialização de presos no Brasil a partir do princípio da dignidade. Método: Trata-se de um estudo reflexivo, estruturado a partir da literatura disponível, dos dispositivos legais brasileiros e de estudos filosóficos que dispõem sobre a temática. Resultados: A partir da leitura dos materiais utilizados como base para este estudo reflexivo, definiu-se duas categorias: O princípio fundamental da dignidade humana; Aspectos que interferem o processo de ressocialização das pessoas privadas de liberdade e reverberam na garantia da dignidade humana. A primeira discorre sobre a definição de dignidade, seu percurso histórico e os marcos importantes relacionadas a este princípio. Na segunda categoria, discorremos sobre os aspectos que envolvem o processo de ressocialização e os fatores que influenciam negativamente, de modo a estimular o pensamento crítico sobre a importância de pensar sobre a ressocialização associada ao dever que o Estado tem de prover e garantir a dignidade da pessoa humana. Considerações finais: A ressocialização das pessoas privadas de liberdade e a garantia da dignidade da pessoa humana para as mesmas são um problema de ampla magnitude que sofre influências sociais, econômicas, estruturais, ambientais, políticas e culturais.
Palavras-Chave: Dignidade. Pessoas privadas de liberdade. Ressocialização. Direitos humanos.
Abstract
Objective: To reflect, based on publications on the topic and Brazilian legal provisions, about the resocialization of prisoners in Brazil based on the principle of dignity. Method: This is a reflective study, structured based on available literature, Brazilian legal provisions and philosophical studies that address the topic. Results: From reading the materials used as a basis for this reflective study, two categories were defined: The fundamental principle of human dignity; Aspects that interfere with the process of resocialization of people deprived of their liberty and impact the guarantee of human dignity. The first discusses the definition of dignity, its historical trajectory and the important milestones related to this principle. In the second category, we discuss the aspects that involve the resocialization process and the factors that negatively influence it, in order to stimulate critical thinking about the importance of thinking about resocialization associated with the State’s duty to provide and guarantee the dignity of society. human person. Final considerations: The resocialization of people deprived of liberty and the guarantee of human dignity for them is a problem of broad magnitude that suffers social, economic, structural, environmental, political and cultural influences.
Keywords: Dignity. Persons deprived of liberty. Resocialization. Human rights.
Introdução
No contexto brasileiro, é perceptível o aumento da criminalidade e, para além disso, a reincidência no crime, fazendo com que cada vez mais sejam construídos presídios para conseguirem abrigar as pessoas privadas de liberdade. Só no primeiro semestre de 2024, no Brasil, haviam 663.906 custodiados em celas físicas (Brasil, 2024). Contudo, o fato que chama atenção e merece reflexão a respeito são as taxas de reincidência ao mundo do crime, o que nos leva a inferir que há uma deficiência nos programas de ressocialização e/ou que numericamente eles são incipientes e não conseguem abarcar a demanda existente (Freitas, 2022).
Diante desse contexto, e perante o que traz a lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Brasil, 1984) que institui, no Brasil, a Lei de Execução Penal, e em seu artigo primeiro afirma que tem como objetivo a efetivação das disposições de sentença e decisão criminal, de modo a proporcionar condições para que a integração social do condenado ou internado aconteça de maneira harmônica (Brasil, 1984), faz-se necessário refletirmos acerca da ressocialização no contexto brasileiro.
A Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso (FUNAP), órgão vinculado à Secretaria de Justiça e Cidadania afirma que o processo de ressocialização é uma jornada que vai além do simples retorno do indivíduo privado de liberdade à sociedade, tem como base a reintegração social (FUNAP, 2024).
Logo, fica claro a necessidade de um movimento social em conjunto com o Estado a fim de promover ações efetivas e eficazes em torno do processo de ressocialização, compreendendo a importância da mesma na vida daqueles que estavam sob custódia do Estado.
Um importante caminho a ser trilhado em busca de efetiva e eficácia diante da ressocialização é fortalecer o conceito de dignidade, sendo esta um princípio fundamental garantido pela Constituição Federal (1988), tendo suas bases fundamentadas na Lei Fundamental alemã de 1949, passando por ampla discussão e amadurecimento conceitual, se tornando um princípio constitucional supremo em resposta aos atos praticados na Segunda Guerra Mundial (Mendes, 2013).
Dito isso, compreende-se que a garantia desse princípio as pessoas privadas de liberdade perpassa pela criação de oportunidades de emprego e capacitação desses indivíduos com habilidades relevantes, sendo estas não apenas direcionadas ao mercado de trabalho, mas de forma a proporcionar oportunidades de construção de carreira (FUNAP, 2024) e reinserção no seio social.
Portanto, refletir acerca da ressocialização à luz da dignidade da pessoa humana no contexto brasileiro é de suma importância para despertar questionamentos e apontar possíveis caminhos a serem trilhados para diminuição dos índices de reincidência criminal, garantindo as pessoas privadas de liberdade oportunidades de mudança.
