REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10201790
FLORES, Léia Ruth Vasconcelos dos Santos2
PASITTO, Fernando Teles3
RESUMO
O Abandono Afetivo Inverso ocorre ante a ausência de cuidados e prestação de assistência aos pais idosos, em regra, pelos seus descendentes. Nesse sentido, considerando o cenário brasileiro, a pesquisa aborda a Responsabilidade Civil: Uma análise legislativa, doutrinária e jurisprudencial acerca da possibilidade de retratação pecuniária nos casos de abandono afetivo inverso no âmbito familiar, cujo problema é: Como se caracteriza o fenômeno do abandono afetivo inverso e quais as consequências jurídicas no âmbito da responsabilidade civil e familiar? O presente estudo foi norteado tendo como objetivo geral analisar a possibilidade da incidência do dano moral e da retratação pecuniária nos casos concretos de abandono afetivo inverso. Os objetivos específicos determinados foram: identificar os efeitos sociais, familiares e pessoais do abandono e seus impactos na qualidade de vida do abandonado; demonstrar o que diz a legislação esparsa acerca do abandono afetivo dos descendentes para com as ascendentes; analisar o entendimento jurisprudencial e doutrinário sobre o tema. Esse estudo consiste em uma pesquisa bibliográfica de cunho qualitativo, contemplando obras literárias de importantes nomes da doutrina, e pesquisa documental, por meio da análise de leis e jurisprudência no âmbito nacional, tendo como fonte códigos, leis, dissertações e teses, ferramentas da internet, sites, entrevistas, jornais e revistas, redes sociais, entre outros. À vista disto, verifica-se que existe amparo legal, doutrinário e jurisprudencial para condenação ao filho que negligencia afetivamente o pai ou mãe idosos. Em contrapartida, embora haja respaldo, a comprovação do ilícito no plano concreto é algo difícil de demonstrar, uma vez que os abalos decorrentes da ausência de afeto se encontram na esfera subjetiva do ser, e, portanto, são mais difíceis de serem aferidos nos tribunais. Apesar de não pacificado na jurisprudência, a corrente doutrinária majoritária é positiva no que diz respeito ao cabimento de indenização por danos morais nos casos concretos de abandono afetivo inverso no âmbito familiar, em observância aos princípios norteadores do direito de família e os pressupostos acerca do ato ilícito e da responsabilidade civil. Tal conflito poderá ser dirimido com a uniformização do entendimento por meio de lei específica sobre o tema. Até o momento, cada Tribunal possui seu próprio entendimento acerca da responsabilização dos filhos pelo abandono afetivo inverso, atribuindo às suas decisões os pareceres que lhe forem adequados de acordo com a complexidade do caso concreto.
Palavras Chaves: Abandono afetivo inverso. Responsabilidade Civil. Direito de Família.
1. INTRODUÇÃO
O Abandono Afetivo Inverso é, enquanto variação do instituto do Abandono Afetivo puro e, diferente deste, a ausência de cuidados e prestação de assistência aos pais idosos, em regra, pelos seus descendentes. Este fenômeno vem ganhando cada vez mais espaço nas discussões acerca da tutela jurídica adequada aos casos concretos e a aplicabilidade da responsabilidade civil, por meio de retratação pecuniária, ante o abandono afetivo inverso no âmbito familiar. Daí a necessidade de uma análise legislativa, doutrinária e jurisprudencial sobre o tema.
Com o crescimento da população idosa no país a partir dos anos 50, é notório o aumento da expectativa de vida dos brasileiros. Num primeiro momento, tal fator evidencia a melhoria na qualidade de vida da população bem como a longevidade da mesma, apontando importante avanço social. Em contrapartida, com a omissão do dever de cuidado, a negligência e a falta de amparo, muitos idosos se deparam com uma triste realidade: o abandono afetivo pelos seus descendentes e, consequentemente, a não manutenção de direitos básicos e inerentes ao ser humano, preconizados pela Constituição Federal de 1988 e o Estatuto do Idoso.
Muito além das necessidades físicas, o abandono afetivo está diretamente ligado ao emocional, contemplando a ausência de carinho e afeto. Sendo o instituto familiar a base da sociedade, possuindo especial proteção do Estado, e tendo como alicerce a mútua e recíproca troca afetiva, não é justo que aqueles que dedicaram suas vidas para a manutenção e cuidado de seus filhos e descendentes sejam desamparados na velhice. Diante disso, indaga-se: como se caracteriza o fenômeno do abandono afetivo inverso e quais as consequências jurídicas no âmbito da responsabilidade civil e familiar?
Ante a notória problemática, o presente trabalho busca como objetivo geral analisar a possibilidade da incidência do dano moral e da retratação pecuniária nos casos concretos de abandono afetivo inverso. Com os objetivos específicos pretende: identificar os efeitos sociais, familiares e pessoais do abandono e seus impactos na qualidade de vida do abandonado; demonstrar o que diz a legislação esparsa acerca do abandono afetivo dos descendentes para com as ascendentes; analisar o entendimento jurisprudencial e doutrinário sobre o tema.
A importância dessa discussão está no amparo dos pais idosos, enquanto sujeitos vulneráveis socialmente. Surge a necessidade de fazer valer no plano fático aquilo disposto no artigo 5º da Constituição Federal, no que tange aos direitos e garantias fundamentais do ser humano, e no artigo 229 do mesmo dispositivo legal, que versa acerca da responsabilidade familiar entre pais e filhos. Para garantir o devido amparo às vítimas do abandono afetivo inverso, é preciso que haja auxílio material e imaterial, ou seja, se estende além do amparo financeiro abrangendo o cuidado, afeto e presença na vida do idoso.
