REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch10202412190818
Rafaela dos Santos Almeida1;
Amarilson Gordiano de Oliveira2
RESUMO
O presente trabalho apresenta uma análise acerca de como as questões de raça, gênero e sexualidade estão apresentados no material didático de Língua Inglesa, mais especificamente o livro Moderna Plus Inglês. São realizadas discussões teóricas sobre essas questões, alinhadas ao conceito de interculturalidade crítica. Por meio da análise documental, em uma pesquisa qualitativa, é feita uma análise das atividades do livro e das possibilidades de trabalhá-las através de uma abordagem intercultural. Os resultados desse estudos apontam para a necessidade de um olhar mais crítico sobre o material didático e para a importância deste para abordar temáticas que envolvem diferentes relações culturais.
Palavras-chaves: Interculturalidade; Livro didático; Língua Inglesa;
ABSTRACT
This work presents an analysis of how issues of race, gender and sexuality are presented in English teaching material, more specifically the book Moderna Plus English. Theoretical discussions are held on these issues, aligned with the concept of critical interculturality. Through documentary analysis, in qualitative research, an analysis is made of the activities in the book and the possibilities of working on them through an intercultural approach. The results of these studies point to the need for a more critical look at teaching material and its importance in addressing themes that involve different cultural relationships.
Keywords: Interculturality; Textbook; English language;
INTRODUÇÃO
A escola é um espaço social implicado institucionalmente com a educação, um ambiente que, como afirmam Seffner e Picchetti (2016, p. 67), “prepara os indivíduos, em termos de conhecimento e modos de convivência para a vida em sociedade”. Nesse contexto educacional, as relações ocorrem de forma mútua e são atravessadas simultaneamente pelos marcadores sociais como raça, gênero, sexualidade, regionalidade, cultura, classe, religião, entre outros que caracterizam a escola como espaço de diversidade e intercultural.
O desafio maior da escola é promover ações capazes de promover a interação com garantias de respeito à diversidade, com a “capacidade de construir acordos entre indivíduos e grupos cujas opiniões difiram” (Seffner; Picchetti, 2016, p. 66). Sob tal prospectiva, a Língua Inglesa (LI) no currículo escolar possibilita uma interação entre diferentes culturas, modos de viver e de ver o mundo. Assim, tal como posto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), pode possibilitar “a criação de novas formas de engajamento e participação dos alunos em um mundo social cada vez mais globalizado e plural” (Brasil, 2017).
O professor de LI, portanto, deve propor uma abordagem de ensino que seja intercultural, tendo em vista que o ambiente escolar é heterogêneo e para isso é imprescindível a discussão a respeito de comportamentos, costumes e hábitos culturais. Para tal, o material didático torna-se um instrumento elementar para promover processos de ensino-aprendizagem baseados na interculturalidade e para contemplar a diversidade social, cultural, racial, de gênero e sexualidade, dentre outras.
Os alunos apresentam crenças, costumes, valores, etc., e trazem para o espaço escolar as características inerentes à sua cultura, corroborando para a diversidade e as relações interculturais no espaço escolar. As questões étnico-raciais, de gênero e sexualidade estão presentes nas trajetórias e vivências das juventudes nos corredores da instituição e fora dela. Assim, é necessário que haja a capacidade de conhecer o outro, quando na verdade vivemos em uma sociedade na qual enxergamos o outro como apenas como “diferente”. Portanto, o principal intuito é deixar os alunos abertos a diálogos para conhecer a língua/cultura do outro, como também compreender a sua própria cultura. Para construção desse diálogo, é necessário buscar por materias que possibilitem uma abordagem intercultural, para que possa ocorrer, para além de uma compreensão, também uma reflexão acerca das temáticas relacionadas às questões culturais.
Diante desse contexto, há uma necessidade de refletir como o material didático, na qualidade de ferramenta educacional, contempla e discute as questões relacionadas à raça, gênero e sexualidade na perspectiva de valorização da diversidade, visto que “é dever da escola cuidar para que não se reproduzam situações de desigualdade e de restrição de oportunidades de aprendizagem e de convivência por conta dos marcadores socias” (Seffner; Picchetti, 2016).
