QUESTÕES RACIAIS NA OBRA O MULATO, DE ALUÍSIO AZEVEDO:  O USO DO TEXTO LITERÁRIO COMO ESTRATÉGIA PARA DISCUSSÃO RACIAL NA SALA DE AULA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10702979


Andreane Matias da Silva1
Francisco Diego Aguiar Silva2
Karla Cristina Pereira Rodrigues3
Vanessa Brito Barroso4
Maria da Consolação da Silva  Santos5
Ildomar Carvalho da Silva6
Erica Patrícia de Oliveira Santos7


RESUMO

O presente artigo tem o objetivo de analisar as questões raciais na obra “O mulato” de Aluísio Azevedo. O racismo é uma das formas de discriminação mais antiga do homem, no Brasil teve inicio na época do período colonial, devido as dificuldades que os portugueses encontraram em escravizar os indigenas, dessa forma os negros foram usados como mão de obra escrava na lavoura de cana de açúcar. Sendo assim, elencou-se a seguinte problemática: Como o uso da obra “O Mulato” de Aluísio Azevedo pode contribuir como estratégia na formação do pensamento crítico em relação as questões raciais? Diante disso, o texto literário é uma importante ferramenta didática no processo de inclusão de práticas antiracistas em sala de aula, promovendo a criticidade nos alunos. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, bibliográfica, com base na literatura já produzida que discute a problemática em questão. Uma vez que, a partir dos pressupostos teóricos selecionados acerca da literatura e do letramento racial crítico, propõem a promoção de uma educação racial crítica com a igualdade e a prática de liberdade. Dessa forma, questões raciais é um assunto sensível para ser discutido na sala de aula, mas de extrema necessidade. Se começarmos a inserir tais problemáticas desde a Educação Infantil, com cuidado e estratégias, os alunos chegariam ao Ensino Médio com um bom letramento racial.

Palavras chaves: Antiracismo; Ensino; Aluísio Azevedo.

ABSTRACT

This article aims to analyze racial issues in the work “O mulatto” by Aluísio Azevedo. Racism is one of the oldest forms of discrimination of man, in Brazil it began at the time of the colonial period, due to the difficulties that the Portuguese encountered in enslaving the Indians, in this way the blacks were used as slave labor in the sugarcane plantation. of sugar. Therefore, the following problem was raised: How can the use of the work “O Mulato” by Aluísio Azevedo contribute as a strategy in the formation of critical thinking in relation to racial issues? Therefore, the literary text is an important didactic tool in the process of including anti-racist practices in the classroom, promoting criticality in students. This is a qualitative bibliographic research, based on the literature already produced that discusses the problem in question. Since, based on selected theoretical assumptions about literature and critical racial literacy, they propose the promotion of a critical racial education with equality and the practice of freedom. In this way, racial issues are a sensitive subject to be discussed in the classroom, but of extreme necessity. If we start to introduce such problems from early childhood education, with care and strategies, students would reach high school with a good racial literacy. Literature would be essential as a didactic tool in the construction of racial criticality within the school environment.

Keywords: Classic Reading. Anti-racism; Reader training; Teaching; Aluísio Azevedo.

1 INTRODUÇÃO

As transformações politicas, sociais e culturais que  ocorreram no Brasil  no século XIX estimularam os intelectuais da época a explorarem os problemas poucos discutidos na literatura. Eles queriam ver mudanças na sociedade e usaram a produção literária como ponte para propagar ideias abolicionistas, republicanas e liberais. Sabe-se que o Brasil é um país de origem escravocrata, fatos que contribuíram para a discussão acerca da abolição e consequentemente a situação dos negros do Brasil, e a discriminação racial.

O racismo é uma das formas de discriminação mais antiga do homem, no Brasil teve inicio na época do período colonial, devido as dificuldades que os portugueses encontraram em escravizar os indígenas, dessa forma os negros foram usados como mão de obra escrava na lavoura de cana de açúcar. O racismo pode ter origens para os pesquisadores no ambiente no qual o individuo está inserido pode despertar o ato discriminatório.

