RASTREAMENTO POPULACIONAL DE CÂNCER COLORRETAL NO BRASIL: DESAFIOS DE IMPLEMENTAÇÃO NO SUS E IMPACTO DAS NOVAS DIRETRIZES XXI

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ma10202509301940


Joseli Aparecida Braga Mota
Eduarda Gabrielly Santana Guimarães
Anna Luisa Gonçalves Aguiar
Gabriela Peixoto Carvalho
Thamires Silva Martins
Marcus Eduardo Almeida Ribeiro
Orientadores:
Rodrigo Aparecido Silva
Murilo Marques do Nascimento


Resumo

Introdução: O câncer colorretal (CCR) é a segunda principal causa de morte por câncer no Brasil, constituindo importante desafio para o Sistema Único de Saúde (SUS). Programas organizados de rastreamento demonstram reduzir a mortalidade em até 30% e são custo-efetivos, porém sua implementação em larga escala enfrenta barreiras logísticas, estruturais e socioculturais.

Objetivo: Analisar criticamente os desafios para a implementação do rastreamento populacional de CCR no Brasil e discutir o impacto potencial das novas diretrizes nacionais (2023–2024).

Métodos: Realizou-se revisão narrativa da literatura nas bases PubMed, SciELO e LILACS (2018–2024), além da análise de diretrizes nacionais e internacionais.

Resultados: Identificaram-se como principais barreiras a ausência de programa nacional organizado, a escassez de colonoscopistas em regiões remotas, a baixa adesão populacional (<20%) e a fragilidade dos sistemas de rastreabilidade.

Conclusão: Para que o potencial das novas diretrizes se concretize, é necessária a transição para um programa nacional estruturado, com integração digital, ampliação da capacidade instalada, estratégias de educação em saúde e monitoramento contínuo dos indicadores, visando reduzir desigualdades regionais e mortalidade por CCR.

Palavras-chave: Câncer colorretal (CCR); Rastreamento populacional; Sistema Único de Saúde (SUS); Colonoscopia; Teste imunológico fecal (FIT); Programas organizados de rastreamento; Custo-efetividade em saúde; Diretrizes nacionais 2023–2024; Cobertura de rastreamento; Adesão populacional; Barreiras logísticas e estruturais; Desigualdades regionais em saúde; Prevenção do câncer; Saúde baseada em valor; Equidade no acesso à saúde; Integração digital e e-SUS; Monitoramento de indicadores; Capacidade instalada de colonoscopistas; Educação em saúde; Política pública de rastreamento.

Introdução:

O câncer colorretal (CCR) é uma das principais ameaças à saúde pública mundial, sendo atualmente a terceira neoplasia mais incidente e a segunda principal causa de morte por câncer em ambos os sexos. Em 2023, estimaram-se cerca de 1,9 milhão de novos casos e 935 mil óbitos globalmente, com tendência de aumento nos países de baixa e média renda, onde as estratégias de rastreamento são menos disseminadas.

No Brasil, o cenário é igualmente preocupante: para o triênio 2023–2025, são previstos aproximadamente 45.630 novos casos anuais, com taxas ajustadas de 21,28/100 mil em homens e 20,11/100 mil em mulheres. Apesar de mais frequente nas regiões Sul e Sudeste, observa-se tendência crescente em áreas antes consideradas de menor risco, refletindo mudanças no estilo de vida, envelhecimento populacional e melhor acesso ao diagnóstico.

Além do impacto clínico, o CCR impõe importante carga econômica ao Sistema Único de Saúde (SUS). O tratamento de estágios avançados exige procedimentos cirúrgicos complexos, quimioterapia sistêmica e, em casos selecionados, terapias-alvo de alto custo, onerando significativamente o orçamento público. Em contrapartida, evidências demonstram que a detecção precoce e a ressecção de adenomas avançados não apenas reduzem a mortalidade em até 30%, como também são altamente custo-efetivas, poupando recursos ao evitar tratamentos dispendiosos em estágios tardios.

A sobrevida global em cinco anos para pacientes diagnosticados em estágio I ultrapassa 90%, caindo para cerca de 70% no estágio III e para menos de 15% no estágio IV — um gradiente que evidencia o potencial transformador do rastreamento populacional.