Sendo assim, o presente artigo tem como objetivo compreender como o livro didático de Língua Inglesa Moderna Plus apresenta questões relacionadas a raça, gênero e sexualidade em seu conteúdo, sob uma perspectiva de interculturalidade. Do mesmo modo, discutimos esses conceitos importantes no contexto de ensino de LI e busca propor reflexões acerca de possibilidades interculturais e críticas de abordar temáticas necessárias, ao mesmo tempo em que consideramos os diferentes conflitos e relações de poder implicados nesse processo.
A INTERCULTURALIDADE COMO PERSPECTIVA METODOLÓGICA NO ENSINO DE LI
A escola sempre foi vista e pensada como um espaço de construção do conhecimento, mas, além disso, é também um espaço onde as identidades e subjetividades são construídas e/ ou acionadas. A Língua Inglesa, enquanto componente curricular inserido no processo educativo, visa, para além do conhecimento linguístico, a ampliação de horizontes culturais por meio do contato/confronto com outros modos de ser, de viver e de pensar.
No entanto, esse olhar voltado para as relações culturais nem sempre estiveram presentes nas aulas da língua estrangeira e nos estudos voltados para o ensino-aprendizagem de línguas. Isso se dá devido a um histórico de predominância de métodos tradicionais de ensino, focados na aprendizagem da gramática, da tradução ou de vocabulários descontextualizados. Mesmo após avanços no sentido de promover um ensino comunicativo, as aulas e materiais didáticos focaram na apresentação de um ideal de vida baseado em padrões específicos advindos, via de regra, dos Estados Unidos, e na inferiorização de outros modos de vida, muitas vezes abordados como modelos exóticos e estereotipados (Mota, 2004).
Os estudos na área da Linguística Aplicada avançaram no sentido de colocar em pautaidentidades culturais dos sujeitos no processo de ensino-aprendizagem. Tal necessidade surgiu ao passo em que, em um contexto pós-moderno, teóricos e estudiosos da área das ciências sociais apontaram para uma fragmentação das paisagens culturais, como as de raça, gênero e sexualidade (Hall, 2006).
A fragmentação dessas paisagens culturais de raça, gênero e sexualidade, as quais, dentre outras, traz para o centro do debate acadêmico, além da questão da identidade, a necessidade de discutir a questão da interculturalidade, de forma mais específica, a interculturalidade como perspectiva metodológica na educação, considerando a escola como instância de construção, acionamento, deslocamento e, ao mesmo tempo, de fragmentação das identidades e subjetividades.
A partir disso, Candau (2020, p. 679) destaca que “a interculturalidade vem adquirindo cada vez maior presençano campo educacional”. Nessa direção, a interculturalidade, numa perspectiva crítica, passa a ser “uma ferramenta, como um processo e projeto que se constrói a partir das gentes – e como demanda da subalternidade -, em contraste à interculturalidade funcional que identifica o problema da diversidade ou diferença em si” (Walsh, 2009, p. 3).
Assim como acontece fora da sala de aula, dentro dela, indivíduos e grupos sociais que se inserem em diferentes paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e regionalidade muitas vezes entram em conflitos e estabelecem relações de poder entre si. Assim, surge a necessidade de gerir as diferenças no processo de ensino-aprendizagem.
Nesse cenário, a interculturalidade surge como uma alternativa coerente para mediar esses conflitos a partir de uma aproximação dialógica. Como nos mostra Candau (2003, p.19),
[…] A interculturalidade orienta processos que têm por base o reconhecimento do direito à diferença e a luta contra todas as formas de discriminação e desigualdade social. Tenta promover relações dialógicas e igualitárias entre pessoas e grupos que pertencem a universos culturais diferentes, trabalhando os conflitos inerentes a esta realidade. Não ignora as relações de poder presentes nas relações sociais e interpessoais. Reconhece e assume os conflitos procurando as estratégias mais adequadas para enfrentá-los.