A metodologia utilizada na produção deste trabalho acadêmico segue uma abordagem qualitativa, descritiva e explicativa, com tipo de pesquisa bibliográfica e documental, se valendo dos códigos e leis vigentes no acervo nacional, dissertações e teses de pesquisadores e doutrinadores da área de Direito de Família e Responsabilidade Civil, Google Acadêmico, sites, entrevistas, jornais e revistas, redes sociais, entre outros.
O referencial teórico se divide em cinco capítulos. O primeiro deles analisa o contexto histórico do abandono afetivo inverso, traçando um paralelo entre a responsabilidade civil familiar recíproca antes e depois da Constituição Federal de 1988, além de estudar como o aumento da população idosa ao longo dos anos impacta a legislação vigente. O segundo capítulo traz noções básicas para compreensão do objetivo geral desta pesquisa, conceituando o que é o abandono afetivo inverso, de que maneira o identificar e caracterizar e quais os seus efeitos individuais, sociais e familiares.
O terceiro capítulo elucida qual a proteção jurídica vigente para efetivação das garantias e dos direitos fundamentais da pessoa idosa, contemplando a Constituição de 1988, o Estatuto do Idoso, a Lei de Política Nacional do Idoso e o Projeto Lei nº 4294/2008. O quarto capítulo contém a análise legislativa e doutrinária acerca da responsabilidade civil no âmbito familiar de acordo com a Teoria do Dano e o entendimento majoritário dos doutrinadores das áreas mencionadas acerca do “afeto” enquanto uma obrigação ou faculdade, contemplando os princípios que regem o Direito de Família.
Por fim, o quinto capítulo contempla as decisões oriundas de quatro dos Tribunais de Justiça brasileiros nos casos concretos de abandono afetivo inverso, analisando a incidência do dano moral e da prestação pecuniária, observando as particularidades de cada contexto, bem como as bases e os fundamentos que ensejaram o entendimento adotado.
Os resultados alcançados permitiram constatar que existe, nos casos concretos analisados, a dificuldade de comprovação do ilícito dada a subjetividade do abalo em questão. Apesar de não pacificado na jurisprudência, tendo em vista que são poucos os julgados e cada um deles segue uma linha de entendimento distinta, a corrente doutrinária majoritária é positiva quanto ao cabimento de indenização por danos morais e responsabilização civil pelo abandono afetivo inverso na esfera familiar.
2. METODOLOGIA
A metodologia é o ramo científico que estuda os métodos, ou seja, é o estudo dos caminhos a serem percorridos em prol de uma determinada finalidade. Ademais, a metodologia é também utilizada para conduzir a pesquisa científica, utilizando-se de investigação detalhada e minuciosa, a fim de responder ao problema identificado. Assim a pesquisa cientifica, para que seja bem-sucedida e validada, deve seguir todas as etapas metodológicas.
Conceito restrito: é a busca de informações bibliográficas, seleção de documentos que se relacionam com o problema de pesquisa (livros, verbetes de enciclopédia, artigos de revistas, trabalhos de congressos, teses etc.) e o respectivo fichamento das referências para que sejam posteriormente utilizadas (na identificação do material referenciado ou na bibliografia final). (DIAS DE MACEDO, 1995, p. 13)
O desenvolvimento deste trabalho engloba a pesquisa bibliográfica de cunho qualitativo, descritivo e explicativo, sendo o recorte geográfico estipulado todo o território nacional brasileiro. À caráter de investigação científica, o presente estudo tem como proposta a busca de informações necessárias para culminar nos resultados esperados e, portanto, aprofundar os conceitos, demais informações e conhecimentos acerca do abandono afetivo inverso no seio familiar. Para isso, foram empregadas as ferramentas tradicionalmente utilizadas para revisões bibliográficas de natureza jurídica citadas abaixo.
A pesquisa bibliográfica se dividiu em três etapas: A primeira consiste na análise do ambiente familiar enquanto cenário do abandono afetivo inverso, trazendo o conceito de tal fenômeno social e sua forma de manifestação. Uma vez definido, foi possível elencar critérios para aferir os impactos sociais, psicológicos e familiares da eventual vítima. Com este objetivo, durante do primeiro trimestre de 2023, foram selecionados diversos acervos de blogs, revistas e entrevistas de interesse jurídico, tais como O Instituto Brasileiro do Direito de Família, a Livraria dos Advogados, Estado de Direito e a Revista dos Tribunais.
Na segunda etapa, estudou-se o que diz a legislação brasileira acerca do referido tema. Os documentos utilizados foram, principalmente, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a Lei nº 10.741 de 2003, chamada Estatuto do Idoso, e a Lei nº 8.842 de 1994, que versa acerca da política nacional do idoso, sua participação e integração efetiva na sociedade. Tais dispositivos foram consultados no site oficial do Planalto, durante todo o primeiro semestre de 2023.
Adicionado a isto, buscou-se pontuar o entendimento doutrinário no que diz respeito ao abandono afetivo inverso, contemplando importantes obras de renomados estudiosos da área de Direito Civil, mais especificamente na Responsabilidade Civil e no Direito de Família. Para a realização desta pesquisa foram utilizados os seguintes livros: Programa de Responsabilidade Civil, escrito por Sergio Cavalieri Filho; Direito das Famílias e Manual de Direito das Famílias, da especialista Maria Berenice Dias: Ética geral e profissional, por José Renato Nalini; Manual de Direito Civil, por Flávio Tartuce; Curso de Direito Civil: Direito das Famílias, de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald; entre outros.
Por fim, a terceira etapa logrou uma investigação jurisprudencial, durante o terceiro trimestre de 2023, utilizando empresas de tecnologia jurídica como o Jusbrasil e acervos do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) e Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) a fim de averiguar a possibilidade da concessão de dano moral e da retratação pecuniária nos casos concretos de abandono afetivo inverso.