Diante disso, a literatura permite ao leitor entender e analisar a realidade que o cerca, com ela entende-se o passado e adquire-se conhecimento para o presente, Candido (1995, p.175) afirma, que “Nas nossas sociedades, a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo uma proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo”. Desse modo, Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo[2] (1857-1913) com sua obra naturalista, rica em detalhes, “O Mulato”, estimula os leitores a repensar e problematizar a construção das relações sociais e o debate acerca da questão racial.

Diante do exposto, surgiu a questão problema dessa pesquisa: Como o uso da obra “O Mulato” de Aluísio Azevedo pode contribuir como estratégia na formação do pensamento crítico em relação as questões raciais? A partir disso, foi selecionado o seguinte objetivo geral de estudo: Analisar as questões raciais presente na obra “O Mulato” de Aluísio Azevedo. Para detalhar o objeto de estudo, surgiu a necessidade de estabelecer os objetivos específicos: compreender a importância do uso do texto literário em sala de aula; identificar questões raciais na obra “O Mulato” de Aluísio Azevedo; relatar como a literatura pode contribuir como estratégia acerca da problematização das questões raciais na sala de aula.

Nesse sentido, essa pesquisa foi dividida em seções. A primeira secão intitulada Literatura Afro-brasileira: primeiras aproximações, tem o intuito de evidenciar conceitos e contrapontos em relação a construção da literatura afro-brasileira. A segunda seção trata  das questões raciais na obra “O Mulato” de Aluísio Azevedo, apontando sobre a realidade social. Já a terceira seção aborda aspectos relacionados a  literatura como estratégia para discussão racial na sala de aula. O subtípico desta seção traz uma delimitação acerca da problemática sobre o uso do texto literário na sala de aula: práticas pedagógicas antiracistas. E por fim, as considerações final, trazendo algumas reflexões da pesquisa.

2. LITERATURA AFRO-BRASILEIRA: primeiras aproximações

Para nos aproximarmos do tema da literatura afro-brasileira, primeiro realizamos e nos assentamos na pesquisa bibliográfica, nos situando como pesquisa qualitativa, com base na literatura já produzida que discute a problemática em questão. Uma vez que, a partir dos pressupostos teóricos selecionados acerca da literatura e do letramento racial crítico, propõem a promoção de uma educação racial crítica com a igualdade e a prática de liberdade.

Conforme Gil (2002), a pesquisa bibliográfica, é desenvolvida por meio de  materiais já produzidos, constituindo principalmente de livros, artigos científicos, teses, dissertações e monografias. O ponto principal desse tipo de pesquisa, é permitir ao investigador uma cobertura do problema de pesquisa, já que o materal selecionado dialoga com o problema de pesquisa. Assim são determinados , “a descrição das características de determinada população ou fenômeno ou estabelecimento de relações entre variáveis” (GIL, 2002, p. 28).

Dessa forma, foi elaborado o Quadro-síntese 1, com o intuito de organizar os textos selecionados que embasaram esse estudo. As pesquisas foram realizadas no Google Acadêmico, onde os principais descritores utilizados para escolher os textos que dialogam com a problematica em questão foram: O mulato de Aluísio Azevedo; racismo; questões raciais; texto literário; literatura. As publicações selecionadas foram entre os anos de 2014 – 2021. Localizamos 2 dissertações, 1 monografias, 6 artigos. Realizamos leituras dos resumos e considerações finais, quando se tratava de dissertações e monografias, já os artigos foram lidos na integra. Após a seleção e construção do Quadro-Síntese 1, foi realizado fichamento e resenha para assim, separar as citações e principais ideias que foram utilizados na construção desse artigo.

Quadro-Síntese 1: Publicações acadêmicas relacionadas com o problema dessa pesquisa.

