RELATO DE CASO: COMPLICAÇÃO RARA DO DIVERTÍCULO DE MECKEL – FÍSTULA ENTEROCUTÂNEA ATRAVÉS DE HÉRNIA UMBILICAL

CASE REPORT: RARE COMPLICATION OF MECKEL’S DIVERTICULUM – ENTEROCUTANEOUS FISTULA THROUGH UMBILICAL HERNIA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202409192305


Roque Júnior Diniz Legramanti1
Miguel Lucas Silva Valente2
Tomás Reynaldo Román Ramírez3
Marcus Canal Braga4


RESUMO

O divertículo de Meckel (DM) é uma anomalia congênita do trato gastrointestinal, presente em cerca de 2% da população. Embora muitas vezes assintomático, o DM pode levar a várias complicações, como ulcerações, sangramentos gastrointestinais, obstruções intestinais, diverticulite e perfurações. Este estudo documenta um caso raro de DM fistulizado congenitamente com cicatriz umbilical. O paciente, um homem de 65 anos, apresentou histórico de saída de fezes pela cicatriz umbilical desde a infância, com recidiva do sintoma após uma herniorrafia. O diagnóstico foi confirmado por exames de imagem e o tratamento cirúrgico envolveu enterectomia, enteroenteroanastomose e hernioplastia umbilical. O pós-operatório foi favorável, com resolução dos sintomas e melhoria na qualidade de vida do paciente. Este caso contribui para a literatura médica ao documentar uma apresentação rara e complexa de DM, ressaltando a importância do diagnóstico precoce e intervenção cirúrgica adequada.

Palavras-chave: Divertículo de Meckel, fístula, hérnia umbilical

ABSTRACT

Meckel’s diverticulum (MD) is a congenital anomaly of the gastrointestinal tract, present in approximately 2% of the population. Although often asymptomatic, MD can lead to various complications such as ulcerations, gastrointestinal bleeding, intestinal obstructions, diverticulitis, and perforations. This study documents a rare case of congenitally fistulized MD with an umbilical scar. The patient, a 65-year-old man, had a history of fecal discharge from the umbilical scar since childhood, with symptom recurrence after a herniorrhaphy. Diagnosis was confirmed through imaging studies, and surgical treatment involved enterectomy, enteroenterostomy, and umbilical hernioplasty. The postoperative period was favorable, with symptom resolution and improved quality of life. This case contributes to the medical literature by documenting a rare and complex presentation of MD, highlighting the importance of early diagnosis and appropriate surgical intervention.

Keywords: Meckel’s diverticulum, fistula, umbilical hernia

1. INTRODUÇÃO

O divertículo de Meckel (DM) é a anomalia congênita mais comum do trato gastrointestinal, presente em cerca de 2% da população (Kuru, 2018; Cikman et al., 2015). Sua importância clínica reside na variedade de complicações que pode causar, embora a maioria dos casos seja assintomática (Lo, Sagar e Trickett, 2015). Em casos raros, como o relatado por Legramanti et al. (2015), o DM pode apresentar-se com fístulas enterocutâneas, uma complicação infrequente, mas que possui um impacto significativo na qualidade de vida dos pacientes.

O DM é frequentemente descoberto incidentalmente durante procedimentos cirúrgicos ou exames de imagem realizados por outras razões (Ping-Fu et al., 2012). No entanto, sua apresentação sintomática pode variar desde dor abdominal não específica até complicações graves como hemorragia e obstrução intestinal (Bouassida et al., 2013). A incidência de complicações graves associadas ao DM é relativamente baixa, estimada entre 4% e 6% dos casos (Sharma e Jain, 2008). Contudo, a complexidade dessas complicações e a necessidade de intervenção cirúrgica tornam o reconhecimento precoce essencial (Oguzhan et al., 2009).

Além das complicações mecânicas, o DM pode se apresentar com sintomas que mimetizam outras condições gastrointestinais, complicando o diagnóstico (Mackenzie et al., 1989). A formação de fístulas, embora rara, deve ser considerada em pacientes com história de inflamação abdominal recorrente e abscessos inexplicáveis (Hudson et al., 1992). A literatura sugere que a apresentação clínica pode ser influenciada pela localização anatômica do DM e pela presença de tecido heterotópico, como mucosa gástrica ou pancreática (Yang et al., 2012).

Este estudo tem como objetivo explorar a apresentação rara do DM fistulizado através de uma cicatriz umbilical, destacando a importância de um diagnóstico preciso e intervenção cirúrgica apropriada. Além disso, visa ressaltar a diversidade de apresentações clínicas e a necessidade de maior conscientização entre os profissionais de saúde sobre as possíveis manifestações do DM.

2. RELATO DE CASO

Paciente masculino, 65 anos, natural de Boca do Acre, etnia parda, apresentou histórico de saída de fezes pela cicatriz umbilical desde a infância. O fenômeno ocorria de forma intermitente até os sete anos de idade, quando cessou espontaneamente. Aproximadamente dez anos atrás, após um procedimento médico não especificado, houve recidiva do sintoma, que persistiu até a presente data.

