REFLEXÕES SOBRE A LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS: UM OLHAR A PARTIR DA TEORIA DA ENUNCIAÇÃO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7470134


Jaqueline de Sousa Macedo1


RESUMO

Este artigo tem como objetivo refletir acerca dos aspectos linguísticos da Língua Brasileira de Sinais – Libras a partir da Teoria da Enunciação de Émile Benveniste. Nesse sentido, analisamos como se dá a constituição da linguagem nas línguas de sinais, já que em Benveniste, um dos elementos para a manifestação da linguagem é a realização vocal da língua. Para tanto, apresentamos uma abordagem teórica-reflexivo acerca da constituição da linguagem humana a partir dos estudos de Benveniste e como essa linguagem se apresenta nas línguas de sinais – LIBRAS. Essa relação entre línguas de sinais e linguagem aponta que a manifestação da linguagem por meio de uma língua sinalizada e a língua oral acontece de forma semelhante, pois ambas as modalidades possuem os elementos essenciais para proporcionar ao homem enunciar. Vale ressaltar que, embora Benveniste não faça menção às línguas manuais na sua teoria, deixa ferramentas capazes de nos fazer compreender como acontece a realização da linguagem nas línguas de sinais.

Palavras-chave: Linguagem. Teoria da Enunciação. Libras

ABSTRACT

This article aims to reflect about the linguistic aspects of Brazilian Sign Language – Libras, based on Émile Benveniste’s Theory of Enunciation. In this sense, we analyze how the constitution of language in sign languages ​ takes place, since in Benveniste, one of the elements for the manifestation of language is the vocal realization of the language. Therefore, we present a theoretical-reflective approach about the constitution of human language from Benveniste’s studies and how this language is presented in sign languages ​​- LIBRAS. This relationship between sign languages ​​and language points out that the manifestation of language through a signed language and oral language happens in a similar way, because both modalities have the essential elements to provide enunciation to the man. It is noteworthy that, although Benveniste does not mention manual languages ​​in his theory, he leaves tools capable of making us understand how the realization of language in sign languages ​​happens.

 Keywords: Language. Enunciation Theory. Libras

INTRODUÇÃO

Em Problemas de Linguística Geral I, Benveniste faz uma relação entre a comunicação animal e a linguagem humana. Para ele, os animais não emitem mensagens “faladas”, já que apesar de se manifestarem por meio de gritos até os animais mais superiores, na visão dele, não possuem as condições necessárias para o desenvolvimento de uma comunicação linguística. 

É por meio das observações do comportamento das abelhas, dos estudos sobre psicologia animal, que Benveniste propõe entender até que ponto se pode ou não considerar uma “linguagem” animal. Com isso, entender mais sobre a constituição da linguagem humana, pois as abelhas possuem um mecanismo capaz de transmitir e compreender uma mensagem. É a partir dessa característica das abelhas que o autor faz considerações acerca da proximidade e da distância desse comportamento animal e o uso de uma “linguagem” e a constituição da linguagem humana. 

A abordagem da linguagem humana feita por Benveniste aponta que na linguagem humana, o enunciado 

“se reduz a elementos que se deixam combinar livremente segundo regras definidas, de modo que um número bastante reduzido de morfemas permite um número considerável de combinações – de onde nasce a variedade da linguagem humana, que é a capacidade de dizer tudo”. (BENVENISTE, 2005, p. 66)

Nessa perspectiva, o autor mostra que a língua faz parte da linguagem. Esta existe por suas diferenças, pois não é algo mecanizado e não basta a comunicação. É necessário o diálogo, interpretação de signos e a construção de sentidos de acordo com as condições de produção. Partindo do processo de enunciação estudado por Benveniste, em que a produção do enunciado é o ato do locutor, um dos aspectos apontados pelo autor é a realização vocal da língua. Por esse motivo, nosso trabalho se propõe a refletir como a linguagem é trabalhada nas línguas de sinais, já que a enunciação destas não se faz por meio da voz. Desse modo, este artigo faz uma reflexão sobre a visão de Émile Benveniste acerca da linguagem humana a partir da teoria da enunciação e como essa linguagem é produzida por meio das línguas de sinais. 