Uma vez feita a relação das decisões orquestradas pelos tribunais de justiça, foi realizada uma triagem segundo a natureza deliberada caso a caso. Dos casos procedentes, onde fora constatado o abandono, observou-se o protocolo utilizado pelo juiz a fim de determinar e fundamentar seu entendimento. Dos casos que não foram procedentes, buscou-se explanar os óbices que serviram de base para o convencimento do magistrado.
3. BREVE HISTÓRICO ACERCA DO AMPARO AO IDOSO AO LONGO DOS ANOS
O presente capítulo retrata a historicidade do amparo às vítimas de abandono afetivo inverso no Brasil por meio do comparativo entre a responsabilidade familiar recíproca, com olhar especial voltado a figura da pessoa idosa, antes e depois da Constituição Federal de 1988. Para isso, é importante compreender em que momento surge a proteção ao instituto familiar no direito brasileiro e como o aumento da população idosa no país impacta e traz relevância jurídica ao fenômeno estudado.
Com o avanço e as mudanças sociais no âmbito brasileiro ao longo dos séculos, o conceito de família vem se modificando, bem como sua estrutura e valores, e, da mesma maneira, a imagem da pessoa idosa no seio social sofreu transformações. De modo geral, a percepção da chegada da velhice está associada a uma série de debilidades físicas e mentais, tanto pelos próprios idosos quanto pela parcela da população que não integra esta faixa etária. A pessoa de mais idade, outrora tida como sábia e de grande prestígio devido aos anos de experiência, passa a ser vista como alguém incapaz, frágil e doente em decorrência dos aspectos naturais do envelhecimento. Esta imagem, infelizmente, corrobora para que haja a discriminação social daqueles que possuem mais de 60 anos e, por vezes, pode gerar em seus descendentes a sensação de fardo ao cuidar. Culminando no desprezo e, em casos extremos, no abandono.
A cronologia explanada por Lima (2015) nos mostra que, no Brasil, com o advento da primeira constituição, durante o período imperial em 1824, não houve amparo ou menção a pessoa idosa em nenhum dos 179 artigos presentes no dispositivo legal. Posteriormente, as constituições republicanas dos anos de 1891 e 1934 limitaram-se a tratar de temas como a aposentadoria por invalidez, além de dispor sobre a previdência. Já as constituições de 1937, instaurada durante o Estado Novo no governo de Getúlio Vargas; de 1946, com a retomada da linha democrática após deliberações do congresso recém-eleito; e de 1967, oriunda do regime militar, não lograram êxito em ampliar ou inovar no direito dos idosos.
A partir de 1988, a atual Constituição Federal trouxe refrigério ao povo brasileiro, contendo novo texto que visava refletir o processo de redemocratização pelo qual o país estva passando. Tal dispositivo elenca, em seu artigo 3º, os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil entre os quais se encontra a promoção do bem coletivo, sem qualquer preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade ou outra forma de discriminação. Já no Capítulo VII, intitulado “Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso”, a Carta Magna traz uma série de disposições acerca da família, a instituindo como base da sociedade e detentora de especial proteção estatal, nos termos do artigo 226.
O motivo pelo qual a instituição familiar é declarada como “base da sociedade” se deve a percepção de que a mesma é primordial para o crescimento, desenvolvimento pleno e total amadurecimento do indivíduo (NAMBA, 2019). É nela que vivenciamos, ou pelo menos deveríamos vivenciar, as primeiras noções de solidariedade e empatia. Além de detentora da proteção estatal, a família possui também deveres e responsabilidades a serem observadas para com os seus integrantes.
Diferente do histórico legislativo apresentado até então, a Constituição Federal vigente foi a responsável por promover o amparo a pessoa idosa enquanto membro do grupo familiar de forma clara, objetiva e explícita. O documento evidencia no artigo 229 que “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade” (BRASIL, 1988, n.p). Como demonstrado, tal artigo detalha o papel de assistência atribuído aos filhos maiores para que estes auxiliem seus pais na velhice.
Os benefícios decorrentes deste dispositivo legal não surgiram por uma simples coincidência ou de forma aleatória, sendo um importante fator de influência o aumento da população idosa no mundo desde a década de 1950. O colunista da EcoDebate e doutor em demografia Alves (2020, n.p) acredita que “uma das características mais marcantes da atual dinâmica demográfica mundial é o processo de envelhecimento populacional, isto é, o aumento do número absoluto e do percentual de idosos no conjunto da população”. Estamos falando aqui de um aumento de notoriedade mundial.
O ritmo de envelhecimento da população se deu de forma ainda mais intensa no âmbito nacional: lenta ao longo do século XX, ganhando magnitude ao decorrer do século XXI e com projeção surpreendente para os próximos cem anos. O número de brasileiros acima de 60 anos de idade era de 2,6 milhões em 1950, passou a ser de 29,9 milhões em 2020 e deve alcançar 72,4 milhões no ano de 2100, segundo dados da Divisão de População da ONU.
Demonstrada a crescente populacional da chamada “terceira idade” e sendo estas, em regra, as vítimas do abandono afetivo inverso, resta evidente a necessidade de amparo e proteção adequadas a fim de que haja a manutenção da qualidade de vida da pessoa idosa. Para isso, é essencial compreender quais os dispositivos legais pertinentes na defesa dos interesses dessa parcela da população e quais as consequências jurídicas oriundas da violação destes direitos, não apenas no âmbito criminal, mas seus desdobramentos na esfera da responsabilidade civil familiar.
