REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202507311052
Joiza Maria Oliveira Santana
Vinicius Nascimento da Silva
Vitória Oliveira da Silva
Resumo: O presente relato descreve a atuação de estagiários junto a uma paciente internada com diagnóstico de Diabetes Mellitus tipo 2 (DM2), que apresentou resistência inicial à realização de amputação suprapatelar. O estágio supervisionado ocorreu no maior hospital de Urgência e Emergência do Estado de Rondônia, e as intervenções com a paciente em questão se deram no período entre maio e junho de 2025. Essas intervenções tiveram como objetivo oferecer suporte psicológico à paciente, além de compreender os motivos subjetivos que justificavam a recusa da terapêutica proposta pela equipe médica. As estratégias utilizadas foram fundamentadas na Terapia Cognitivo-Comportamental. Os resultados observados evidenciaram a relevância da Psicologia Hospitalar em contextos de recusa terapêutica, perdas corporais e sofrimento emocional, reforçando a importância de um cuidado ético e humanizado. Ademais, as intervenções contribuíram para o enriquecimento do aprendizado e formação acadêmico-profissional, ampliando a compreensão da Psicologia no contexto hospitalar, principalmente em casos de pacientes com diabetes e que passam por procedimento de amputação.
Palavras-chave: Psicologia Hospitalar; Diabetes Mellitus Tipo 2; Amputação; Formação em Psicologia.
Abstract: This report describes the work of psychology interns with a hospitalized patient diagnosed with Type 2 Diabetes Mellitus (T2DM), who initially resisted undergoing a suprapatellar amputation. The supervised internship took place at the largest emergency and trauma hospital in the state of Rondônia, Brazil, with interventions occurring between May and June 2025. The main objective was to provide psychological support to the patient and to understand the subjective reasons behind her refusal of the medical treatment proposed by the healthcare team. The strategies employed were based on Cognitive Behavioral Therapy. The outcomes highlighted the relevance of Hospital Psychology in contexts involving treatment refusal, bodily loss, and emotional distress, emphasizing the need for ethical and humanized care. Moreover, the interventions enriched the interns’ academic and professional development by broadening their understanding of psychological practice in hospital settings, especially in cases involving diabetic patients undergoing amputation procedures.
Keywords: Hospital Psychology; Type 2 Diabetes Mellitus; Amputation; Psychology Training.
1. Introdução
A Psicologia Hospitalar constitui um campo de atuação que busca compreender e intervir nas experiências subjetivas associadas ao adoecimento e à hospitalização, atravessadas por aspectos emocionais, sociais e existenciais. No Brasil, o marco inicial da Psicologia Hospitalar é atribuído à atuação da psicóloga Matilde Néder, em 1954, no Serviço de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (CAMPOS, 1995). Para Simonetti (2011), o papel do psicólogo hospitalar é auxiliar o paciente a atravessar o processo de adoecimento, oferecendo suporte que favoreça a adaptação às mudanças impostas pela doença e pelo contexto hospitalar. Inserida na interface entre psicologia e medicina, essa área visa promover o bem-estar psíquico e contribuir para a humanização da assistência em saúde, atuando desde o momento do diagnóstico, processo durante a internação até situações de terminalidade.
O Diabetes Mellitus tipo 2 (DM2) é uma condição clínica crônica, de origem multifatorial, caracterizada pela resistência à insulina e por desordens endócrino-metabólicas que comprometem de forma progressiva o funcionamento do organismo (NEGREIROS, 2023). Dentre suas complicações mais severas estão a neuropatia e a doença arterial periférica, que podem evoluir para infecções, necroses e, em casos avançados, à amputação de membros inferiores (LUCAS et al., 2010). No Brasil, entre janeiro e agosto de 2023, o Sistema Único de Saúde (SUS) realizou 6.982 amputações de membros inferiores em decorrência da diabetes, o que representa mais de 28 procedimentos por dia (AGÊNCIA BRASIL, 2023). No ano anterior, esse número chegou a 10.168 amputações, evidenciando a gravidade e a recorrência do problema no contexto nacional.