Experiências internacionais são consistentes ao demonstrar o valor dessa intervenção. O National Bowel Cancer Screening Programme do Reino Unido, o programa australiano de rastreamento bienal por FIT e as iniciativas canadenses são exemplos de políticas públicas que aumentaram a detecção precoce, reduziram mortalidade e apresentaram relação custo-efetividade favorável, mesmo em sistemas universais.

Na América Latina, países como Chile e Colômbia já desenvolveram programas-piloto com convites ativos e acompanhamento estruturado, atingindo taxas de adesão acima de 50%. Tais experiências reforçam que, mesmo em cenários de recursos limitados, é possível implementar estratégias organizadas e obter resultados expressivos.

No Brasil, entretanto, o rastreamento ainda ocorre de forma predominantemente oportunística, dependente da procura espontânea do indivíduo e da iniciativa do profissional de saúde. Essa abordagem resulta em cobertura inferior a 20%, perda de oportunidades diagnósticas e elevada proporção de casos detectados em estágios avançados. Entre as barreiras estão a escassez de colonoscopistas, a desigualdade regional de acesso a exames, o estigma social e a baixa literacia em saúde.

A publicação, em 2023, das novas Diretrizes Nacionais para Rastreamento de CCR representa um marco histórico ao alinhar o Brasil às recomendações internacionais, reduzindo a idade de início para 45 anos e priorizando o teste imunológico fecal (FIT) anual como método inicial de triagem. A implementação efetiva dessas diretrizes constitui oportunidade ímpar para reorganizar os fluxos de atenção, integrar os sistemas de informação (e-SUS AB) e reduzir desigualdades, com potencial de salvar milhares de vidas por ano.

Diante desse cenário, este artigo propõe-se a analisar criticamente os desafios estruturais, logísticos e socioculturais para a implementação de um rastreamento populacional organizado no SUS, discutir o impacto potencial das novas diretrizes na prática clínica e apresentar recomendações que possam subsidiar políticas públicas voltadas à equidade e à efetividade em saúde.

Métodos

Foi conduzida uma revisão narrativa, adequada para síntese crítica de evidências e formulação de recomendações para políticas públicas. A busca bibliográfica incluiu as bases PubMed, SciELO e LILACS, utilizando descritores em português e inglês: “câncer colorretal”, “rastreamento populacional”, “FIT”, “colonoscopia”, “custo-efetividade” e “Brasil”.

Foram incluídas publicações entre 2018 e 2024, diretrizes do INCA, Ministério da Saúde, US Multi-Society Task Force, USPSTF, NICE e consensos da Sociedade Brasileira de Coloproctologia e da Sociedade Brasileira de Endoscopia Digestiva. Estudos puramente clínicos sem enfoque populacional foram excluídos. Os achados foram analisados de forma qualitativa e apresentados de maneira narrativa e integrativa.

Desafios no SUS

A implementação de um programa de rastreamento organizado de câncer colorretal no Brasil enfrenta obstáculos estruturais, logísticos, socioculturais e financeiros, que se inter-relacionam e perpetuam um ciclo de diagnóstico tardio e altas taxas de mortalidade.

  • Estruturais: A capacidade instalada é insuficiente e mal distribuída. Há escassez de colonoscopistas e equipamentos em regiões Norte e Nordeste, com grandes desigualdades na oferta per capita de colonoscopias, resultando em filas que podem ultrapassar seis meses. A infraestrutura de laboratórios para processamento do FIT também é concentrada em centros urbanos, dificultando a logística em áreas remotas.

  • Logísticos: O rastreamento no Brasil é majoritariamente oportunístico, dependente da procura espontânea, sem convites ativos nem rastreabilidade nacional. Falta integração dos resultados ao e-SUS AB, o que dificulta monitoramento de indicadores, identificação de perdas de seguimento e avaliação de efetividade. Além disso, a ausência de protocolos padronizados gera heterogeneidade de condutas entre municípios e estados.

  • Socioculturais: Barreiras de adesão são significativas. Pesquisas qualitativas apontam que medo do exame, constrangimento, desconhecimento sobre benefícios e baixa literacia em saúde são fatores decisivos para recusa do rastreamento. Em grupos socialmente vulneráveis, o estigma em relação ao câncer e a falta de tempo para comparecer às consultas reforçam a exclusão.

  • Financeiros: O SUS sofre subfinanciamento crônico, e o rastreamento de CCR compete com outras demandas de alta prevalência, como câncer de colo de útero e mama. A ausência de financiamento específico para programas organizados de rastreamento dificulta planejamento de longo prazo e sustentabilidade das ações.