A metodologia adotada para a realização deste trabalho é uma pesquisa teórica-reflexiva. Assim, o artigo se desenvolve a partir da seguinte problemática: como se constitui a linguagem humana nas línguas visuais, mais especificamente na Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS? Essa discussão justifica-se pela possibilidade de ampliação dos números de pesquisas voltadas aos estudos linguísticos centrados na Libras. Ainda mais para o seu funcionamento e aspectos gramaticais, o que pode auxiliar no enfrentamento de dificuldades enfrentadas por sujeitos surdos na construção de processos enunciativos.

Portanto, a análise parte de uma abordagem do conceito de linguagem em Benveniste e de reflexões sobre a representação da linguagem humana por meio da vocalização de enunciados, um dos aspectos apontados pelo o autor para o entendimento da produção da enunciação. Dessa visão, abordaremos a constituição da linguagem por meio de uma língua visual-espacial e como acontece essa enunciação nela. O trabalho no primeiro momento faz uma breve introdução acerca da Língua Brasileira de Sinais – Libras. No segundo tópico, serão abordados conceitos e reflexões sobre enunciação a partir de Benveniste. No terceiro tópico, baseado nesses conceitos, analisaremos a constituição da linguagem na língua brasileira de sinais. Por fim, teceremos as considerações finais e referências. 

1. LÍNGUAS DE SINAIS

A língua de sinais é uma modalidade de língua visual-espacial que proporciona ao surdo se comunicar por meio de suas mãos e de seu corpo, fazendo uso da sinalização e das expressões corporais e faciais. O uso dessa língua permite ao surdo expressar-se naturalmente, pois utiliza uma língua estruturada por parâmetros visuais e o possibilita produzir enunciados por meio de articuladores corporais (mãos, rostos, corpo), assim como qualquer língua oral.

De acordo com Quadros e Karnopp (2004), as línguas de sinais

“são, portanto, consideradas pela linguística como línguas naturais ou como um sistema linguístico legítimo e não como um problema do surdo ou como uma patologia da linguagem. Stokoe, em 1960, percebeu e comprovou que a língua dos sinais atendia a todos os critérios linguísticos de uma língua genuína no léxico, na sintaxe e na capacidade de gerar uma quantidade infinita de sentenças”. (QUADROS & KARNOPP, 2004, p. 30).

A língua de sinais não é um sistema universal, já que cada país possui a sua língua própria. No Brasil, a língua de sinais é a Libras – Língua Brasileira de Sinais. É uma língua reconhecida e utilizada pela comunidade surda, um passo importante no desenvolvimento cognitivo a partir de interações sociais realizadas na sua língua natural. 

1.1 A língua brasileira de sinais

A Libras é uma língua natural que serve como meio de comunicação e expressão para a comunidade surda no Brasil. É uma modalidade de língua diferente das línguas orais, mas possui um sistema completo, já que permite ser explorada de diferentes maneiras, por meio de recursos como expressões faciais, configuração de mão, movimentos, classificadores e outros que facilitam a sua exploração no processo de alfabetização. Dessa forma, “por meio da língua de sinais, a criança vai adquirir a linguagem. Isso significa que ele estará concebendo um mundo novo usando uma língua que é percebida e significada ao longo do seu processo”. (QUADROS & SCHMIEDT, 2006, p. 22-23).

De acordo com a Lei n. 10.436, de 24 de abril de 2002,

Entende-se como Língua Brasileira de Sinais – Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil.

Esse reconhecimento da Libras trouxe para o sujeito surdo o direito de uso da sua língua natural e a possibilidade de comunicação eficiente por meio da utilização de uma língua visual-espacial em contraposição à uma língua oral-auditiva, no caso da língua portuguesa, o que garante ao surdo usar um instrumento de produção de sentido em uma modalidade de língua diferente.  

Dessa maneira, entende-se que assim como as línguas orais, as línguas de sinais são um sistema de comunicação válido e natural e possuem sistemas complexos que permitem aos seus usuários construir sentenças e enunciados dentro das suas particularidades. Logo, ambas são modalidades de línguas que oferecem elementos a serem utilizados: a língua oral com a produção da palavra falada e a língua de sinais com a produção da palavra sinalizada. Isso reflete as diferenças entre as duas modalidades de línguas e a singularidade de cada uma com a sua devida importância.