A amputação representa não apenas a subtração de uma parte do corpo, mas também uma ruptura com a identidade corporal e a personalização, afetando a percepção que o sujeito tem de si mesmo, autonomia, autoestima e demais fatores associados. A imagem corporal é uma construção dinâmica e relacional, em constante reformulação. Assim, a perda de um membro exige uma reconstrução psíquica que ultrapassa o campo físico. Estudos como os de Lima et al. (2024) e Negreiros (2023) apontam que pacientes com DM2 frequentemente vivenciam a doença como “maldição” ou “guerra diária”, revelando a complexidade emocional que permeia esse adoecimento. Nesse cenário, a atuação da Psicologia Hospitalar se mostra de extrema importância.
Além das atividades de base como escuta ativa, acolhimento e orientação qualificada, são necessárias intervenções específicas fundamentadas em abordagens com evidência científica, como a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), destacada por sua aplicabilidade na redução de sintomas de ansiedade, depressão e estresse, e por favorecer maior adesão ao tratamento (PERON; SARTES, 2015). Beck (2021) enfatiza que a TCC promove estratégias de enfrentamento mais adaptativas, por meio da reestruturação de pensamentos disfuncionais.
A ajuda psicológica no tratamento do Diabetes Mellitus pode favorecer o enfrentamento das perdas, o manejo do medo das complicações e maior engajamento no autocuidado. Segundo Borges, Gorayeb e Foss-Freitas (2013), aspectos emocionais e sociais influenciam significativamente a forma como o paciente lida com a doença e com o tratamento, sendo essencial uma abordagem que contemple escuta qualificada e apoio à adaptação. Dessa forma, compreender o processo de adoecimento e os aspectos subjetivos envolvidos no enfrentamento da DM2 exige uma escuta qualificada e sensível aos significados atribuídos pelo paciente à sua condição, como propõe Lima et al. (2024), valorizando um cuidado integral que contemple as dimensões emocionais, sociais e existenciais do sujeito.
A atuação do psicólogo hospitalar não deve restringir-se somente a escuta, mas envolver-se na construção ativa de sentidos que auxiliem o paciente e sua família a lidar com a finitude, a perda funcional e a reorganização do cotidiano, conforme destaca a Nota Técnica do Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2019). Ainda, os impactos da amputação se estendem à vivência da síndrome do membro fantasma, que, segundo Padovani et al. (2015), afeta entre 50 a 80% dos pacientes e está frequentemente associada a sofrimento emocional intenso, exigindo abordagens interdisciplinares. O manejo psicológico nestes casos inclui acolhimento da dor subjetiva, identificação de fatores desencadeantes e integração de estratégias cognitivas e sensório-motoras de alívio, esse trabalho podendo ser executado em conjunto com equipe especializada de Fisioterapia.
No caso em relato, a aplicação de atividade expressiva de modo lúdico possibilitou a compreensão dos sintomas associados no pós-operatório. Ainda, as experiências subjetivas como a descrita por Squeff et al. (2021) reforçam que a dor da amputação não se limita ao campo físico, mas incide de maneira contundente sobre a própria noção de existência, sendo a amputação vivida como uma ruptura na identidade e na presença do sujeito no mundo, sendo marcada por sentimentos de estranhamento, impotência, vergonha e inutilidade. Tais vivências tornam o corpo não apenas um lugar de ausência, mas de silêncio e despedaçamento, exigindo uma escuta que vá além da técnica, capaz de acolher os fragmentos da experiência e possibilitar sua reconstrução simbólica, tais intervenções promovem o reconhecimento e a ressignificação dessa nova condição para que o sujeito consiga, progressivamente, habitar novamente seu próprio corpo. Portanto, compreender o processo de adoecimento e todos os aspectos subjetivos, diante da amputação em pacientes diabéticos exige uma abordagem integral que inclua o campo simbólico e emocional da experiência. É neste ponto que a Psicologia Hospitalar, fundamentada teoricamente e sempre atada em preceitos éticos, pode oferecer contribuições significativas para a reabilitação e reintegração desses sujeitos à sua vida cotidiana.
