REPRESENTAÇÕES DA VIOLÊNCIA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10607974


Márcio José Souza Leite1; Ailton Luiz dos Santos2; Dilson Castro Pereira3; Marie Joan Nascimento Ferreira4; José Alcides Queiroz Lima5; Tatiana Rocha dos Santos6


RESUMO

Este estudo aborda a complexidade e as multifacetadas manifestações da violência na sociedade contemporânea, destacando a evolução histórica e a diversificação da violência em suas dimensões físicas, simbólicas, estruturais e institucionais. A pesquisa explora a dinâmica da violência desde a Antiguidade até os desafios atuais, refletindo sobre suas causas e implicações sociais, políticas e culturais. A discussão é norteada pela questão de como as diversas formas de violência influenciam e são influenciadas pelas estruturas sociais, políticas e econômicas contemporâneas. O objetivo central foi analisar as representações e as expressões da violência, considerando o contexto sociológico e histórico, e compreender seus impactos na sociedade atual. Utilizando um método qualitativo e exploratório, baseado em pesquisa bibliográfica, o estudo se fundamenta nas reflexões de autores renomados. Conclui-se que a violência é um fenômeno intrínseco à condição humana e à organização social, refletindo tensões e desequilíbrios sociais. A pesquisa destaca a necessidade de abordagens integradas e multidisciplinares para o entendimento e gestão da violência, e sugere investigações futuras focadas nas relações entre violência e outras dimensões sociais, bem como no papel das tecnologias e mídias sociais na propagação e soluções para a violência.

Palavras-chave: Contemporaneidade; Sociologia; Violência; História; Políticas públicas.

INTRODUÇÃO

No bojo do fenômeno da globalização, a sociedades contemporânea, na transição do século XX para os século XXI, tem vivenciado uma escalada crescente de violência, em diversas modalidades de expressão, desde a chamada violência simbólica e institucional, que opera veladamente através de atos não físicos, até a violência física e patrimonial, propriamente ditas em si.

Assim, a violência se reveste de diferentes manifestações e evidencia em múltiplas dimensões do cotidiano da vida humana no presente. Segundo Arendt (2011), o recurso à violência diante de acontecimentos e condições ultrajantes é sempre uma experiência tentadora em razão de sua inerência imediatista e sua prontidão. A urgência de uma ação deliberada é contrária à natureza da violência, porém não é isso que a torna irracional.

É importante, assim, o conhecimento mais aprofundado dessa realidade, compreendendo desde seu cerne sociológico, perpassando por sua gênese e modos de manifestação, sem olvidar, pois, de possíveis causalidades. As relações sociopolíticas e econômicas, conforme se desenvolvem nas sociedades contemporâneas, são também causas expressivas de violência.

De acordo com Misse (2016),  é necessário separar a discussão conceitual da violência daquela que ocorre há um século na criminologia sobre as causas do crime. O crescimento atual da sensibilidade moral à violência causou a criminalização de basicamente tudo que, na sociedade, pudesse ser entendido como violência, de forma que, exceto a guerra em seu sentido convencional, e do suicídio, hoje praticamente não há violência que não seja criminalizável, e mesmo crimes não violentos são, muitas vezes, representados socialmente como violências.

O presente artigo volta-se para a discussão hipotética da existência de forças motrizes na sociedade contemporânea, que possam levar consigo meios, técnicas e estágios cada vez mais brutais de violência, desde as mais elementares às mais sutis. A violência se expressa de forma diversificada nos mais diversificados estágios do desenvolvimento da sociedade, sendo que formas que existiram há tempos possam não existir mais na atualidade, tendo sido, contudo, substituídas por novas formas antes impensadas. 

É inapropriado afirmar que determinado período histórico seja mais ou menos violento que outros, em vista de que a parametrização da intensidade da expressividade de manifestações de violência seja apropriada somente para cada contexto temporal. Entretanto, é consenso que a violência na atualidade esteja adquirindo novos contornos, insuspeitados e crescentemente brutais.

