RELAÇÕES DE GÊNERO E A FALSA NEUTRALIDADE DO DIREITO: ANÁLISE DA DECISÃO PROFERIDA NO RESP Nº 2.389.611/MG SOBRE ESTUPRO DE VULNERÁVEL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.12587733


Rita de Cássia Vieira Barbosa[1]


RESUMO

               Historicamente, a construção das relações de gênero emergiu da imposição de papéis sociais determinados e administrados pelo homem. Dessa forma, foram estabelecidos etiquetamentos e condutas no corpo social, de forma que, ao longo do tempo, se reputaram masculinos e femininos, naturalizando-os. Com o surgimento dos movimentos feministas e conquistas de direitos das mulheres, inclusive hodiernamente considerados como direitos humanos, entende-se gênero como construção social e verifica-se a necessidade cada vez maior de proteção a esses direitos, tendo em vista terem sido ocultados por séculos. A cultura machista fortemente introjetada no seio da coletividade faz com que papéis de gênero sejam reproduzidos até o momento atual. Embora ainda faça parte do senso comum social, não se pode admitir que o machismo permeie espaços públicos, especialmente instituições públicas. De modo lamentável, esses arquétipos continuam a ser reproduzidos como naturais e, de modo explícito ou implícito, atravessam a cultura comum e adentram no âmbito do Poder Judiciário, trazendo consigo a produção de decisões retrógradas e equivocadas. Nesse sentido, far-se-á uma análise crítica da recente decisão proferida no REsp nº 2.389.611, sobre estupro de vulnerável, da lavra da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, evidenciando a falsa neutralidade do direito na atualidade e como as relações de gênero podem ser ameaçadoras às conquistas do feminismo e dos direitos humanos das mulheres. Utiliza-se, como metodologia, a pesquisa do tipo bibliográfica por meio da análise de livros, artigos jurídicos, documentos nacionais e internacionais, da legislação e da jurisprudência. A pesquisa é pura e de natureza qualitativa, com finalidade descritiva e exploratória.

Palavras-chave: Relações de gênero. Falsa neutralidade do Direito. Estupro de vulnerável. Direitos humanos das mulheres.

ABSTRACT

Historically, the construction of gender relations emerged from the imposition of social roles determined and administered by men. In this way, labels and behaviors were established in the social body, so that, over time, they were considered masculine and feminine, naturalizing them. With the emergence of feminist movements and the conquest of women’s rights, even today considered as human rights, gender is understood as a social construction and there is an increasing need to protect these rights, given that they have been hidden for centuries. The macho culture strongly introjected within the collectivity causes gender roles to be reproduced until the present moment. Although it is still part of social common sense, it cannot be admitted that machismo permeates public spaces, especially public institutions. Regrettably, these archetypes continue to be reproduced as natural and, explicitly or implicitly, cross the common culture and enter the scope of the Judiciary, bringing with them the production of retrograde and mistaken decisions. In this sense, a critical analysis will be made of the recent decision rendered in REsp No. 2.389.611, on rape of the vulnerable, drawn up by the 5th Panel of the Superior Court of Justice, evidencing the false neutrality of the law today and how gender relations can be threatening to the achievements of feminism and women’s human rights. The methodology is used is bibliographic research through the analysis of books, legal articles, national and international documents, legislation and jurisprudence. The research is pure and qualitative in nature, with descriptive and exploratory purposes.

Keywords: Gender relations. False neutrality of the law. Rape of the vulnerable. Women’s human rights.

INTRODUÇÃO

A cultura da hegemonia masculina no mundo está constituída desde os primórdios da existência humana, sobretudo no que toca à ocupação de homens em espaços públicos e à manutenção de mulheres em espaços privados. A partir desse ponto, o homem definiu papéis sociais masculinos e femininos, administrando-os e ditando regras.

Atualmente, embora a cultura mundial tenha se aperfeiçoado no sentido de reconhecer que os direitos humanos das mulheres foram ocultados por séculos e devam ser resguardados por meio de diplomas internacionais e legislações internas específicas, a cultura machista tem se mantido e sido repetida pelo senso comum social, mormente de forma implícita.

Em assim sendo, ainda que haja o desenvolvimento da cultura social e desses direitos, sobejam questionamentos ou mesmo decisões advindas da estrutura machista em espaços públicos devido à misoginia que permeia a cultura, atravessando-a até adentrar em espaços que não mais deveria ocupar.

Apesar de o Brasil ser signatário de tratados, acordos e convenções internacionais de direitos humanos das mulheres e ter reformulado a legislação infraconstitucional para criar leis específicas de proteção às mulheres, há poucos dias nos deparamos com uma decisão judicial que vai de encontro a toda essa estrutura de proteção, retrocedendo a conquistas duramente obtidas por intermédio de lutas contínuas.

A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em sede de decisão recente no REsp nº 2.389.611, contrariou a própria jurisprudência, a qual está, inclusive, sumulada, além de ferir a legislação pátria, para absolver um homem de 20 anos em um caso de estupro de vulnerável contra uma menina de 12 anos, a qual ficou grávida. Em que pese ambos tenham constituído “núcleo familiar” em um primeiro momento, a conduta referida é formalmente típica, devendo-se garantir proteção integral não apenas à criança nascida dessa relação, mas também à mãe, que acabou de sair da infância e necessita igualmente de amparo e proteção.

O caso é preocupante e alerta sobre as possibilidades de desafiar a lei penal e o entendimento preponderante dos tribunais, sinalizando a tolerância de práticas abusivas, principalmente no que se refere a múltiplas violências contra as mulheres.

Destarte, o presente artigo examinará o problema acima retratado por meio de pesquisa científica, utilizando uma metodologia qualitativa e exploratória. Analisará a referida decisão sob a perspectiva dos direitos humanos das mulheres e da legislação pátria vigente, além de destacar a importância do cuidado ao conceder exceções. Argumentos ignóbeis e incapazes de derrogar legislações protetivas já constituídas no ordenamento jurídico brasileiro não podem ser aceitos.

1. RELAÇÕES DE GÊNERO E A FALSA NEUTRALIDADE DO DIREITO

O cerne da questão em torno das relações de gênero é atinar ao contexto multifatorial em que estão inseridas, não podendo ser elucidado por intervenção de problematização singular ou ser revelada por meio de uma única resposta a ser considerada correta e concreta sobre suas origens.

A antropologia e a etnografia sinalizam uma possível origem da distinção entre os gêneros masculino e feminino: a divisão sexual do trabalho. Em consequência, a partir do início do distanciamento da mulher no desempenho de determinadas funções ou de sua exclusão em ações no âmbito do que modernamente viria a ser considerado “espaço público”, houve uma sobreposição do gênero masculino sobre o feminino.

As mulheres foram socializadas com funções predominantes de cuidados e comportamentos de docilidade, domesticidade, fragilidade e inação, enquanto aos homens foram imputadas funções de estímulo ao desenvolvimento de superioridade, proatividade, coragem e bravura. Tal condicionamento impelido às mulheres ao longo de milênios cultivou nos homens a noção de superioridade, reputando-as inferiores.

O homem criou os papéis masculinos e femininos, compeliu comportamentos positivos aos homens e negativos às mulheres, administrou socialmente a reprodução desse constructo, alienando as mulheres da participação na vida pública, o que impossibilitou por muito tempo – e até hoje as impossibilita – de serem também protagonistas sociais, o que poderia ter construído um modelo cultural diverso.