2. Metodologia
Trata-se de relato de experiência, com abordagem qualitativa e caráter descritivo-reflexivo considerando a atuação de dois estagiários de Psicologia sob supervisão, cursando o 9ª período do curso de Psicologia em Porto Velho – RO. As práticas ocorreram durante o estágio supervisionado em um Hospital Público, referência em casos de urgência e emergência na cidade de Porto Velho (RO). O estágio foi realizado entre os meses de março e junho de 2025, sendo que o acompanhamento do caso fruto deste relato ocorreu entre maio e junho do corrente ano. O presente relato buscou compartilhar a experiência dos estagiários no acompanhamento psicológico feito a uma paciente do sexo feminino com diagnóstico de DM2, associada à comorbidades de insuficiência renal crônica e histórico de depressão e ansieade. A atuação teve como supervisora a professora Joíza M. O. Santana que na oportunidade também era preceptora do estágio.
O hospital, campo de estágio, é situado em demandas de alta complexidade, e enfrenta desafios extremos, como dificuldades com infraestrutura e superlotação. Contudo, preceitua os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) como base primordial para o funcionamento e organização do sistema de saúde. A instituição compõe diversas especialidades, com destaque para ortopedia, clínica médica e cirurgia/trauma.
Estiveram presentes nessa experiência de estágio um estagiário e uma estagiária, do 9º período e uma preceptora. A experiência em campo também contou com a participação coadjuvante dos demais profissionais do Serviço de Psicologia do hospital, que era composta por dois psicólogos e cinco psicólogas, sendo uma residente. A vivência envolveu ainda a assistência aos pacientes internados, familiares e cuidadores inseridos no processo de hospitalização, além da participação dos demais profissionais da equipe multiprofissional como nutricionistas, assistentes sociais, enfermeiros, médicos e fisioterapêutas.
O acompanhamento psicológico teve início no dia 15 de maio de 2025, após solicitação em prontuário pela equipe de Cirurgia Vascular. A indicação para avaliação psicológica ocorreu diante da recusa inicial da paciente em aderir à terapêutica proposta, de amputação suprapatelar, referenciada pelo médico especialista, que caso não fosse realizada em tempo hábil, representaria risco iminente de óbito devido ao agravamento por infecção no membro inferior esquerdo.
Após a avaliação psicológica foi realizada a estruturação inicial do caso e acordados os objetivos e conduta das intervenções, tendo em vista a especificidade e complexidade do atendimento.
A atuação em dupla se mostrou estratégica, tanto no manejo da demanda quanto no suporte mútuo. Tal formato, possibilitou experiência enriquecedora para o desenvolvimento de competências interpessoais, coesão na escuta e ampliação das perspectivas diante do sofrimento psíquico. A atuação em dupla também promoveu um processo de co-construção da intervenção, proporcionando aos estagiários a oportunidade de refletirem conjuntamente sobre condutas, de modo a enriquecer a escuta e fortalecer o vínculo com a paciente. Sequeira (2020), aponta que a dupla de atendimento favorece a sustentação emocional dos profissionais em formação e amplia a percepção clínica, principalmente em contextos que envolvem decisões críticas e sofrimento intenso, como nos casos de amputação.
O foco da intervenção inicial esteve na escuta ativa para conduzir a avaliação psicológica, buscando entendimento de fatores subjetivos que estavam influenciando na resistência ao procedimento. Durante o atendimento, foi possível perceber que a paciente apresentava sofrimento emocional evidente com predominância de sintomas ansiosos, expressos por meio de inquietação, fala emotiva e necessidade de buscar outras opiniões médicas. Esses aspectos foram compreendidos como reações frente à iminência de uma perda corporal significativa, condizente com o que Fonseca (2001) entende como sendo um primeiro movimento de choque e negação diante da difícil realidade realidade do diagnóstico, composta por diversos tipos de reações, como: ambivalência, revolta, indecisão, barganha, depressão e, posteriormente, aceitação. Tais reações que estão presentes no luto propriamente dito, se mostram comuns em casos de luto antecipatório.