Desse modo, o objetivo do estudo é analisar as representações da violência na sociedade contemporânea. Trata-se de um estudo qualitativo, exploratório, realizado mediante pesquisa bibliográfica, fundamentando-se nas reflexões de autores como Adorno (2002), Arendt (2011), Misse (2016; 2008; 2005), Wieviorka (2004; 2008) e Bourdieu (2007), entre outros. Justifica-se a escolha da temática em vista da importância que a crescente da violência possui na sociedade atual, sendo relevante a compreensão de suas possíveis causas e do modo como ela se manifesta, a fim de se buscar alternativas para a sua superação.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 VIOLÊNCIA E SOCIEDADE

A violência é tão ancestral quanto todas as sociedades. Ela decorre de determinada soma de poder  desfechada  contra  alguém  que,  ao  ser  foco  de  violência,  revida.  Violência  causa violência,  gerando  sempre  novos  confrontos.  Para  Girard (1990,  p.  10), “a violência é de todos e está em todos”. A distinção é que ela se manifestou de modo diversificado na história, caracterizando-se conforme  os  padrões  de  cada  momento histórico. 

A fenomenologia da violência não é um assunto sociológico recente, pois são verificadas diversas práticas violentas desde a Antiguidade, práticas  que passam a ser discutidas desde o século XIX. Destarte, a violência passou a ser qualificada enquanto um fenômeno social e levantou a atenção do poder público e de estudiosos de várias áreas.

Segundo Misse (2006), o uso da palavra “violência” assume, contemporaneamente, diversos significados novos, mas persistem, em seu uso comum, duas características que não se alteraram com o tempo. A palavra portuguesa “violência” vem do latim “violentia”, que significava a “força que se usa contra o direito e a lei”.  Violento (violentus) é quem agia com força impetuosa, excessiva, exagerada.

Hannah Arendt (2011) considera o fenômeno da violência como denominador comum do século vinte. Para a autora, a violência, distintamente ao poder, à força e à coerção, requer implementos, sendo que a violência sempre ocupou uma posição importante nos assuntos humanos, mas raramente foi objeto de consideração especial.

Suspeito que “violência” seja agora, e cada vez mais, uma palavra moderna. Ela não significava o que significa hoje, em toda a sua extensão semântica, antes de começos do século XX. Os sociólogos, os historiadores, os filósofos contemporâneos, geralmente, procuram no seu sentido etimológico a raiz de seu sentido moderno, exercício que pode se configurar inútil porque anacrônico. No sentido antigo, violentia tinha significado mais neutro ou menos carregado, seja como vis – força, guerra –, seja como potestas – poder, domínio. Os dois significados andavam juntos sem maiores problemas (MISSE, 2016, p. 45)

A discussão acerca da existência de atos violentos desde a Antiguidade é abordada por Buoro et al. (1999) ao denotar que a violência se tornou um elemento do cotidiano humano e assim, passa-se a crer que o mundo nunca foi tão violento como hoje. Ao se envolver profundamente com a violência, a sociedade deixa de ampliar o tempo histórico, tendo, portanto, uma ideia inapropriada. A questão da violência passa a ser debatida de modo mais marcante a partir da década de 1980, quando se toma consciência da dimensão do problema que passa a fazer parte do modo de viver do homem em sociedade, ou seja, a violência é banalizada, tornando-se comum entre os homens.

Os estudos de Adorno (2002) certificam que, desde a metade dos anos 70, vem-se acentuando, no Brasil, o sentimento de medo e insegurança, percepção que não é infundada. Nessa fase mais amadurecida do capitalismo e, como implicação, a exposição de seu limite expansivo ou, ainda, de sua crise sistêmica tem-se exacerbado as tensões entre as  classes  sociais  e  suas  frações,  bem  como  o  potencial  autodestrutivo em  larga  escala, pondo  em  risco  a  sobrevivência  de  toda  humanidade (NASCIMENTO, 2019).