AnoTipo de Trabalho AcadêmicoTítuloObjetivo GeralAutor
2014ArtigoLiteratura, identidade e resistência:literaturas Afro-brasileira e Africana em sala de aula.Discutir  estratégias  de  ensino  das  literaturas  afro-brasileiras  e  africanas  a fim  de,  sem  descuidar do que confere aos textos sua “literariedade”, contribuir para a promoção  de  um  espaço  de  reelaboração  e  ressignificação  de  conhecimentos  sobre  a cultura a história africana e seus descendentes brasileiros a partir do texto literário, além de fomentar areflexão crítica acerca das relações étnico-raciais.PEREIRA,  Kleyton Ricardo Wanderley.
2017        MonografiaA literatura infantil e o tratamento de questoes étnico-raciais nos anos iniciais do ensino fundamentalDiscorrer sobre a importância da utilização de textos literários infantis para o tratamento de questões étnico-raciais nos anos iniciais do ensino fundamental. SILVA, Deizylaila Dalyla
2018              DissertaçãoRessignificando o uso da literatura para educação étnico-racialArticular e compreender os conceitos de formação, função da Literatura e discutir sobre relações étnico-raciais no Brasil, especialmente do negro, assim como fazer uma breve retomada dos rumos da lei 10.639, alterada pelo parecer 11.645, considerando o contexto escolar.SILVA, Rosangela Maria.
2018                    ArtigoLeitura literária e relações étnico-raciais: lendo a obra Bruna e a galinha d’angola nas primeiras séries do ensino fundamentalApresentar a literatura afro-brasileira nos anos iniciais, evidenciando sua importância para a formação de leitores através da obra “Bruna e a galinha d’Angola” (ALMEIDA, 2009).DE SOUSA, Abraão Vitoriano de.   DE SOUSA, Jociélia Francisca de.   OLIVEIRA, Claudivania Ferreira de Queiroz.   SAMPAIO, Dra. Maria Lúcia Pessoa.
2019          DissertaçãoO preconceito racial na obra O Mulato de Aluísio Azevedoanalisa o preconceito racial sofrido pelo personagem principal Dr. Raimundo na obra naturalista O mulato, do abolicionista Aluísio Azevedo, no que tange a natureza do sentimento segregacionista, lançado pela sociedade maranhense sobre o jovem mestiço recém-chegado da Europa.FERREIRA, Gileno Alves.
2019                ArtigoPreconceito étnico-racial, valores sociais e anticlericalismo no romance naturalista “O Mulato”, de Aluísio Azevedo: uma análise literária à luz da narrativa etnográficaanalisar, de forma breve, a obra inaugural do estilo literário naturalista, a saber, o romance “O Mulato”, escrito em 1881 por Aluísio Azevedo.DO ROSARIO Silva, G.,   DO ROSARIO Silva, R.,   BARRETO, C. D. R. S.,    DE SOUZA Amaral, S. C.
2020                ArtigoLeitura Literária, Representação e Identidade: autoria feminina e feminismo negro pelo viés do letramento crítico racial na educação básicaEstabelecer relações entre a literatura de autoria afro-feminina e sua capacidade de dialogar com os princípios políticos do feminismo negro, bem como avaliar sua contribuição no que se refere a promoção de subsídios teórico-metodológicos fortalecedores para o letramento racial crítico em sala de aula.DE BARROS JÚNIOR, José Paulo Alexandre.    
2021                      ArtigoO romance “A escrava Isaura” como estratégia pedagógica para a discussão sobre gênero, raça e classe na educação de jovens e adultos (EJA)O trabalho tem como ponto de partida uma experiência didático-pedagógica realizada em turmas do ensino médio da Educação de Jovens e Adultos (EJA), modalidade da Educação Básica que congrega o maior número de estudantes negros e negras. Assim, partindo dessa perspectiva, foram realizadas, a partir do clássico literário, “A escrava Isaura”, escrita por Bernardo Guimarães, discussões sobre a representação da mulher preta na literatura brasileira, uma vez que as mulheres, especialmente as pretas, sentem em seus corpos e representações, o julgo da sociedade patriarcal e racista.SILVA, Tiago Dionisio da.
2021            ArtigoA literatura Afro-brasileira no contexto da sala de aula: desafios para a prática pedagógicaDesvelar, por meio de uma pesquisa de campo realizada em uma escola pública de Belo Horizonte, as práticas pedagógicas eng endradas nas salas de aula, com o objetivo de analisar os temas presentes nos livros de literatura que abordam as relações étnico-raciais.DO CARMO MEIRELES, Marlene;    DA SILVA, Santuza Amorim;   DE PAULA LIMA, Márcia Emília Guimarães.

