REABILITAÇÃO OROFACIAL EM PACIENTES COM FISSURAS LABIOPALATINAS: RELATO DE EXPERIÊNCIA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202411271446


Letícia Barbo Hamaoui
Mariana Manggini Saldanha


RESUMO

As fissuras labiopalatinas são classificadas como as mais comuns entre as malformações que afetam o lábio, resultantes de falhas anatômicas nos processos faciais. Quando não tratadas, provocam comprometimentos estéticos, funcionais e psicossociais, afetando as interações sociais. O presente estudo visa descrever a vivência da rotina clínica em um centro de referência, tendo sido selecionada a Fundação para Reabilitação das Deformidades Crânio-Faciais e Reabilitação Auditiva (FUNDEF), no que se refere à reabilitação de pacientes com fissuras labiopalatinas, buscando aprimorar os conhecimentos sobre o atendimento multiprofissional. Serão abordados aspectos como a primeira cirurgia realizada, o pós-operatório, dificuldades na alimentação e na fala, interação social e tratamentos realizados tanto durante a infância quanto na fase adulta. O centro de referência oferece tratamento multiprofissional, envolvendo dentistas, fonoaudiólogos, psicólogos, nutricionistas, entre outros. Por fim, o objetivo deste trabalho é discutir os tratamentos multiprofissionais realizados em pacientes com fissuras labiopalatinas.

Palavras-chave: Fenda labial, fissura palatina, ortodontia corretiva.

ABSTRACT

Cleft lip and palate are classified as the most common malformations affecting the lip, resulting from anatomical flaws in facial processes. When left untreated, they cause aesthetic, functional and psychosocial complications, affecting collective interactions. This study aims to describe the experience of the clinical routine in a reference center, in which FUNDEF – Foundation for Rehabilitation of Craniofacial Deformities and Auditory Rehabilitation was selected, regarding the rehabilitation of patients with cleft lip and palate, improving knowledge regarding multidisciplinary care. We will address the first surgery performed, postoperative period, difficulties in feeding and speaking, social interaction, treatments performed during childhood, as well as treatments performed in adulthood. The reference center in question offers multidisciplinary treatment, such as dentists, speech therapists, psychologists, nutritionists, and others. Finally, the aim of this work is to address the multidisciplinary treatments performed on patients with cleft lip and palate.

Keywords: Cleft lip, cleft palate, corrective orthodontics.

INTRODUÇÃO

As fissuras labiopalatinas são classificadas como a mais comum entre as malformações que afetam o lábio, resultantes de falhas anatômicas nos processos faciais. Quando não tratadas, causam comprometimentos estéticos, funcionais e psicossociais, afetando as interações sociais. Essas fissuras se formam entre a 4ª e a 12ª semana de gestação e estão associadas a fatores sociais e ambientais. No Brasil, a prevalência é de 1 a cada 650 nascimentos (BELUCI et al., 2016).

O diagnóstico é realizado no período gestacional ou no momento do parto, com base na classificação de Spina (1972), que se orienta pela localização anatômica: fissuras transforame (bilateral ou unilateral), fissuras pós-forame (completa ou incompleta), fissuras pré-forame (bilateral incompleta, unilateral incompleta ou completa) e fissura submucosa, que afeta a úvula (RODRIGUES et al., 2018). Os fatores etiológicos são genéticos, relacionados a mutações e polimorfismos que interagem com fatores ambientais, como carência nutricional, etilismo e tabagismo (SOUZA-FREITAS et al., 2004).

Pacientes com fissuras labiopalatinas podem apresentar alterações bucais, conhecidas como anomalias congênitas, que incluem dentes supranumerários, dentes invaginados, dilaceração radicular, erupção ectópica, giroversão, alterações no formato da coroa, microdontia, retenção de dentes decíduos e taurodontia (CORRÊA et al., 2015). As anomalias mais comuns são os dentes supranumerários e a microdontia (MARQUES et al., 2022).

O tratamento inicial é sempre cirúrgico, com procedimentos como a queiloplastia (reconstrução do lábio), realizada aos 3 meses, a palatoplastia (reconstrução do palato) entre 6 e 9 meses, além de cirurgias plásticas, enxertos ósseos, cirurgias ortognáticas e rinoplastia ao longo do tratamento para restaurar a estética do paciente. O tratamento ortodôntico também é de grande importância nesse período de reabilitação, visando o reposicionamento dentário e a obtenção de uma oclusão ideal (BATISTA, J. F. et al., 2019).