As diferenças biológicas e suas consequências não podem ser utilizadas como subterfúgios capazes de sujeitar as mulheres socialmente a “papéis naturais”. O sexo difere os seres humanos biologicamente; no entanto, os papéis de gênero e as funções que cada um deve desempenhar são uma construção social, e não algo que se constituiu de modo natural.

Ainda que se tenha avançado enquanto sociedade, a arquitetura moldada por séculos encontra-se internalizada até este momento no seio da coletividade, e não apenas no espaço privado, mas também no público. E não somente no cerne de relações que ocorrem graças ao senso comum cultural, mas igualmente no locus ao qual jamais deveria permear: instituições públicas. De modo inegável, etiquetamentos sociais atribuídos à mulher adentram locais em que deveria imperar a boa técnica e argumentos de cunho jurídico. Ademais, raciocínios ultrapassados sobre o que uma mulher deve representar socialmente, como deve se portar e que função social deve exercer continuam a ser levantados e utilizados de forma abusiva contra os direitos das mulheres.

Perpetua-se uma sociedade calcada no patriarcalismo, com visível estrutura de poder centralizada no masculino em detrimento do feminino. Ainda que tenha havido mudanças legislativas importantes, estas são constantemente vilipendiadas, agredidas e descredibilizadas. Desde suas origens, com intensificação nos anos de 1970 e seguintes, o movimento feminista, grupo social e cultural minoritário, foi responsável por politizar suas lutas com vistas a conquistar direitos humanos historicamente negados às mulheres.

Para Jaramillo (2000, p. 33), o feminismo pode ser definido como “o conjunto de pessoas, ações e teorias que assumem um compromisso político com a ideia de que, nas sociedades contemporâneas, as mulheres são as perdedoras no jogo social, o que se traduz no compromisso com a ideia de que as nossas sociedades são patriarcais, ou seja, aquelas em que há a supremacia do masculino”.

O direito não tem sido historicamente apenas um instrumento garantidor do desenvolvimento social e da convivência pacífica, porquanto também tem sido utilizado como uma arma de poder, objetivando a manutenção de uma estrutura hierárquica que privilegia um grupo em detrimento de outros. O feminismo tem o mérito de ser um dos primeiros movimentos a denunciar a falsa neutralidade do direito. Embora existam outros fatores que contribuíram para relegar a mulher a um segundo plano, é notório que o fator gênero se destaca como um construtor histórico dessa discriminação. Indubitavelmente, o direito tem sido utilizado para a manutenção do quadro de hierarquização social, ao invés de servir como instrumento de justiça (Lopes, 2022, p. 72-74).

A estrutura do discurso jurídico, que articula diferentes níveis, cala, desloca e distorce o lugar do conflito social, permite que o direito se estabeleça como legitimador do poder, o qual disfarça e torna neutro (Ruiz, 2000, p. 21).

Por séculos, o espaço privado, particularmente no âmbito das relações entre homens e mulheres, foi considerado intangível pelo Estado. A legislação elaborada por homens não tinha o condão de reverter ou modificar situações de desigualdade que se impunham, mas, ao revés, assegurava a perpetuação do poder do homem sobre a mulher. Enquanto ciência social, o direito não reflete somente valores culturais, pois atua como poderoso instrumento utilizado para concretizar e reter o poder do homem e seu domínio social. É uma relação dialética em que o direito é persuadido do mesmo modo que influencia culturalmente por meio de sua criação e aplicação, comprovando assim que não é axiologicamente neutro (Lopes, p. 76-77).

O direito é um discurso social que confere sentido aos comportamentos dos seres humanos e os transforma em sujeitos, ao mesmo tempo em que opera como grande legitimador de poder, que fala, convence, seduz e se impõe através das palavras da lei. Este discurso jurídico estabelece, confere autoridade, capacita as pessoas a dizer ou fazer, e o seu significado é determinado pelo jogo de relações de dominação, pela situação das forças em conflito em um dado momento e lugar (Ruiz, 2000, p. 21).

Insta destacar que, mais importante do que modificar textos de normas e/ou aumentar o número de operadores jurídicos do sexo feminino, é modificar o sistema de valores de quem elabora, programa e aplica tais normas.

A lei, por si só, não elimina desigualdades, mesmo que frequentemente as aponte e condene. É igualmente necessário trabalhar no sistema de valores dos magistrados e funcionários judiciais para eliminar qualquer resquício de sexismo (Harari; Pastorino, 2000, p. 146).

É válido ressaltar que, de forma prioritária, deve haver o reconhecimento do gênero como uma construção cultural, que se desdobra na inferiorização da mulher. Ademais, é necessário reconhecer que o direito não é axiologicamente neutro, mas sim influenciado pelos valores daqueles que o criam e o aplicam, sendo constantemente utilizado como instrumento de opressão, dominação e exclusão.

Embora a dominação masculina no mundo e em relação à mulher tenha sido uma estrutura reconhecida por milênios, isso não significa que seja imutável. Uma das possibilidades de se construir um mundo distinto, que contemple a percepção e os vieses femininos, é a adoção da perspectiva de gênero no âmbito do direito.

De modo tradicional, o direito é arquitetado a partir das ideias de um sujeito neutro, titular de direitos, correspondente à figura de um homem adulto, branco, de visão eurocêntrica, heterossexual, proprietário e sem deficiências físicas, mentais ou sensoriais. Essa arquitetura ignora as particularidades dos seres humanos e tem como consequência valores preconceituosos e excludentes que penetram o corpo social, colocando os diferentes em situação de vulnerabilidade, como, por exemplo, as mulheres. A abordagem de gênero ou “feminização” do direito visa combater essa discriminação (Lopes, 2022, p. 80).

A adoção da perspectiva de gênero no direito implica no reconhecimento da discriminação histórica de gênero contra as mulheres, que as colocou e ainda coloca em desvantagem em relação ao sexo oposto. Por isso, é dever do Estado implantar medidas capazes de reverter situações de desigualdade. Dessa forma, em todas as leis, políticas públicas e sentenças, deve haver a observância da condição da mulher como ser humano em situação de vulnerabilidade, distanciando-a da concepção do direito como instrumento neutro, alheio às condições concretas de vida dos seres humanos. A visão deturpada do direito serve apenas ao favorecimento do homem na sociedade e à manutenção do status quo (Lopes, 2022, p. 81).

2. GÊNERO, DIREITOS HUMANOS E A PERSISTÊNCIA DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES

As relações de gênero são as principais responsáveis pela manutenção da cultura de hegemonia masculina sobre o mundo. A predominante ausência de mulheres em espaços públicos e a alienação quanto às suas potencialidades, além da exclusão da tomada de decisões e de poder nas sociedades, alavancaram os homens a patamares superiores.

Não é incorreto afirmar que, sem os papéis desempenhados pelas mulheres, os homens não conseguiriam ultrapassar suas próprias potencialidades como seres humanos. Assim, as mulheres foram – e continuam a ser – utilizadas como instrumentos para que os homens alcancem aspectos maiores de si mesmos como indivíduos na sociedade. Dessa maneira, é do interesse masculino continuar a relegar papéis sociais às mulheres, submetendo-as a seu poder e excluindo-as das decisões de comando em quaisquer comunidades.

Nesse passo, os homens passaram a concebê-las como indivíduos de menor valor, ao mesmo tempo em que lhes retiraram a possibilidade de figurar como atores sociais. Os homens criaram os papéis e responsabilizaram as mulheres pelo produto deles próprios.