O Quadro-Síntese 1, foi elaborado com o intuito de selecionar uma bibliografia relacionada com a problemática desse estudo. Sobre isso, as concepções de Silva (2017), sobre a literatura afro-brasileira no cotidiano escolar como prática pedagógica é uma possibilidade de novas interações com diferentes culturas, etinias e religiões. Pois, “no âmbito da escola é que o trabalho com a temática relacionada com a história da África e da cultura afro-brasileira se enveredou por caminhos que levaram a uma pedagogia de eventos , ou pedagogia do exótico, o que não contribui de forma positiva para a formação da identidade dos alunos” (SILVA, 2017, p. 8).

O autor quer mostrar que através da literatura afro-brasileira a escola trabalará na construção da identidade de jovens negros, e ainda abrirá discussões  a respeito do debate racial na sala de aula. A escola, como instituição de ensino, tem o desafio de criar uma identidade negra por meio da literatura. Ensinando assim, aos seus alunos a valorizar a diversidade cultural. Assim,

A leitura literária, nessa perspectiva, não é apenas uma ação cognitiva, em que o leitor processa informações em função de suas experiências e de seu conhecimento de mundo, nem é apenas uma ação afetiva, em que ele busca somente o prazer da fantasia, em um espaço marcado pela estética e pela ludicidade. Ler deixa de ser uma ação meramente subjetiva para se tornar uma prática social, que possibilita ao leitor a ruptura com seu universo individual e sua inserção em um espaço social de interação com o texto. O ato de ler acontece, então, por meio do comportamento ativo do leitor sobre o texto, e não mais do comportamento passivo diante do discurso literário (BRITO; 2003 apud SILVA, 2017, p.5).

Várias são as discussões acerca da construção da literatura no Brasil, e sobre isso, sabemos que visibilidade de textos literários de autorias negras eram inexistentes. Poderíamos contar a quantidade de autores negros que estão evidenciados no cânone literário. Por conta disso, surgiu a necessidade de nomear uma nova literatura – a afro-brasileira, para representar as questões eticos-raciais brasileiras e dar voz para esses discursos. De Barros Júnior (2020), na sua pesquisa sobre leitura literária, representação e identidade, questiona a importancia do letramento crítico racial por meio da Educação Básica. E ainda compreende que:

O texto literário, sendo uma possibilidade de conhecimento de mundo, entra em cena como um potencial arma em forma de discurso que desnuda as divisões e hierarquizações sociais construídas por esses grupos. Existe na literatura uma zona onde indivíduos marginalizados podem construir e validar imaginários e representações sociais divergentes, pois ela se configura como “um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles […] (CANDIDO, 1989, p. 122 apud DE BARROS JÚNIOR, 2020, p. 4).

A literatura afro-brasileira é a representação e autorrepresentação do sujeito negro na literatura. Ou seja, são escritores negros, escrevendo sobre as questões de pessoas negras de uma forma humanizada, se desprendendo de contruções estereotipadas que são abordadas, a exemplo na obra “O Mulato” de Aluísio Azevedo. A literatura afro-brasileira foi criada para ajudar no proceso de construção identitária do sujeito negro e abordar questões etnicas-raciais nas suas narrativas. Sendo assim,

Para refletir sobre a escrita afro-feminina, torna-se indispensável pensar a questão do cânone literário e seus processos. Sendo definido por meio de uma ótica eurocêntrica, grande parte dos autores que pertencem a esse campo são configurados especificamente: brancos, homens, ocidentais e classe alta. Portanto, autores(as) que não ocupam essas condições não são inseridos em seus compêndios, quando não são totalmente omitidos dele (MAZZONI, 2004). Diante disso, a escola ao longo do tempo reforçou uma visão elitista da literatura, excluindo outras representações sociais (DE BARROS JÚNIOR, 2020, p.5).

Por essa razão, a literatura afro-brasileira se configura como um instrumento impactante e de cunho social representativo de resgate social de identidade negras. Os textos literários da literatura afro, além de propor a criticidade daqueles que dividem a luta contra as discriminações ainda é instrumento de descontrução para  os que se negam a enxergar o assunto. Por isso, a urgência em trabalhar textos que refletem sobre as questões raciais, como também evidenciar escritores negros nesse processo, promovendo a representatividade.

Os textos selecionados que compõem o Quadro-Síntese 1 são de grande relevância para o entendimento da temática dessa pesquisa. A discussão racial através do uso do texto literário proporcionará ao aluno do Ensino Médio a construção de um pensamento crítico e reflexivo em relação aos movimentos raciais. Selecionar a obra “O Mulato” de Aluísio Azevedo, e problematizar dentro da sala de aula, evidenciar a construção da sociedade no período escravocrata, como também, a forma que  o sujeito negro era visto no período oitocentista.