As estatísticas oficiais de criminalidade indicam, desde então, a aceleração do crescimento de todas as modalidades delituosas. Crescem de modo mais célere os crimes que incorporam a prática de violência, como os homicídios, os roubos, os sequestros, os estupros. Esse crescimento veio acompanhado de mudanças substanciais nos padrões de criminalidade individual, assim como no perfil das indivíduos envolvidas com a delinquência.

A violência e sua expressividade na sociedade contemporânea, é considerada como um problema mundial de saúde (MINAYO et al., 2006).Determinados legados históricos de várias modalidades de violência seguramente serão transmitidos às próximas gerações, no intuito de sua atenuação, contudo, com a ciência da impossibilidade de sua eliminação. Para conceituação da violência, observa-se:

A violência, sob todas as formas de suas inúmeras manifestações, pode ser considerada como uma vis, vale dizer, como uma força que transgride os limites dos seres humanos, tanto na sua realidade física e psíquica, quanto no campo de suas realizações sociais, éticas, estéticas, políticas e religiosas. Em outras palavras, a violência, sob todas as suas formas, desrespeita os direitos fundamentais do ser humano, sem os quais o homem deixa de ser considerado como sujeito de direitos e de deveres, e passa a ser olhado como um puro e simples objeto (ROCHA, 1996, p. 10).

De acordo com Levisky (apud ALMEIDA, 2010), a violência não é um fenômeno da sociedade atual. Ela persegue a humanidade deste tempos imemoriais e a cada tempo, se manifesta de modos e em circunstâncias distintos. Todos conseguem reconhecer uma ação ou situação violenta, entretanto, sua conceituação é deveras desafiadora, pois a ação geradora ou sentimento adjunto pode ter significados distintos a depender da cultura, momento e condições em que acontecem.

Para Misse (2016), ao seu usar a palavra “violência”, o sentido da agressão física é o que se destaca primeiro. Parece ser indubitável a existência da ligação semântica entre violência e agressão, seja física ou moral, sendo esse o sentido mais consensual e evidente. Segundo o autor, para a sociologia, que surgiu debatendo os determinantes sociais dos conflitos, dos crimes e da guerra, o desafio sempre foi como isolar do conceito os determinantes sociais da interação agressiva ou que produz efeitos opressivos. Isolar, por exemplo, a dominação de classe ou a coercitividade policial do Estado do conceito de violência.

Em oposição ao que foi acima afirmado estão as ponderações de (WIEVIORKA, 2004; 2008), que insiste ser necessário tratar a violência no sentido estrito de agressão física intencional, interpessoal ou coletiva (mesmo em suas extensões técnicas e afirma que é preciso reconhecer a necessidade de um novo paradigma da violência, considerando as transformações sociais, econômicas, políticas e culturais ocorridas mundialmente, principalmente após os anos 1970 do século XX. A fim de desenvolver a análise da violência sob o novo enfoque, vê-se obrigado a abstrair a violência das relações sociais estruturadas ou da interação social face a face para situá-la nesses indivíduos extremados, nessas subjetividades antissociais, tratadas típico-idealmente como antissujeitos, não sujeitos, sujeitos inacabados.

Destaca-se, ainda a percepção da violência latente, chamada simbólica ou institucional, não como sinônimos, mas como uma equivalência de expressividade. Consoante Bourdieu (2007), a violência simbólica evidencia mais que uma forma de violência que opera simbolicamente, sendo “a violência exercida sobre um agente social com a sua cumplicidade” (SILVA; OLIVEIRA, 2017).