Com a constante cultura de desvalorização, os homens se viam como proprietários das mulheres, crendo, ao longo dos séculos, deter o poder de fazer com elas o que bem entendessem. Como as mulheres eram – e ainda são – visualizadas como propriedade do homem, além de definir os papéis, estes poderiam violentá-las como bem quisessem, sem maiores consequências sociais ou jurídicas.

Os movimentos feministas surgiram, essencialmente, pela constatação das mulheres de sua exclusão como atores sociais e sua visualização como seres humanos de “segunda categoria”. Nesse sentido, os primeiros movimentos feministas surgiram em busca de garantias da participação das mulheres em decisões adstritas a esferas públicas.

A primeira onda do movimento feminista foi considerada de caráter “conservador”, uma vez que buscou consubstanciar direitos civis elementares de um indivíduo, tais como o direito ao voto e a regulação das relações de trabalho. A segunda onda do feminismo avançou um pouco mais, preocupando-se com a liberdade feminina, o direito ao corpo, à sexualidade e ao aborto, tendo sido responsável por iniciar um movimento crítico quanto a questões até hoje ásperas para as mulheres: a violência doméstica, sexual e o feminicídio.

A despeito de vultosos avanços terem sido alcançados nos âmbitos interno e externo, os quais foram constitucionalizados com reforço de legislações infraconstitucionais esparsas, refletindo os pleitos e aspirações atuais femininas, permanece intrinsecamente arraigada à cultura brasileira uma visão sexista e discriminatória direcionada às mulheres, obstaculizando-as de exercer plenamente, com autonomia e dignidade, seus direitos mais basilares (Piovesan, 2009, p. 226).

É sobremodo importante destacar a consideração de Pitanguy (2006, p. 16) sobre a nova linguagem dos direitos humanos em relação às questões de gênero:

As últimas décadas do século XX foram caracterizadas por um processo de consolidação da nova linguagem dos direitos humanos, que passou a contemplar também preocupações com a cidadania feminina e as relações de gênero. Paralelamente à ampliação do espaço institucional ocupado pela questão dos direitos humanos em todo o mundo, verificou-se a incorporação de novas dimensões nessa agenda: assuntos como reprodução, violência e sexualidade começaram a fazer parte das discussões. No Brasil, os debates em torno de uma moderna concepção de humanidade, não mais calcada apenas na figura abstrata do homem, impulsionaram a adoção de políticas públicas e leis nos campos da saúde sexual e reprodutiva, do trabalho, dos direitos políticos e civis e da violência de gênero.

Nesse período, o conceito de gênero firmou-se como elemento de um constructo cultural, no qual se rejeita a ideia de que os encargos funcionais da mulher na sociedade sejam decorrentes de sua natureza e de características biológicas inerentes (Siqueira, 2015, p. 335).

A violência de gênero é um tema de grande relevância, tanto que o Brasil ratificou, em 27 de novembro de 1995, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará, promulgada pelo Decreto nº 1.973/1996. Essa Convenção caracterizou a violência de gênero como uma ofensa à dignidade humana e uma demonstração das relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres.

Sobre o tema, a Recomendação nº 19 do Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, derivada da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 18 de dezembro de 1979 e ratificada pelo Brasil em 1º de fevereiro de 1984, estabeleceu o seguinte:

1. A violência baseada no gênero é uma forma de discriminação que inibe a capacidade das mulheres de gozarem os direitos e liberdades em uma base de igualdade com os homens.

[…]

7.   A violência baseada no gênero, a qual prejudica ou invalida o gozo pelas mulheres dos direitos e liberdades fundamentais em virtude do direito internacional ou das diversas Convenções de Direitos Humanos, é considerada discriminação, de acordo com a definição do artigo 1º da Convenção. Esses direitos e liberdades incluem:

a) O Direito à vida;

b) O Direito a não ser sujeita à tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes;

c) O Direito à igualdade de proteção, de acordo com as normas humanitárias em tempo de conflito armado interno ou internacional;

d) O Direito à liberdade e à segurança pessoal;

e) O Direito à igualdade perante a lei;

f) O Direito à igualdade na família;

g) O Direito ao mais alto nível de saúde física e mental;

h) O Direito a condições de trabalho justas e favoráveis[2].

A Recomendação nº 35[3] de 2017 atualizou a recomendação suprarreferida e definiu violência de gênero como “um dos meios sociais, políticos e econômicos fundamentais pelos quais a posição subordinada das mulheres em relação aos homens e seus papéis estereotipados são perpetuados” (item 10). Além disso, afirma que “a violência de gênero contra as mulheres está enraizada em fatores relacionados ao gênero, como a ideologia do direito e privilégio dos homens sobre as mulheres, as normas sociais em relação à masculinidade, a necessidade de afirmar o controle ou a punição do que é considerado comportamento inaceitável às mulheres. Esses fatores também contribuem para a aceitação social explícita ou implícita da violência de gênero contra as mulheres, muitas vezes ainda considerada como uma questão privada, e para a impunidade generalizada quanto a ela” (item 19).

As recomendações do Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW, sobretudo a de nº 35, abordam a questão da violência de gênero de modo mais amplo, esclarecendo que tal violência é consequência direta das relações de poder que articulam regras e etiquetamentos às mulheres, os quais são sustentados pelo corpo social que os fomenta e fiscaliza, tornando o problema da violência de gênero estrutural e capilarizado. Com efeito, a sociedade estrutura, reproduz, estimula e justifica a concretização da violência contra as mulheres.

Os tipos de violência passíveis de serem perpetrados contra as mulheres são definidos pela Convenção de Belém do Pará[4], a qual dispõe:

Artigo 1. Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.

Artigo 2. Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica:

a. ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual;

b. ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e

c. Perpetrada e tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.

Cumpre destacar que essa Convenção salientou que a violência de gênero, quer seja física, sexual ou psicológica, qualquer que seja a relação interpessoal existente, é também configurada como violência quando tolerada pelo Estado ou seus agentes. É de grande relevância esse ponto, visto que se refere ao que hoje é compreendido e definido como violência institucional. Nesse sentido, o erro do judiciário quanto a quaisquer tipos de tolerância das múltiplas violências praticadas contra as mulheres é, hoje, no Estado brasileiro, considerado violência institucional.

Em 1984, o Brasil aprovou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW. No entanto, esse foi o instrumento que mais sofreu reservas pelos Estados-partes dentre os tratados internacionais de direitos humanos. Grande parte dessas reservas se refere à igualdade entre o homem e a mulher relativamente ao núcleo familiar. As justificativas eram, notadamente, de ordem cultural, religiosa e legal (Piovesan, 2008, p. 193-194).

Ao tempo, o Estado brasileiro encontrava-se sob a vigência do Código Civil de 1916, portanto, fez ressalvas aos artigos 15 e 16 da referida Convenção, que tratavam do direito de escolher de forma livre o domicílio e a residência, bem como no que se refere ao direito de igualdade no casamento e nas relações familiares. Conforme visto, a legislação estabelecia a distinção de direitos civis alcançáveis pelo homem e pela mulher, sobretudo relacionados à capacidade e ao direito de herança. No ano de 1994, entretanto, o Governo brasileiro notificou o Secretário-Geral das Nações Unidas para excluir essas reservas (Piovesan, 2008, p. 194). Na ocasião, o Brasil responsabilizou-se a, gradualmente, abolir todas as formas de discriminação contra as mulheres, visando garantir a igualdade de gênero (Piovesan, 2008, p. 196).