Como toda deformidade facial, a fissura labiopalatina também afeta a qualidade de vida. Entende-se que a cirurgia ortognática é a mais aguardada pelos pacientes devido à estética e aos benefícios funcionais. Constatou-se que a qualidade de vida é comprometida pela deformidade dento facial. Pacientes com má oclusão apresentaram dor física, incapacidade psicológica e deficiência (RUSANEM et al., 2010). No entanto, a correção proporciona melhora na condição emocional, como aumento da autoestima e da confiança, entre outros (CARVALHO et al., 2012).

Consequentemente, quando a correção cirúrgica é realizada, ela beneficia tanto a oclusão dentária quanto a estética, favorecendo, assim, a qualidade de vida (FREITAS et al., 2013).

A reabilitação de pacientes com fissuras labiopalatinas deve ser abordada por uma equipe multiprofissional. Ao longo do tratamento, o paciente passa por vários acompanhamentos profissionais, como cirurgião bucomaxilofacial, cirurgião plástico, fonoaudiólogo, psicólogo, nutricionista, ortodontista, pediatra, dentistas e assistentes sociais. É fundamental haver uma boa comunicação entre os profissionais para uma abordagem de tratamento eficaz para cada paciente (BATISTA et al., 2019).

OBJETIVO GERAL

Tendo em vista a importância do tratamento preventivo na reabilitação de pacientes fissurados, nosso objetivo é vivenciar a rotina multiprofissional e as abordagens realizadas em um centro de referência, aprimorando o conhecimento sobre os tratamentos odontológicos em crianças que apresentam fissuras labiopalatinas.

METODOLOGIA

O início deste presente trabalho foi realizado a partir de um estudo teórico sobre o tema abordado, através de pesquisa bibliográfica nas plataformas como Pubmed, e Scielo, assuntos relacionados ao tema como, anatomia da cavidade oral, etiologia, diagnóstico, classificação de Spina, tratamentos, e sistema único de saúde para pacientes fissurados.

A partir dessa pesquisa realizamos um estágio observacional, visando complementar o nosso estudo nesta área, o relato de experiência foi realizado de forma narrativa, trazendo a experiência vivida a partir do estágio observacional no centro de referência FUNDEF – Fundação para Reabilitação das Deformidades Crânio- Faciais e Reabilitação Auditiva, no período de 22 de julho de 2024 á 24 de julho de 2024.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1. ANATOMIA DA CAVIDADE ORAL

A cavidade oral é a primeira parte do sistema digestivo e é fundamental para várias funções, incluindo alimentação, fala e respiração. Ela é composta por estruturas como os lábios, dentes, gengivas, palato duro e mole, língua, assoalho da boca e glândulas salivares (TORTORA, G. J., 2013). Os lábios formam a abertura anterior da cavidade oral, sendo revestidos por pele na parte externa e mucosa na parte interna (TORTORA, G. J., 2013). Os dentes estão localizados nas arcadas alveolares dos maxilares e são essenciais para a mastigação. Cada dente possui uma coroa, raiz e polpa dentária (TORTORA, G. J., 2013). A gengiva é o tecido conjuntivo denso que cobre os processos alveolares e circunda os dentes (TORTORA, G. J., 2013).

O palato duro forma a parte anterior do teto da boca e é composto por osso e mucosa. O palato mole, mais posterior, é muscular e termina na úvula (TORTORA, G. J., 2013). A língua é o órgão muscular altamente móvel, responsável pela manipulação do alimento e pela articulação dos sons da fala (TORTORA, G. J., 2013). O assoalho da boca é formado principalmente pelo músculo milo-hioideo e é recoberto por mucosa (TORTORA, G. J., 2013). Por fim, as glândulas salivares incluem as glândulas parótidas, submandibulares e sublinguais, que secretam saliva para iniciar a digestão dos carboidratos e facilitar a deglutição (TORTORA, G. J., 2013).