Logo, o presente estudo objetiva refletir, a partir de publicações acerca da temática e dos dispositivos legais brasileiros, acerca da ressocialização de presos no Brasil a partir do princípio da dignidade.
Metodologia
Trata-se de um estudo reflexivo (Rother, 2007), estruturado a partir da literatura disponível e revisão narrativa das mesmas, dos dispositivos legais brasileiros e de estudos filosóficos que dispõem sobre a temática. Durante o curso da graduação, a partir de discussões fomentadas em sala de aula com docentes e discentes, houve a identificação da necessidade de aprofundar os estudos sobre a temática, de suma importância no contexto social, econômico e carcerário brasileiro.
Logo, para identificação de estudos relevantes nessa temática, foram utilizadas palavras-chave na busca por artigos científicos na ferramenta online Google Acadêmico, a saber: ressocialização; presos; dignidade; sistema carcerário brasileiro. Após leitura e seleção dos materiais que discutem sobre o processo de ressocialização no Brasil e o princípio da dignidade humana, foram definidas duas categorias para nortear o pensamento crítico-reflexivo do presente estudo, são elas: O princípio fundamental da dignidade humana; Aspectos que interferem o processo de ressocialização das pessoas privadas de liberdade e reverberam na garantia da dignidade humana.
O princípio fundamental da dignidade humana
A palavra dignidade deriva do latim “dignitas”, trazendo consigo o significado atrelado ao mérito e valor. Para tanto, durante a trajetória histórica da humanidade, esse valor se relacionou a religião e mérito, porém, ao cruzar caminhos filosóficos passou a ser interpretada associada a moral (Julião, 2014; Franco et al., 2019).
Um dos filósofos que se debruçou sobre o pensar acerca da dignidade Immanuel Kant, definindo-a como algo de valor incondicionado e incomparável, sendo, portanto, impossível negociar ou substituir (Kant, 209). Relaciona-se aos preceitos morais, respeito, reconhecimento enquanto ser, e, também, ao cuidado fundamental para com o ser humano.
Após a segunda guerra mundial, onde o respeito pela dignidade humana foi totalmente violado, inicia-se um movimento de reflexão global sobre a temática, aumentando, também, os estudos sobre como assegurar os direitos fundamentais do homem, dentre eles, a dignidade e o valor da pessoa humana (ONU, 1948).
Após esse movimento, houve a incorporação desse preceito ao campo jurídico, através da adoção da dignidade como princípio fundamental a partir das Constituições Federais de diversos países, incluindo o Brasil, que em seu artigo 1º, inciso III afirma que (Brasil,1988; Mendes, 2013):
“A República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, ao lado soberania, cidadania, valores sociais, do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político” (Brasil,1988, p. 1).
A partir disso, compreendemos que o Estado Democrático de Direito é indissociável da garantia dos direitos fundamentais, emergindo da necessidade de uma evolução (histórica), chegando ao plus normativo desse Estado na busca pelo resgate e garantia de igualdade, justiça social, dignidade, dentre outros direitos fundamentais previstos (Souto, 2019). Esse Estado se legitima a partir da Constituição, emitida a partir de desejo popular, representando a sua supremacia, garantindo a livre atuação da jurisdição constitucional (Souto, 2019).
Compreendendo os aspectos históricos, filosóficos e sociais que constituem o conceito de dignidade, compreendendo-a como afirma a Constituição Federal Brasileira enquanto princípio fundamental, faz-se importante refletirmos acerca do seu processo de garantia dentro do território brasileiro, para, posteriormente, associar as nossas reflexões ao contexto das pessoas privadas de liberdade.
Portanto, ao compreender o Estado Democrático de Direito, vincula-se ao dever de concretização dos direitos fundamentais, uma vez que a Administração Pública Brasileira deve pautar seus atos buscando a viabilização de tais direitos (Souto, 2019). Logo, a execução e garantia desse direito perante a sociedade brasileira, sem distinção, é dever do Estado, e para isso, este deve traçar planos de o fazê-lo.
Aspectos que interferem o processo de ressocialização das pessoas privadas de liberdade e reverberam na garantia da dignidade humana
A ressocialização das pessoas privadas de liberdade objetiva devolver às mesmas sua dignidade, transcendendo as ações puramente punitivas para a promoção da recuperação e reintegração dessas ao meio social, de modo que não haja oferecimento de risco ao meio que habita. Comumente associa-se a ações educativas e a capacitação para o trabalho (Lima; Brito; Alencar, 2020).
Discutir esse processo no contexto brasileiro perpassa por questões sociais, humanitárias e estruturais, demonstrando que a ressocialização efetiva das pessoas privadas de liberdade no país vivencia fragilidades em seus diversos contextos, sendo, portanto, imprescindível que essas questões sejam pontuadas a fim de serem objetos de reflexão na busca por melhorias.