Segundo, QUADROS & KARNOPP (2004) “a língua é um sistema padronizado de sinais/sons arbitrários, caracterizados pela estrutura dependente, criatividade, deslocamento, dualidade e transmissão cultural.” (QUADROS & KARNOPP, 2004, p. 16) A língua de sinais brasileira possui uma gramática própria, assim como as outras línguas de sinais e as línguas na modalidade oral-auditiva. Ademais, possui um sistema complexo composto de fonologia, morfologia e sintaxe que são desenvolvidos pelo o uso das mãos, corpo e face através de movimentos e expressões. Segundo Brito (1998), a Libras

“É dotada também de componentes pragmáticos convencionais, codificados no léxico e nas estruturas da LIBRAS, e de princípios pragmáticos que permitem a geração de implícitos sentidos metafóricos, ironias e outros significados não literais”. Nesse viés, percebe-se que a libras permite ao surdo produzir enunciados e percepção do mundo a partir do visual-espacial. (BRITO, 1998, p. 11) 

Desse modo, para preencher o espaço que a modalidade de língua oral não supre no que se refere ao desenvolvimento da linguagem e o conhecimento de mundo da criança surda, o acesso à língua de sinais é fundamental no processo de percepção, já que esta é a modalidade de língua mais adequada para o desenvolvimento da linguagem pelo surdo, pois atende à necessidade visual-espacial de aprendizagem. Diante disso, Libras é constituída de todos os elementos para ser considerada uma língua natural, já que possui elementos capazes de fornecer ferramentas que permite o sujeito surdo manifestar a linguagem.

A linguagem possibilita o homem realizar-se enquanto sujeito, pois ela é manifestada pela subjetividade, o eu no discurso. Logo, entendemos que a língua de sinais pelo surdo representa um elemento viabilizador no processo de desenvolvimento e constituição enunciativa, uma vez que ela respeita o modo como o surdo vê o mundo, permitindo-lhe refletir em um sistema de escrita visual-espacial, bem como auxiliar no desenvolvimento da escrita na modalidade oral-auditiva, já que no Parágrafo único, da lei 10.436/2002 diz que “A Língua Brasileira de Sinais – Libras não poderá substituir a modalidade escrita da língua portuguesa.

2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A TEORIA DA ENUNCIAÇÃO

Saussure em sua obra “Curso de Linguística Geral”, define a língua como parte da linguagem. É algo adquirido e convencional que não se pode reduzir ao som. Já a linguagem, tem seu lado individual e o seu lado social. “a cada instante a linguagem implica, ao mesmo tempo, um sistema estabelecido e uma evolução; a cada momento, é uma instituição atual e um produto do passado”. (SAUSSURE, 2021, p. 51)

Além disso, o exercício da linguagem conforme o autor nos é facultado, o que concerne assim, a faculdade de constituir uma língua que é natural ao homem. Nesse sentido, a linguagem está em constante transformação, é multiforme e heteróclita. “ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence tanto ao domínio individual quanto ao domínio social”. (SAUSSURE, 2021, p. 52) Logo, é a língua que faz a unidade da linguagem. Para estudar a língua, Saussure usa o circuito da fala através da sua divisão em três partes: partes físicas (ondas sonoras), parte fisiológica (fonação e audição) e parte psíquica (imagens verbais e conceitos). 

A partir desses aspectos, ele observa a interação entre dois falantes, analisa o que sai do individual e o que chega no social e vice-versa. É por meio da fala que o autor observa a função do falante, o seu ato de vontade à enunciação e estuda a parte da linguagem. Diferentemente de Saussure, o foco de Benveniste não é a língua (forma) e o funcionamento do sistema em si. O seu interesse é o sistema no seu uso, ou seja, o objeto da linguística para Benveniste é a enunciação. 