A necessidade de se considerar uma abordagem intercultural no cenário educacional é preconizada pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), uma vez que se verifica a emergência de currículos interculturais após a implementação dela. São muitas as críticas desde todo o processo em que a Base foi implementada e em relação seu conteúdo. No que se refere à diversidade cultural, Fernandes et al. (2021) aponta que a BNCC aborda essa questão de maneira limitada em suas competências gerais para a educação básica, focandoXprincipalmente na valorização da diversidade e na experiência de várias práticas culturais na escola, sem promover práticas que viabilizem uma análise crítica por parte dos estudantes. Contudo, com relação à parte específica de Língua Inglesa, ela aponta para uma abordagem que compreende as relaçõs culturais e os conflitos inerentes a esse processo, ao considerar que o estudo da língua pode proporcionar “[…] reflexões sobre as relações entre língua, identidade e cultura, e o desenvolvimento da competência intercultural” (Brasil, 2017, p. 245).
A Base apresenta algumas competências a serem alcançadas no ensino da língua inglesa, as quais enfatizam a dimensão intercultural e a valorização das experiências estudante enquanto aprendiz do idioma. Dentre essas competências, destacam-se duas que contribuem para a compreensão do papel da língua inglesa nesse contexto:
“Identificar o lugar de si e o do outro em um mundo plurilíngue e multicultural, refletindo, criticamente, sobre como a aprendizagem da língua inglesa contribui para a inserção dos sujeitos no mundo globalizado, inclusive no que concerne ao mundo do trabalho.
[…]
Identificar similaridades e diferenças entre a língua inglesa e a língua materna/outras línguas, articulando-as a aspectos sociais, culturais e identitários, em uma relação
intrínseca entre língua, cultura e identidade (Brasil, 2017, p. 244).
Isto posto, é por meio da diferença inerente com relação ao outro que o aprendiz consegue identificar semelhanças entre diferentes realidades e relacioná-las ao seu próprio contexto. Isso fortalece o sentimento de pertencimento à sua comunidade, ao reconhecer que seu espaço está interligado com outros por meio da língua estrangeira, promovendo assim uma relação intercultural. No entanto, como aponta Walsh (2005), é preciso desenvolver uma perspectiva de interculturalidade que seja crítica, que não reduza as relações interculturais apenas às relações interpessoais e que reconheça os conflitos e a assimetria de poder entre os diferentes grupos culturais.
À vista disso, Candau (2020, p. 680) chama a atenção para a necessidade de evitar adotar uma educação intercultural fajuta, isto é,
[…] muitas vezes reduzida à mera visibilização de diversos grupos socioculturais, assumindo um enfoque exclusivamente descritivo e turístico, não questionando as relações de poder presentes nas interações entre os diferentes grupos socioculturais, reforçando assim relações assimétricas entre grupos, processos de legitimação da inferiorização e estereótipos estigmatizantes em relação a diversos sujeitos sociais.
A autora sugere que a promoção de uma educação intercultural crítica, a fim de superar essa perspectiva. Para ela, uma interculturalidade crítica vem a ser aquela que está voltada para uma perspectiva decolonial, uma interculturalidade que
questiona as diferenças e desigualdades construídas ao longo da história entre diferentes grupos socioculturais, etnicorraciais, de gênero, orientação sexual, religiosos, entre outros; parte da afirmação de que a Interculturalidade aponta à construção de sociedades que assumam as diferenças como constitutivas da democracia e sejam capazes de construir relações novas, verdadeiramente igualitárias entre os diferentes grupos socioculturais, o que supõe empoderar aqueles que foram historicamente inferiorizados (Candau, 2012 apud Candau, 2020, p. 680).
Essa interculturalidade sugerida por Walsh (2005) e Candau (2020), dentre outros pesquisadores da área, é a que se mostra mais adequada para ser explorada no ensino da língua inglesa, por ser aquela que considera o conceito de “diferença entre”, que em vez de usar as diferenças para promover e justificar as desigualdades (diferença contra) reconhece as diferenças e promove as relações igualitárias e democráticas, sejam elas de raça, gênero, sexualidade etc.
QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS, COLONIALISMO E PRÁTICAS ESCOLARES
A relação entre o contexto escolar e as questões étnico-raciais é historicamente muito conturbada, pois, assim como toda instituição, a escola sustenta um racismo estrutural que fundamenta a sociedade brasileira (Almeida, 2019). Além disso, as estratégias para lidar com o problema do racismo nesse contexto, mesmo com todo êxito em algumas ações, deixam lacunas diante da dimensionalidade da problemática. Isto porque colocar as questões étnico raciais como tema distante da realidade escolar, fundamentada numa episteme branca europeia, significa manter uma estrutura colonialista.
Entende-se por questões étnico-raciais, neste cenário, experiências vividas por corpos negros/afro-diaspóricos em sua relação com um mundo construído a partir de uma concepção eurocêntrica de humanidade, isto é, que considera como humano apenas àqueles que se encaixam no crivo da branquitude. É nesta perspectiva que Fanon (2008) aborda o sofrimento do negro como inevitável, pois, tendo em si a negritude estampada na pele, é sempre deslocado para um “não-ser”.
Este dilema é potencializado nas relações modernas de colonização e escravização, quando o branco-europeu, no período das grandes navegações, classificou os povos não europeus como incivilizados, logo, raça é considerada aqui como uma categoria moderna que sustenta as relações de opressão (Quijano, 2005). Ademais, tendo em vista o mercado escravista e as interações sociais/históricas construídas desde então, pode-se afirmar que os corpos negros carregam em si todas essas marcas da modernidade, numa espécie de looping que desmembra a linearidade progressiva da história (Wilderson III, 2021). Diante disso, fazendo parte de uma sociedade racializada, a Língua Inglesa enquanto componente curricular não pode se distanciar dessas questões. A escola, se basear numa episteme enraizada nos lemas modernos de universalização, humanismo e neutralidade, mantém a branquitude como horizonte de humanidade, tencionando os corpos a vislumbrarem um “modo de ser‟ branco (sinônimo de sucesso). O ensino de LI por muito tempo estampou esse ideal moderno em seus materiais didáticos, considerando como falante ideal do inglês um sujeito de pele branca advindo dos Estados Unidos ou do Reino Unido. Ao tecer um diálogo com Achille Mbembe e Michel Foucault, Fátima Lima (2018) reflete sobre o conceito de necropolítica, ou melhor, uma política de morte que na sociedade brasileira encontra-se movida principalmente pelo racismo. Deste modo, vale destacar a relação naturalizante entre criminalidadee morte, manifestadas por discursos que legitimam o genocídio de jovens negros através da justificativa dos possíveis envolvimentos com a criminalidade.
Em outros termos, nos moldes coloniais, o oposto de uma vida branca de “sucesso”, mediada pela escola, é representado por vidas negras envolvidas na criminalidade – mais suscetíveis a evasão escolar (Palhares, 2020) – e, portanto, passíveis de uma morte precoce em prol da manutenção do Estado e do bem-estar social. Pode-se afirmar, neste caso, que o projeto de embranquecimento da população brasileira denunciado por Abdias Nascimento (1978) ainda está em andamento e uma educação tradicional/moderna corrobora para o triunfo deste projeto.
Por conseguinte, apesar dos resquícios da modernidade no cotidiano escolar e da relação saber-poder produzida desde então, nota-se que é através dos encontros possibilitados pelo contexto escolar, sobretudo grupos de jovens, que propiciam outras realidades possíveis. Isto é, mesmo com um currículo reprodutor de práticas neocoloniais, as experiências negras vivenciadas na escola apontam para outros futuros distintos daqueles vislumbrado pelo colonialismo.
Neste sentido, vale ressaltar que as múltiplas possibilidades de estar-no- mundo, vivenciadas pelas vidas negras dentro e fora da sala de aula, devem ser consideradas como potencialidades em currículos (OLVEIRA, 2021; RANNIERY,2019), desenhando-se como propostas descoloniais no contexto escolar. Por isso,as questões étnico-raciais, assim como com gênero e sexualidade, são inerentes ao ensino da Língua Inglesa, tendo em vista o contato/confronto com relações culturais diferentes e diversas ao redor do mundo, que não é aquele baseado na branquitude que foi desenhado pela Modernidade (o Norte Global), mas o mundo plural, sob o olhar de quem está no Sul.