Ao final da primeira intervenção, foi elaborado um parecer psicológico, no qual se recomendava a continuidade dos atendimentos, a intensificação da abordagem médica com linguagem acessível e a articulação multiprofissional, visando favorecer uma decisão consciente e respaldada emocionalmente. O documento foi redigido de acordo com a Resolução CFP nº 006/2019, que regulamenta a elaboração de documentos psicológicos. Nessa perspectiva, o parecer se constitui como um instrumento técnico fundamentado na escuta clínica, com linguagem clara, objetivos definidos e respeito à singularidade da paciente. A abordagem colaborativa, percebida a partir da solicitação de avaliação psicológica por equipe especialista, responde às diretrizes do SUS no que se refere ao trabalho interprofissional e ao cuidado integral (BRASIL, 2003).
Nos atendimentos subsequentes, realizados nos dias 22 e 27 de maio, observou-se progressiva flexibilização cognitiva, com a paciente expressando decisão pelo procedimento cirúrgico. A paciente passou a verbalizar de modo ampliado sobre a possibilidade de realizar a amputação, ainda que estivesse sob a égide de sentimentos ambivalentes. Ao longo dessa etapa, foi possível perceber dificuldades na comunicação com a equipe médica, que por sua vez geraram expectativas sobre alternativas de tratamento, exigindo dos estagiários intervenções focadas na reestruturação cognitiva, para ajudar a paciente na compreensão da situação e situá-la em possibilidades que naquele momento eram evidentes, tal atuação encontrou amparo em técnicas comuns à abordagem da Terapia Cognitivo-Comportamental (BECK, 2021), sendo eficaz em contextos hospitalares em processos de tomada de decisão (PERON; SARTES, 2015).
Em 29 de maio, após o procedimento cirúrgico, a paciente demonstrava compreensão da escolha realizada e verbalizava aceitação gradual da nova condição corporal. O vínculo terapêutico, já firmado e estabelecido, foi importante para que expressassem sentimentos de luto, alívio e medo. As intervenções nesse momento, já começaram a introduzir a possibilidade de aplicação de recursos simbólicos e lúdicos que favorecessem a elaboração emocional.
No atendimento de 3 de junho, já em pós-operatório, a paciente referia incômodos compatíveis com sintomas da síndrome do membro fantasma, como dor, coceira e sensação de choque. Frente à queixa de insônia, humor deprimido e relato de histórico psiquiátrico, os estagiários, junto a preceptora de estágio, solicitaram avaliação e conduta da Psiquiatria do hospital. As intervenções desse momento incluíram atividades expositivas e expressivas, com uso de imagem anatômica para explicação acessível sobre o fenômeno e prática de desenho como forma de simbolização da nova etapa de vida, a alteração na percepção da imagem corporal têm grande impacto na adesão ao programa de reabilitação e no prognóstico funcional. A orientação terapêutica é, portanto, fundamental após esse tipo de cirurgia. (PADOVANI et al., 2015).
O último atendimento ocorreu em 5 de junho, concomitante ao encerramento do estágio em campo. Realizamos uma intervenção que pudesse integrar os atendimentos realizados com foco no fechamento terapêutico, validação do processo vivido e orientação quanto à continuidade do acompanhamento. Foi um encontro especialmente simbólico, marcado pela despedida e pela sensação de missão compartilhada entre estagiários e pacientes, tendo a atendida verbalizado sobre os ganhos emocionais e destacando o acolhimento recebido. Foi possível pela dupla de estagiários a construção de um desfecho que reafirmou a importância da escuta ética e da presença comprometida com o outro, sentimentos que estiveram presentes também fora da unidade hospitalar, em forma de aprendizado de modo afetivo e ético.