No capítulo “Da subjetividade na linguagem”, Benveniste problematiza a linguagem como instrumento de comunicação “falar de instrumento, é pôr em oposição o homem e a natureza” (BENVENISTE, 2005, p. 285) Dessa maneira, a linguagem está na natureza do homem, este não é separado da linguagem, porquanto é predisposto ao desenvolvimento da linguagem. Qualquer ser humano é capaz de desenvolver a linguagem, seja ele ouvinte, surdo, cego, pois é uma capacidade inata do ser.

As línguas orais fazem uso de fonemas para a produção das suas frases e orações, palavras, morfemas e fonemas, e assim, permite ao homem produzir linguagem, porém cada uma com a sua limitação. Por outro lado, as línguas de sinais também fazem uso desses mesmos elementos, mas por meio da sinalização das mãos, expressões faciais e expressões corporais. Há produção de linguagem por meio das línguas de sinais, assim como nas línguas orais. Todo humano tem linguagem e não é a modalidade da sua língua natural que vai o privar de produzi-la.

A linguagem se realiza a partir da língua e a língua se realiza a partir do falante. É uma forma de comunicação que permeada de símbolos e sons tem a língua como uma parte de sua constituição, pois esta é usada pelos sujeitos para a produção dos enunciados. “É a capacidade de dizer tudo” (BENVENISTE, 2005, p. 66) No entanto, não é e nem pode ser vista como um instrumento, porque faz parte do sujeito e este é histórico, social e cultural. É onde o indivíduo se constitui como falante. 

Essa apropriação se transforma em discurso, assim o locutor toma a língua para si e produz a enunciação que pode ser estudada sob três aspectos: a realização vocal da língua, a conversão individual da língua em discurso e o tempo verbal. A enunciação é “colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização” (BENVENISTE, 2005, p. 82) O autor propõe analisar como passar da língua para a fala. Desse modo, a enunciação é processo, é o ato de dizer, ato de produção do enunciado e o enunciado é o dito. É a apropriação da língua por um ato individual do dizer. 

O locutor antes da enunciação tem a língua como uma possibilidade. Quando ele se apropria do aparelho formal da língua, ele enuncia, pois mobiliza o aparelho formal da enunciação. Dessa maneira, a cada vez que constrói a enunciação, cada vez mais constrói novos sentidos. Benveniste reformula a noção de uso da língua, já que insere a ela a ideia de semantização, o que insere também a possibilidade de o homem se constituir em sujeito, por meio da manifestação da enunciação.

O homem é indissociado da linguagem, pois é através dela que se constitui como sujeito. Nessa perspectiva, a subjetividade tratada em Benveniste é “a capacidade do locutor para se propor como ‘sujeito’”. (BENVENISTE, 2005, p. 286) É a emergência do ser e o ego é a referência. O locutor é o “eu” que depende de um outro, no caso o “tu”, que se apresenta como o eco. Dessa relação complementar, o locutor toma consciência de si e se realiza pelo contraste eu x tu e resulta na intersubjetividade a condição para a subjetividade o diálogo é a condição constitutiva do pensar. 

Esses pronomes são formas linguísticas que indicam a “pessoa”, que possibilitam referências aos indivíduos linguísticos e possuem valor social e cultural. O eu é o ato de discurso individual, é algo singular e exclusivamente linguístico que faz referência à realidade do discurso. “é na instância do discurso na qual eu designa o locutor que este se enuncia como ‘sujeito’ ”. (BENVENISTE, 2005, p. 288)

As formas vazias – indicadores de subjetividade são distribuídas em categorias de pessoa, tempo e espaço. Em Benveniste, são apropriadas pelo locutor a cada exercício do seu discurso, definindo-se enquanto o eu enunciador a um outro, no caso o tu. A língua é assumida por aquele que fala, na condição de subjetividade, tornando a comunicação linguística possível. Sempre existe um eu pressuposto, o eu sempre fala para um tu, que é o enunciatário pressuposto. Esta relação é a condição intersubjetiva, já que o homem assume a língua através das formas “vazias”. Dessa forma, formam categorias enunciativas conjuntas que apresenta que o sujeito está na língua. 

