RELATO DE CASO – MIOMECTOMIA VAGINAL EM GESTAÇÃO DE SEGUNDO TRIMESTRE

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th1025012809490


Anna Carolline Campanhã de Oliveira¹
Carlos Portocarrero Sanchez²


Resumo

Objetivo: relatar um caso de miomectomia vaginal bem sucedida realizada na 14ª semana de gestação. Detalhamento do caso: trata-se de paciente de 27 anos, primigesta, grávida de 14 semanas e 5 dias e mioma cervical volumoso, causando dor refratária a analgésicos, retenção urinária e constipação. Foi submetida a miomectomia vaginal, sob raquianestesia, com exérese de mioma de 352,54cm³. Acompanhamento pré-natal se deu em serviço de alto risco e teve parto cesariano na 38ª semana de gestação, com nascimento de feto vivo e saudável. Considerações finais: apesar da alta incidência de miomas em mulheres na menacme, apenas cerca de 5% estão localizados na cérvice e a incidência na gestação é ainda menor. Menos de 0,1% deles resultam em sintomas significativos, e, em raros casos torna-se necessária uma abordagem cirúrgica. A literatura a respeito de tais situações ainda é muito escassa e consiste em sua maioria em relatos de casos, porém com predominância de desfechos positivos. Dessa forma, a indicação de miomectomia deve ser individualizada e somente após o devido esclarecimento da paciente acerca dos riscos envolvidos.

Palavraschave: mioma; leiomioma; gravidez; complicações na gravidez; gestação de alto risco

Introdução

Apesar do quadro de miomatose ser muito comum na menacme, afetando cerca de 20-40% das mulheres, os casos diagnosticados durante a gestação são bem menores, com incidências chegando até 10%¹. Fatores como alta paridade, gestação recente e amamentação estão relacionados com menor incidência de formação de miomas². Mas com o atual aumento da idade das pacientes obstétricas, mais casos têm sido registrados³.

Muito mais relacionados à infertilidade, os miomas cervicais na gravidez são descritos em alguns poucos relatos de casos. Um estudo fez um levantamento de 2014-2020, encontrando apenas 9 casos relatados no mundo nesse período4. Uma pequena parcela de pacientes vai apresentar sintomas e repercussões materno-fetais, que vão desde dor e sangramento a aborto, parto prematuro e descolamento prematuro de placenta¹. Nos de localização cervical, a queixa mais recorrente foi sangramento genital4.

Dentre os casos sintomáticos, a maioria vai ser conduzida conservadoramente, com repouso e uso de analgésicos¹. Em decorrência do aumento da vascularização uterina na gestação, há a preocupação de que a manipulação cirúrgica aumente risco de hemorragia grave, aborto e histerectomia, além de chance de corioamnionite, rotura prematura das membranas amnióticas e trabalho de parto prematuro¹. No entanto, o aumento do número de miomectomias na gestação, devido ao avanço nas tecnologias e técnicas cirúrgicas, tem evidenciado um bom nível de segurança em realizar tais procedimentos, especialmente no primeiro e segundo trimestres5,6.

Relato de caso

Paciente de 27 anos, primigesta, deu entrada em nosso serviço com quadro de dor pélvica intensa, retenção urinária e constipação há 1 dia. Nesse momento, estava com 14 semanas e 5 dias de gestação, segundo ecografia precoce. Ao exame físico, ⅔ da vagina ocupados por tumoração extensa, comprimindo bexiga e reto, com colo uterino desviado anteriormente e de difícil acesso, sem sangramento ou outras perdas vaginais. À ultrassonografia, descrição de imagens sugestivas de leiomiomas, sendo o maior localizado em parede posterior da cérvice uterina, com volume aproximado de 352,54cm³. A paciente foi conduzida inicialmente com analgesia venosa e sonda vesical de demora.

Além de apresentar dor refratária, paciente mantinha constipação e com a extensão do tumor, a expectativa seria de persistir com retenção urinária após retirada da sonda vesical. Após os devidos esclarecimentos acerca da abordagem cirúrgica e todos os riscos envolvidos, incluindo aborto, amniorrexe prematura e histerectomia, paciente assinou termo de consentimento para cirurgia.

O procedimento foi realizado via vaginal, sob raquianestesia, com idade gestacional de 14 semanas e 6 dias. Foi realizada incisão no colo uterino, com visualização do mioma e identificação do seu plano de clivagem. Consequentemente ao seu tamanho, não foi possível identificar inicialmente a localização do seu pedículo vascular ou realizar sua enucleação por inteiro. Optado então por morcelamento do mesmo, até sua exérese completa, seguida de hemostasia do leito cirúrgico e sutura com fio Vicryl 0. A cirurgia durou cerca de 90 minutos, realizada antibioticoprofilaxia (cefazolina 2g na indução e manutenção com cefalexina via oral por 7 dias) e apresentou moderado volume de perda sanguínea (realizado 8 ampolas de sacarato hidróxido de ferro III no primeiro mês pós procedimento). Ao término da cirurgia, a vitalidade fetal foi avaliada ecograficamente, com BCF e movimentação fetal presentes. A paciente recebeu alta após 4 dias e não apresentou intercorrências no pós-operatório imediato. Em tabela abaixo estão os resultados dos exames laboratoriais pós operatórios. Não dispomos de resultados prévios à cirurgia. O resultado do anatomopatológico confirmou o diagnóstico de leiomioma.