Exemplos de violência simbólica incluem relações de gênero em que pessoas concordam que as mulheres são mais fracas, menos inteligentes, menos confiáveis e, para o autor, as relações de gênero são paradigmas da violência simbólica, ou relações de classe em que tanto a classe operária quanto a classe média concordam que as classes médias são mais inteligentes, mais capazes de administrar o país, mais merecedoras de salários mais altos (BOURDIEU, 2007). No século XX e no início do século XXI são verdadeiramente notáveis e marcantes as formas de violência produzidas e reproduzidas na fábrica da sociedade, na máquina do mundo.

A concepção de violência simbólica trazida por Pierre Bourdieu (2007) despertou em inúmeros segmentos da sociedade, dentre os quais aqueles para quem a violência física sempre será a que oferece o modelo extremo e o ponto de referência a partir do qual é possível pensar as demais formas de violência e sua relação com o poder. Semelhante reação é percebida quanto às postulações de Michel Foucault (2010) quando procura afirmar a dimensão criativa e positiva, e não apenas negativa, do poder e da violência.

2.2 VIOLÊNCIA LATENTE E ESTRUTURAL

A violência está presente e evidente, escondida e latente, em muitos lugares, nos mais diversos setores da vida social, envolvendo indivíduos e coletividades, objetividades e subjetividades. É um fenômeno eminentemente histórico, no sentido de que se constitui no curso dos modos de organização social e técnica do trabalho e da produção, das formas de sociabilidade e dos jogos de forças sociais (IANNI, 2002).

Na Idade Média, por exemplo, certos procedimentos violentos eram formas de demonstração de amor a Deus. Nessa mesma época, havia a prova do ordálio, que consistia em submeter o suspeito de crime ou de falso amor a Deus a ter que segurar uma barra de ferro em brasa para provar sua inocência. Caso não se queimasse, seria absolvido como prova da verdade e do amor divino. Porém, atitudes como essa e o autoflagelo são inadmissíveis atualmente para o bom senso do cidadão comum e dentro da nossa cultura (LEVISKY apud ALMEIDA, 2010, p. 06),

A violência pode atingir um indivíduo isolado ou uma coletividade inteira, selecionar uns e esquecer outros. Possui conotação político-econômica e sociocultural, podendo ser principalmente ideológica ou principalmente física. Atinge não somente as idéias, as gentes e as coisas, mas também a natureza. Há toda uma longa história de violência contra a natureza, de permeio à história do Mundo Moderno (MORIN; KERN, 1995).

Conforme Misse (2016), a disseminação do sentido de “violência” para um quantitativo cada vez mais elevado de ações e comportamentos segue o mesmo processo civilizatório que se definiu como de diminuição da violência. São inúmeros os questionamentos que permeiam a fenomenologia, dentre os quais:

A violência rompe com a ordem social ou a violência é constitutiva da ordem social? A violência é um problema social ou a violência é uma solução padronizada para os problemas sociais? A violência é uma forma puramente destrutiva da socialidade ou a violência é uma forma positiva de socialidade que faz as pessoas se unirem? Violência é uma forma de lidar com a contingência ou a violência é uma forma importante e fonte de contingência? Violência rompe com as normas ou a violência reforça as normas? Violência é uma situação visível ou a violência é um processo oculto? A violência do Estado é reativa em relação à violência ilegítima ou a violência do Estado é ativa em distinguir violência legítima e ilegítima? Violência é um processo social significativo, cujo sentido é posto em um referente externo ou a violência é um processo social caracterizado, exclusivamente, pela autorreferência? A violência repele ou a violência atrai? A violência é um meio para um fim ou é um fim em si mesmo? (SCHINKEL, 2010, p. 15)

Segundo Arendt (2011), do ponto de vista sociológico, a violência é um péssimo interlocutor, pois nada tem para dizer. Nesse sentido, é importante pontuar que uma das propriedades preocupantes da sociedade atual não é a violência em si, em vista de sua permanente existência, mas seu expressivo crescimento, com a banalização das ocorrências, em uma normalização das situações cotidianas. A frieza ante os casos de violência implica em uma proteção contra o sofrimento que essas notícias provocam, o que é passível de conduzir a um estado perigoso de indiferença e desumanização frente aos acontecimentos diários.