3. Questões racias na obra O mulatode Aluíso Azevedo

O romance “O mulato” de Aluísio de Azevedo foi publicado em 1881, inaugurando o naturalismo no Brasil. A obra foi publicada no período de uma grande campanha para o fim da escravatura em todo o mundo, nessa mesma época em São Luís, capital do Maranhão. Nesse período havia polêmica entre o jornal O pensadorno qual era um dos colaboradores o escritor defendia suas ideias abolicionistas e atacava de forma direta o Clero e Civilização. Motivos suficientes para sua publicação causar um grande escândalo na sociedade maranhense. Devido a tudo isso, a obra não foi bem recebida na terra natal do escritor, o Maranhão, pelo contrário, foi alvo de duras críticas pelos temas abordados, como o preconceito de raça, e o anticlericalismo, assuntos delicados para a época. Esse quadro polêmico pode ser observado na crítica elaborada logo no prefácio da 3ª edição do livro “O Mulato”:

À lavoura, meu estúpido! À lavoura! Precisamos de braços e não de prosas em romances! Isto sim é real. A agricultura felicita os indivíduos enriquece os povos! À foice! E à enxada! […]. Como se vê, não segui o conselho do único jornalista da minha província, que se dignou criticar o meu primeiro livro; não quebrei a pena nem me atirei à lavoura; vim simplesmente para a corte, graças ao produto pecuniário do amaldiçoado O Mulato, e continuei a escrever, a fazer novos volumes, um atrás do outro, sem descansar. E agora, que oito bons anos se escoaram depois que parti de Atenas, durante os quais tenho vivido, pura e exclusivamente, das minhas produções literárias, […]agora O Mulato vem de novo à tona da publicidade e agora que ele já não pertence a província nenhuma, mas sim ao público do Rio de Janeiro, a quem devo tudo […] (AZEVEDO, 2010, p.9).

Segundo Azevedo (2010), essa foi a única nota que saiu nos jornais da província a respeito da sua obra na época da publicação, Euclides Faria usou o jornal Civilização para publicar tal crítica sobre o autor maranhense. A publicação do livro chegou como um escândalo a província maranhense. Contribuindo para refletir sobre padrões de moralidade, mostrando traços naturalistas poucos divulgados na escrita literária até então. Apresentou-se como uma forte crítica sobre o modo de vida da sociedade escravocrata lusitana e ao poder que a igreja tinha sobre aquele povo.

O romance “O Mulato”, narra a história de Raimundo, filho de uma escrava, Emília Amália e de um português José da Silva. Raimundo foi alforriado no batismo, e quando ainda criança foi estudar em Lisboa, tornou-se advogado, mas o seu desejo sempre foi voltar para descobrir suas origens. Anos depois ele retorna ao Maranhão, e instala-se na casa de seu tio paterno, o comerciante português Manuel Pescada e durante a estadia, Raimundo conhece sua prima Ana Rosa e os dois então se apaixonam.

O romance começa fazendo uma descrição minuciosa da cidade de São Luís do Maranhão:

Era um dia abafadiço e aborrecido. A pobre cidade de São Luís do Maranhão parecia entorpecida pelo calor. Quase que se não podia sair à rua: as pedras escaldavam; as vidraças e os lampiões faiscavam ao sol como enormes diamantes; as paredes tinham reverberações de prata polida; as folhas das árvores nem se mexiam; as carroças de água passavam ruidosamente a todo o instante, abalando os prédios; e os aguadeiros, em mangas de camisa e pernas arregaçadas, invadiam sem cerimônia as casas para encher as banheiras e os potes. Em certos pontos não se encontrava viva alma na rua; tudo estava concentrado, adormecido; só os pretos faziam as compras para o jantar ou andavam no ganho AZEVEDO, 2010, p.13).