4. CONCEITOS E NOÇÕES BÁSICAS ACERCA DO ABANDONO AFETIVO INVERSO
O referido capítulo aborda noções básicas para compreensão do tema estudado, conceituando o que é o abandono afetivo inverso, de que maneira o identificar e caracterizar, bem como a diferença entre o abandono afetivo e o material. Busca ainda debater a importância do afeto para o bem-estar pessoal e os efeitos de sua ausência na esfera psicológica do indivíduo. Para Jones Figueiredo Alves, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco e diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), o abandono afetivo inverso acarreta dano passível de retratação ou indenização. Nas palavras de Alves (2013, n.p) é definido como “a inação de afeto, ou mais precisamente, a não permanência do cuidar, dos filhos para com os genitores, de regra idosos”, aduzindo ainda que “o cuidado tem o seu valor jurídico imaterial servindo de base fundante para o estabelecimento da solidariedade familiar e da segurança afetiva da família.”
Neste sentido, não se confunde com o abandono material, mas o transcende, uma vez que este ocorre justamente quando o provedor deixa de auxiliar sem justa causa aquele por quem é responsável. Por sua vez, o abandono afetivo é caracterizado quando constatada indiferença afetiva do genitor para com seus filhos, ou, neste caso, dos filhos em relação a seus genitores. A ausência de afeto no contexto familiar é capaz de gerar consequências a saúde psicofísica dos abandonados, um trauma que fomenta o desejo de ser compensado pelo dano sofrido.
O abandono se manifesta por meio de omissões e privações de cuidados básicos de saúde e bem-estar, principalmente com relação aos idosos de idade mais avançada que, muitas vezes, não podem administrar sozinhos a própria medicação, alimentação ou higiene. Ou ainda, mesmo quando providas as necessidades materiais, a negligência, indiferença, isolamento e falta de atenção desencadeiam mazelas psicológicas, de forma que a saúde mental, não menos importante que a física, sofre fortes impactos, a saber:
Por se encontrar em momento peculiar de sua vida, a pessoa idosa necessita de integral e especial proteção para a garantia do envelhecimento sadio e digno, fornecendo-lhes todas as formas de assistência (pessoal – física, psíquica, psicológica, emocional –, material, social etc.), para o transcurso condigno dessa fase (RODRIGUES, 2016, p. 19).
A privação do convívio familiar gera enorme tristeza, sentimento de solidão e desamparo, acarretando no adoecimento emocional, agravado pelo abandono. Em uma de suas obras o psicanalista Sigmund Freud analisa as implicações sobre um indivíduo que se afasta e rompe laços com o grupo do qual fazia parte, apontando um iminente sentimento de pânico ao ter que lidar sozinho com os perigos. É oportuno observar que a ruptura de laços da pessoa idosa com os demais membros de sua família encaixa-se perfeitamente no contexto mencionado, a saber:
Se um indivíduo com medo pânico começa a se preocupar apenas consigo próprio, dá testemunho, ao fazê-lo, do fato de que os laços emocionais, que até então haviam feito o perigo parecer-lhe mínimo, cessaram de existir. Agora que está sozinho, a enfrentar o perigo, pode certamente achá-lo maior (FREUD, 1921, p. 108).
A angustia da rejeição norteia a rotina desses idosos, dando espaço a noções de não pertencimento e compreensão, fazendo com que se sintam descartáveis e inutilizados pela própria linhagem e, em situações mais extremas, desencadeia sintomas depressivos. Fato é que, com as responsabilidades e obrigações da vida cotidiana, muitos filhos acabam não tendo tanto tempo para realizar os cuidados necessários dos pais idosos. Nestes casos, muitos optam por contratar um cuidador profissional para cumprir essa função ou encaminhar o idoso a uma casa de repouso especializada, onde desenvolverá atividades voltadas a sua faixa etária e receberá os cuidados básicos adequadamente.
Em seu livro intitulado Ética Geral e Profissional, Nalini (2009), jurista e escritor brasileiro, fala do dever ético e de convivência dos filhos para com seus pais, de forma que aqueles venham a dedicar parte de seu tempo e os assistir quando precisarem de carinho. Evidente que não existe lugar para o idoso em vários contextos da vida, entre eles na família, de tal forma que acabam sendo esquecidos ou recebem visitas esporádicas em ocasiões especiais. Neste cenário é possível falar em abandono afetivo inverso.
5. PROTEÇÃO AO IDOSO NO ÂMBITO FAMILIAR A LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Este capítulo apresenta quais as leis e códigos vigentes no ordenamento jurídico nacional que tem por objetivo resguardar os direitos da pessoa idosa e zelar pelo seu bem-estar. O enfoque aqui delimitado está na obrigação de amparo enquanto responsabilidade dos filhos maiores, contemplando os principais dispositivos que versem acerca desse dever. Para isso, foram selecionados os seguintes documentos jurídicos: A Constituição Federal de 1988; O Estatuto do Idoso, a Política Nacional do Idoso, a Lei nº 8.882 de 1994; a Lei nº 10.741 de 2003; dispondo ainda do Projeto Lei nº 4294/2008.
É indubitável a vulnerabilidade social da pessoa idosa e os cuidados especiais de que necessita, mas, durante muito tempo, o idoso não detinha amparo específico na legislação. Todavia, o ordenamento jurídico brasileiro não permaneceu estático e buscou desenvolver leis de proteção ao idoso, a fim de acompanhar os avanços da sociedade. Neste sentido, Silva (2018) percebe tais garantias de direitos como uma maneira de assegurar ao idoso uma melhor qualidade de vida. No que se refere ao dever de amparo a pessoa idosa pela família, além do disposto no artigo 229 sobre a responsabilidade dos filhos maiores, a Constituição Federal de 1988 determina quais os responsáveis por zelar pelo bem-estar da pessoa de mais idade, apontando como primeiro destes o grupo familiar, a saber:
Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida. § 1º Os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares. (BRASIL. 1988, n.p).