2.3 CAUSALIDADES DA VIOLÊNCIA SOB ENFOQUE SOCIOLÓGICO

A violência pode ser definida conforme parâmetros antropológico-filosóficos, nos quais ela é o liame da racionalidade e da destruição, do desprovimento dos homens da sua dignidade, ou seja, de sua objetificação. Outrossim, ela pode ser categorizada conforme os termos sociológicos, em que a lógica excludente do capitalismo e do e neoliberalismo considera os cidadãos como clientes e ainda os alija dessa condição de cidadãos (CARBONARI, 2002). A violência “organiza as relações de poder, de território, de autodefesa, de inclusão e exclusão e institui-se como único paradigma” (MARCONDES FILHO, 2001, p. 22).

No Brasil, a História foi pautada pelo permanente uso da violência, tendo suas origens com o processo de colonização, inicialmente, na violenta política de subjugamento do indígena auxiliado pela ideologia da guerra justa, das jurisdições e dos aldeamentos. Com a escravidão havida durante séculos, que suprimiu a vida humana de modo selvagem, e ainda de forma mais suave, com a política de subterfúgios oferecida ao imigrante europeu, submetendo-o à escravidão simbólica. Tais práticas colonizatórias erigiram um Brasil centrado na concentração de riquezas evidencias na desigualdade social que se alastrou no cotidiano, pautada, também, pelo uso persistente da violência (BERNASKI; SOCHODOLAK, 2018).

Ainda conforme Bernaski e Sochodolak (2018) sociedade brasileira foi construída em moldes violentos nas várias instâncias sociais. A violência também é diluída no cotidiano e agravada pela má administração política. Adorno (2002) sugere que as repercussões da  violência e seus impacto vem estimulando o desenvolvimento de pesquisas no domínio das ciências sociais. Sob um enfoque generalista, pode-se reunir os esforços de justificação de causalidades sob três aspectos:

Preliminarmente, transformações na sociedade e nos padrões convencionais de delinquência e violência. Desde a última metade do século passado, nota-se uma aceleração de transformações, nuca dantes vistas e experienciadas, quais sejam, novos meios de acumulação de capital e de concentração industrial e tecnológica, alterações relevantes nos meios de produção, nos processos de trabalho, nos modos de recrutamento, alocação, distribuição e uso da força de trabalho com implicações, notáveis nas formas costumeiras de associação e representação sindicais; superação das fronteiras do Estado-nação, ocasionando elevado deslocamento nas relações dos indivíduos entre si, dos indivíduos com o Estado e entre diferentes Estados, o que traz implicações na natureza dos conflitos sociais e políticos e nos mecanismos de solução.  

Tais mudanças ecoam no domínio do crime, da violência e dos direitos humanos. Alteram-se os parâmetros tradicionais e convencionais de delinquência, centralizados  em torno do crime contra o patrimônio, geralmente causados por ações individualizadas e de alcance local. Frequentemente, o crime organizado conforme moldes empresariais e com bases transnacionais tem se interposto, se alastrando e conectando distintas formas de criminalidade (crimes contra a pessoa, contra o patrimônio, contra o sistema financeiro, contra a economia popular).

Seus reflexos mais evidentes abrangem uso de violência excessiva mediante uso de potentes armas de fogo, destacando a função estratégica do contrabando de armas, corrupção de atores do poder público, proeminentes desorganizações no tecido social, desordem das formas convencionais de controle social. Em igual acepção, agudiza-se o pano de fundo das graves violações de direitos humanos.  

Em segundo lugar está a violência e desigualdade social. A hipótese que sustentava as conexões entre pobreza, delinquência e violência encontra-se atualmente deveras contraposta em inúmeros estudos. Todavia, não há como olvidar as relações entre a persistência, na sociedade brasileira, da concentração da riqueza, da limitação e precarização da qualidade de vida coletiva nos bolsões periféricos das grandes cidades e a eclosão da violência fatal.