A subjetividade na linguagem é revelada pelos indicadores das dêixis, que permitem relações espaciais e temporais do sujeito, a dependência do eu que anuncia é evidente. Além dos pronomes, a temporalidade também é um fator de expressão de subjetividade e está presente em qualquer língua, sendo inerente ao exercício da linguagem. Este é realizado pelo locutor, que deixa sua marca ao fazer uso da língua cada vez que enuncia. Assim, “a linguagem é, pois, a possibilidade da subjetividade, pelo fato de conter sempre as formas linguísticas apropriadas a sua expressão”. (BENVENISTE, 2005, p. 289)

O homem se constitui como sujeito na linguagem e pela linguagem. Para Benveniste (2006)

“Antes de qualquer coisa, a linguagem significa, tal é seu caráter primordial, sua vocação original que transcende e explica todas as funções que ela assegura no meio humano (…) bem antes de servir para comunicar, a linguagem serve para viver. Se nós colocamos que à falta de linguagem não haveria nem a possibilidade de sociedade, nem a possibilidade de humanidade, é precisamente porque o próprio da linguagem é, antes de tudo, significar. (BENVENISTE, 2006, p. 222)

A ideia de significação traz a construção dos sentidos através das palavras. É a conversão da língua em discurso. Se esse discurso, nas línguas orais, é realizado pela vocação das línguas, esse discurso é apresentado por meio da sinalização nas línguas de sinais. “É um homem falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro homem, e a linguagem ensina a própria definição do homem.” (BENVENISTE, 2005, p. 285)

Logo, a linguagem possibilita ao homem construir suas experiências e vivências individuais. Nesse sentido, apoiados em Benveniste de que linguagem significa, percebe-se que o surdo, locutor de uma língua visual-espacial, é possibilitado a partir de uma ótica visual, separada dos padrões orais, expressar-se linguisticamente. É a partir dessa ótica que iniciaremos a discussão do nosso último tópico.

3. CONSTITUIÇÃO DA LINGUAGEM E AS LÍNGUAS DE SINAIS

As pesquisas linguísticas valem-se de teorias que nem sempre podem ser adequadas a todas as modalidades e tipos de língua. Em alguns casos, não será possível analisar o funcionamento das línguas orais da mesma maneira que nas línguas de sinais e vice-versa. Partindo desse ponto, podemos pensar na produção da linguagem por meio das línguas de sinais, modalidade de língua visual-espacial que é natural do sujeito surdo. Para tanto, precisamos entender a diferença entre língua e linguagem. 

Para Saussure (2005), a linguagem tem dois lados: o social e o individual, que muda de maneira constante, multiforme e heteróclita. Já a língua é uma parte essencial da linguagem, representa algo convencional e adquirido. É um produto social da linguagem e conjunto de convenções necessárias para permitir o exercício da linguagem pelo homem. Portanto, a língua faz a unidade da linguagem. É por meio do circuito da fala que Saussure estuda a língua. Dessa proposta, a fala (ato individual e de vontade) é a função do falante. A língua é um sistema de signos linguísticos, que possui estrutura gramatical e existe virtualmente na cabeça de cada ser e na interação desses com outros na sociedade.

Dos estudos de Benveniste das ideias Saussure, resulta a ideia de que o laço entre significante e significado não é arbitrário, mas sim necessário. Ao contrário de Saussure, o arbitrário só existe no particular, já que não tem nada que explique a relação palavra x coisa. Logo, o signo seria arbitrário e motivado. 

Ademais, a questão da linguagem foi trabalhada a partir da observação do trabalho das abelhas, de modo a saber sobre a relação entre a comunicação animal e a linguagem humana.

“Até aqui encontramos, nas abelhas, as próprias condições sem as quais nenhuma linguagem é possível – a capacidade de formular e de interpretar um ‘signo’ que remete a uma certa ‘realidade’, a memória da experiência e a aptidão para decompô-la. (BENVENISTE, 2005, p. 64)

Ao contrário de Saussure, Benveniste considera a realidade, para ele, ela jamais pode ser descartada, pois faz parte da tríade significante, significado e realidade. “a realidade é produzida novamente por intermédio da linguagem”. (BENVENISTE, 2005, p. 26) Para Benveniste (2005), a situação natural da linguagem é a troca entre aquele que fala e aquele que ouve. É por meio da fala que o discurso é produzido e faz renascer o acontecimento enunciativo. Destarte, o ato do discurso se desdobra em duas funções: para locutor, é a realidade; para o ouvinte, é a recriação desta.