A Lei n° 8.842 de 1994, conhecida como Política Nacional do Idoso, surgiu para ampliar aquilo já disposto na Constituição, dessa vez com olhar um pouco mais específico. Para efeitos dessa lei, idoso é aquele maior de 60 anos. Seu objetivo é assegurar que os direitos sociais da pessoa idosa sejam resguardados e criar condições para sua autonomia e participação plena na sociedade. Uma de suas diretrizes, expostas no artigo 4º, versa sobre a “priorização do atendimento ao idoso através de suas próprias famílias, em detrimento do atendimento asilar” (BRASIL, 1988, n.p), ressaltando mais uma vez o preferencial e importante papel familiar no amparo ao idoso.
A fim de fazer valer no plano fático as garantias e direitos fundamentais consolidados pela Constituição de 1988 e pela Política Nacional do Idoso surgiu, em outubro de 2003, a Lei n° 10.741/03 (Estatuto do Idoso) destinada a regular e efetivar direitos às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, preservando sua saúde física e mental, em condições de liberdade e dignidade. Em consonância com o disposto na Carta Magna, o artigo 3º do Estatuto do Idoso esclarece a obrigação familiar, com destaque ao inciso V, que aponta a priorização do atendimento do idoso.
Art. 3° É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: V – priorização do atendimento do idoso por sua própria família, em detrimento do atendimento asilar, exceto dos que não a possuam ou careçam de condições de manutenção da própria sobrevivência; (BRASIL, 2003, n.p, grifo nosso)
Este artigo elucida objetivamente que o atendimento asilar deve ser a última opção ante a ausência do núcleo familiar, conforme corrobora também o artigo 37 da mesma lei. Para Martinez (2005, p. 35) “as políticas governamentais […] priorizarão sua existência no lar, junto da família natural ou adotante, exceto se esta não desfrutar de condições materiais, só então se pensando na internação nosocomial, asilar ou casa-lar” e, neste caso, deverá haver acompanhamento pelos parentes mais próximos, a fim de manutenção do vínculo em observância ao artigo 49, inciso I.
O Estatuto do Idoso alude a questões de maus tratos e o papel preventivo que a comunidade deve exercer frente a estes casos, nos artigos 4º e 6º, bem como a obrigação alimentar devida aos idosos, no artigo 11. Outrossim, vale frisar que o artigo 98 da lei em análise trata de maneira específica acerca do abandono, em casas de saúde ou de longa permanência, hospitais e congêneres, ou não provimento das necessidades básicas por aqueles obrigados por lei. Uma vez não observado o disposto, a pena para o sujeito que incidir no crime é de detenção de 6 (seis) meses a 3 (três) anos e multa (BRASIL, 2003).
Com o intuito de coibir o abandono afetivo do idoso, surgiu o Projeto Lei nº 4294, de autoria do Deputado Federal Carlos Bezerra – MDB-MT com apresentação em 11 de novembro de 2008. A proposta deste projeto é acrescentar ao artigo 3º do Estatuto do Idoso e ao artigo 1.632 do Código Civil redação que verse sobre a obrigatoriedade de pagamento de indenização por danos morais em razão do abandono afetivo. No momento, tal proposta permanece em discussão na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania e espera a apreciação e voto do relator. O despacho atual é da data de 05 de agosto de 2021 e determina a redistribuição do projeto de lei em questão à Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa.
6. RESPONSABILIDADE CIVIL E O DANO MORAL NO DIREITO DE FAMÍLIA
O presente capítulo contém a análise da legislação e doutrina brasileira acerca da responsabilidade civil no âmbito familiar. Versa sobre alguns dos princípios que norteiam o direito de família, além de trazer os principais conceitos da Teoria do Dano. Ademais, expõe o entendimento majoritário dos doutrinadores das áreas supramencionadas acerca das noções de “afeto” enquanto uma obrigação ou uma faculdade.
Existem princípios fundamentais que norteiam as várias áreas jurídicas e não seria diferente no Direito de Família, funcionando como ferramentas condutoras da aplicação e idealização das normas existentes no ordenamento brasileiro. Apenas analisando os princípios é possível estabelecer noções de justiça e injustiça, transcendendo os valores morais carregados de estigma (PEREIRA, 2016). O Direito de Família, por sua vez, é o ramo do Direito Civil que regula as relações pessoais familiares e de parentesco, observando os interesses e deveres de seus membros.
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana encontra previsão legal expressa no artigo 1°, inciso III, da Carta Magna. Seu propósito é assegurar as necessidades básicas de cada indivíduo com a manutenção de sua honra, garantindo-lhe uma existência adequada, em termos materiais e espirituais. Sua incidência está no cotidiano das pessoas e, principalmente, na esfera familiar, fomentando as relações interpessoais do núcleo. Uma vez violado, como ocorre nos casos em que há o abandono afetivo, gera repercussões passiveis de reparação civil, a saber:
O Direito de Família somente estará em consonância com a dignidade da pessoa humana se determinadas relações familiares, como o vínculo entre pais e filhos, não forem permeados de cuidado e responsabilidade, independentemente da relação entre os pais, se foram casados, se o filho nascer de uma relação extraconjugal, ou mesmo se não houve conjugalidade entre os pais, se ele foi planejado ou não. Esse entendimento nos remete ao conceito contemporâneo de cidadania, que, por sua vez, pressupõe inclusão, ou seja, não exclusão de nenhum tipo de família e, consequentemente, de nenhum membro da família, especialmente quando se trata de criança ou adolescente. Em outras palavras, afronta o princípio da dignidade humana o pai ou a mãe que abandona seu filho, isto é, deixa voluntariamente de conviver com ele. (PEREIRA, 2015, p. 406)
Enquanto ser social o homem não pode ser visto somente no plano individual, uma vez inserido em sociedade, de maneira a exercer o dever de coexistir pacífica e solidariamente com os demais. Madaleno (2019, p. 94) descreve o Princípio Solidariedade Familiar como o “oxigênio de todas as relações familiares e afetivas, porque esses vínculos só podem se sustentar e se desenvolver em ambiente recíproco de compreensão e cooperação, ajudando-se mutuamente sempre que se fizer necessário”. Percebe-se a reciprocidade como elemento fundamental na dinâmica familiar, pois é ela que sustenta e valida as relações que surgem nesse cenário e, por meio dela, podemos perceber caso a caso a aplicação deste princípio.
