REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102412140935
Mariana de Oliveira Monteiro
Este relato de experiência acadêmica resulta da monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal da Bahia. A pesquisa, de abordagem qualitativa, envolveu um estudo de campo empírico com a aplicação de entrevistas semi-estruturadas. O objetivo foi compreender os desafios e as facilidades enfrentados por mulheres diagnosticadas com câncer de mama no acesso à mastectomia total ou parcial e à reconstrução mamária no município de Salvador/Bahia. Para preservar a identidade da usuária, foi adotado o nome fictício de “Dona Vitória”, que ilustra a experiência vivida por essas mulheres.
O câncer de mama é uma das principais causas de morte no Brasil, com variações nas taxas de incidência entre as regiões, refletindo diferenças nos perfis epidemiológicos e nos fatores de risco. No Nordeste, por exemplo, o câncer de mama apresenta taxas mais baixas quando comparado às regiões Sul e Sudeste, um fenômeno frequentemente associado ao menor desenvolvimento econômico, o que impacta diretamente o acesso à saúde e aos cuidados preventivos. Além disso, a dificuldade no diagnóstico precoce da doença contribui para a subestimação da real incidência em diversas regiões. A falta de acesso a exames de rotina e a tratamentos adequados ainda é uma realidade que limita as chances de detecção precoce, fator crucial para o aumento da sobrevida e qualidade de vida das pacientes.
O município de Salvador, localizado no estado da Bahia, é uma das principais capitais do Nordeste, com grande relevância no cenário nacional, tanto em termos econômicos quanto culturais. Contudo, a cidade enfrenta desafios no sistema de saúde, especialmente no atendimento às demandas de alta complexidade, como o câncer de mama. A rede de atenção à saúde de Salvador, composta por unidades de saúde de baixa, média e alta complexidade, tem lidado com o aumento crescente de casos de câncer, refletindo a necessidade urgente de ampliar e qualificar os serviços de saúde, além de garantir o acesso igualitário a todos os pacientes.
Este relato baseia-se em entrevistas realizadas com pacientes atendidas em um hospital filantrópico, de alta complexidade, localizado em Salvador, que atende demandas de diversos municípios baianos, além de estados vizinhos. A instituição, que recebe usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), apresenta um fluxo médio diário de cerca de três mil pessoas, com um público predominantemente composto por pacientes de diversas origens, incluindo casos de câncer de mama. A seguir, compartilho relatos de uma paciente atendida nesse contexto, identificada como Dona Vitória, que enfrentou diversas dificuldades ao longo de seu tratamento, evidenciando os desafios do sistema de saúde e a complexidade do atendimento às mulheres com câncer de mama.
Desafios no Diagnóstico e Acesso ao Tratamento: A Experiência de Dona Vitória
Dona Vitória compartilhou sua experiência ao relatar a descoberta de um nódulo mamário após uma mamografia. Inicialmente, ela não compreendia o que aquele achado significava, mas, ao receber o diagnóstico de câncer, foi tomada pela angústia e pela necessidade de encontrar forças para enfrentar a doença. Ela conta: “Quando eu fiz a mamografia, eu descobri que tinha um nódulo, mas não sabia o que era. Quando fiz a cirurgia, tive que esperar um tempo para o laudo médico, e aí, o médico me deu o resultado dizendo que era maligno. Mas antes de descobrir, eu vinha orando a Deus, pedindo que, se fosse maligno, me desse tranquilidade. Eu via muita gente desesperada e, ao entrar no hospital, vi tantos movimentos de pessoas, tantos tipos de câncer diferentes. Eu ficava assustada, né? O hospital foi o “A”, mas até então eu não sabia o que era. Quando recebi o diagnóstico, eu disse ao médico: ‘Eu tenho duas coisas que vão me ajudar. Uma é Deus e a outra é você, que Deus colocou para me ajudar.’ O médico até deu risada”.
Sua história ilustra as dificuldades enfrentadas por muitas mulheres: o longo processo de diagnóstico e a burocracia no acesso a exames e consultas. Ela descreveu a dificuldade em conseguir consultas para a realização de exames de rotina, enfrentando longos períodos de espera, falta de vagas e a ausência de informações claras sobre o seu tratamento. Em um momento, ela relata: “Eu fiz a mamografia, primeiro uma de rotina, mas quando fui levar para o médico, você sabe como é, uma burocracia danada, muito transtorno. Fui várias vezes, mas sempre me diziam que não havia vaga. Acabei ficando zangada e não levei a mamografia. Só no ano seguinte, quando fui a outra médica, fiz uma nova mamografia, e quando ela olhou, disse: ‘Não se assuste, mas tem algo aqui que não está legal. Vou te encaminhar imediatamente para o mastologista’”.
A experiência de Dona Vitória também exemplifica como o sistema de saúde, embora ofereça acesso à saúde por meio do SUS, muitas vezes falha na organização e no acolhimento adequado das pacientes, o que gera frustração e agrava o sofrimento emocional das mulheres com câncer de mama.