É dessa forma nada entusiasta que Aluísio de Azevedo apresenta o ambiente, um local melancólico, triste e abafado. O autor oferece ao leitor uma descrição detalhada do ambiente onde acontecerá o desenvolvimento da narrativa, segundo Jean-Yves Mérian (1988), já no século XIX, mesmo antes da invenção do cinema, alguns autores dominavam uma estratégia narrativa que se aproximava do movimento de uma câmera cinematográfica, como é o caso de Aluísio.

Em um segundo momento o autor faz o retrato do protagonista. Raimundo era bem instruído, estudou nas melhores escolas, fez inúmeras viagens, nos países que visitou era tratado com honras e admirados por sua inteligência. Depois de anos na Europa, formado e com o intuito de desvendar o mistério do seu passado ele regressa ao Brasil.

Azevedo (2010) usa o romance também para fazer uma crítica a igreja, com intuito de abrir os olhos daquele povo para os abusos eclesiásticos que se escondia por baixo da batina. Para tal critica usa o personagem do cônego Diogo, já citado, um ser sem escrúpulos, estava sempre manipulando as pessoas, agindo com frieza e calculismo. Ele era totalmente descompromissado com a batina, racista, hipócrita, chegou a praticar crime de adultério e se envolveu em dois assassinatos como descreve o trecho seguinte:

O padre Diogo, pois era dele voz, não tivera tempo de fugir e caíra, trêmulo, aos pés de José da Silva e quando este largou das mãos a traidora, para se apossar de outro, reparou que a tinha estrangulado…

_Matou-a! Você é um criminoso!

_Cachorro! E tu?! Tu serás porventura menos criminoso do que eu?

_Perante as leis de certo! Porque você nunca poderá provar minha suposta culpa…

_Vamos lá!… disse o padre afinal, sorrindo e batendo no ombro do português. Tudo neste mundo se pode arranjar, com a divina ajuda de Deus… Apenas pelo meu silencio sobre o crime, exijo em troca o seu para minha culpa… Aceita?

O cônego cumpriu a promessa, o cadáver enterrou-se e atribuíram a morte de Quitéria ao espírito maligno que havia metido no corpo…O vigário confirmava esses boatos e continuava a pastorar tranquilamente seu rebanho” (AZEVEDO, 2010, p.42).

No trecho transcrito do livro, é possível notar o tipo de homem que era o Conego Diogo, alguém sem caráter capaz de utilizar sua influência pessoal e espiritual para defender seus próprios interesses. O Conego era um verdadeiro ator, ele enganava, mentia, sem culpa e nem mesmo a morte da amante, despertou sentimento de arrependimento, a única preocupação dele, era esconder seus crimes para manter-se “limpo”, e continuar a ser visto como um bom homem.

Dentro do discurso ficcional de o Mulato, encontra-se também o dos escravos, mostrando a permanência da escravidão no Brasil em pleno final do século XIX:

Dá-se-lhe o pé e tomam a mão!… Já não conhecem o seu lugar, tratantes!

Ah, meu tempo! Meu tempo! Que não era preciso estar cá com discussões epolíticas! Fez-se besta? Rua! A porta da rua é a serventia da casa! E é o que você deve fazer, seu Manuel! Não seja pamonha! Despeça-o por uma vez para o Sul, com todos os diabos do inferno! E trate de casar sua filha com um branco com ela (AZEVEDO, 2010, p. 179).

Através da personagem Maria Barbara, o autor mostra como maior parte da cidade tratava os negros, deixando claro como a sociedade era racista. Ela era uma típica senhora da alta sociedade maranhense, dona de fazenda, se dizia devota a Deus, mas não suportava a ideia de negros e mestiços na família. Não só para Maria Barbara, mas para muita gente os negros eram vistos como um mal social, uma raça imoral, inferior.

Outro ponto importante da obra a ser notado é que apesar da obra pertencer ao naturalismo, é possível identificar traços românticos com a história de amor proibida de Raimundo e Ana Rosa:

E, sem poder falar, prendeu-se ao braço de Raimundo. Este vergou-se sobre ela, depois de contemplá-la muito.

— Sabe? segredou-lhe, você hoje está bonita como nunca, minha prima! Suas faces são duas rosas!

— É debique seu… Se me achasse bonita, já me teria pedido a papai…

— Confesso que nunca a vi tão linda…

— São os ventos gerais! Limparam-lhe os olhos!…

— Não diga brincando! Quer que lhe confesse uma coisa?… Não sei que singular efeito me produz esta manhã… É esquisito, mas eu mesmo me desconheço! Sinto-me transformado!