2. ANATOMIA DA CAVIDADE ORAL EM PACIENTES FISSURADOS

Pacientes com fissura labiopalatina apresentam uma anomalia congênita que pode afetar a formação dos lábios, do palato e das estruturas associadas. Essas fissuras podem ser unilaterais ou bilaterais e variar em gravidade, desde uma pequena abertura no lábio até uma fissura completa que se estende ao palato duro e mole (MOORE et al., 2014). A fissura labiopalatina consiste em uma abertura no lábio superior que pode se estender até a base do nariz e na maxila, alcançando o palato duro e mole. Ela pode causar dificuldades significativas na alimentação, fala e dentição (MOORE et al., 2014).

O paciente fissurado pode apresentar descontinuidade no arco alveolar, dificuldade no fechamento dos lábios e um palato dividido, o que compromete a função da cavidade oral. A fissura também pode afetar o desenvolvimento dos dentes, resultando em anomalias dentárias, como a ausência ou duplicação de dentes (MOORE et al., 2014). Além disso, a fissura pode interferir na capacidade de sucção e na fala, exigindo intervenções cirúrgicas e terapias adicionais para reabilitação (MOORE et al., 2014).

Figura 1. Diferenças na anatomia. (RIBEIRO SANI et al., 2021)

Essas diferenças anatômicas entre a cavidade oral normal e a de pacientes fissurados destacam a importância de um diagnóstico precoce e de um tratamento interdisciplinar para melhorar a qualidade de vida dos pacientes afetados (MOORE, et al. 2014).

3. ETIOLOGIA

A fissura labiopalatina é uma malformação congênita que ocorre durante o desenvolvimento embrionário, quando as estruturas que formam o lábio e o palato não se fundem corretamente. Essa condição pode se manifestar de diversas formas, como fissura de lábio, palato ou ambos, variando em gravidade e extensão (ALONSO N. et al., 2009). A etiologia da fissura labiopalatina é multifatorial, envolvendo uma combinação de fatores genéticos e ambientais.

Entre os fatores genéticos, destaca-se a herança poligênica, sendo que se acredita que múltiplos genes estejam envolvidos na predisposição para a fissura labiopalatina. Se há histórico familiar da condição, o risco de ocorrência em futuros descendentes aumenta (ALONSO N. et al., 2009). Também foram identificadas mutações em genes específicos, como MSX1, IRF6 e FGFR1, que estão associados a síndromes que incluem a fissura labiopalatina como uma de suas características (ALONSO N. et al., 2009).

Os fatores ambientais abrangem deficiências nutricionais, sendo a deficiência de ácido fólico durante a gestação um dos fatores de risco mais conhecidos para defeitos do tubo neural, incluindo a fissura labiopalatina. Além disso, a exposição a teratógenos, como o uso de certos medicamentos (anticonvulsivantes, por exemplo), consumo de álcool, tabagismo e exposição a toxinas ambientais durante a gestação, pode aumentar o risco de desenvolvimento de fissuras labiopalatinas (ALONSO N. et al., 2009). Condições como diabetes gestacional e obesidade materna também têm sido associadas a um maior risco de fissura labiopalatina (ALONSO N. et al., 2009).

4. DIAGNÓSTICO

O diagnóstico de fissura labiopalatina pode ser realizado ainda durante a gestação por meio de ultrassonografia, geralmente a partir da 18ª à 20ª semana de gravidez. A ultrassonografia morfológica é o exame mais comum, permitindo a visualização da face fetal em cortes axiais e coronais, onde as fissuras podem ser identificadas (ALMEIDA et al., 2019). A fissura labiopalatina ocorre devido à falha na fusão das estruturas faciais durante o desenvolvimento embrionário. Entre a 4ª e a 10ª semanas de gestação, o lábio superior e o palato se formam a partir de processos maxilares que devem se fundir no centro do rosto. Quando essa fusão não ocorre corretamente, resulta em uma fissura, que pode ser isolada no lábio (fissura labial), no palato (fissura palatina) ou em ambos. Essa condição pode ser identificada na gestação ou no nascimento do bebê, sendo diagnosticada através da classificação de Spina (DI NINNO et al., 2004).

5. CLASSIFICAÇÃO DE SPINA

A Classificação de Spina é uma das mais utilizadas para categorizar as fissuras labiopalatinas. Criada por Spina em 1972, esta classificação organiza as fissuras em quatro grupos principais, com base na localização e extensão da fissura no lábio e no palato (SPINA, V. 1972).