Nesse sentido, entende-se por sistema penitenciário o conjunto de estabelecimentos onde as pessoas privadas de liberdade cumprem pena privativa em regimes fechado, semiaberto ou aberto, sendo regulamentado pela Lei nº 7.210/1984, que trata da Execução Penal e que apresenta em seu artigo 1º que: “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado” (Brasil, 1984).
Diante disso, fica claro o papel e a responsabilidade do Estado em promover oportunidades e meios para que a ressocialização aconteça de maneira efetiva, porém, tendo em vista os processos de reincidência criminal e superlotação das unidades prisionais, infere-se que esse não está sendo um processo eficaz e efetivo no cenário brasileiro.
Nesse sentido, Corbelino (2023) reflete que a ressocialização deve ser compreendida não como uma reeducação da pessoa privada de liberdade segundo os princípios e comportamentos que desejam para ele, mas a partir de uma reinserção social, pautada em um tripé: trabalho, educação e condições dignas no sistema prisional. Logo, o Estado deve desenvolver, também, um papel pedagógico, garantindo o atendimento as necessidades individuais e especiais das pessoas privadas de liberdade, bem como proporcionando meios e possibilidades da participação do mesmo nos sistemas sociais (Coberlino, 2023), principalmente através de capacitações.
Outro fator a ser discutido é a estigmatização dessas pessoas pela sociedade em geral, o que repercute negativamente na reinserção social das mesmas, de modo que pode ser justificado pela baixa iniciativa educativa dentro das unidades prisionais, e capacitativas também, demonstrando uma imagem apenas repressiva, denotando à sociedade uma incapacidade de mudança cultural, social, econômica e de princípios por parte da pessoa privada de liberdade, fortalecendo a estigmatização das mesmas e dificuldade em sua ressocialização (Campos et al., 2003)
A superlotação vai para além de um problema de infraestrutura, trata-se de um reflexo da inefetividade das políticas públicas brasileira que aumentam as desigualdades sociais profundas, possuindo, o Brasil, um modelo penal excessivamente punitivista e pouco resolutivo (Silva; Oliveira Filho, 2024). Consequentemente, há impactos reais na segurança pública, violação de direitos humanos, proliferação de violência dentro das unidades prisionais e uma dificuldade exacerbada em promover a ressocialização dessas pessoas (Silva; Oliveira Filho, 2024).
Percebe-se, portanto, que ao buscar uma ressocialização efetiva e que garanta a pessoa privada de liberdade o princípio fundamental da dignidade humana (Lima; Brito; Alencar, 2020), o Estado deve traçar estratégias que abarquem grandes problemas sociais, econômicos, políticos e institucionais, para, de fato, conseguir êxito na reinserção dessas pessoas dentro da sociedade.
Sendo um problema multifacetado, requer uma mudança cultural dentro da sociedade brasileira sobre o olhar para pessoa privada de liberdade com menos estigmatização, e para isso é necessário que o sistema penal brasileiro não mantenha seu carácter excessivamente punitivo, valendo-se da educação e capacitação como meios de promoção da ressocialização com êxito.
Considerações finais
Durante a elaboração do presente estudo foi possível perceber que a ressocialização das pessoas privadas de liberdade e a garantia da dignidade da pessoa humana para as mesmas são um problema de ampla magnitude que sofre influências sociais, econômicas, estruturais, ambientais, políticas e culturais.
Logo, a busca por um sistema penal efetivo no quesito da reinserção dessas pessoas na sociedade, garantindo a elas o respeito e a capacidade de se manterem distante da reincidência criminal requer ações multivariadas e que requerem tempo para serem executadas com êxito.
Partindo do pilar educação para sua efetividade, a ressocialização da pessoa privada de liberdade requer do Estado ações em via dupla, educar e capacitar o preso para sua reinserção social, e educar e capacitar a sociedade para contribuir nesse processo, indo de encontro a estigmatização dessa população a fim de promover acolhimento e oportunidades de mudanças sociais e econômicas das mesmas.
Ademais, discutir sobre a temática se faz extremamente relevante no contexto da formação de bacharéis em direito, tendo em vista a necessidade de compreender os diversos fatores que implicam diretamente no insucesso da ressocialização, bem como contribuem positivamente no aumento da reincidência criminal das pessoas privadas de liberdade.
Em se tratando de um problema amplo, complexo e multifacetado, essa discussão deve perpassar por reflexões profundas, de cunho social, histórico, cultural, econômico e de estigmatização dessas pessoas, a fim de contribuir com um processo de amadurecimento e reeducação da sociedade para acolher e abarcar as demandas dessas pessoas, tornando o processo de ressocialização efetivo e eficaz, contribuindo, inclusive para diminuição da reincidência criminal, fazendo com que a sociedade compreenda que a medida que a ressocialização se torna exitosa, o ciclo da reincidência pode ser rompido, e os ganhos sociais e econômicos para o país passam a ser inegáveis.
Referências
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