Durante a avaliação inicial em consulta médica em Rio Branco, o paciente estava assintomático, afebril e com funções fisiológicas preservadas. O exame nutricional revelou obesidade e níveis proteicos inadequados para a realização imediata de uma cirurgia de correção de fístula enterocutânea, o que resultou em internação por uma semana para reposição nutricional e estabilização clínica.

Após aprovação da equipe responsável, o paciente foi submetido a um procedimento cirúrgico de enterectomia, enteroenteroanastomose e hernioplastia umbilical. O diagnóstico pré e pós-operatório foi de divertículo de Meckel com fístula enterocutânea. Sob anestesia geral com bloqueio local, foi efetuada uma incisão xifopúbica mediana com dissecção por planos anatômicos até a cavidade peritoneal. 

Imagem 1 – Durante a Cirurgia

Fonte: autor (2023).

A exploração inicial revelou a presença de um divertículo de Meckel localizado a 410 cm do ângulo de Treitz e a 110 cm da válvula ileocecal, apresentando fecalito e conteúdo entérico em seu lúmen, com secreção evidente à expressão digital. Outros órgãos abdominais estavam sem alterações significativas.

A técnica cirúrgica envolveu a ressecção do segmento intestinal contendo o divertículo, com margens de segurança de 5 cm proximal e distal ao mesmo. O mesentério correspondente foi dissecado cuidadosamente e ligado com fio de algodão 0. Em seguida, procedeu-se à anastomose terminoterminal das extremidades dos segmentos intestinais, utilizando sutura contínua com fio de polidioxanona (PSD) 3-0. A integridade e a permeabilidade da anastomose foram confirmadas pela manobra do borracheiro, que não evidenciou vazamentos. 

A cavidade abdominal foi lavada exaustivamente com solução fisiológica 0,9% e limpa com compressas. Além disso, devido à presença de fístula enterocutânea, foi realizada uma onfalectomia, removendo-se o tecido umbilical comprometido, seguida de onfaloplastia para reconstrução estética e funcional da cicatriz umbilical. 

Após revisão meticulosa da hemostasia e contagem das compressas, a ferida operatória foi fechada por planos, utilizando-se sutura de prolene 0 na aponeurose e nylon 2.0 na pele, com aplicação de curativo estéril ao final do procedimento.

Imagem 2 – Ressecção do Segmento Intestinal

Fonte: autor (2023).

No pós-operatório imediato, o paciente evoluiu sem intercorrências. Estava em bom estado geral, afebril, hemodinamicamente estável, com funções fisiológicas preservadas e sem queixas álgicas significativas. A dieta foi progressivamente avançada para consistência branda. O paciente relatou melhora na qualidade do sono e ausência de novos sintomas. O exame físico pós-operatório revelou murmúrios vesiculares normais, bulhas cardíacas normofonéticas e ritmo cardíaco regular. 

Imagem 3 – Peça Anatômica

Fonte: autor (2023).

O abdômen estava globoso, com ruídos hidroaéreos presentes e indolor à palpação. A ferida operatória estava limpa e seca, sem sinais de inflamação ou drenagem. As extremidades estavam acianóticas, com tempo de enchimento capilar normal e sem edemas. Após recuperação anestésica, o paciente foi transferido para a enfermaria, onde continuou a apresentar boa evolução clínica. Recebeu alta hospitalar em boas condições clínicas, com orientações para acompanhamento ambulatorial.

Este caso ilustra uma apresentação rara e complexa de divertículo de Meckel fistulizado congênitamente com cicatriz umbilical. A condição, embora rara, foi manejada eficazmente com abordagem cirúrgica precisa. 

Imagem 4 – Pós-operatório Imediato

Fonte: autor (2023).

A evolução favorável no pós-operatório demonstra a importância da preparação nutricional e da técnica operatória adequada para o sucesso do tratamento. Este relato contribui para a literatura médica ao documentar uma apresentação atípica de uma condição relativamente comum, ressaltando a importância da avaliação detalhada e da abordagem cirúrgica adequada em casos similares.

3. DISCUSSÃO

O Divertículo de Meckel (DM) pode levar a várias complicações, como ulcerações, sangramentos gastrointestinais, obstruções intestinais devido a bandas, intussuscepções, diverticulite, perfurações e neoplasias. Em pacientes menores de 18 anos, a complicação mais comum é a hemorragia, enquanto em adultos prevalece a obstrução intestinal (Kuru, 2018). Embora rara, o desenvolvimento de fístula é uma possível complicação. Estudos mostram que a incidência de complicações graves relacionadas ao DM é relativamente baixa, variando de 4% a 6%, mas essas complicações podem ser severas e requerer intervenção cirúrgica imediata (Sharma e Jain, 2008).