Figura 2. Classificação de Spina. (RÔMULO MACEDO, 2018)

Grupos da classificação de Spina:

Grupo I – Fissuras Pré-Forame: fissuras que envolvem o lábio superior, indo até o forame incisivo, mas sem afetar o palato primário (Spina, V., 1972). Grupo II – Fissuras Transforame: fissuras que atravessam o forame incisivo, envolvendo tanto o lábio quanto o palato primário e secundário (Spina, V., 1972). Grupo III – Fissuras Pós- Forame: fissuras que envolvem apenas o palato secundário, estendendo-se do forame incisivo para trás, até a úvula (Spina, V., 1972). Grupo IV – Fissuras Raras: incluem fissuras faciais raras e atípicas, não se enquadrando nos grupos anteriores (Spina, V., 1972).

6. TRATAMENTO

O tratamento da fissura labiopalatina é complexo e envolve várias etapas ao longo da vida do paciente, desde a infância até a idade adulta. Esse tratamento inclui intervenções cirúrgicas, ortodônticas, fonoaudiológicas e psicológicas, com o objetivo de restaurar a função e a estética do lábio e do palato, além de garantir uma boa qualidade de vida ao paciente (RAPOSO-DO-AMARAL et al., 2011).

QUEILOPLASTIA

A queiloplastia é a cirurgia realizada para reparar o lábio fissurado. O objetivo é unir os tecidos do lábio para restaurar a aparência estética e funcional, melhorando também a alimentação e a fala (SANZ, MARTINEZ et al.,2015). Geralmente, é realizada entre 3 e 6 meses. (SANZ, MARTINEZ et al.,2015). Inclui técnicas como Millard e Tennison-Randall, que variam na forma de reposicionar os tecidos. (SANZ, MARTINEZ et al.,2015).

PALATOPLASTIA

A palatoplastia é a cirurgia destinada a corrigir a fissura do palato (céu da boca), visando melhorar a função da fala e separar a cavidade nasal da cavidade oral (MÉLEGA et al., 1992). Normalmente, é realizada entre 9 e 18 meses, devido ao início das primeiras palavras (MÉLEGA et al., 1992). Inclui técnicas como Furlow e von Langenbeck, que se diferenciam na forma de reposicionar os tecidos do palato (MÉLEGA et al., 1992).

ENXERTO ÓSSEO ALVEOLAR

Este procedimento é realizado para preencher a fenda óssea no arco alveolar, permitindo suporte para a erupção dos dentes permanentes e a estabilização do arco dentário (PURICELLI et al., 1998). Geralmente, é realizado entre 7 e 11 anos, antes da erupção dos dentes permanentes (PURICELLI et al., 1998). O enxerto ósseo pode ser autógeno (usando osso do próprio paciente), sendo o osso da crista ilíaca uma das fontes mais comuns (PURICELLI et al., 1998).

CIRURGIA ORTOGNÁTICA

A cirurgia ortognática é realizada em casos de má oclusão severa ou deformidade facial causada pela fissura, que não pode ser corrigida apenas com ortodontia (ARAÚJO A., 1998). A idade indicada para essa cirurgia é a adulta, quando o crescimento facial está completo (ARAÚJO A., 1998). As técnicas incluem osteotomias maxilares e mandibulares para o reposicionamento dos ossos faciais (ARAÚJO A., 1998).

CIRURGIA PLÁSTICA SECUNDÁRIA

Após a correção primária, cirurgias plásticas secundárias podem ser necessárias para refinar os resultados estéticos e funcionais, corrigindo cicatrizes ou deformidades residuais (ALONSO. et al., 2024). Essa cirurgia pode ser realizada em diferentes idades, dependendo da necessidade do paciente. (ALONSO. et al., 2024).

Pode incluir revisões de cicatrizes, rinoplastia e outras técnicas específicas para melhorar o resultado (ALONSO. et al., 2024).