Ainda que a violência de gênero constitua discriminação indiscutível, até o ano de 1993, tal problemática ainda não havia sido enfrentado de modo coerente no âmbito internacional. A partir da Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, adotada em 1993, e com a adesão à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em 1994, reconheceu-se internacionalmente que a violência contra as mulheres caracteriza grave violação de direitos humanos e ofensa à dignidade humana. Essa violência específica traduz-se na manifestação de relações de poder historicamente desiguais (Piovesan, 2008, p. 197).

Inobstante o Brasil seja signatário de tratados e convenções internacionais de direitos humanos que se referem aos direitos das mulheres, ainda há espaço para se proferir decisões judiciais contrárias ao que está definido em legislação, com entendimento jurídico diverso ao que consta, inclusive, em súmula, como é o caso emblemático tratado no REsp nº 2.389.611, julgado pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, o qual autoriza um precedente perigoso para que se firme a não proteção das mulheres em situação de violência. Configura-se, aqui, uma espécie de ativismo judicial que, para além de acarretar insegurança jurídica, determina quem detém maior poder no jogo das relações de dominação.

Resta evidente que as relações de gênero atravessaram e ainda permeiam não apenas a criação, mas também a aplicação de normas jurídicas. Nas sentenças e acórdãos, não acontece diferente. A ratio decidendi é imbuída de juízos de valores morais e filosóficos que, não raramente, contribuem para a construção social do gênero. Em verdade, o direito está acometido de ideologia e historicidade, legitimando as relações de poder existentes.

Ter no ordenamento ou criar normas jurídicas específicas para tratar de violências contra as mulheres não é suficiente. Caso fosse, não haveria tantos casos de feminicídio no Brasil e no mundo. São necessários mais investimentos em educação, políticas públicas, ações sociais, tudo para combater a iniquidade e a evidente desigualdade entre homens e mulheres. O reconhecimento de que o direito não é neutro e, por conseguinte, seus aplicadores e destinatários têm preconceitos a partir de etiquetamentos e papéis sociais impostos culturalmente, faz com que seja urgente uma maior aplicação das perspectivas de gênero, a fim de postular por julgamentos mais justos.

3. ANÁLISE DA DECISÃO JUDICIAL NO RESP Nº 2.389.611 SOBRE O CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL

O ordenamento jurídico brasileiro contém ampla legislação protetiva contra as múltiplas violências a que as mulheres podem ser submetidas, incluindo reformas no Código Penal que revogaram leis incompatíveis e outras que incluíram leis extravagantes que mais se adequam à realidade atual. Cumpre obtemperar, todavia, a análise da decisão proferida em sede do REsp nº 2.389.611, a qual contrastou com a arquitetura legislativa e jurisprudencial nacional, embora advinda de um dos órgãos máximos do poder judiciário brasileiro, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), conhecido como “Tribunal da Cidadania”, que tem por função institucional precípua zelar pela uniformidade de interpretações da legislação federal brasileira.

Em 12 de março de 2024, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) absolveu, por 3 votos a 2, um acusado de manter relacionamento e engravidar uma menina de 12 anos. O julgamento confirmou a decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), mantendo a absolvição do homem de 20 anos[5].

O fato ocorreu na cidade de Araguari – MG, com população de 109.000 habitantes, no Triângulo Mineiro. Inicialmente, o homem foi acusado de estupro de vulnerável, previsto como crime no art. 217-A do Código Penal, que impõe pena de 8 a 15 anos de prisão a quem pratica “conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos”. Após regular instrução processual, o réu foi condenado à pena de 11 anos e 3 meses de reclusão em regime inicial fechado, tendo recorrido da sentença junto ao TJMG. A defesa alegou que havia uma relação entre o réu de 20 anos e a adolescente de 12 anos, e que aquele não tinha conhecimento de que suas ações configurariam crime em razão da idade desta. O TJMG reformou a decisão para absolvê-lo, acatando a tese de erro de proibição, instituída no art. 21 do Código Penal[6].

O réu iniciou o relacionamento com a vítima indo buscá-la na porta da escola, fazendo-a abandonar as aulas e causando, desde logo, prejuízos à sua educação. Posteriormente, em decorrência da relação sexual, a adolescente de 12 anos descobriu estar grávida. Com a absolvição do réu pelo TJMG, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais ingressou com recurso perante o STJ, buscando restabelecer a condenação[7].

O caso foi a julgamento e apreciado pelos cinco ministros integrantes da 5ª Turma do STJ. O ministro relator, Reynaldo Soares da Fonseca, em seu voto, decidiu a favor da manutenção da absolvição do réu, alegando que a criança oriunda dessa relação teria “prioridade absoluta” para o Estatuto da Primeira Infância, considerando, ainda, que a prisão do acusado seria uma afronta a direitos fundamentais, mormente à dignidade da pessoa humana. Destacam-se excertos do voto, abaixo transcritos:

[…] reafirmação pela Relatoria da defesa intransigente dos direitos da criança e do adolescente, no sentido de que a menor de 14 anos deve, na verdade, estudar, brincar e participar de atividades próprias para sua idade. Não deve namorar, pois está ainda em formação biológica e emocional. No entanto, não se deve deixar de levar em consideração que a vida é maior que o direito. Logo, a indesejável antecipação da adolescência ou mesmo da fase adulta não pode acarretar um prejuízo maior para aqueles que estão envolvidos, em especial para a criança que adveio do relacionamento do casal (que durou mais ou menos 1 ano) e é a prioridade absoluta do sistema brasileiro, por meio do Estatuto da Primeira Infância.

[…] um exame acurado das nuances do caso concreto revela que a conduta imputada, embora formalmente típica, não constitui infração penal, haja vista a ausência de culpabilidade, em virtude do reconhecimento do erro de proibição. Ademais, deve-se levar igualmente em consideração a ausência de relevância social e de efetiva vulneração ao bem jurídico tutelado, uma vez que se trata do relacionamento de dois jovens, que havia sido, em um primeiro momento, aceito pela família da adolescente, sobrevindo uma filha e a efetiva constituição de núcleo familiar, apesar de não estarem mais juntos como casal.

[…] a condenação de um jovem de 20 anos, que não oferece nenhum risco à sociedade, ao cumprimento de uma pena de mais de 11 anos de reclusão, revela uma completa subversão do direito penal, em afronta aos princípios fundamentais mais basilares, em rota de colisão direta com o princípio da dignidade humana[8].

                              O ministro relator afirmou que jurisprudências e precedentes do STJ indicam que a Corte não pode rever o reconhecimento de erro de proibição, como o que foi reconhecido pelo TJMG. Em sentido contrário, a ministra Daniela Teixeira afirmou que não havia uma família a ser protegida, e sim uma agressão a ser punida. Veja-se:

[…] é essencial que passemos a usar a terminologia correta para os atos cometidos pelo recorrido. O que ocorreu nos presentes autos foi estupro de vulnerável. Não se pode diminuir ou minimizar a gravidade do crime que a vítima sofreu e não se pode relativizar a responsabilidade do agente quanto à sua conduta, com uma valoração equivocada do conjunto probatório dos autos.

[…] o que se pune aqui é o adulto que infringe a norma. O que se protege é a infância sadia, protegida e livre de violências que marcarão uma adolescente por toda a sua existência. Veja-se que os autos trazem a triste narrativa de violências domésticas sofridas por uma adolescente de tenra idade, ameaçada que, em determinada oportunidade, após ter sofrido a violência sexual, foi tão violentamente agredida – já grávida – que precisou ser levada ao hospital pela mãe para atendimento.