Destarte, tais questões se intensificam quando percebido a partir do próprio cotidiano escolar, cuja separação entre etnia/raça e outros aspectos, como gênero e sexualidade não se sustenta. Deste modo, revela-se a necessidade de interseccionar a reflexão-prática (práxis) no ensino da Língua Inglesa, tendo em vista que as manifestações de raça, gênero e sexualidade são imanentes às práticas escolares e, consequentemente, existem estratégias sendo realizadas e que despontam para a manutenção ou desconstrução do colonialismo na/da instituição escolar.
GÊNERO, DIVERSIDADE SEXUAL ENSINO DE LÍNGUA INGLESA
A temática de gênero e sexualidade tem sido objeto de discussão na atualidade provocando debates que envolvem grupos organizados, lideranças políticas, lideranças religiosas, Diretrizes das Nações Unidas e políticas públicas, com variados impactos no sistema escolar (Seffner, 2013).
Nos últimos tempos muito se discute sobre gênero e sexualidade em diversos veículos de comunicação, mas, falar sobre a sexualidade humana no contexto familiar e escolar ainda é um assunto que apresenta bloqueios e adversidades. Parte dessa dificuldade de professores e adultos em dialogar sobre gênero e sexualidade decorre da falta de conhecimento e compreensão do assunto (souza, 2017).
Dialogar sobre a temática de identidades de gênero e diversidade sexual na escola, relacionadas à aceitação e respeito à diversidade, ainda são assuntos desafiadores devido à sua complexidade e à discriminação. Isso acontece, principalmente, por conta da manutenção das estruturas hegemônicas e a sua “visão” de gênero e sexualidade focada pelas lentes do binarismo: masculino/feminino, heterossexual/homossexual, cisgênero/transgênero e colaboram para manutenção das identidades hegemônicas (Torres, 2013). Nessa perspectiva, Louro (2014, p. 38) afirma que
Uma das consequências mais significativas da desconstrução dessa oposiçãobinária reside na possibilidade que abre para que se compreendam e incluam as diferentes formas de masculinidade e feminilidade que se constituem socialmente. A concepção dos gêneros como se produzindo dentro de uma lógica dicotômica implica um polo que se contrapõe a outro (portanto uma ideia singular de masculinidade e de feminilidade), e isso supõe ignorar ou negar todos os sujeitos sociais que não se “enquadram” em uma dessas formas.
Mesmo estando presente na sala de aula, a preocupação com a identidade de gênero e sexualidade geralmente não é apresentada de forma aberta ou problematizada, como se não houvesse nenhuma questão relacionada a essa temática a ser discutida, ou, de outromodo, a responsabilidade sobre o assunto é transferida para a família, como “[…] se deixarem de tratar desses “problemas” a sexualidade ficará fora da escola” (Louro, 2014. 84).
Há uma omissão estrutural no sistema educacional e resistência para discutir as problemáticas relacionadas a gênero e sexualidade na escola, e nas aulas de Língua Inglesa não é diferente. Na perspectiva da escola como espaço público, a educação é um bem público e, como tal, deve preparar os indivíduos, em termos de conhecimento de modos de convivência para a vida em sociedade. Do mesmo modo, as aulas e materiais didáticos não podem estampar padrões dominantes e ignorar as relações de gênero e sexualidade, que são atributos importantes nas negociações feitas na sala de aula, em meio ao contato da própria identidade do aprendiz com possibilidades outras por meio da língua. Não será por retirar esses termos dos planos de educação que essas questões vão desaparecer de salas de aula (Seffner; Picchetti, 2016).
Portanto, existe a necessidade de uma abordagem curricular no ensino de LI voltada para as relações socias no âmbito da aprendizagem da língua estrangeira, de modo que as aulas e materiais didáticos contemplem as problemáticas relacionadas a gênero e diversidade sexual com o intuito de combater as práticas LGBTfóbicas e garantir o direito a expressão da diversidade sexual e identidade de gênero.