Itinerários da violência, mapeados para algumas capitais brasileiras, em estudos passados, sinalizavam as taxas de homicídios eram constantemente mais altas nessas áreas do que nos bairros que integram o cinturão urbano mais bem atendido por infraestrutura urbana, por oferta de trabalho e ações de lazer e cultura. A  maior concentração de homicídios esteve relacionada ao déficit habitacional, fenômeno característico dos bairros em que se concentram trabalhadores urbanos de baixa renda. Isso evidencia que em tais contextos, há maior predisposição para a ocorrência de fatalidades em conflitos sociais e interpessoais.  

Ademais, a desigualdade social e a concentração de riqueza, condições que se alastraram durante os anos 90, em oposição ao crescimento da riqueza e das profundas modificações que atravessa a economia nacional, colidiram com a crise fiscal, sobretudo com as austeras restrições ao Estado para minimizar a violência através do incentivo ao desenvolvimento socioeconômico, à expansão do mercado de trabalho e à garantia de um mínimo de qualidade de vida para o conjunto da população.  

Para Nascimento (2019), a violência e o aumento da criminalidade enquanto  fenômenos sociais, que se percebe em todos os países ocidentais, estão, desse  modo, diretamente associados à ausência de qualquer referência a um Estado de  direito ou um Estado Social. Essa condição colabora de modo cruel com o sentido  autoritário do tratamento dado aos pobres.

Ao afetar a qualidade de vida das populações urbanas, principalmente de seus recortes mais pauperizados e de baixa renda, a violência afeta também a capacidade de aplicação do Estado na aplicação das e na garantia da segurança da população. Por isso, o terceiro elemento da discussão que norteia esta seção está, conforme Adorno (2002), na crise no sistema de justiça criminal. Abundantes estudos sinalizam a incapacidade do sistema de justiça criminal, aí inseridas as agências policiais, Ministério Público, Poder Judiciário e sistema penitenciário, na contenção de crimes e na redução da violência nos pressupostos do estado democrático de direito.

Para Arendt (2011), o conceito de violência tem o sentido de meio ou instrumento de coação que constituem recursos ao serviço exclusivo e soberano de uma dada autoridade, no exercício de determinada fonte de poder. A fenomenologia da violência ocorre sempre que ocorrem condições favoráveis, dentre as quais a perda de autoridade ou mudanças nas tradicionais relações de poder.

De tal modo, um Estado soberano possui acesso absoluto e exclusivo e controle e uso dos meios de violência, os quais, obrigatoriamente repercutem sobre duas amplas áreas de segurança, seja no âmbito da ameaça interna (tribunais e forças policiais) e da ameaça externa (forças armadas) (PINHEL RIBEIRO, 2022).

Sobre isso Misse (2008) argumenta que, no Brasil, o Estado nunca conseguiu efetivamente o monopólio do uso legítimo da violência, nem teve capacidade de  oferecer de modo igualitário a todos os cidadãos acesso judicial à resolução de conflitos. implica que o Estado brasileiro não foi totalmente detentor da capacidade de ter o monopólio do uso da força em todo território, nem o de ser capaz de arregimentar para si a administração  plena da Justiça no controle da violência

 A criminalidade evoluiu e mudou sua face, contudo, o sistema de justiça não acompanhou essa transformação e continuou atuando como faz há anos. Assim, cresceu de forma elevada a distância havida entre a evolução da criminalidade e da violência e a capacidade do Estado de conter o fenômeno a partir da lei e da ordem. Os sinais mais evidente dessa situação são os desafios enfrentados pelo poder público na sua missão constitucional de deter o monopólio estatal da violência.