[…] a vítima é uma menina de 12 (doze) anos de idade que foi submetida à prática de conjunção carnal pelo agressor e diversas outras violências físicas, morais e psicológicas que ensejaram o recebimento de medidas protetivas de urgência. É princípio do sistema jurídico pátrio que pessoas em desenvolvimento, em tal faixa etária, não possuem discernimento no terreno da sexualidade, significando que o conceito penal de vulnerabilidade tem natureza absoluta e não comporta relativização.

[…] o fato de terem um relacionamento “amoroso” apenas reforça a situação de violência imposta à adolescente, que deve ser protegida pelo Estado até mesmo de suas vontades. Ninguém acharia “lícito” dar a ela bebida alcoólica ou substância entorpecente apenas porque “manifestou vontade”.

[…] não se pode, racionalmente, aceitar que um homem de 20 anos de idade não tivesse a consciência da ilicitude de manter relação sexual com uma menina de 12 (doze) anos. Não se trata, o agressor, do “matuto” exemplificado nas doutrinas de direito penal, ou do ermitão que vive totalmente isolado da sociedade, sem qualquer acesso aos meios de comunicação ou à sociedade.

[…] seja pela presença de todos os requisitos afetos à tipicidade, seja pela inexistência de elementos que excluam qualquer dos requisitos do tipo, são inadmissíveis o afastamento do decreto condenatório e a conclusão adotada pelo Tribunal de origem. Por todos os aspectos, a conduta do agressor viola as normas penais e constitucionais [9].

A referida ministra também pontuou que a menina afirmou que o agressor era amigo de um primo dela e que ficaram juntos por três meses, até que a gravidez foi descoberta. Isso demonstra que o acusado tinha conhecimento da sua idade. A vítima confirmou ter sido exposta a diversos atos de violência, tendo fugido da casa que dividia com o acusado e pedido ajuda à sua avó. Em seguida, foram expedidas medidas protetivas em favor da menina. O estudo social realizado no Tribunal de origem confirmou os maus-tratos sofridos pela adolescente[10].

Acompanharam o relator os ministros Ribeiro Dantas e Joel Ilan Paciornik, enquanto Daniela Teixeira foi seguida pelo presidente da Turma, Messod Azulay Neto. Portanto, por três votos a dois, o réu foi absolvido.

Em primeiro lugar, devem ser examinadas as razões do voto do ministro relator, para o qual “a antecipação da fase adulta não pode acarretar prejuízo a uma criança que é prioridade total no sistema brasileiro”. O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 2º, prevê que: “considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”. Convém notar que a vítima se enquadra no dispositivo legal como adolescente, portanto, resta também submetida às regras do ECA.

É de ser relevado que o ministro relator, em seu voto, afirmou que, a partir da gravidez da vítima, “agora temos uma criança” e que esta seria “prioridade absoluta no sistema brasileiro”. Entretanto, já havia uma menina de 12 anos preexistente, cujos direitos também deveriam ser tutelados pelo Estado. Assim, a adolescente deveria ter sido amparada, tida como prioridade absoluta e ter seus direitos resguardados, posto ser, manifestamente, a vítima em questão.

O art. 3º do ECA dispõe: “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”. Nesse contexto, ao não ter seus direitos assegurados pelo Estado, a vítima se vê afastada da plena vivência de sua adolescência. Prematuramente, foi-lhe retirada a oportunidade de desfrutar dessa fase da vida, sendo obrigada a assumir papéis e responsabilidades típicos de um adulto. Isso ocorreu porque lhe foi imposto o dever de cuidar, zelar e proteger outra criança, fruto de violência sexual.

O art. 5º do ECA estabelece que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”. Depreende-se, nesse caso, uma clara omissão por parte do Estado, que permitiu que uma menina de 12 anos fosse vítima de violência sexual.

O art. 15 do ECA preceitua que “a criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis”. Contudo, ao negar liberdade e dignidade a uma adolescente vítima de estupro de vulnerável, impede-se seu desenvolvimento pleno enquanto sujeito de direitos, sonegando-lhe direitos e garantias fundamentais.

O art. 18 do ECA afirma que “é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. O art. 70 determina que “é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente”. De tal modo, considerar “natural” a gravidez de uma menina de 12 anos advinda de violência sexual, ainda que presumida, por ser “a vida maior que o direito”, traduz-se em afronta à sua dignidade, colocando-a em situação de tratamento violento, vexatório e constrangedor, transgredindo seus direitos.

Outro ponto polêmico do julgado a ser analisado trata da afirmação do ministro relator, em seu voto, sobre excepcionar situações em que adolescentes de 12 anos que tenham união estável e dessa união nasçam crianças, para afastar a presunção de violência sexual e vulnerabilidade, considerando absoluta apenas a prioridade destinada à criança gerada.        

É sobremodo importante ressaltar que adolescente menor de 14 anos não deveria constituir união estável, pois, em que pese não haver, no Brasil, norma jurídica expressa que estipule idade núbil para se constituir união estável, poder-se-ia aplicar, analogicamente, a idade fixada em 16 anos para o casamento, sem qualquer exceção, nos termos do art. 1.517 do Código Civil; situação em que seria, então, considerado absolutamente incapaz para celebrar um ato-fato jurídico de tamanha relevância.

Demais disso, o Código Penal pune com rigor – reclusão de 8 (oito) a 15 (quinze) anos – aquele que praticar conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos, estando caracterizado o estupro de vulnerável. A Súmula 593 do próprio STJ impõe que: “o crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente”. Logo, no caso ora debatido, há inequívoca demonstração de que a violência sexual é presumida.

O argumento do ministro relator sobre o caso tratar de dois jovens namorados, cujo relacionamento foi aprovado pela mãe – que depois se desentendeu com o rapaz –, sobrevindo dessa união um filho e a constituição de um núcleo familiar, carece de fundamentação jurídica substancial, transmitindo evidente convicção pessoal do julgador, visto que a gravidez foi resultante de estupro de vulnerável, não havendo que se falar em “núcleo familiar”.

Convém ponderar que não se pode aceitar que crianças prematuramente se submetam a comportamentos de adultos, especialmente no que se refere à constituição de união estável ou núcleo familiar. A violência sexual contra menores de 14 anos é presumida, sendo inequívoca a irrelevância de ter havido consentimento da vítima e/ou relacionamento amoroso com o agente, pois aquela deveria, em primeiro lugar, estar vivenciando plenamente sua infância. É a regra que vige e deve prevalecer no ordenamento jurídico pátrio.

O MPMG, a partir de dois recursos de Minas Gerais, indicados como candidatos a representativos da controvérsia, buscará junto ao STJ que seja reafirmada a vulnerabilidade absoluta das vítimas de crimes sexuais que tenham menos de 14 anos. A Promotoria afirmou também que aguarda a disponibilização dos votos e que vai recorrer da decisão, além de analisar a propositura de reclamação no Supremo Tribunal Federal com objetivo de reafirmar a constitucionalidade da lei que prevê tais condutas como criminosas[11].

Entrementes, quanto à tese do erro de proibição, é possível demonstrar a fragilidade do argumento, que não se sustenta. É sabido que ninguém pode alegar desconhecimento da lei com o propósito de descumpri-la. O art. 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB aduz que “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”. Por sua vez, o art. 21 do Código Penal ordena que “o desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço. Parágrafo único – Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência”.