METODOLOGIA
Esta pesquisa caracteriza-se como análise documental, tendo como objetivo analisar como o livro didático de Língua Inglesa Moderna Plus aborda questões de raça, gênero e sexualidade. Tal material didático, portanto, caracteriza-se como um documento a ser analisado com base em seu conteúdo, inserido em um contexto socio-histórico, e sua relação com as possibilidades de utilização do mesmo em meio à diversidade cultural da sala de aula de LI.
Nessa perspectiva, utilizamos uma abordagem qualitativa de pesquisa, tendo em vista a necessidade de buscar compreender como as atividades propostas dialogam com a subjetividade presente nas relações entre língua e cultura no processo ensino-aprendizagem. A pesquisa qualitativa emergiu como uma reação ao modelo positivista de pesquisa, quando os cientistas sociais começaram a questionar a adequação da abordagem quantitativa de dados, comumente usada nas ciências exatas, para os estudos sociais (ANDRÉ, 2005). Este modelo visa tornar o objeto de estudo independente da subjetividade do pesquisador, o que não acontece neste trabalho, visto que a análise do livro didático se dá com base no olhar dos pesquisadores sobre o documento. Desse modo, a análise do material seria inadequada se baseada apenas em dados numéricos e resultados objetivos.
De acordo com Richardson (1999, p. 79):
A abordagem qualitativa de um problema, além de ser uma opção do investigador, justifica-se, sobretudo, por ser uma forma adequada para entender a natureza de um fenômeno social. Tanto assim é que existemproblemas que podem ser investigados por meio de metodologia quantitativa, e há outros que exigem diferentes enfoques e, consequentemente, uma metodologia de conotação qualitativa.
Nesse sentido, a pesquisa qualitativa possibilita descrever e analisar um determinado problema, e assim contribuir para a mudança do mesmo. O trabalho, desse modo, se desenvolve a partir de uma análise textual, considerando a linguagem verbal e não-verbal apresentada pelo livro no que se refere às questões de gênero, raça e sexualidade, no intuito de refletir como a interculturalidade, discutida neste artigo, pode estar presente nas atividades na sala de aula de Língua Inglesa.
O livro didático analisado é o Moderna Plus, da editora Moderna, Ricardo Luiz Teixeira de Almeida em 2020 e contemplado no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2021. O material é organizado em um volume único para todo o Ensino Médio, e utliizamos o manual do professor, que contém orientações acerca das atividades propostas. Dentre os objetivos da proposta pedagógica do livro, a editora destaca a valorização da compreensão e a criação de textos orais, escritos e visuais de diversos tipos de discursos, o reconhecimento da participação ativa dos alunos no processo educacional, o estímulo à reflexão sobre o uso da língua inglesa em diferentes contextos, a ampliação das experiências dos alunos por meio do contato com diferentes perspectivas culturais e o desenvolvimento de opiniões críticas sobre os temas abordados.
A motivação pela escolha pelo livro em questão originou-se a partir da observação da utilização deste material em diferentes escolas, que aderiram, em boa parte, à coletânea da editora no PNLD. Do mesmo modo, a proposta pedagógica também atrau o olhar para a busca por uma reflexão sobre como as temáticas em estudo são abordadas. A eleição de um livro dedicado ao Ensino Médio decorre da necessidade de um trabalho mais crítico com os estudantes adolescentes, em processo de contatos sociais e culturais distintos, bem como a possibilidade de promover diálogos acerca de temas tão complexos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO: O LIVRO DIDÁTICO DA MODERNA PLUS INGLÊS
O livro Moderna Plus Inglês, em sua versão para o professor, é dividido entre uma seção chamada “Conversa entre professores” e o conteúdo do livro que está à disposição dos estudantes, com orientações e dicas em cada atividade. Apesar de não ser o foco principal do trabalho, a seção voltada para os docentes traz pontos pertinentes para guiar o trabalho pedagógico. O autor se preocupa em apresentar ao professor os temas que serão abordados em cada unidade, explicitando os objetivos e detalhando o conteúdo a ser compartilhado em sala, além de estabelecer conexões com competências gerais da BNCC e suas habilidades. Em cada parte, o autor sugere leituras complementares para ampliar o debate acerca da temática.