Na obra Direito das Famílias, Dias (2005, p.66) elucida que “o afeto foi consagrado na legislação pátria como direito fundamental para garantir a dignidade de todos, embora à palavra afeto não esteja inserida no contexto da Constituição, a mesma assegurou o afeto como obrigação Estatal” Por conseguinte, o Princípio da Afetividade serve de elemento normativo guia das relações familiares como alicerce de uma das necessidades básicas para desenvolvimento do indivíduo.
Existe diferença entre a afetividade, enquanto princípio jurídico, e o afeto, como fator psicológico que pode ou não existir nas relações entre familiares. O primeiro é um dever imposto entre pais e filhos, mesmo que exista desafeição entre eles, enquanto o segundo é facultativo (LOBO, 2018). Desta feita, a obrigação de indenizar surge do descumprimento e violação do dever de cuidado, preconizado pela Carta Magna, e não pela ausência de amor. Portanto, o que está em discussão é o dever de cuidado que, quando não observado gera ato ilícito, podendo resultar em dano passível de indenização.
Temos então alguns dos princípios constitucionais diretamente ligados a terceira idade, que visam suprir suas necessidades e garantir-lhes a dignidade em vida, servindo como base para o amparo legal da pessoa idosa na relação familiar, trazendo deveres e obrigações a todos os envolvidos nesse contexto. Considera-se que o abandono afetivo é a falta de amor, de carinho e de afeto e, para entender como esse fenômeno pode ser passível de retratação pecuniária, é preciso entender como funciona a responsabilidade civil no direito brasileiro.
A responsabilidade civil é a obrigação de reparar a outrem pelo dano causado quando ação ou omissão gera violação de uma norma jurídica. É importante distinguir a responsabilidade da obrigação, sendo a obrigação sempre um dever jurídico originário, já a responsabilidade é um dever jurídico que sucede a violação do primeiro (FILHO, 2012). Os elementos que a compõe são a conduta humana, o dano e o nexo de causalidade, conforme elencados no artigo 186 do Código Civil, a saber “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” (BRASIL, 2002, n.p)
Para que seja configurado o dano, é necessário que o ato praticado cause alguma espécie de prejuízo à vítima, seja na esfera psíquica, física, moral ou material. O nexo de causalidade, por sua vez, é o elemento existente entre a conduta e o resultado, como uma ponte ligando as extremidades, sendo o meio através do qual é possível definir o causador do dano e possuidor do dever de reparação. Neste liame, o dano causado pelo abandono afetivo inverso possui natureza imaterial e, como tal, não pode ser mensurado para fins econômicos, uma vez que atinge os aspectos psicológicos da vítima. Não se trata lesão cujo conteúdo demonstra natureza pecuniária, não se voltando a questões patrimoniais, mas sim ao sentimento de afeto.
No que se refere à responsabilização civil no seio familiar, o vínculo existente entre os integrantes acaba gerando a obrigação de reparar o dano causado pelo descumprimento das obrigações de cuidado e amparo. Para Farias (2013, p. 162) “não se pode negar que as regas da responsabilidade civil invadem todos os domínios da ciência jurídica, ramificando-se pelas mais diversas relações jurídicas, inclusive as familiaristas”. No entanto, é importante observar o caso concreto em que se pretende a indenização, tendo em vista que, além dos momentos de fraternidade e comunhão, existem também os tristes, oriundos de diversos problemas, visto que nem todas as famílias são bem estruturadas.
Nesse liame, é válido o instituto da indenização por abandono afetivo no contexto familiar, com respaldo no que dispõe o artigo 186 do Código Civil acerca do ato ilícito. Também nesse contexto, dano moral demonstra a diminuição de um bem imaterial e extrapatrimonial: o direito da personalidade (TARTUCE, 2015). Todavia, a indenização por danos morais passou a ser efetivada com a Constituição de 1988, à luz do artigo 5º, inciso V e sua finalidade está na tentativa de amenizar o sofrimento e angústia causados por meio do dano.
7. ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL
O presente capítulo aponta as decisões oriundas dos Tribunais de Justiça brasileiros nos casos concretos de abandono afetivo inverso. Foram utilizadas quatro decisões referentes ao tema, consultadas nos seguintes tribunais: Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal de
Justiça de Santa Catarina (TJSC) e Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS). Analisa a incidência do dano moral e da prestação pecuniária frente ao abandono afetivo inverso, observando os mecanismos de caracterização do fenômeno, bem como a base legal e os fundamentos utilizados nestes julgados.
No ano de 2012, conforme entendimento da Ministra Fátima Nancy Andrighi, da 3º turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), considerou possível o dano moral referente ao abandono afetivo. Para a fundamentação da decisão foi observado o cuidado enquanto elemento carregado de valor jurídico objetivo levando em consideração que, ao ser comprovado o descumprimento da obrigação legal de cuidar, há também o reconhecimento do ilícito cometido, vejamos:
civil e processual civil. família. abandono afetivo. compensação por dano moral. possibilidade. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro […] como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil […] 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada.7. Recurso especial parcialmente provido (Resp. 1.159.242/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/04/212, DJe 10/05/2012).