Sequência de tratamentos para pacientes com fissuras labiopalatinas
3 a 6 mesesCirurgia do fechamento do lábio
9 a 18 mesesCirurgia do fechamento do palato
7 a 12 anosAlinhamento dos incisivos/expansão palatal
7 a 11 anosEnxerto ósseo alveolar
AdolescênciaOrtodontia corretiva
JovemCirurgias estéticas (plásticas)
AdultoCirurgia ortognática

Cada etapa do tratamento é cuidadosamente planejada e coordenada por uma equipe multidisciplinar para garantir o melhor resultado funcional e estético possível. A escolha da técnica cirúrgica e o momento da intervenção dependem de vários fatores, incluindo a gravidade da fissura, o crescimento facial do paciente e os resultados esperados (ALONSO. et al., 2024)

7. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

O Sistema Único de Saúde (SUS) tem desempenhado um papel importante no atendimento a pacientes com fissura labiopalatina no Brasil. O tratamento desses pacientes envolve várias etapas, incluindo diagnóstico, acompanhamento multiprofissional, cirurgias e terapias de reabilitação, realizadas em centros de referência especializados em nosso país. O atendimento a pacientes com fissura labiopalatina no SUS começou a se estruturar nas décadas de 1980 e 1990, com a criação de centros especializados para realizar o tratamento integral dessas condições. A Política Nacional de Atenção à Saúde da Pessoa com Deficiência, instituída pelo Ministério da Saúde, impulsionou a criação de redes de assistência que abrangem desde o diagnóstico precoce até a reabilitação completa (BRASIL, Ministério da Saúde, Departamento de Informática do SUS, CNES – Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, Indicadores Habilitações).

Os pacientes com fissura labiopalatina são geralmente identificados no período neonatal ou durante o pré-natal, no caso de diagnóstico intrauterino. Após o diagnóstico, eles são encaminhados para centros de referência especializados no tratamento de fissuras, onde recebem atendimento de uma equipe multidisciplinar que pode incluir cirurgiões plásticos, fonoaudiólogos, dentistas, psicólogos, entre outros. Em cada estado, existem centros de referência que fazem parte da Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Deficiência. No Rio Grande do Sul, por exemplo, um dos principais centros de referência é a FUNDEF, que oferece atendimento especializado a esses pacientes (BRASIL, Ministério da Saúde, Departamento de Informática do SUS, CNES – Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, Indicadores Habilitações).

PORTARIAS E LEGISLAÇÃO

A Portaria n.º 1.370, de 3 de julho de 2008, do Ministério da Saúde, regulamenta a organização da rede de atenção para pacientes com fissura labiopalatina no SUS. Ela estabelece diretrizes para o atendimento integral e humanizado, garantindo que todos os procedimentos necessários sejam realizados conforme as necessidades do paciente (ALMEIDA et al., 2019).

Há também projetos de lei em discussão para fortalecer ainda mais o atendimento a pessoas com fissura labiopalatina, buscando ampliar o acesso aos serviços e garantir a continuidade do cuidado ao longo de todas as fases da vida.

RELATO DE EXPERIÊNCIA

Para complementar o estudo, realizamos um estágio no período entre 22 e 24 de julho de 2024, no qual observamos a rotina do centro de referência FUNDEF – Fundação para Reabilitação das Deformidades Crânio-Faciais e Reabilitação Auditiva, em Lajeado, RS. Esse centro é um dos principais do estado do Rio Grande do Sul no tratamento das deformidades crânio-faciais.

O atendimento na FUNDEF começou em 1992, no consultório particular do Dr. Wilson Dewes. Observando a demanda crescente, o médico buscou a diretoria do Hospital Bruno Born para a criação de um setor especializado na reabilitação desses pacientes, para realizar procedimentos cirúrgicos e ambulatoriais. Em 1993, foi aprovado o instituto FUNDEF. Inicialmente, o atendimento era feito apenas uma vez por semana, com uma equipe reduzida de profissionais voluntários.

A estrutura física e a contratação da equipe cresceram na mesma proporção que as necessidades dos pacientes. Em 1999, começaram os atendimentos pelo SUS (Sistema Único de Saúde) através do credenciamento do Hospital Bruno Born. Em outubro daquele ano, a FUNDEF inaugurou um espaço de atendimento, mais amplo e confortável para os pacientes.

Atualmente, a FUNDEF conta com parcerias, como a Smile Train, uma organização reconhecida mundialmente como líder no tratamento de fissuras labiopalatinas, onde anualmente, promovem cursos para médicos e dentistas aprimorarem seus conhecimentos nessa área. Em 2023, a FUNDEF realizou mais de 46 mil procedimentos e 347 cirurgias, atendendo mais de 8 mil pacientes (dados fornecidos pela instituição).