Assim como nas línguas orais, as línguas de sinais também proporcionam ao sujeito, expressar-se. É por meio da interação que o locutor se constitui como sujeito. “A sociedade não é possível a não ser pela língua; e, pela língua, também o indivíduo.” (BENVENISTE, 2005, p. 27) a condição da linguagem humana segundo Benveniste é o diálogo. Essa é a principal diferença para que as abelhas não produzam linguagem, mas sim comunicação. Há uma limitação na comunicação das abelhas. 

Benveniste (2005) diz que a primeira e essencial diferença entre a linguagem humana e a comunicação das abelhas é a ausência de uma intervenção ‘vocal’. “enquanto não há linguagem sem voz” (BENVENISTE, 2005, p. 65) o que nos leva a pensar acerca das línguas de sinais. Estas expressam a linguagem? Essa voz mencionada por Benveniste é a língua em uso. As línguas de sinais e Libras é uma delas, não são expressadas por meio da vocalização, uma das condições propostas pelo o autor para o desenvolvimento do processo de enunciação, porém expressam a linguagem.

As línguas visuais são línguas de modalidade diferente da língua oral, porém possuem uma estrutura completa, bem como as línguas orais. Elas também possibilitam que seus enunciados sejam produzidos por diferentes articuladores ativos, como: duas mãos, rosto, corpo, já as línguas orais não. Esse foi o primeiro recorte da nossa análise – o de que nem toda teoria acerca das línguas orais consegue explicar de maneira satisfatória os fenômenos das línguas de sinais.

“A língua de sinais é estruturada por parâmetros visuais, divergindo, em algumas funções, das línguas de modalidade oral. As línguas orais são fonoarticulatórias, em nível fonêmico possuem uma articulação para a pronúncia de cada som. Essa articulação equivale às formas como a mão se articula para a produção de cada sinal.” (MACHADO, 2018, p. 108)

Nesse sentido, vê-se que as línguas de sinais possuem um sistema próprio, complexo e o seu espaço nos estudos linguísticos sem a necessidade de se valer de conceitos propostos para análises das línguas orais. Dessa maneira, para entendermos melhor a enunciação nos estudos linguísticos das línguas de sinais, é fundamental saber acerca de Querologia. A Querologia está para as línguas de sinais, assim como a fonologia está para as línguas orais, pois representa “a ciência que estuda as mãos, expressões faciais e corporais, utilizadas com a função de promover a comunicação no sistema linguístico das línguas de sinais, permitindo a transmissão da mensagem”. (MACHADO, 2018, p. 108)

A Querologia e a Fonologia são representantes da articulação dos signos visuais e auditivos, respectivamente. A fonologia representa a articulação dos sons pela fala e a fonética é responsável por descrever a pronúncia e a articulação dos sons da língua entre os diferentes falantes das línguas orais. Os termos fonética e fonologia ainda permanecem sendo utilizados nos estudos das línguas de sinais. Para Stokoe (2005), por ser uma forma de evidenciar os estudos das línguas de sinais, é válido as ‘equivalências’ criadas com as pesquisas de línguas orais. Contudo, vale ressaltar, o autor criou o termo “querema”, no qual representa “o segmento mínimo sinalizado para as unidades formadoras dos sinais. Esses segmentos são a configuração de mãos, a locação e o movimento; e aos estudos de suas combinações propôs o termo Querologia” (MACHADO, 2018, p. 109)

De acordo com QUADROS & KARNOPP (2004), Willian Stokoe pesquisou os sinais das línguas de sinais, como símbolos abstratos complexos e desses estudos, percebeu que cada sinal representa pelo menos três partes autônomas: a localização, a configuração de mãos e o movimento. Essa referência foi uma comparação com os fonemas da fala e também foi o início para o desenvolvimento dos estudos das possibilidades de formação de sinais por meio desses três elementos já mencionados aqui. Logo, esses elementos correspondem às unidades mínimas (fonemas) que formam os morfemas nas línguas de sinais. Forma esta semelhante à constituição dos morfemas nas línguas orais.