A Fragilidade do Sistema de Saúde e a Necessidade de Humanização no Atendimento
A experiência de Dona Vitória reflete as falhas sistêmicas que impactam a qualidade do atendimento e a experiência dos pacientes no SUS. A centralização da atenção na doença e não nos determinantes sociais que a geram leva à adoção de práticas tradicionais e mecanicistas no atendimento, distantes da realidade e das necessidades das pacientes. Ela descreve, emocionada, uma situação em que foi atendida de forma desrespeitosa: “Fui ao “B” fazer a biópsia e, quando a médica marcou outro dia para me atender, cheguei lá e a médica já não estava mais no hospital. A médica tinha ido embora, e eu fiquei sem saber o que fazer. Não tinha resultado da biópsia, e a falta de organização no hospital me deixou completamente perdida”. A falta de continuidade no atendimento, como a retirada abrupta de profissionais de saúde, compromete a construção de vínculos essenciais para a recuperação dos pacientes e aumenta o sofrimento das mulheres em tratamento.
A assistência ao câncer de mama exige uma abordagem integral, que considere a saúde da mulher em sua totalidade. O modelo de acolhimento proposto pelo SUS precisa ser efetivamente colocado em prática, com uma organização do trabalho que envolva toda a equipe multiprofissional e não apenas o médico. Dona Vitória, ao relatar sua experiência, expressa a necessidade de ser ouvida e respeitada: “Ninguém merece ser tratado assim. Passei por tanto sufoco, de ser desrespeitada, e o pior é que ninguém me deu atenção devida. Eu só queria ser cuidada como qualquer outra pessoa, mas não foi assim. Fiquei triste, muito triste.”
A Linha do Cuidado e os Desafios da Implementação
A linha do cuidado no câncer de mama, que busca organizar o processo de atendimento desde a detecção precoce até o tratamento e cuidados paliativos, ainda enfrenta desafios significativos em sua implementação. O tempo de espera para o diagnóstico e tratamento é uma das principais barreiras, com muitas pacientes enfrentando atrasos de meses, em desacordo com as diretrizes da Lei 12.732/12, que estabelece um prazo máximo de 60 dias para o início do tratamento. Dona Vitória expressa sua frustração com os atrasos: “Fui ao hospital várias vezes e, sempre que eu chegava, me diziam para voltar outro dia. A morosidade no atendimento fez com que eu me sentisse negligenciada. Eu só queria começar o tratamento logo, mas a espera parecia interminável”. A morosidade no diagnóstico e no tratamento compromete as chances de sucesso terapêutico, além de gerar frustração e desconfiança no sistema de saúde.
É imprescindível que o SUS cumpra seu papel de garantir o direito à saúde de forma universal, equitativa e sem discriminação, principalmente em relação às mulheres de áreas periféricas e distantes dos centros urbanos. Para isso, é necessário investir na qualificação da rede de atenção à saúde, ampliar a disponibilidade de exames e consultas especializadas, e assegurar que a atenção à saúde seja pautada pela humanização, com o objetivo de proporcionar um atendimento digno e eficaz. Outro importante instrumento para garantir a construção de um SUS universal são os Conselhos de Saúde. Esses conselhos integram o sistema de saúde aos órgãos governamentais, promovendo o diálogo com a comunidade e gerando soluções positivas para suas demandas.
“Eu já estava me preparando, conversando com Deus, dizendo que já tinha vivido o suficiente, mas que, se Ele ainda tivesse um plano para mim e pudesse me salvar, seria bom…” relatou Dona Vitória. “Quando recebi a notícia, meu marido e minha família ficaram preocupados. Eu não tenho filhos, e meu marido ficou muito ansioso, muito abalado… mas ele não me abandonou. Isso é algo que acontece com muitas mulheres, mas eu tive sorte, graças a Deus.”
A família é a primeira instituição social. Nela, nascemos, crescemos e aprendemos a viver no mundo. Os membros dessa estrutura têm a responsabilidade de cuidar dos mais frágeis, especialmente quando um membro da família está hospitalizado. O apoio da família às mulheres com câncer de mama está diretamente relacionado aos laços afetivos, que, muitas vezes, são tão cruciais quanto o suporte profissional de saúde. Leite (2006) afirma que “cuidar é um ato inerente à condição humana”, e, nesse contexto, a figura familiar continua sendo uma fonte primária de cuidados. O adoecimento torna o indivíduo frágil e dependente, necessitando muito mais da presença de sua família, que passa a modificar sua rotina para atender às necessidades básicas da pessoa doente, como higiene, alimentação e cuidados com a medicação.