[…] Ana Rosa abaixou o rosto, afogada em pejo e contentamento, sem querer interrompê-lo, para não desperdiçar uma só daquelas palavras, que lhe faziam tanto bem. O que Raimundo lhe dizia dava-lhe vontade de chorar e cair-lhe agradecida nos braços, traduzindo em beijos todas as ternuras, que o pudor vedava aos lábios proferissem (AZEVEDO, 2010, p. 101-102).

Apesar de ser um amor correspondido, o romance não foi aceito pela família da moça e tampouco pela sociedade. Mais na obra fica evidenciado o preconceito racial, uma vez que a sociedade tem verdadeira repulsa ao casamento de Ana Rosa com Raimundo, pelo fato dele ser mulato, embora seja culto, honesto e bonito, ele torna-se vítima de sua cor. Embora agraciado pelo processo de branqueamento da raça, os fortes traços físicos negroides, suplantam os traços morais e intelectuais do jovem mulato, tornando-o excluído do mundo branco.

Gileno Alves Ferreira (2019), na sua pesquisa intitulada: O preconceito racial na obra “O Mulato” de Aluísio Azevedo relata questões sobre o preconceito racial sofrido pelo personargem Raimundo. O autor tece reflexões acerca do preconceito racial expreso pela língua, e já de início problematiza os termos “Mulato” e “Cabra”, termos predominantes dentro da narrativa.Sobre isso, disserta, “a palavra é utilizada pejorativamente, pois derivada de mula, um híbrido do cruzamento de um jumento com uma égua ou de um cavalo com uma jumenta, resulta em um animal estéril. Acreditava-se que os mestiços também seriam estéreis como a mula” (FERREIRA, 2019, p.80).

Ferreira (2019), ainda fica incomodado com o uso da línguagem para disserminar o preconceito racial e a forma como é abordado na obra. Sendo assim,

No tocante ao estudo de termos pejorativamente empregados nos tratamentos pessoais, nota-se, na linguagem observada, nas expressões daquela que parece ser a que mais repudia o jovem mestiço, a saber, D. Maria Bárbara, a maior contribuição para com o processo segregatício. O termo ―cabra‖, por ela proferido, sempre que se dirige à pessoa de Raimundo, de uso frequente no Norte do Brasil, designativo do mestiço de negro e mulato, é, pois, visto de forma depreciativa (FERREIRA, 2019, p.80).

O texto literário é uma forma de estabelecer comunicação e interação social através do uso da linguagem. No romance “O Mulato”, a elite escravocrata maranhense desumaniza o sujeito negro, por meio do uso de palavras depreciativa. Os aspectos retratados na obras, trabalhados e evidenciados na sala de aula como recurso pedagógico, ajudaria o aluno a refletir e criticar a construção da sociedade brasileira. Os estudantes ficariam incomodados com os aspectos retradados na obra e assim, problematizariam o texto literário. A literatura é uma estrátégia metodológica relevante no processo de construção do debate racial na sala de aula.

4. A literatura como estratégia para discussão racial na sala de aula

Sobre essa questão, a literatura sendo utilizada como estratégia didática para construir o debate racial na sala de aula, precisa ser trabalha desde os anos iniciais e por meio da literatura-infantil. Assim, os alunos já se desenvolveriam em contato com os textos, e chegariam ao Ensino Médio preparados para refletir sobre essas questões sensiveis. Dessa forma, Do Carmo Meireles, Da Silva e De Paula Lima (2021), fazem uma análise sobre a literatura afro-brasileira no contexto da sala de aula como prática pedagógica.  Sobre isso, as autoras explicam: “ […] a literatura infantil voltada para as questões étnico-raciais são apropriadas nas práticas pedagógicas como ferramenta para a inserção do conteúdo da Lei 10.639/03 em seus currículos escolares e para a formação do leitor literário no ambiente escolar” (DO CARMO MEIRELES; DA SILVA; DE PAULA LIMA, 2021, p. 14).