Um caso peculiar é o do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina em 09 de julho de 2020. Trata-se de ação de alimentos movida pelo genitor em face de sua filha, com improcedência em primeira instância e posterior recurso da parte autora. Os julgadores entenderam pelo não prevalecimento do princípio da solidariedade alimentar recíproca, uma vez demonstrado o abandono afetivo e também material do autor para com a prole, por período superior a quinze anos. O entendimento do Tribunal é de que existe a possibilidade de responsabilização dos filhos pelo abandono dos pais. Todavia, quando estes não cumprem seu dever no exercício do poder familiar, não há que se falar em reciprocidade ou obrigação de amparo, conforme emenda:
Apelação cível. Ação de alimentos em favor de pessoa idosa. Lei n. 10.741/2003 – estatuto do idoso. Demanda movida pelo pai em desfavor de uma das filhas. Sentença de improcedência. Recurso do autor. Princípio da solidariedade alimentar entre parentes. Necessidade não demonstrada. Abandono material e afetivo, por parte do postulante, em relação à filha requerida, por mais de quinze anos, durante o exercício do poder familiar. Reciprocidade alimentar não havida. Autor inadimplente em execução de alimentos promovida pela demandada. Dever de prestar alimentos inexistente.
Precedentes. Recurso conhecido e desprovido. Honorários recursais. Incidência. Inteligência do art. 85, § 11, do código de processo civil. Exigibilidade sobrestada em razão da justiça gratuita deferida na instância a quo. Correção, de ofício, da base de cálculo da verba honorária. Erro material verificado. Inexistência de condenação. Honorários que devem incidir sobre o valor da causa. Adequação (santa catarina, 2020).
Em 23 de março de 2017, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em sede de recurso, a genitora buscou a majoração dos alimentos concedidos em primeira instância, bem como a indenização por dano moral em virtude de abandono afetivo por parte de seu filho. Nos atentemos especificamente ao pedido de retratação pelo suposto abandono afetivo sofrido. Os julgadores o consideraram inviável, uma vez que não restou comprovada a culpa exclusiva do filho pelo distanciamento entre as partes, apesar da relação entre mãe e filho ser bastante conturbada, conforme ementa do acórdão da Apelação Cível n. 70072184708 supramencionado:
Apelação cível. Conversão do julgamento em diligência. Descabimento. Estipulação de alimentos. Repasse pelo filho em favor da genitora. Adequação do quantum estabelecido na sentença. Abandono afetivo. Fixação de indenização. Regulamentação de visitas avoengas. Desacolhimento. Benefício da gratuidade judiciária. Deferimento de ofício na sentença ao réu. Revogação. Prequestionamento. 1. Não há falar em conversão do julgamento em diligência para reabertura da fase instrutória, pois, intimadas as partes para manifestar o interesse na produção de provas, que daram-se 51 inertes. 2. No caso, descabida a fixação em maior extensão dos alimentos a serem repassados pelo filho em favor de sua genitora, pois ausente comprovação acerca da existência de despesas extraordinárias da alimentada que não estariam sendo atendidas com o patamar estipulado, de um salário mínimo. 3. Inviável a fixação de indenização por dano moral decorrente do abandono afetivo por parte do filho, não sendo possível imputar-lhe com exclusividade a responsabilidade pelo distanciamento havido, reconhecendo a própria genitora que a relação materno-filial sempre foi marcada por conflitos, envolvendo, especialmente, questões financeiras. 4. Por conta dessa intensa animosidade, que prejudicou a convivência da avó com as netas, não se afigura razoável estabelecer uma aproximação forçada, com o que deve ser mantida a improcedência do pedido de regulamentação das visitas, providência contra indicada pelo estudo técnico realizado na instrução. 5. Caso concreto em que não houve requerimento pelo recorrido de concessão do benefício da gratuidade judiciária, sendo inadequada a concessão de ofício pelo julgador. Revogação da benesse concedida na sentença. Precedentes do STJ e desta Corte de Justiça. 6. A apresentação de questões para fins de pré questionamento não induz à resposta de todos os artigos referidos pela parte. PRELIMINAR. (RIO GRANDE DO SUL, 2017).
No que diz respeito às correntes contrárias a indenização pelo dano moral decorrente do abandono afetivo, justificam-se na inexistência de ato ilícito, pressuposto necessário para que seja caracterizada a responsabilidade civil. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgou a apelação cível n. 70045481207119 sobre ação de indenização por abandono afetivo, oportunidade em que a Desembargadora Liselena Schifino Robles Ribeiro negou seguimento ao recurso fundamentando a decisão na não obrigatoriedade do afeto e amor mesmo com a ocorrência elo familiar.
Fato é que o judiciário brasileiro ainda não pacificou o entendimento acerca da indenização por abandono afetivo, em que pese os pareceres favoráveis de alguns doutrinadores brasileiros. Devido à dificuldade em se demonstrar efetivamente o abalo sofrido, principalmente no abandono inverso, poucos são os julgados favoráveis ao idoso que pleiteia reparação moral pelo descaso de seus filhos, sendo muitas vezes providos os alimentos, ou seja, o amparo material, mas deixado de lado o suporte psicológico vinculado ao afeto.
Nessa perspectiva, evidenciada a não uniformização da jurisprudência nacional sobre o tema, nota-se que cada Tribunal possui seu próprio entendimento no que tange à responsabilização civil decorrente do abandono. Ademais, é possível observar a utilização do princípio da reciprocidade entre pais e filhos como fator determinante do direito a prestação alimentícia, dados os julgados improcedentes nos casos de abandono parental e posterior requerimento de alimentos pelo idoso em face dos filhos antes abandonados.
8 CONCLUSÃO
Os danos morais ou extrapatrimoniais nasceram da necessidade de retratação e compensação a alguém em razão de lesão aos direitos da personalidade cometida por outrem. Tem como objetivo punir o agente causador do dano e prevenir novas ocorrências do mesmo. O abandono afetivo inverso, por sua vez, está ligado a ausência de solidariedade familiar e caracteriza-se pela ausência de cuidado e afeto dos filhos maiores para com os pais, em regra, idosos. A presente pesquisa buscou explicar a relação entre o fenômeno do abandono afetivo inverso e a incidência da retratação pecuniária, por meio dos danos morais, nos casos concretos. Ademais, buscou entender o amparo legal, doutrinário e jurisprudencial fornecido pelo ordenamento jurídico vigente a fim de resguardar os direitos e garantias fundamentais pertencentes a pessoa idosa.