Nas pesquisas atuais já se sabe que somados a esses três elementos, tem-se a adição de elementos, como: orientação de mão e aspectos não-manuais dos sinais, que correspondem às expressões faciais e corporais. A diferença desse tipo de articulação das línguas de sinais para a língua oral, é que as formas fonéticas são visual-manuais, o que as torna completamente distintas das formas acústicas presentes nas línguas orais. 

Se todo humano possui linguagem como afirma Benveniste, por que as línguas de sinais seriam língua com ausência de linguagem? O fato é que nos seus estudos, o autor não se refere a outras línguas que não sejam da modalidade oral. No entanto, nos deixa caminhos que são perfeitamente compreensíveis para analisarmos a existência dessa linguagem nas línguas manuais. 

Voltando a abordagem para a questão da enunciação em língua de sinais a partir do conceito de enunciação em Benveniste, a enunciação nas línguas de sinais parte das unidades mínimas de significados construídas por meio de sinais, pois o fato dessas línguas serem na modalidade visual-espacial, a sua estrutura fonética e fonológica é articulada por elementos, como: braços, mãos, dedos, troncos e face. “A enunciação é este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização.” (BENVENISTE, 2006, p.82)

O locutor surdo tem todas as ferramentas para expressar-se por meio da língua de sinais. A produção da palavra por meio dos sinais, a construção dos sentidos via sinalização e expressões faciais e corporais proporcionam a apropriação da língua por um ato individual de dizer para um outro no aqui, agora. De maneira semelhante às línguas orais, as línguas de sinais possibilitam o processo de enunciação. As “formas vazias” também fazem parte das línguas de sinais. Como exemplo na Libras desse ato enunciativo e uso dos pronomes pessoais, como formas linguísticas que indicam a ‘pessoa’, de acordo com Benveniste, temos a sinalização do pronome eu, que se refere ao locutor.

 Figura nº 1. Representação do sinal “eu” em LIBRAS.

Fonte: CAPOVILLA, RAPHAEL E MACEDO, 1998, p. 55

Na imagem, podemos perceber a manifestação da linguagem de maneira organizada, consentido ao locutor apropriar-se da língua por meio dos sinais através da designação dele como o “eu”. Esse mesmo sinal, mudando a orientação de mão, configura-se como o “tu”, como segue na imagem abaixo

Figura nº 2. Representação do sinal “você” ou “tu” em LIBRAS

Fonte: CAPOVILLA, RAPHAEL E MACEDO, 1998, p. 57

Em Benveniste (2006), “todo homem se coloca em sua individualidade enquanto eu por oposição a tu e ele”. (Benveniste, 2006, p. 68) O uso dos dêixis, formando indicadores, posicionam o sujeito em relações espaciais e temporais. Da mesma forma que acontece nas línguas orais, também acontece na língua de sinais. A diferença está apenas na forma de execução da palavra, na língua oral é via fala e na língua de sinais via mão (sinal). Desse modo, aquele que fala enuncia sempre pelo mesmo indicador, no caso o “eu”. Cada vez que o discurso é reproduzido, surge um novo ato. “Assim, em toda língua e a todo momento, aquele que fala se apropria desse eu, este eu que, no inventário das formas da língua, não é senão um dado lexical semelhante a qualquer outro”. (Benveniste, 2006, p. 68)  

Ainda em Benveniste (2005)

“A linguagem se realiza sempre dentro de uma língua, de uma estrutura linguística definida e particular. Língua e sociedade não se concebem uma sem a outra. Uma e outra são dadas. Mas também uma e outra apreendidas pelo ser humano, que não lhes possui o conhecimento inato”. (Benveniste, 2005, p. 31).

Constata-se, portanto, que o simbólico é presente na linguagem e vai ser esse elemento o responsável para que o homem aprenda a cultura e possa observá-la para viver de maneira interativa, pois as experiências culturais formam o homem e fornecem base para a construção do seu discurso. Em qualquer língua o homem vai passar por essas experiências e por meio delas construir o seu discurso.