Uma explicação para essa complicação é a localização congênita do DM no saco herniário umbilical. O DM é um divertículo intestinal verdadeiro, formado por todas as camadas da parede intestinal, e resulta da falha na obliteração e absorção do ducto onfalomesentérico (ou ducto vitelino) durante o primeiro trimestre de vida fetal. A presença de tecido heterotópico, como mucosa gástrica ou pancreática, pode exacerbar essa condição, causando ulceração e inflamação (Varcoe et al., 2004). Um episódio inflamatório no divertículo de Meckel presente no saco herniário pode levar à formação de abscesso e seio. Se não for diagnosticado, essa condição pode evoluir para uma fístula enterocutânea (Cikman et al., 2015).

A formação de fístulas é uma complicação rara, mas documentada na literatura. Bouassida et al. (2013) relataram casos de fístulas vesicoentéricas e enterocutâneas decorrentes do DM, destacando a complexidade e raridade dessas apresentações. Além disso, Ping-Fu et al. (2012) descreveram a formação de uma fístula entre o DM e o apêndice, uma condição ainda mais incomum, reforçando a necessidade de uma abordagem diagnóstica detalhada e abrangente.

O diagnóstico precoce e preciso do DM com complicações fistulosas é essencial para o manejo eficaz. Métodos de imagem, como ultrassonografia, tomografia computadorizada (TC) e ressonância magnética (RM), são cruciais para identificar a localização e extensão do DM e das fístulas associadas (Oguzhan et al., 2009). A cintilografia com tecnécio-99m é especialmente útil para detectar tecido gástrico ectópico, um fator comum nas complicações do DM (Tseng e Yang, 2009). A laparotomia exploratória continua sendo o padrão-ouro para o diagnóstico definitivo e tratamento, permitindo a visualização direta e ressecção do DM (Bouassida et al., 2013).

A intervenção cirúrgica é geralmente necessária para tratar as complicações do DM. A ressecção do segmento intestinal afetado e a anastomose terminoterminal são técnicas frequentemente utilizadas, com taxas de sucesso elevadas (Lo, Sagar e Trickett, 2015). A preparação nutricional pré-operatória e a técnica operatória meticulosa são cruciais para minimizar complicações e garantir a recuperação pós-operatória. Estudos documentam que a abordagem cirúrgica adequada, combinada com cuidados pós-operatórios rigorosos, resulta em bons prognósticos para os pacientes (Yang et al., 2012).

Este caso específico de fístula enterocutânea congênita com cicatriz umbilical destaca a importância de uma abordagem diagnóstica e terapêutica abrangente. A preparação nutricional pré-operatória e a técnica cirúrgica meticulosa foram cruciais para o sucesso do tratamento. A literatura médica documenta diversos casos de DM com apresentações clínicas variadas e complicações associadas, incluindo a formação de fístulas (Bouassida et al., 2013; Oguzhan et al., 2009).

Este relato contribui significativamente para a literatura médica ao documentar uma apresentação rara e complexa de DM. A experiência descrita sublinha a importância de um diagnóstico precoce, intervenção cirúrgica adequada e acompanhamento pós-operatório rigoroso. A compreensão detalhada das manifestações clínicas e complicações do DM é essencial para o manejo eficaz desta condição, garantindo melhores desfechos para os pacientes. Este caso também enfatiza a importância da colaboração multidisciplinar e da educação contínua dos profissionais de saúde sobre as possíveis manifestações e complicações do DM.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo documentou um caso raro e complexo de divertículo de Meckel fistulizado congenitamente com cicatriz umbilical, destacando a importância de um diagnóstico preciso e uma intervenção cirúrgica adequada. Através da análise detalhada da história clínica, achados diagnósticos, procedimento cirúrgico e evolução pós-operatória, foi possível demonstrar a eficácia do manejo multidisciplinar para o sucesso do tratamento.

A revisão da literatura corroborou a raridade desta apresentação clínica e reforçou a necessidade de vigilância e suspeição clínica para o diagnóstico precoce de complicações associadas ao divertículo de Meckel. Casos de fístulas enterocutâneas, embora raros, devem ser considerados em pacientes com histórico de inflamação abdominal recorrente e abscessos inexplicáveis.

A preparação nutricional pré-operatória e a técnica cirúrgica meticulosa foram cruciais para a recuperação bem-sucedida do paciente, ressaltando a importância de uma abordagem cuidadosa e individualizada. O paciente apresentou uma evolução favorável no pós-operatório, com resolução dos sintomas e melhoria significativa na qualidade de vida, demonstrando a eficácia do tratamento adotado.

A compreensão detalhada das manifestações clínicas e complicações do divertículo de Meckel é essencial para o manejo eficaz desta condição. A colaboração multidisciplinar e a educação contínua dos profissionais de saúde são fundamentais para garantir melhores desfechos para os pacientes, especialmente em casos de apresentações raras e complexas como a descrita neste estudo.

REFERÊNCIAS

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