3. Resultados Observados
a) Da paciente
A paciente, inicialmente resistente à proposta de intervenção, enfrentou impactos emocionais e físicos diante da gravidade da infecção no pé diabético, o que culminou na decisão pela amputação suprapatelar. Conforme apontam Chini e Boemer (2007), a vivência da amputação envolve transformações biopsicossociais, espirituais e culturais, frequentemente marcadas por estigmas e sentimentos ambivalentes, nos quais a necessidade racional do procedimento se confronta com a dificuldade emocional de aceitar a perda.
O processo cirúrgico marcou o início da elaboração subjetiva da perda do membro, mobilizando sentimentos como alívio, tristeza, medo e a percepção da perda de autonomia. Tais reações estão amplamente descritas na literatura sobre amputações (NEGREIROS, 2023). No pós-operatório, surgiram sintomas associados à síndrome do membro fantasma, como dor, sensação de presença do membro ausente e dificuldade em aceitar a nova imagem corporal, conforme relatado por Padovani et al. (2015).
Para lidar com essas vivências, foram aplicadas intervenções como atividade expressiva de modo lúdico, favorecendo a simbolização da perda e o resgate de estratégias subjetivas de enfrentamento. Também se utilizaram técnicas da Terapia Cognitivo-Comportamental, como distração cognitiva e reestruturação de pensamentos disfuncionais (BECK, 2021; PERON; SARTES, 2015), com o objetivo de promover a compreensão dos sintomas emergentes.
O relato da paciente, permeado por sentimentos de ambivalência e luto, revela a complexidade da reconstrução da autoimagem e da identidade corporal após a amputação. Essa trajetória evidencia a importância de abordagens terapêuticas integradas, que considerem o aspecto físico e psíquico, articulando-se com equipes de fisioterapia e enfermagem, como recomenda o CFP (2019) em suas Referências Técnicas.
Ao longo dos atendimentos, a construção de um vínculo terapêutico possibilitou a criação de um espaço subjetivo de fala. Nesse espaço, a paciente pôde refletir sobre o futuro, reconhecer o luto corporal e iniciar um processo de adaptação emocional à nova realidade.
Ressalta-se, ainda, o engajamento da paciente com os estagiários, contrastando com sua postura inicial de resistência aos atendimentos oferecidos pelo Serviço de Psicologia.
Compreende-se, assim, que o luto por uma parte do corpo exige tempo psíquico e suporte emocional para que o sujeito consiga reconstruir sua história. A paciente percorreu um caminho que partiu da negação e resistência até alcançar uma postura mais ativa e consciente frente à reabilitação, ainda que marcada por evidentes desafios emocionais.
No aspecto psíquico-emocional, mesmo com a introdução de psicofármacos prescritos pela equipe de psiquiatria, não foram observadas evoluções significativas no período de estágio, uma vez que a paciente permaneceu internada e o ciclo de atendimentos dos estagiários foi encerrado. Reforçaram-se, portanto, as recomendações para continuidade do acompanhamento psicológico no período pós-alta.
b) Dos estagiários
A experiência hospitalar com a paciente proporcionou vivências significativas para a formação acadêmico-profissional dos estagiários, favorecendo o desenvolvimento de competências essenciais à atuação em Psicologia Hospitalar. A intervenção em ambiente de urgência e emergência, marcado por demandas intensas e imprevisíveis, contribuiu para o aprimoramento de habilidades técnicas e socioemocionais, como escuta qualificada, manejo do silêncio clínico, formulação de hipóteses diagnósticas, flexibilidade institucional, alteridade, auto-observação e consciência do lugar de atuação. Acompanhamentos sucessivos possibilitaram a observação de mudanças clínicas importantes, como a adesão da paciente ao tratamento e o início da ressignificação da perda corporal. O contato com a equipe multiprofissional também reforçou o reconhecimento da importância da interdisciplinaridade, da comunicação ética e do papel da Psicologia como promotora de cuidado integral e humanizado.