Quando o ser humano, valendo-se de sua diligência ordinária, comete erro sobre a ilicitude do fato, sendo-lhe impossível evitá-lo, exclui-se a culpabilidade. Ao revés, o erro sobre a ilicitude do fato não se justifica quando, havendo um empenho mínimo para manter-se informado, o agente poderia ter tomado conhecimento da realidade, caracterizando-se o erro de proibição inescusável. Para que o erro de proibição possa se caracterizar escusável, é indispensável que o agente não saiba e tampouco tenha como saber que o ato praticado por ele é ilícito (Nucci, 2023, p. 496).

O erro de proibição poderá ser escusável caso o agente não tenha consciência real, atual e potencial da ilicitude à época da realização da conduta criminosa, em razão das circunstâncias do caso concreto. É imprescindível que haja ausência da potencial consciência da ilicitude, sendo-lhe impossível saber que se tratava de algo ilícito. Nesse sentido, falta-lhe a noção de ilícito real e potencial (Nucci, 2023, p. 496).

O erro sobre a ilicitude do fato não se justifica quando o agente não possuía consciência de que estaria praticando ilícito, mas lhe era fácil obter essa consciência, já que não se informou quando deveria, por tratar-se de atividade legalmente regulamentada (Nucci, 2023, p. 496).

Em verdade, a alegação de que houve erro de proibição, tendo em vista que o réu supostamente desconhecia a ilicitude do fato por morar em zona rural, é argumento que dificilmente encontra esteio nos dias de hoje. Ainda que se more em local distante e de difícil acesso, há abundância de informações acessíveis, sobretudo por meio da internet. Em assim sendo, a argumentação de que o réu não poderia atingir a consciência da ilicitude do fato é pífia e de extrema fragilidade. No caso em análise, a cidade do acusado, Araguari – MG, possui mais de 109 mil habitantes, sendo-lhe impossível não obter conhecimento de que o ato praticado era ilícito.

O Ministério Público de Minas Gerais interpôs um recurso junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) visando à reanálise do conjunto probatório, com o objetivo de restabelecer a condenação do réu, argumentando que o erro de proibição seria inescusável. Em seu voto, o relator afirmou não conhecer do recurso, haja vista a incidência da Súmula 7 do STJ. No entanto, divergindo desse entendimento, a ministra Daniela Teixeira assentou que, em casos excepcionais, é possível a análise da discussão contida no recurso.

A referida ministra ressaltou que reconhecia que o recurso especial se restringe à apreciação da interpretação de lei federal, não sendo possível a cognição acerca da análise de provas e fatos do processo. No entanto, em circunstâncias excepcionais, abre-se a possibilidade de examinar o debate ocorrido no recurso, desde que não envolva o reexame de provas e que tenha havido incorreta valoração destas, com as premissas fáticas bem delineadas, como no caso dos autos[12].

Enfim, a mesma ministra defendeu que o ocorrido nos autos configurou estupro de vulnerável, não sendo possível minimizar este ato criminoso, relativizando a responsabilidade do recorrido em relação à sua conduta. Afirmou que houve uma valoração equivocada do conjunto probatório do processo. Portanto, em seu juízo de ponderação, superaria a Súmula 7, de natureza processual, mas não a Súmula 593, de alçada constitucional, responsável por materializar o disposto no art. 227 da Constituição Federal, que confere proteção e prioridade absoluta à criança[13].

Em resposta à divergência da ministra, o ministro relator Reynaldo Soares reiterou que não é possível superar a Súmula 7 para, com base no conjunto probatório, reexaminar a escusabilidade ou inescusabilidade do erro quanto à ilicitude do fato[14].

Acrescentou que o enunciado da Súmula 7 está interligado à norma constitucional do art. 105, III, tratando-se da missão do Superior Tribunal de Justiça, enquanto o verbete da Súmula 593 refere-se ao art. 217-A do Código Penal. Nesse sentido, considerou a Súmula 7 hierarquicamente superior à Súmula 593, de acordo com a teoria de Hans Kelsen[15].

Asseverou também que, ainda que se considerasse que a Súmula 593 do STJ refletisse o disposto no art. 227 da Constituição Federal, não se poderia desvincular da redação que estabelece “a prioridade absoluta da criança”, que, em seu entendimento, é a nascida da relação entre a adolescente de 12 anos e o adulto de 20 anos[16].

Com a devida vênia ao entendimento do ministro relator, o juízo interpretativo em razão da suposta hierarquia entre as súmulas não merece prosperar. Se a Súmula 7 reflete o inserto em âmbito constitucional, igualmente a Súmula 593 também o reflete. Dentro da ponderação feita, houve predileção pela súmula que trata de matéria processual em detrimento da súmula que materializa o disposto no art. 227 da Carta Magna. Trata-se de um malabarismo jurídico que coloca a forma acima do conteúdo, sendo que ambas as súmulas refletem o constitucionalmente estabelecido.

A referida “prioridade absoluta” da criança nascida de uma violência sexual cometida contra uma adolescente de 12 anos – quase uma criança em termos legais – que era incapaz de consentir, vilipendia os direitos constitucionais da adolescente, eximindo o agressor de responsabilidade. A decisão exclui os direitos fundamentais da adolescente ao considerar uma suposta constituição de união estável e “núcleo familiar”. Não há união estável, tampouco núcleo familiar constituído por uma incapaz de consentir. A família protegida constitucionalmente é aquela formada por dois adultos capazes. O que se vislumbra é o cometimento de uma violência sexual e o nascimento de uma criança fruto dessa violência. Lamentavelmente, a interpretação jurídica é distorcida para naturalizar e isentar homens adultos das responsabilidades pelas violências sexuais cometidas contra mulheres, neste caso, contra uma adolescente, quase criança.

Desde o ano de 2005, no Brasil, a “união estável” ora suposta não seria capaz de extinguir a punibilidade em caso de estupro. Tal raciocínio, se aceitável, operaria verdadeira repristinação do artigo 107, VII, do Código Penal – dispositivo revogado pela Lei nº 11.106/05. Esse artigo expressava a seguinte redação: “extingue-se a punibilidade: […] VII – pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial deste Código […]”.

O entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) no RE nº 418.376, por maioria de votos, firmou-se no sentido de que a união estável entre ofensor e vítima, em caso de estupro, não é suficiente para extinguir a punibilidade. A decisão foi tomada no julgamento de recurso contra a aplicação da pena a um homem que havia estuprado uma menor de, à época, 9 anos. No pedido, o réu, condenado a 7 anos de reclusão pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) por crime de estupro contra menor de 14 anos, requereu a reforma da decisão. Na primeira instância, ele havia sido absolvido. Em pedido de vista, o ministro Gilmar Ferreira Mendes afirmou:

[…] O que justifica o meu pedido de vista é a preocupação com a hipótese concreta em que ocorre a discussão dos presentes autos: uma menina de idade entre 9 e 12 anos, que mantém relações sexuais com seu tutor legal, então marido de sua tia, com quem ela vivia desde os 8 anos de idade.

[…] Revela-se necessário investigar uma questão prévia a esta: se a situação concreta apresentada no caso pode ser considerada união estável para fins do art. 226, §3º, da Constituição Federal de 1988. Ou seja, qual o bem da vida que juridicamente é protegido pela norma constitucional inserta neste dispositivo?

[…] Assim, o que parece essencial destacar, na discussão posta, é o fato de se tratar de uma situação fática repugnante: uma criança, confiada a um tutor que, em flagrante abuso de sua autoridade, manteve com ela relações sexuais desde que esta tinha 9 anos de idade. O fato de a adolescente, depois de ter o filho, vir a juízo afirmar que vive maritalmente com o seu opressor não pode ser considerado como hipótese típica de perdão, extinguindo a punibilidade, nos termos do art. 107, VII, do Código Penal.