Essa é a função da linguagem, possibilitar a realização da língua pelo falante, o locutor no exercício do discurso. Dessa forma, temos a possibilidade dessa realização por meio da língua oral, como também por meio das línguas de sinais. As duas modalidades de línguas possuem ferramentas para proporcionar a comunicação do sujeito e a produção da enunciação mediante a interação do eu (locutor) x tu (locutário).  

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dessa maneira e mediante as análises citadas no trabalho sobre pesquisas já realizadas sobre a temática, percebe-se que as línguas de sinais, tanto quanto as línguas orais, fornecem os elementos necessários ao locutor para possibilitar a enunciação do discurso. Este moldado pela cultura e formado a partir da interação do eu com o outro, relação já trabalhada no último tópico deste trabalho.

Diante disso, a subjetividade da linguagem é manifestada por meio da sinalização com as mãos e proporciona igualmente às línguas orais, o sujeito expressar-se na interação da relação eu x tu. Essa é a constituição natural da linguagem, a troca entre aquele que fala e aquele que ouve, formando assim a intersubjetividade. Logo, é por meio da fala que o discurso é realizado e faz nascer novamente o acontecimento enunciativo. Portanto, o ato do discurso é a realidade para o eu locutor; para o ouvinte tu, é a recriação dessa realidade.

O conceito de linguagem trabalhado em Benveniste nos permitiu compreender a diferença entre a comunicação animal e a linguagem humana. Dessa relação, viu-se que um dos elementos que diferenciam a ‘linguagem’ das abelhas da linguagem humana era a possibilidade de vocalização humana. Isso permeou a discussão do nosso trabalho. Como a língua de sinais, que é uma língua natural, não teria linguagem, se de acordo com Benveniste não há linguagem sem voz? 

Para tanto, as análises apontaram para a complexidade e estrutura completa das línguas de sinais. Assim como as línguas orais, as línguas de sinais possuem todos os elementos fundamentais para a manifestação da linguagem. A diferença é que a sua modalidade é visual-espacial, diferentemente das línguas orais. Ao invés da palavra, são os sinais que possibilitam ao homem enunciar-se.

3Figura nº 1. Representação do sinal “eu” em LIBRAS.
4Figura nº 2. Representação do sinal “você” ou “tu” em LIBRAS.

REFERÊNCIAS

Aresi, Fábio A prospecção de “O aparelho formal da enunciação”. Letrônica. Porto Alegre, v. 12, n. 2, abr.-jun. 2019: e32486. 

BENVENISTE, E. Problemas de Linguística Geral I. 5.ed. Campinas: Pontes, 2005.

BENVENISTE, E. Problemas de Linguística Geral II. 2.ed. Campinas: Pontes, 2006.

BRASIL. Lei 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Libras. Disponível em <<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10436.htm>> Acesso em: 01/11/2018. 

BRITO et al. (org). Língua Brasileira de Sinais. In: Brasil, SEESP. Brasília, 1998. v3.

CAPOVILLA, F. C., RAPHAEL, W. D., MACEDO, E. C. Manual Ilustrado de Sinais e Sistema de Comunicação em Rede para Surdos. São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 1998.

FERREIRA, Lucinda. Por uma gramática de língua de sinais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2010.

SAUSSURE, F. de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2006.

SAUSSURE, F. de. Curso de Linguística Geral. Tradução Marcos Bagno. 1. ed. São Paulo: Parábola, 2021.

QUADROS, R.M. e KARNOPP, L.B. Língua de Sinais Brasileira: estudos linguísticos. Porto Alegre: Artmed, 2004. 

QUADROS, Ronice M. LIBRAS. 1. Ed. São Paulo: Parábola, 2019

MACHADO, Vanessa L. V. Variação linguística da língua brasileira de sinais – Libras. In: STUMPF, M.R. E QUADROS, R. M (orgs.). Estudos da língua brasileira de sinais IV. Florianópolis: Editora Insular: Florianópolis: PGL/UFSC, 2018.


1Mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA. E-mail: jaqueline.macedo@discente.ufma.br