O impacto combinado desses fatores é dramático: cobertura <20% da população-alvo, diagnóstico tardio em mais da metade dos casos e custos crescentes para o sistema. Sem uma abordagem coordenada que integre expansão de infraestrutura, padronização de fluxos, financiamento dedicado e educação populacional, o potencial das novas diretrizes não será plenamente realizado.

Discussão

Apesar dos avanços recentes, o Brasil permanece distante de um rastreamento verdadeiramente organizado de câncer colorretal. Experiências internacionais oferecem evidências robustas de que programas com convites ativos, rastreabilidade digital e indicadores de desempenho bem monitorados alcançam coberturas ≥60% e reduzem mortalidade em até 30%. O National Bowel Cancer Screening Programme do Reino Unido, por exemplo, reportou queda de 16% na mortalidade por CCR após uma década de implementação.

O FIT anual é a estratégia de maior aceitabilidade e custo-efetividade para sistemas universais de saúde, mas sua adoção em larga escala requer planejamento coordenado, incluindo expansão da capacidade de colonoscopia, protocolos padronizados e treinamento de equipes multiprofissionais. Sem tais medidas, a redução da idade de início para 45 anos poderá resultar em filas prolongadas e perda do benefício populacional esperado.

A adesão populacional é outro pilar crítico. Barreiras culturais e de literacia em saúde precisam ser enfrentadas por meio de campanhas de comunicação claras e sensíveis, combinadas a estratégias inovadoras como envio de kits por correio, lembretes por SMS e participação de agentes comunitários de saúde.

Indicadores de desempenho devem incluir cobertura ≥60%, tempo FIT→colonoscopia ≤60 dias, taxa de detecção de adenomas ≥25% e seguimento ≥90%. Esses KPIs alinham o rastreamento aos princípios de saúde baseada em valor, maximizando QALYs e racionalizando recursos públicos.

Limitações: Por tratar-se de revisão narrativa, não foi aplicado protocolo sistemático de busca nem avaliação formal de risco de viés. Ainda assim, a síntese integra evidências atuais e de alta qualidade, oferecendo suporte técnico e científico para políticas públicas.

Perspectivas Futuras: Ensaios-piloto regionais devem ser priorizados, acompanhados de análises de custo-efetividade e impacto orçamentário, para subsidiar a incorporação definitiva do rastreamento como política de Estado. Tecnologias emergentes — como IA para estratificação de risco, testes de DNA fecal e colonoscopia assistida por IA — devem ser progressivamente avaliadas e incorporadas para aprimorar a acurácia e a eficiência do programa.

Por fim, a implementação de um programa nacional organizado é não apenas um desafio técnico, mas um imperativo ético e de justiça social, capaz de reduzir desigualdades históricas e garantir que todos os brasileiros tenham a mesma oportunidade de prevenção e diagnóstico precoce.

Conclusão

O rastreamento populacional do câncer colorretal é mais do que uma estratégia          de saúde pública — é uma oportunidade de salvar vidas antes que a doença cause sofrimento e perda. As novas diretrizes brasileiras nos oferecem a chance de transformar o cuidado: sair de um modelo oportunístico e fragmentado para construir um programa organizado, acessível e justo, capaz de alcançar quem mais precisa.

Para que  se torne realidade, será necessário:

  • Convidar ativamente cada pessoa para participar, garantindo que ninguém fique de fora.

  • Ampliar o acesso à colonoscopia e formar equipes preparadas, inclusive nas regiões mais distantes.

  • Conectar os resultados ao e-SUS para que cada exame tenha acompanhamento seguro e rápido.

  • Falar com a população de forma clara e acolhedora, quebrando o medo e o estigma que ainda cercam o rastreamento.

  • Avaliar continuamente os resultados para que o programa seja sustentável e melhore a cada ano.

No fim, não falamos apenas de exames, mas de histórias que podem continuar sendo escritas. Garantir o rastreamento do CCR é oferecer mais aniversários, mais abraços e mais tempo com quem amamos  e esse talvez seja o maior compromisso que um sistema de saúde pode assumir.

Referências (Vancouver)

  1. INCA. Estimativa 2023: Incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA; 2023. Disponível em: https://www.inca.gov.br/estimativa
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