Esta discussão e, possivelmente, a resolução do conflito supramencionado só ocorrerá com a uniformização do entendimento por meio de lei específica sobre o tema. Uma das alternativas mais promissoras nesse sentido é a aprovação e promulgação do Projeto Lei nº 4294 de 2008, cuja proposta acrescenta ao artigo 3º do Estatuto do Idoso e ao artigo 1.632 do Código Civil redação que dispõe acerca da obrigatoriedade de pagamento de indenização por danos morais em razão do abandono afetivo.
A formulação deste trabalho, com base no objetivo geral de analisar a possibilidade de incidência do dano moral e da retratação pecuniária nos casos de abandono afetivo inverso, permitiu compreender que existe amparo legal, doutrinário e jurisprudencial para condenação ao filho que negligencia afetivamente o pai ou mãe idosos. Em contrapartida, embora haja respaldo, a comprovação do ilícito no plano concreto é algo difícil de demonstrar. Isto se dá em razão de que, em muitos casos, existe o provimento das necessidades materiais ao idoso, mas a ausência de afeto e inclusão deste individuo no seio familiar.
Desta maneira, em paralelo com o objetivo específico de identificar os efeitos sociais, familiares e pessoais do abandono e seus impactos na qualidade de vida do abandonado, nota- se que tal dificuldade é compelida pelo fato de que os abalos decorrentes da ausência de afeto se encontram na esfera subjetiva do ser, e, portanto, são mais difíceis de serem aferidos nos tribunais. No âmbito pessoal, constata-se a propensão do idoso abandonado a mazelas psicológicas, que variam de leves às de maior impacto. No que se refere ás relações familiares, é perceptível não haver um critério exato para determinar o dano, devendo ser analisado caso a caso o cenário familiar, as relações construídas ou desfeitas, os motivos e sentimentos dos envolvidos, a fim de entender melhor qual a forma adequada de reparação.
A demonstração do que diz a legislação esparsa acerca do abandono afetivo dos descendentes para com os ascendentes, tendo em vista a ausência de lei específica que verse sobre o dano moral nesse contexto, logrou êxito ao pontuar os dispositivos que resguardam o idoso no ordenamento jurídico nacional. Para isso, destacou-se os principais direitos previstos pela Constituição Federal de 1988 e deveres provenientes da responsabilidade familiar recíproca, bem como as disposições do Estatuto do Idoso, a Lei nº 10.741 de 2003, e da Política Nacional do Idoso, a Lei nº 8.842 de 1994, sobre a participação e integração do idoso no seio social.
O estudo destaca, a caráter de investigação jurisprudencial, que as decisões entre diferentes tribunais são divergentes, haja vista alguns deles entenderem a reciprocidade como parâmetro para que haja responsabilização. Portanto, na maioria dos casos há responsabilização independente de relação afetiva. Diante disso, a corrente doutrinária majoritária é positiva no que diz respeito ao cabimento de indenização por danos morais nos casos concretos de abandono afetivo inverso no âmbito familiar, em observância aos princípios norteadores do direito de família e os pressupostos acerca do ato ilícito e o dano moral.
Em análise ao capítulo que retrata a historicidade do amparo legal da pessoa idosa no Brasil, tendo como motivador de progresso o crescimento desta parcela da população, destaca- se a evolução da legislação brasileira em contemplar, de forma significativa, os direitos da “terceira idade”. Logo em seguida, contemplando o capítulo que versa acerca dos conceitos e noções básicas sobre o abandono afetivo inverso, é possível compreender parte da raiz do problema levantado e as privações físicas e psicológicas ensejadas por ele.
No terceiro capítulo, que dispõe da proteção ao idoso no âmbito familiar observado o ordenamento jurídico vigente, pode-se constatar uma variada gama de dispositivos que buscam contemplar com amplitude os direitos e necessidades do idoso. O capítulo posterior nos esclarece aspectos da responsabilidade civil e do dano moral aplicado ao ramo do Direito de Família e os princípios que o regem, esclarecendo importantes ponderações doutrinárias. Por fim, o último capítulo explora alguns casos concretos de abandono levados aos tribunais brasileiros, observando os fundamentos usados para formulação do entendimento jurisprudencial.
Todavia, questões como a não obrigatoriedade de afeto, a vulnerabilidade da pessoa idosa, as relações familiares instáveis e a rotina corrida e cheia de outras preocupações dos descendentes, corroboram para que, na maioria dos casos, não se consiga provar efetivamente o dano sofrido. Tal óbice evidencia a disparidade entre teoria e prática, bem como dificuldade de aplicação do dano moral no caso concreto de abandono afetivo inverso. Até o momento, cada Tribunal possui sua própria maneira de considerar a responsabilização dos filhos pelo abandono afetivo de seus pais, atribuindo às suas decisões os pareceres que lhe forem adequados de acordo com a complexidade do caso concreto.
REFERÊNCIAS
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1Artigo apresentado à Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas, como parte dos requisitos para obtenção do Título de Bacharel em Direito, em 2023.
2Graduanda em Direito na Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas – FACISA, em Itamaraju (BA). E-mail: leiaflores24@outlook.com.
1Mestre em Educação, Gestão Social e Desenvolvimento Sustentável pela faculdade Vale do Cricare em São Mateus – ES, Advogado, professor e coordenador do curso de Direito da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas (FACISA). E-mail:pasitto@uol.com.br.