O estágio favoreceu uma vivência crítica sobre os limites institucionais e as potências do cuidado, revelando os desafios e potencialidades do trabalho em saúde no contexto do SUS. Como afirmam Freitas, Figueiredo e Barbosa (2017), o estágio supervisionado em Psicologia Hospitalar é um espaço privilegiado de contato com as realidades da profissão. Ao adentrarmos uma instituição pública marcada por adversidades estruturais, lidamos com dificuldades enfrentadas por meio de trabalho coletivo, supervisão qualificada e diálogo constante com a equipe, o que tornou o processo formativo dos estagiários mais ético e significativo.
De forma geral, o estágio possibilitou não só a aplicação de técnicas fundamentadas teoricamente, como também a construção de uma postura clínica sensível às necessidades do sujeito, mesmo em contextos de vulnerabilidade extrema. Como destaca Simonetti (2011), a atuação do psicólogo hospitalar não se limita à técnica, mas se ancora na escuta, no acolhimento e na presença ética diante do sofrimento.
Durante o processo, foi inevitável que emergissem reflexões sobre os próprios limites emocionais diante da dor vivenciada pela paciente. Muitos atendimentos beira-leito foram seguidos por momentos de introspecção, nos quais carregávamos simbolicamente as marcas da experiência do outro. A escuta da amputação, do medo e da ressignificação do corpo foi, ao mesmo tempo, campo de intervenção e de profunda reflexão interna. Essa vivência levou à reflexão sobre a responsabilidade ética da presença. Compreendemos que não cabe ao estagiário ou psicólogo hospitalar assumir o papel de herói, pois não se trata de salvar alguém ou decidir por ele, mas sim de sustentar o estar com ele, oferecendo escuta, amparo e presença como fundamentos essenciais do cuidado.
4. Considerações Finais
A vivência relatada trouxe evidências da complexidade da atuação psicológica em contexto hospitalar, especialmente diante de situações marcadas por perdas corporais e resistência terapêutica. Desde a primeira solicitação de avaliação psicológica, motivada pela recusa da paciente em realizar a amputação suprapatelar, até o último atendimento realizado após o procedimento cirúrgico, foi possível acompanhar de forma contínua os processos emocionais e subjetivos da paciente diante da iminente perda de um membro.
A atuação em dupla, orientada por supervisão especializada, permitiu o desenvolvimento de um plano de cuidado que articulou intervenções baseadas na Terapia Cognitivo-Comportamental, elaboração de documento psicológico e recursos voltados à simbolização da perda. Desde o primeiro contato, diante de uma paciente permeada pela negação, foi possível assumir uma postura ética e acolhedora, compreendendo o impacto psíquico do risco de amputação. Com o desenrolar dos atendimentos, observou-se uma gradual flexibilização diante do quadro, que culminou na aceitação do procedimento, reforçando a importância do vínculo terapêutico e de uma linguagem acessível, capaz de alcançar o paciente e favorecer decisões conscientes. A aplicação de recursos simbólicos e expressivos favoreceu a elaboração emocional diante da perda do membro. A atuação permitiu ainda integrar a trajetória vivida, validar o processo percorrido e oferecer psicoeducação voltada à continuidade do cuidado. A experiência formativa possibilitou não apenas o exercício prático dessa área da Psicologia, mas também um profundo aprendizado sobre os sentidos do cuidado, os limites da atuação e a importância de uma presença comprometida com o sofrimento do outro.
Diante disso, reafirma-se que a atuação de estagiários de Psicologia, quando realizada a partir de uma dimensão teórica alinhada à sensibilidade humana e conduzida sob supervisão qualificada, pode oferecer contribuições significativas ao cuidado hospitalar. Estar com o outro (paciente) e poder contar com o outro (dupla), em momentos-limite, ainda que em um cenário de formação, é também uma forma legítima de marcar a complexa atuação da Psicologia no contexto hospitalar, com ênfase nos processos de amputação vivenciados por pacientes diabéticos.
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