DataHemoglobinaHematócritoLeucócitosPlaquetas
PO* imediato8,825,719.600253.000
3º DPO**7,923,914.100234.000
13º DPO**10,030,211.000328.000
30º DPO**11,134,911.200198.000

*PO – pós operatório / **DPO – dia pós operatório

A gestação foi acompanhada em serviço de alto risco, com uso de progesterona vaginal até 25 semanas e acompanhamento de medida ultrassonográfica de colo, que se manteve dentro da normalidade. Com 16 semanas, houve diagnóstico de diabetes G

gestacional, que foi adequadamente tratado com dieta e na 19ª semana apresentou quadro de vaginose bacteriana, tratada com metronidazol vaginal. Não houve outra intercorrência/comorbidade na gestação. Foi acordado a interrupção da gestação com 39 semanas, porém com 38 semanas e 4 dias a paciente retornou ao serviço com contrações ritmadas e dilatação de 3cm. Realizou-se parto via cesárea devido à preocupação com rotura, uma vez que a região de colo/segmento havia sido manipulada na miomectomia. A cesariana apresentou dificuldade técnica devido útero com múltiplos miomas e lesões friáveis sugestivas de endometriose, com hemostasia difícil. Nasceu feto vivo, do sexo masculino, 3010g e Apgar 8/9. Após 72 horas paciente e neonato receberam alta.

Discussão

Os dados acerca da prevalência de miomas na gestação variam muito da literatura, estando entre 2-10%7, e apresentam aumento devido aos progressos na tecnologia ultrassonográfica, que permitem a detecção de tumores menores, assim como maior disponibilidade deste exame nos serviços de saúde8. Inicialmente acreditava-se que a gestação, pelo efeito estrogênico e progestagênico, poderia levar a um aumento do tamanho dos miomas, o que foi contestado por estudos mais recentes8. Além disso, quando esse aumento acontece, geralmente ocorre na fase precoce da gestação, nas primeiras 10 semanas9.

Das gestações que apresentam diagnóstico de miomas, menos de 1% são de localização cervical, de forma que quase toda a literatura a respeito se trata de relatos de casos8. Um ponto que pode contribuir para essa baixa prevalência é a associação com infertilidade, decorrente de obstrução anatômica do colo e cavidade uterina10. Estudo de Straub et al8 fez um levantamento de artigos publicados no Pubmed em língua inglesa, entre 1966 e 2010, sobre miomas cervicais ou submucosos prolapsados na gestação, encontrando apenas 8 relatos de casos, referentes a 11 pacientes.

Uma em cada 10 gestações nesse contexto pode apresentar complicações, como hemorragia, dor (especialmente em miomas grandes, degenerados ou torcidos), febre, vômitos, constipação11, retenção urinária e obstrução do canal de parto8. Ademais, há risco  de  aborto,  descolamento  prematuro  de  placenta,  placentação  anormal,

amniorrexe prematura, trabalho de parto prematuro e hemorragia puerperal11. Apesar dessas possíveis complicações, a conduta conservadora ainda é a opção mais escolhida, com analgesia, hidratação e repouso12. Em casos de persistência dos sintomas após conduta inicial expectante, torção de mioma pediculado, hemorragia importante ou compressão de órgãos adjacentes, a conduta cirúrgica se torna uma opção a ser considerada12,13.

A miomectomia durante a gestação implica em riscos como hemorragia, perda gestacional, amniorrexe, infecção e até histerectomia. Em caso de abordagem vaginal de miomas cervicais, há ainda o risco de alterações no colo, tanto relacionadas a trabalho de parto prematuro, quanto a dificuldades para dilatação cervical no trabalho de parto14. Há relatos na literatura de parada de progressão do parto14, parto vaginal induzido15, parto normal espontâneo e amniorrexe prematura16.

Os cuidados no pós-operatório imediato podem incluir tocolíticos, antibióticos, progesterona, anticoagulação, analgésicos e hemotransfusão11. A paciente do caso apresentado recebeu analgesia, antibiótico e progesterona, além de reposição venosa de ferro. Outra complicação pós operatória descrita na literatura é o encurtamento cervical com cultura vaginal positiva17, além do risco de dilatação cervical, com sugestões de alguns profissionais para a realização de cerclagem16. Nos casos apresentados por Kilpatrick et al16, muito semelhantes ao presente caso, não foi realizada cerclagem e o orifício cervical externo se manteve impérvio. Nossa paciente foi submetida a controle ecográfico, mantendo valores normais de medida de colo e sem dilatação até o termo.

Quanto à via de parto, a maioria das pacientes tiveram cesárea, mas uma parcela importante teve partos vaginais a termo. Em revisão de Gambacorti-Passerini et al18, foi apontado que a escolha por parto vaginal, ainda que induzido, não implicou em maiores riscos em pacientes previamente submetidas a miomectomia. No entanto, vale ressaltar que no estudo em questão as pacientes foram submetidas a miomectomia previamente à gestação e não se tratavam de miomas de localização cervical. Dessa forma, a escolha de via de parto deve ser individualizada, a depender da localização do mioma retirado, presença de outros miomas e fatores obstétricos11.

Conclusão

Miomas sintomáticos são uma entidade rara na gestação, ainda mais com localização cervical. A literatura a respeito é escassa e consiste em sua maioria de relatos de casos, que não permitem uma conclusão definitiva acerca da melhor abordagem. Tanto a conduta expectante quanto a cirúrgica apresentam riscos importantes, como aborto, hemorragias e até histerectomia, a depender de características como tamanho, número e localização dos miomas. Quando se opta por miomectomia, a abordagem precoce parece estar associada a menos riscos e tem se mostrado relativamente segura. Portanto, a maioria dos casos ainda se beneficia apenas de acompanhamento, porém casos complicados com dor refratária, torção ou sintomas compressivos merecem atenção especial e a cirurgia pode ser ofertada à paciente.

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1 Médica Residente de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Regional do Gama, Brasília, Brasil

2 Médico do setor de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Regional do Gama, Brasília, Brasil