A FUNDEF é composta por uma equipe multiprofissional que proporciona um tratamento completo aos seus pacientes. A equipe inclui cirurgiões dentistas, responsáveis por elaborar um plano de tratamento que abrange diversas áreas, como odontologia geral, odontopediatria, reabilitação protética, ortodontia, bucomaxilofacial e laboratório especializado em aparelhos e próteses. Os enfermeiros acompanham o paciente e a família em todas as etapas do processo de reabilitação, além de prestar serviços sociais. Fisioterapeutas auxiliam crianças com atrasos no desenvolvimento neuropsicomotor e na reabilitação pré e pós-operatória. Fonoaudiólogos atendem os pacientes em todas as etapas do tratamento, orientando os pais sobre alimentação, audição, linguagem, voz/articulação e desenvolvimento psicomotor e cognitivo.

Nutricionistas atendem especialmente recém-nascidos, bebês e pacientes que utilizam sonda de alimentação, avaliando o estado nutricional, a amamentação e auxiliando o setor de cirurgia no planejamento de dietas pré e pós-operatórias. Otorrinolaringologistas avaliam a disfunção velofaríngea e ajudam na avaliação e tratamento dos distúrbios da fala. Pedagogos atendem pacientes em idade escolar, promovendo a integração e organizando atividades para melhorar a autoestima e o rendimento escolar. Pediatras realizam atendimento específico no pré-operatório e em pacientes novos, avaliando o estado de saúde geral da criança. Psicólogos oferecem acompanhamento a pacientes e familiares, prestando apoio e orientações. Quando necessário, os pacientes são encaminhados para tratamento psicoterápico em seus municípios. O trabalho psicológico com familiares e pacientes é indispensável para poderem enfrentar as etapas do tratamento com mais tranquilidade. Assistentes sociais avaliam as condições socioeconômicas familiares, viabilizando o acesso ao tratamento e mobilizando recursos e redes de apoio. Por fim, traumatologistas trabalham em conjunto com cirurgiões bucomaxilofaciais na realização de cirurgias de enxerto ósseo e cirurgias ortognáticas.

Diante da importância desse tratamento multiprofissional, nosso objetivo foi aprimorar os conhecimentos sobre o atendimento a pacientes fissurados. Observamos como são feitas as abordagens iniciais, as condutas cirúrgicas, os tratamentos ortodônticos realizados e as dificuldades encontradas nos atendimentos. Esses foram os temas abordados durante o estágio, que serão discutidos neste relato.

Figura 3. Fachada da entrada da Fundef.

DIA 1

No primeiro dia, conhecemos a FUNDEF, onde fomos muito bem recebidas pelas atendentes e pela equipe (Figura 5). O centro é formado por uma equipe multiprofissional, que inclui odontopediatras, ortodontistas, cirurgiões bucomaxilofaciais, dentistas gerais, nutricionistas, psicólogos, fonoaudiólogos, cirurgiões plásticos e demais funcionários que auxiliam no bom funcionamento do centro, conforme já mencionamos anteriormente sobre suas funções.

Tivemos a oportunidade de conhecer a equipe odontológica e aprendemos um pouco com cada um deles sobre suas histórias profissionais e como chegaram à FUNDEF. Na parte da manhã, a equipe era composta por duas odontopediatras e dois ortodontistas, enquanto na parte da tarde havia a presença de dois ortodontistas e um dentista geral. No primeiro dia, havia poucos pacientes, e os atendimentos realizados foram consultas de rotina, que incluíram troca de fio em aparelhos ortodônticos, profilaxias, restaurações e raspagens. Neste dia, também podemos observar a falta de materiais odontológicos para realizar alguns procedimentos.

Figura 4. Sala de atendimento odontológico.

DIA 2

Durante o segundo dia, obtivemos uma experiência mais abrangente ao acompanharmos todos os procedimentos realizados na clínica. Neste dia, a equipe era composta por uma odontopediatra, dois ortodontistas e um dentista geral. A demanda de atendimentos era muito alta, com cada dentista atendendo, em média, 12 pacientes por dia. Os profissionais mal tinham tempo para descansar, almoçar ou usar o banheiro. Uma das ortodontistas, por exemplo, tinha 26 pacientes agendados nesse dia. Relataram que as terças-feiras costumam ser os dias mais agitados do centro, pois muitos pacientes vêm de outras cidades. Devido à localização, muitos deles chegam cansados ao atendimento, e as crianças frequentemente entram na cadeira odontológica irritadas ou até mesmo dormindo devido ao cansaço da viagem. Isso resulta em uma grande dificuldade para mantê-las na cadeira.