[…] A união estável, que se equipara a casamento por força do art. 226, §3º, da Constituição Federal, é uma relação de convivência e afetividade em que homem e mulher de idade adulta, de forma livre e consciente, mantêm com o intuito de constituírem família. Não se pode equiparar a situação dos autos a uma união estável, nem muito menos, a partir dela, reconhecer, na hipótese, um casamento, para fins de incidência do art. 107, VII, do Código Penal [17].

                        Na oportunidade, o ministro Joaquim Barbosa afirmou que apenas o casamento regularmente celebrado poderia extinguir a punibilidade, considerando as circunstâncias do caso terríveis, por se tratar do estupro de uma menina de 9 anos. Por sua vez, o ministro Cezar Peluso afirmou estar impressionado, já que a jovem não possuía idade núbil, sendo incapaz de consentir, pois era praticamente uma criança. Dessa forma, não poderiam ser feitas quaisquer equiparações quanto à união estável, sendo impossível que a mesma casasse. Ponderou, também, que a possibilidade de convivência entre agressor e vítima configura ofensa à dignidade humana[18].

Posta assim a questão, em oposição a esse entendimento, o ministro relator do RESP nº 2.389.611 afirmou em seu voto que “a condenação do réu, que não oferece nenhum risco à sociedade, ao cumprimento de pena elevada – revela uma completa subversão do direito penal, em afronta aos direitos fundamentais, em rota de colisão direta com o princípio da dignidade humana”, desprezando, em contrapartida, os direitos humanos da vítima.

A propósito, é importante destacar que o adulto na relação é o réu, que cometeu estupro de vulnerável. Há subversão do direito penal quando o agressor não é penalizado pelo crime perpetrado contra uma menina de 12 anos. Questiona-se: “Ao absolver o réu, que violou o disposto em lei, art. 217-A do Código Penal, que tipo de mensagem está sendo passada para a sociedade?” A única resposta possível é que o criminoso absolvido continuará sua vida sem nenhuma restrição. Já a criança estuprada arcará com as responsabilidades de uma maternidade precoce, sozinha e carregando seu trauma.

Crianças não podem ser consideradas mães. Estupradores não são pais. Estupro não é formação de família. O direito fundamental à vida, por meio da fruição de uma vida digna, dotada de condições básicas para uma existência saudável, foi infringido. E quantos direitos mais hão de ser transgredidos em nome de um conceito distorcido de família? Por que a lei penal não é aplicável para uma menina de 12 anos do meio rural?

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, garante prioridade absoluta a crianças e adolescentes: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

O ministro relator Reynaldo Soares da Fonseca afirma ter embasado sua decisão na regra constitucional acima descrita. No entanto, em seu juízo de ponderação, sobrepôs a vida da criança que nasceu à vida da adolescente de 12 anos exposta à violência sexual. O infrator foi beneficiado com a irresponsabilidade estatal, enquanto à vítima restou o dever de cuidar de uma criança recém-nascida. Essa relativização, além de gerar insegurança jurídica, é temerária por possibilitar a construção de um precedente judicial perigoso. Conforme decidiu o ministro Gilmar Ferreira Mendes no RE 418.376, a família a ser objeto de proteção constitucional é a formada por um homem e uma mulher adultos, de forma livre e consciente.

Ainda que o STJ alegue que a decisão trata de uma exceção à regra, resta aberto o precedente para várias “exceções”. A consequência social será a diminuição da idade mínima aceitável por lei para o “namoro”. Hoje, são 14 anos – e “excepcionalmente” 12 anos – e amanhã? 10 anos? Quando os atos dos homens serão passíveis de responsabilização e devidamente penalizados? Quando a mulher será desresponsabilizada por atos cometidos por um homem adulto? Daqui a um tempo, será institucionalizada a pedofilia?

Diante desse cenário preocupante, é fundamental lembrar que a proteção das crianças está amparada por normas internacionais. Em seu artigo 19, a Convenção sobre os Direitos da Criança estabelece que: “1. Os Estados Partes devem adotar todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, ofensas ou abusos, negligência ou tratamento displicente, maus-tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a custódia dos pais, do tutor legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela”[19].

Além das diretrizes internacionais, a legislação nacional também aborda a proteção das crianças e adolescentes contra a violência. O art. 4º, inciso III, da Lei nº 13.431/2017 trata da violência sexual, abrangendo quaisquer condutas que constranjam crianças ou adolescentes a praticar ou presenciar conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso. Isso inclui a exposição do corpo em fotos ou vídeos, por meio eletrônico ou não, compreendendo abuso sexual, exploração sexual comercial e tráfico de pessoas[20].

A violência contra crianças e adolescentes é todo ato, independentemente de sua natureza, que atente contra a dignidade humana desses indivíduos, cometido por alguém em situação de poder ou desenvolvimento desigual em relação a eles. No que tange à violência sexual, entende-se que a sexualidade é um direito que deve ser garantido e protegido de maneiras distintas, conforme o desenvolvimento gradual da sexualidade (Carvalho, Paiva, Roseno, 2007, p. 109).

A não neutralidade do direito está mais uma vez comprovada com essa decisão. As normas jurídicas são diretamente influenciadas pelos valores adotados por aqueles que as aplicam em casos concretos. Dessa forma, o direito tanto influencia quanto é influenciado culturalmente por meio de sua aplicação.

O problema é que o direito conduz o comportamento social. E o que essa decisão comunica à sociedade? Que os direitos humanos das mulheres não estão sendo devidamente protegidos; que uma adolescente de 12 anos foi impedida de usufruir de seu pleno desenvolvimento. Ao contrário, será forçada a assumir responsabilidades de uma vida adulta precocemente, sem possuir a maturidade necessária para tanto.

E no que se refere às relações de gênero, o que essa decisão influenciará? Que a pessoa do sexo feminino – ainda que criança ou adolescente menor de 14 anos – possa ser estuprada, sem maiores consequências, sejam elas penais ou sociais? Que a criança possa ser considerada “mulher”, devendo estar preparada tanto para atos sexuais quanto para gerar filhos e criá-los, impedindo-lhe uma vida diversa, na qual não seria mais um instrumento do machismo estrutural, onde sua função social subsiste apenas em servir o homem como objeto de luxúria e cuidar de seus filhos?

Em 2021, com o objetivo de promover a igualdade de gênero e atender ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 5 da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou o “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero 2021”. Este protocolo visa capacitar e orientar a magistratura na realização de julgamentos, estabelecendo diretrizes que reflitam um novo posicionamento da Justiça, com maior equidade entre homens e mulheres[21].

Considerando que o direito processual engloba princípios e regras direcionados a efetivar a prestação jurisdicional como meio de solução de conflitos de interesses entre particulares e o Estado, é imperioso acatar que os julgadores deverão exercer a jurisdição com perspectiva de gênero, resolvendo questões processuais que causem descabido desequilíbrio na relação entre os sujeitos processuais (CNJ, 2021, p. 84).

Ainda de acordo com esse documento, deve fazer parte do julgamento com perspectiva de gênero a alta valoração das narrativas das mulheres vítimas de violência de gênero, não podendo se presumir desequilíbrio processual. A vulnerabilidade e hipossuficiência da ofendida legitimam o distinto peso probatório, reputando-se a atividade jurisdicional praticada nesses moldes como imparcial e de acordo com o aspecto material do princípio da igualdade (CNJ, 2021, p. 85).