Atualmente, a violência não possui um local determinado. Ela se manifesta tanto nos bairros de maior poder aquisitivo, quanto nas favelas, ela atinge o centro e a periferia, atravessando diversas classes sociais. Modalidades distintas de violência são noticiadas e dramatizadas, dentre as quais roubos, furtos, assassinatos, sequestros, guerras, atentados, terrorismo, violência física, violência sexual, violência psicológica, tortura, amplamente usada em regimes autoritários e períodos ditatoriais, violência policial, entre outras, sendo elas, manifestações de produções contemporâneas da violência. Até mesmo a arquitetura atual evidencia o medo da violência. As moradias estão protegidas por muros altos, alarmes e cercas elétricas, sem visão para a rua, protegidas por cães de guarda. A arquitetura aberta cedeu seu espaço para a defesa e a proteção, contudo, nos bairros e comunidades menos favorecidos, a violência é escancarada, sem ser escondida por cercas e muros

A repercussão mais acentuada desse fenômeno é o descrédito da sociedade na justiça e nas instituições dela incumbidas, sobretudo aquelas as quais se comina a distribuição e aplicação das sanções para os autores de crime e de violência. Tanto quanto mais descrentes na ação estatal, os cidadãos com condições buscam alternativas através da segurança privada. (ADORNO, 2002).

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A problemática que estimulou essa pesquisa foi a compreensão e análise das multifacetadas manifestações da violência na sociedade contemporânea, em suas dimensões físicas, simbólicas, estruturais e institucionais. A pesquisa buscou explorar a evolução histórica e a diversificação da violência, suas causas e implicações sociais, políticas e culturais, bem como os desafios enfrentados pelo Estado e pela sociedade na gestão e compreensão deste fenômeno.

Os objetivos da pesquisa foram cumpridos, uma vez que se analisou a importância da contextualização histórica e sociológica da violência, destacando sua presença intrínseca e variável ao longo da história humana. As diferentes perspectivas teóricas apresentadas proporcionaram um panorama abrangente das formas como a violência se manifesta e é percebida na sociedade contemporânea, revelando sua complexidade e as diversas camadas que a compõem.

Conclui-se que a violência, em suas múltiplas expressões, é um fenômeno intrinsecamente ligado à condição humana e à organização social, política e econômica das sociedades. Sua natureza é dinâmica e reflete as tensões, desequilíbrios e transformações sociais. É evidente que, apesar das mudanças históricas, a violência continua a ser um desafio persistente e multifacetado, exigindo abordagens integradas e multidisciplinares para sua compreensão e gestão.

Ainda se pode concluir que a violência não é um fenômeno isolado, mas está profundamente entrelaçada com questões de poder, desigualdade, exclusão social e falhas nos sistemas de justiça e segurança. As formas de violência evoluem e se adaptam às mudanças sociais, exigindo uma constante reavaliação das estratégias e políticas para combatê-la e preveni-la eficazmente.

Como sugestão de pesquisas futuras, destaca-se a necessidade de analisar as interconexões entre violência e outras dimensões sociais, como educação, saúde mental e políticas públicas. Além disso, é imprescindível investigar mais a fundo as causas e as consequências da violência em diferentes contextos culturais e sociais, para elaborar estratégias mais eficazes e humanizadas de prevenção e intervenção. A pesquisa futura também deve se concentrar em entender melhor o papel das novas tecnologias e mídias sociais na propagação da violência, bem como nas possíveis soluções que elas podem oferecer.