Outro ponto observado é a relação com os pais, que muitas vezes dificulta o atendimento. Muitos têm receio de repreender seus filhos, o que faz com que as crianças façam frequentemente o que desejam durante o atendimento. Também foi notada a incidência de dentes cariados em crianças fissuradas, em decorrência da falta de controle por parte dos responsáveis. Os pais agem dessa maneira na tentativa de não dificultar ainda mais a vida dos filhos, que muitas vezes já enfrentam bullying e traumas na escola. Eles também sentem muito medo de qualquer procedimento, o que gera receio e insegurança nas crianças.

Neste dia, foi possível observar a conduta clínica em relação a novos pacientes, bem como em casos mais avançados que já estavam ganhando alta. Foram realizadas três primeiras consultas com bebês de cerca de 15 dias de vida. Analisamos que os pais chegam à sala com muito medo e dúvidas, como “Eu passei isso para o meu filho?” e “E agora, como será a vida dele? Ele vai poder mamar, comer ou brincar?”. Nesse momento, o atendimento é delicado e envolve muitas conversas para tranquilizar os pais. É realizado por uma odontopediatra, que conduz a conversa e orienta os pais sobre higienização, amamentação e uso de fórmulas, pois muitas mães apresentam receio de amamentar. O profissional também orienta sobre os próximos passos do tratamento do paciente, sempre buscando tranquilizar os pais e esclarecer todas as suas dúvidas.

Na ortodontia, a dentista nos relatou que a maior dificuldade é o acompanhamento mensal dos pacientes, que, muitas vezes, precisam se deslocar de longe e não retornam com a frequência necessária para o tratamento. Observamos também que muitos pacientes apresentavam alguma síndrome. Os profissionais relataram que grande parte dos pacientes fissurados tem outras condições que dificultam ainda mais os atendimentos, como autismo, síndrome de Down e síndrome de Treacher Collins. Embora ainda não existam estudos concretos sobre as condições associadas à fissura labiopalatina, já podemos observá-las em grande parte dos pacientes.

Neste dia, também conversamos com a responsável pelo centro, que nos explicou que os pacientes são transferidos das prefeituras para a Fundef, que funciona como o Sistema Único de Saúde, mas destinado apenas a pacientes com deformidades crânio-faciais. Quando uma criança nasce, o médico responsável já identifica a fissura e a encaminha automaticamente para a Fundef. As prefeituras também oferecem todo o auxílio de locomoção para que os pacientes realizem os tratamentos.

Figura 5. Confecção de brinquedos.

Figura 6. Atendimentos.

DIA 3

No terceiro dia, estivemos no Hospital Bruno Born, onde tivemos a oportunidade de conhecer diversos profissionais e um pouco da rotina hospitalar. Acompanhamos uma cirurgia de enxerto ósseo no palato realizada pelo Dr. Henrique Telles, responsável pelo serviço de bucomaxilofacial do hospital. O objetivo dessa cirurgia é fechar o defeito no palato, restaurando a continuidade da estrutura óssea e proporcionando suporte para os dentes, além de garantir estabilidade para o arco dentário. Essa intervenção também visa melhorar a função da fala, a deglutição e a aparência estética do palato.

Figura 7. Momentos antes de entramos na sala de cirurgia.

CONCLUSÃO

Neste trabalho, abordamos o tema da reabilitação orofacial em pacientes fissurados. Tivemos a oportunidade de aprimorar nosso conhecimento ao realizar um estágio observacional na ala de deformidades craniofaciais da Fundef, em Lajeado- RS. Concluímos que o atendimento multiprofissional é de extrema importância para a reabilitação completa desses pacientes, visto que nenhum profissional trabalha sozinho. Cumprimos todos os objetivos propostos, vivenciando a rotina clínica de um centro de referência, o que foi primordial para alcançarmos com sucesso o tema proposto. Este trabalho foi muito importante para nosso aprendizado, permitindo-nos compreender melhor os diversos tratamentos para a reabilitação das fissuras labiopalatinas e proporcionando uma melhor qualidade de vida aos pacientes e a toda a família envolvida.

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