O impacto do diagnóstico de câncer de mama afeta não só a paciente, mas também os familiares, gerando uma ruptura no cotidiano. Isso provoca sentimentos de ansiedade, perda de privacidade e até a sensação de desproteção. A ansiedade do marido de Dona Vitória é um reflexo comum nessa situação: “Ele ficou muito ansioso, abalado… mas ele não me abandonou. Isso é algo que acontece com muitas mulheres, mas eu tive sorte, graças a Deus.”
A hospitalização é um evento estressante e pode ser um momento de confronto entre a vida e a morte, especialmente quando se trata de uma doença como o câncer de mama, que é muitas vezes vista como uma sentença de morte. O ambiente hospitalar ainda é considerado um local estranho e desconfortável por muitos, tanto para pacientes quanto para seus familiares. É fundamental que a equipe multidisciplinar torne esse espaço mais acolhedor, promovendo o conforto e a adaptação.
“Quando eu fui me operar, eu deixei tudo organizado. Trabalhei até dois dias antes da cirurgia. Eu pensava que era apenas um cisto, então nem imaginava que seria algo tão sério. Eu achei que nem iria ser assegurada pelo INSS, mas fui. Me preparei para ficar afastada por um mês, e como sou autônoma, guardei o dinheiro do INSS. Quando percebi que não tinha condições de trabalhar, entrei em contato com eles e me deram o benefício, o que foi mais rápido do que o atendimento médico. Recebi o retroativo desde o dia da cirurgia”, contou Dona Vitória.
Muitas pessoas diagnosticadas com câncer não conhecem seus direitos. No entanto, Dona Vitória, bem-informada, conseguiu acessá-los. Existem benefícios garantidos, como o auxílio-doença, saque do FGTS e do PIS/Pasep, isenção do IPVA e do imposto de renda, e transporte coletivo gratuito para pessoas com deficiência causada pela doença. Esses direitos são amplamente divulgados por canais como o Programa de Apoio ao Paciente com Câncer (PAP), que oferece informações por meio do oncoguia.
“O exercício dos direitos não cura, mas pode aliviar”, como bem diz um ditado popular.
Em relação à reconstrução mamária, Dona Vitória não precisou realizar o procedimento, pois sua mama foi preservada. Ela compartilhou sua experiência: “Foi preservada, e o corte foi perfeito, nem parece. Eu tinha tudo para ficar desanimada, porque quando recebi o diagnóstico, me vi já no caixão. Mas as coisas estão mudando, a mentalidade também. Muitas das mulheres que fizeram cirurgia comigo já faleceram, outras entraram em depressão, mas meu marido me disse: ‘Eu gosto de você, não de partes do seu corpo. Se for para tirar tudo, então vai tirar.’ Minha vida sexual não mudou em nada. Só durante a radioterapia, porque eu ficava debilitada, estressada, e não tinha cabeça para relações, mas meu marido nunca falou nada, ele foi muito compreensivo.”
“Eu falei para o doutor: ‘Se o senhor puder salvar minha mama, ótimo, se não, faça o que Deus quiser.’ Quando acordei e vi que minha mama foi preservada, fiquei muito feliz. Às vezes, penso: ‘Senhor, se eu tiver que passar por tudo de novo, eu espero que não seja nada, mas, se for, já estou me preparando.’ Para mim, vai ser como essa experiência, e eu sairei vitoriosa de novo”, relatou Dona Vitória com esperança renovada.
A preservação da mama, como vimos no capítulo anterior, é um avanço significativo, preservando a autoestima da mulher, especialmente no que diz respeito à sua imagem sexual. A Lei garante tanto a reconstrução mamária quanto a possibilidade de realização da reconstrução no mesmo momento da cirurgia, quando viável. Esse foi o caso de Dona Vitória, e o impacto positivo de sua recuperação foi evidente.
Com isso, observamos o quanto o SUS tem avançado, trazendo benefícios para os usuários e repercutindo positivamente em várias áreas de suas vidas.
Considerações Finais
Este relato de experiência revela a complexidade do atendimento a pacientes com câncer de mama no município de Salvador e destaca a necessidade de aprimorar a organização do sistema de saúde para garantir o acesso equitativo e a qualidade do atendimento. As dificuldades enfrentadas pelas pacientes, como a demora no diagnóstico e a falta de continuidade no cuidado, apontam para a urgência de transformar o modelo de atenção à saúde, com ênfase na humanização, na integração da equipe multiprofissional e no fortalecimento da rede de cuidados. A implementação de uma linha de cuidado eficaz, que respeite os direitos das pacientes e garanta o tratamento adequado no tempo certo, é essencial para a redução da mortalidade e o aumento da qualidade de vida das mulheres diagnosticadas com câncer de mama.
A experiência de Dona Vitória é um exemplo claro de como o sistema de saúde pode ser aprimorado, destacando a importância de um atendimento que, além de técnico, seja sensível às necessidades emocionais, sociais e culturais das pacientes. A construção de um SUS mais eficiente e acolhedor depende de um compromisso coletivo, que envolva profissionais de saúde, gestores e a sociedade em geral, para garantir o direito à saúde para todos.
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