Outro ponto a ser destacado, é sobre a formação contiuada do professor, que é de suma importância para o desenvolvimento das práticas pédagógicas. É relevante que o docente tenha especialidade em questões racias, ou ainda que busque aperfeiçoamento, para assim trabalhar a literatura na promoção do debate racial em sala de aula. O professor precisa juntamente com a instituição de ensino investir na literatura afro-brasileira de forma efetiva e na interpretação dos livros literários trabalhados,

[…] promovendo um verdadeiro desvelamento das obras pelos alunos. Para isso, entendemos que a formação docente deve ser aprimorada, no sentido de incorporar nos processos de formação os saberes relacionados à educação das relações étnico-raciais, com vistas ao engendramento de práticas que traduzam ações comprometidas com uma educação multicultural, libertadora e antirracista (DO CARMO MEIRELES; DA SILVA; DE PAULA LIMA, 2021, p. 16).

Nesse sentido, apoiados na legislação 10.639/03 que inclui a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo oficial das Redes oficiais e particulares de Ensino fundamental e médio, o professor e a escola necessitam de se adequar a essa  urgência educacional, promovendo e participando de  Cursos de Formação Docente e inserindo em  suas matrizes curriculares disciplinas específicas para o tratamento da questão, visando à formação continuada (BRASIL, 2003).

4.1 O uso do texto literário na sala de aula: práticas pedagógicas antiracistas

Exitem inúmeras maneiras de trabalhar o texto literário em sala de aula, e ainda abordar questões raciais relacionados a obra que refletem no imaginário social. Dentre elas, a escolha e apresentação do livro para os alunos, é uma boa maneira de começar esse debate. Outro ponto a ser trabalhado é o contexto histórico da obra escolhida, o papel social do escritor, a construção dos personagens. “O racismo é um problema estrutural e seu combate passa obrigatoriamente pela intervenção educativa. Daí a importância de refletirmos como o tema é tratado no sistema escolar, uma vez que acreditamos que este seja capaz de contribuir para a transformação do imaginário, valores, culturas e condutas” (DA SILVA, 2021, p. 188).

Através da literatura o docente pode elaborar práticas didáticas que contribuiram para a formação de um leitor letrado racialmente, “pois a medida que traz para a centralidade do ensino epistemologias e práticas que respeitem a diversidade étnica presentes na sala de aula, contribui de modo efetivo para a formação de saberes significativos e que se alinham aos princípios da educação” (DA SILVA, 2021, p. 195).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com os textos selecionados para compor o arcabouço teórico desse estudo, o texto literário é uma importante ferramenta didática no processo de inclusão de práticas antiracistas em sala de aula, promovendo a criticidade nos alunos. A literatura é o reflexo da realidade, e a literatura brasileira que é composta por um cânonimo masculino e eurocêntrico é passivel de críticas. O romance “O Mulato’ de Aluísio Azevedo é o marco do naturalismo brasileiro e representa a construção da sociedade oitocentista maranhense. Esse texto traz problemáticas que discutidas em sala de aula promoverão o letramento racial no educando.

Também, ficou explicito de como é importante o papel do professor diante dessas questões. Os docentes, em específicos os de Língua Portuguesa, precisam se aperfeiçoar e se especializar para assim desenvolver métodos para trazer o texto literário como forma de discussão racial na sala de aula. Outro ponto a ser evidenciado, é a questão da inserção da literatura afro-brasileira desde os anos iniciais, em específico a literatura infantil, com textos que abordam a questão racial de acordo com o seu público. Fazendo com que os alunos cresçam em contato com o letramento racial desde a Educação Básica.

Como professora de Língua Portuguesa e pesquisadora de questões raciais, percebo que ainda precisamos de uma avanço significativo em relação a questões raciais trabalhadas em sala de aula. Os alunos não estão preparados para interpretar os textos literário de forma critica, por não gostarem de ler, e principalmente por não terem o hábito de problematizar essas questões. Vejo que é um assunto sensivel para ser discutido na sala de aula, mas de estrema necessidade. Se começarmos a inserir tais problemáticas desde a Educação Infantil, com cuidado e estratégias, os alunos chegam ao Ensino Médio com um bom letramento racial.

REFERÊNCIAS

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[2] Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo, conhecido como Aluízio Azevedo.


[1] Aluno do curso de Pós-Graduação em Literatura e Ensino promovido pela Universidade Estadual do Maranhão, Núcleo de Tecnologia para Educação.
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