São 18 unidades baseadas em temáticas transversais que visam possibilitar diálogos com outras áreas do conhecimento, promovendo um debate para além das perspectivas linguísticas. Isso permite a possibilidade de haver diferentes diálogos interculturais na sala de aula, por meio dos temas distintos como: interação social no dia-a-dia; o destaque e liderança da juventude negra; o papel da mulher na sociedade; festivais de artes e ativismo cultural; direitos humanos; bullying, empatia e solidariedade; e o trabalho no mundo contemporâneo.
Nas diversas temáticas que abordam questões culturais, o livro busca promover uma interlocução com o contexto cultural dos estudantes. As discussões sobre raça e gênero ganham, cada uma, uma unidade específica na obra, e são propostas por meio de textos, imagens, atividades de interpretação e há uma contextualização acerca das temáticas nas atividades de vocabulário de de gramática, assim como ocorre com as outras unidades do livro.
No entanto, a sexualidade não é debatida de forma específica na obra, apenas aparecendo na unidade voltada para os direitos humanos. O autor do livro menciona um trecho do Artigo 2 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que afirma que todos os seres humanos detêm os mesmos direitos “[…] sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”. Podemos perceber também, que mesmo ao fazer poucas referências a relações familiares, quando essa questão é apresentada, mesmo que de forma indireta, como na Figura 1, representa um casal cisgênero e heterossexual.
Figura 1: Atividade que representa um casal cisgênero e heterosexual com um bebê.
Fonte: Livro Moderna Plus Inglês. Editora Moderna (2020)
Desse modo, compreendemos que, diante das temáticas exploradas durante o livro e da necessidade de abordar a sexualidade na sala de aula, o material poderia trabalhar essa questão de forma mais crítica, de modo a proporcionar um debate voltado para o combate ao preconceito, a homofobia e a marginalização da população LGBTQIAP+. Abordar a sexualidade numa perspectiva intercultural seria, então, compreender as assimetrias nas relações entre pessoas de diferentes orientações sexuais, no sentido de reconhecê-las, questioná-las, combatê-las e buscar alternativas para buscar relações equitativas, tomando como base o conceito de interculturalidade de Walsh (2005). Apesar disso, compreendemos o professor pode, a partir do que está proposto no livro, buscar ampliar a discussão acerca da sexualidade e promover um debate mais amplo.
Com relação às discussões sobre raça, a unidade 4 traz como temática “o destaque e liderança da juventude negra”. Nesta unidade foi possível observar a preocupação do autor em discutir o tema que tem como objetivo familiarizar-se com a cena do diálogo do gênero discursivo entre colegas de classe por meio de atividades que levem os alunos a refletirem sobre as questões raciais. Além disso, o autor traz representatividade negra através do cinema, obras de artes e filmes estrelados por autores negros, dentre outras pessoas que têm ocupado espaços em diferentes contextos sociais. Na abertura da unidade já é possível perceber a chamada para o engajamento na discussão racial, como podemos ver na Figura 2:
Figura 2: Unidade temática sobre juventudes negras
Fonte: Livro Moderna Plus Inglês. Editora Moderna (2020)
Por meio de uma atividade inicial, é proposta uma reflexão acerca da diversidade étnico-racial no Brasil, focando em personalidades negras conhecidas em filmes e séries ou que ocupam lugares importantes na sociedade. Porém, tanto nessa, quando nas outras atividades que a sucedem na unidade, a questão racial é discutida apenas na perspectiva da diversidade. Assim, o livro apresenta um conteúdo que pode possibilitar a ausência de uma interculturalidade crítica no processo de ensino-aprendizagem, visto que, como aponta Walsh (2005), não é somente reconhecer e tolerar à diferença, mas compreender que as relações são atravessadas pela diversidade e pelo conflito, tendo em vista as relações de poder envolvidas no processo.