Quanto aos crimes contra a dignidade sexual, é imprescindível que os julgamentos sejam realizados com base em perspectivas sociais e históricas compreendidas como aceitáveis e pertinentes tanto para homens quanto para mulheres. Caso contrário, ao deixar de analisar violações significativas, corre-se o risco de efetivar um direito androcêntrico (dominado por perspectivas masculinas), incapaz de distinguir a falta de consentimento da vítima, o não consentimento e o dissentimento. O propósito de proteção às mulheres também ecoa no Direito Penal, que tutela a dignidade sexual. Para que haja violação dessa dignidade, é necessária a falta de consentimento da mulher, sendo desnecessário seu dissentimento (CNJ, 2021, p. 91).

Nas sentenças, deve-se observar a condição das pessoas do sexo feminino, especialmente quando se tratar de crianças e adolescentes recém-saídas da infância, consideradas seres humanos em situação de vulnerabilidade (até 14 anos de idade). Se essa prática for negligenciada, o direito servirá apenas para favorecer o homem na sociedade e manter o status quo. A lei, por si só, não é capaz de eliminar as desigualdades, mesmo que as aponte e condene constantemente. Para erradicar o sexismo residual, é necessário modificar preconceitos, padrões e crenças dos julgadores.

CONCLUSÃO

Este estudo analisou a evolução das políticas de proteção às mulheres e crianças no Brasil, com foco na Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e na Convenção sobre os Direitos da Criança. Desde a ratificação da CEDAW em 1984, o Brasil reconheceu a necessidade de erradicar abusos de gênero, como submissão, assédio, exploração sexual e estupro. No entanto, a persistência de uma estrutura patriarcal na sociedade brasileira continua a colocar as mulheres em desvantagem, perpetuando a violência de gênero como uma consequência direta das relações de poder.

Os resultados deste estudo destacam que, apesar dos compromissos internacionais e nacionais, as mulheres, especialmente as menores de idade, permanecem em situação de vulnerabilidade social. A proteção especial às crianças ainda enfrenta desafios significativos na sua implementação prática. O Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990, que promulgou a Convenção sobre os Direitos da Criança no Brasil, reforça o compromisso do país em coibir todas as formas de violência contra crianças e adolescentes, incluindo tratamento negligente e abuso sexual.

Um ponto crítico abordado neste estudo é o crime de estupro de vulnerável, que envolve vítimas menores de 14 anos ou pessoas incapazes de oferecer resistência. A decisão da 5ª Turma do STJ no julgamento do RESP nº 2.389.611, que mitiga o princípio da prioridade absoluta garantido pelo art. 227 da Constituição Federal de 1988, representa um retrocesso significativo. Este precedente lesivo coloca em risco a segurança e o bem-estar psicossocial de crianças e adolescentes, ao ignorar os danos permanentes e profundos infligidos às vítimas de estupro de vulnerável. O argumento de que uma suposta “união estável” ou prestações de assistência paterna possam suavizar a gravidade do crime ignora por completo os danos irreparáveis causados à vítima. É fundamental reafirmar que “criança não é mãe”, “estuprador não é pai” e “estupro não é formação de família”.

Além disso, a decisão da 5ª Turma do STJ configura um verdadeiro malabarismo jurídico para firmar um entendimento alheio ao entendimento sumulado do próprio STJ, que, em que pese não seja vinculante, norteia as decisões dos tribunais de todo o país. O discurso jurídico, ao distorcer e ocultar o conflito social, legitima poderes e perpetua a dominação, disfarçando-se de neutro. A decisão da 5ª Turma do STJ não apenas desprotege a vítima, mas também sinaliza uma permissividade perigosa quanto a potenciais agressores, comprometendo os esforços para prevenir e responder às práticas de violência sexual. Isso demonstra que o Direito, em uma sociedade estruturalmente machista, tem sido utilizado para a exclusão e opressão das mulheres no exercício de seus direitos.

Ademais, tal precedente abala a segurança jurídica ao estabelecer um perigoso entendimento proferido em decisão do próprio STJ. A segurança jurídica é um dos pilares fundamentais do Estado de Direito, e decisões que se afastam de entendimentos consolidados criam incertezas e instabilidades no sistema jurídico. A adoção de um posicionamento que contraria a jurisprudência majoritária do tribunal superior pode levar a uma aplicação desigual da lei, prejudicando a previsibilidade e a confiança nas instituições judiciais. Esse tipo de precedente pode abrir brechas para interpretações arbitrárias e injustas, minando a proteção dos direitos das vítimas e enfraquecendo a eficácia das normas de proteção.

Portanto, é imperativo que haja uma revisão desta decisão, assegurando a observância das disposições legais e a adoção de uma perspectiva de gênero nas sentenças. A proteção integral contra toda forma de abuso ou exploração sexual deve ser garantida, reforçando os princípios de justiça que devem nortear a atuação das instituições judiciárias. Somente assim será possível avançar na erradicação da violência de gênero e na promoção de uma sociedade mais justa e igualitária.

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[2]https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/pdf/rec_geral_19_violencia_contra_as_mulheres.pdf

[3]https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/769f84bb4f9230f283050b7673aeb063.pdf

[4]https://www.cidh.org/Basicos/Portugues/m.Belem.do.Para.htm#:~:text=Artigo%201,p%C3%BAblica%20como%20na%20esfera%20privada.

[5]https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=2&documento_sequencial=234293170&registro_numero=202302073988&peticao_numero=202301219030&publicacao_data=20240410&formato=PDF

[6]https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=2&documento_sequencial=234293170&registro_numero=202302073988&peticao_numero=202301219030&publicacao_data=20240410&formato=PDF

[7]https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/stj-afasta-tese-de-estupro-em-relacao-entre-homem-de-20-anos-e-menina-de-12/

[8]https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=5&documento_sequencial=235695510&registro_numero=202302073988&peticao_numero=202301219030&publicacao_data=20240410&formato=PDF

[9]https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=2&documento_sequencial=234293170&registro_numero=202302073988&peticao_numero=202301219030&publicacao_data=20240410&formato=PDF

[10]https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=2&documento_sequencial=234293170&registro_numero=202302073988&peticao_numero=202301219030&publicacao_data=20240410&formato=PDF

[11]https://www.jb.com.br/brasil/justica/2024/03/1049129-stj-nao-ve-estupro-em-caso-de-menina-de-12-anos-que-engravidou-de-homem-de-20-mae-da-jovem-denunciou-o-agressor.html

[12]https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=2&documento_sequencial=234293170&registro_numero=202302073988&peticao_numero=202301219030&publicacao_data=20240410&formato=PDF

[13]https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=2&documento_sequencial=234293170&registro_numero=202302073988&peticao_numero=202301219030&publicacao_data=20240410&formato=PDF

[14]https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=91&documento_sequencial=234427946&registro_numero=202302073988&peticao_numero=202301219030&publicacao_data=20240410&formato=PDF

[15]https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=91&documento_sequencial=234427946&registro_numero=202302073988&peticao_numero=202301219030&publicacao_data=20240410&formato=PDF

[16]https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=91&documento_sequencial=234427946&registro_numero=202302073988&peticao_numero=202301219030&publicacao_data=20240410&formato=PDF

[17]https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=412578

[18]https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=412578

[19]https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99710.htm

[20]https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13431.htm

[21]https://www.enfam.jus.br/protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-de-genero-2021-e-lancado-no-cnj/


[1]Aluna do PPGD Unifor, mestranda em Direito Constitucional, disciplina: Multiculturalismo e Direitos Humanos, professora: Ana Maria D’Ávila, semestre 2024.1