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1Mestrando em Segurança Pública, cidadania e Direitos Humanos pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Especialista em Segurança Pública e Inteligência Policial pela Faculdade Literatus (UNICEL). Especialista em Ciências Jurídicas pela Universidade Cruzeiro do Sul. Possui graduação em Segurança Pública, cidadania e Direitos Humanos pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Bacharel em Direito pela Universidade Cidade de São Paulo – UNICID. Tenente Coronel da Polícia Militar do Estado do Amazonas. Comandou diversas unidades da Polícia Militar do Estado em todos os Grandes Comandos da Corporação, dentre as quais destacamos: No Comando de Policiamento Metropolitano foi Comandante da 12ª CICOM, 20ª CICOM e do Batalhão do CPA Leste. No Comando de Policiamento do Interior, foi comandante do 4º BPM na cidade de Humaitá – AM e 4ª CIPM na cidade de Lábrea- AM. No Comando de Policiamento Especializado foi Comandante do Grupamento Aéreo.No Comando de Policiamento Ambiental comandou o Batalhão Ambiental. Atuou ainda como Piloto de Helicóptero no Departamento Integrado de Operações Aérea da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Amazonas onde também exerceu a função de Chefe de Operações Aéreas. Foi condecorado com a Medalhas Ação Policial, Medalha 10 anos de Serviço, Medalha 20 anos de Serviço, Medalha do Mérito Policial e Medalha Tiradentes.

2Mestrando em Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos pela UEA – Universidade do Estado do Amazonas. Especialista em Gestão Pública aplicada à Segurança pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Especialista em Direito Administrativo pela Faculdade FOCUS. Especialista em Segurança Pública e Direito Penitenciário pela Faculdade de Educação, de Tecnologia e Administração – FETAC. Especialista em Ciências Jurídicas pela Universidade Cidade de São Paulo – UNICID. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Candido Mendes – UCAM. Possui graduação em Segurança Pública pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Bacharel em Direito pela Universidade Cidade de São Paulo – UNICID. Tenente Coronel da Polícia Militar do Estado do Amazonas. Possui experiência na área de Direito, na fiscalização e gestão de contratos públicos, com ênfase em Segurança Pública. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6428-8590

3Especialista em Direito Militar pela Universidade Cruzeiro do Sul – SP. Bacharel em Direito pela Universidade Cruzeiro do Sul. Bacharel em Segurança Pública pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Oficial da Polícia Militar do Estado do Amazonas, atuando principalmente nos seguintes temas: polícia comunitária; redução da criminalidade e política criminal; ronda escolar; defesa dos direitos humanos. Tem 14 (quatorze) anos de serviço em atividade militar. É autor e organizador de livros técnicos e acadêmicos.

4Doutora em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas. Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Cândido Mendes. Graduação em Direito pela Universidade Nilton Lins. Analista judiciário – Tribunal Regional do Trabalho da 11ª Região. https://orcid.org/0000-0002-1430-4123

5Mestre em Engenharia Civil em Materiais Regionais e não Convencionais Aplicados a Estruturas e Pavimentos pela UFAM Universidade Federal do Amazonas. Especialista em    Engenharia de Bioprocessos pela Faculdade Unyleya e em Engenharia de  Estruturas de Concreto e Fundações pela UNICID Universidade Cidade de São Paulo. Graduado em Engenharia Civil pela ULBRA Centro Universitário Luterano de Manaus e em Engenharia Civil Operacional pela UTAM Centro de Tecnologia da Amazônia. https://orcid.org/0000-0002-4881-0702

6Mestranda em Saúde Pública pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Especialista em Saúde Pública com ênfase em saúde da família pela Faculdade Iguaçu.  Especialista em saúde Coletiva e ESF pela Faculdade Iguaçu.  Especialista em Enfermagem em Atenção Primária à Saúde pela Faculdade Iguaçu. Especialista em Enfermagem em Saúde da Família pela Faculdade Iguaçu. Especialista em Urgência e Emergência pela Faculdade Literatus (UNICEL). Bacharel em Enfermagem. Atualmente é Analista em Enfermagem da Prefeitura Municipal de Manaus e servidora civil no Hospital Militar do Exército Brasileiro. Tem experiência na área de Enfermagem. Possui experiência na área de Saúde Pública, Saúde Materno-Infantil, na assistência e gestão de enfermagem. Tem 18 (dezoito) anos de serviço em atividade de enfermagem. É autora e organizadora de livros técnicos e acadêmicos. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3677-1985.