Questões importantes voltadas para essa temática também poderiam ter sido exploradas pelo livro, como o encarceramento e o extermínio da juventude negra, o racismo estrutural, o sofrimento negro (Fanon, 2008), bem como questões históricas que levam a práticas racistas em diferentes âmbitos sociais, inclusive na escola. Assim, poderíamos viabilizar um debate mais intercultural e crítico, reconhecendo as diferenças e refletindo sobre formas de combater qualquer tipo de racismo e discriminação.
Ao abordar as relações de gênero, a unidade 6 foi possível perceber o foco na importância da igualdade em diversos contextos de trabalho, principalmente naqueles que são considerados “inapropriados” para mulheres, devido a discursos que ainda estão presentes no âmbito social, advindos de um longo histórico de uma sociedade patriarcal. Nessa unidade, o livro aborda a reflexão da mulher em diferentes contextos, bem como traz atividades que fazem o aluno refletir através de imagens e aúdios.
Figura 3: Unidade temática sobre igualdade de gênero
Fonte: Livro Moderna Plus Inglês. Editora Moderna (2020)
Na Figura 3, podemos perceber a apresentação de imagens em uma atividade de pré leitura que apresenta a unidade. Elas apresentam mulheres ocupando diversos espaços, inclusive alguns historicamente dominados pelos homens, e propõe, por meio de algumas questões, refletir sobre o papel da mulher na sociedade. Da mesma forma, busca fazer um paralelo com mulheres da família, no sentido de comparar as relações de gênero em diferentes épocas. É fato que, ao passar do tempo, por conta de muitas lutas do movimento feminista, as mulheres conseguiram alcanças espaços e direitos os quais antes eram negados. Contudo, o debate continua sendo atual, tendo em vistas que ainda há no meio social relações desiguais, além da violência de gênero, e o livro busca proporcionar essa reflexão, o que possibilita, por meio dessa atividade, uma abordagem intercultural crítica, por questionar as desigualdades entre homens e mulheres e reconhecer a necessidade de uma luta contínua por espaços e direitos.
Figura 4: Atividade sobre tarefas domésticas diárias.
Fonte: Livro Moderna Plus Inglês. Editora Moderna (2020)
Em outras partes do livro, também podemos encontrar referências às relações de gênero, como podemos observar na Figura 4. Em uma atividade referente aos assuntos trabalhados nas duas primeiras unidades, podemos observar a cena de um homem adulto com uma criança lavando pratos. Por mais simples que seja, uma imagem como essa pode viabilizar um amplo debate na sala de aula acerca dos papéis domésticos (e também sociais) de homens e mulheres, ao passo em que podem buscar compreender o motivo de algumas atividades terem sido historicamente demarcadas como obrigação de determinado gênero. Desse modo, a interculturalidade crítica se faz presente na sala de aula, e a língua estrangeira pode ser trabalhada a partir de discussões pertinentes no âmbito social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final desse trabalho, foi possível refletir a importância de trabalhar temas transversais na aula de Língua Inglesa, e como o material didático é importante nesse processo. Por meio da análise do livro didático Moderna Plus Inglês, percebemos que é possível desenvolver as atividades nele contidas para trabalhar questões de raça, gênero e sexualidade. Buscamos dialogar as três temáticas com o conceito de interculturalidade crítica, que concebemos como fundamental para promover relações igualitárias e romper com assimetrias sociais, que também estão presentes na sala de aula, e na própria relação do aprendiz com a língua estrangeira. Esperamos que essa análise possa contribuir para um trabalho mais reflexivo, crítico e intercultural do livro Moderna Plus, e que o debate em questão possa se expandir para outros livros didáticos.
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1Professora da Educação Básica. Mestre em Educação e Diversidade (PPGED/UNEB). Endereço eletrônico:
rafaela_almeida_01@hotmail.com;
2Professor da Educação Básica. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura
(PPGLinc/UFBA). Mestre em Crítica Cultural (Pós-Crítica/UNEB). Licenciado Endereço eletrônico:
amarilson@outlook.com