QUESTÕES DE BIOÉTICA NA PANDEMIA DA COVID-19

BIOETHICS ISSUES IN THE COVID-19 PANDEMIC

REGISTRO DOI:10.69849/revistaft/pa10202407312118


Reinaldo Ayer de Oliveira1
Gisele Joana Gobbetti2
Claudio Cohen3


Resumo

A área de Bioética do Departamento de Medicina Legal, Bioética, Medicina do Trabalho e Medicina Física e Reabilitação da Faculdade de Medicina da USP tem desenvolvido pesquisas bioéticas diante dos conflitos do mundo moderno. E a pandemia do novo coronavírus (COVID-19) trouxe vários conflitos, talvez, os mais importantes das últimas décadas. O objetivo desse trabalho é relacionar algumas áreas do cotidiano das pessoas afetadas pelo vírus, além da morbidade e mortalidade, com conceitos de bioética. Escolhemos tratar dos seguintes assuntos: autonomia e desigualdade social, isolamento social e violência intrafamiliar e morte e luto. Notou-se que os conflitos do cotidiano foram muito além da contaminação pelo vírus, houve um transbordamento de efeitos colaterais da pandemia. A autonomia, princípio bioético mais questionado da pandemia, demonstrou objetivamente só poder ser pensado dentro de uma bioética das relações. O indivíduo só poderá exercer sua autonomia de forma ética através de um acordo entre esta e sua responsabilidade social. As desigualdades sociais foram escancaradas com a pandemia, traduzindo-se na desigualdade de recursos de tratamento. O isolamento social, necessário para conter o vírus, espalhou uma condição presente em todas as classes socioeconômicas: a violência sexual contra crianças e adolescentes.

Palavras-chave: bioética, COVID 19, autonomia, desigualdade social, isolamento social.

Abstract

Bioethics area at the Department of Legal Medicine, Bioethics, Labor Medice and Phisycal and Reabilitation Medicine at São Paulo University Medical School, has been developing ethical researches concerning the conflicts of modern world. The new coronavirus pandemic (COVID-19) has brough several conflicts which might be the most important ones in the last decades. This paper aims at relating some aspects of daily life of those affected by the vírus, besides morbidity and mortality, along with bioethical concepts. The following issues were discussed: autonomy and social inequality, social isolation and intrafamily violence and death and mourning. It is observed that daily conflicts were far beyond the virus contamination. There was an overflow of pandemic side effects. Autonomy, bioethical principle most questioned during pandemic, showed to be thought about only within a relationship bioethics. One can only be able to practice one’s autonomy in an ethical way through an agreement between one´s autonomy and one´s own social responsibility. Social inequalities were widely open during pandemic time thus leading to inequality of treatment resources. Social isolation, which was necessary to stop the virus caused a condition presente in all socieconomic classes: sexual violence against children and adolescents.

Keywords: bioethics; COVID 19; autonomy; social inequality; social isolation.

Introdução:

A pandemia do novo coronavírus (Sars-Cov-2) está acontecendo num mundo globalizado e multilateral. Em outras palavras: o que aconteceu em um país deveria ocorrer do mesmo modo em outro. Não obstante, não é isso o que de fato vimos, porque em cada país as pessoas e as instituições reagiram de maneira própria neste enfrentamento, o que influenciou na evolução diversa da COVID 19 no mundo.

Quando tratamos desta questão, a primeira noção que vem é a ideia de organização e colaboração dos países em torno de objetivos comuns em meio às diversidades de toda ordem (geográfica, cultural, política, social e religiosa).1

No caso da pandemia, a diversidade de reação em cada país definiu diferentes curvas de infectados ou de mortalidade. O fenômeno – pandemia – sem dúvida foi universal, mas as reações, localizadas. As medidas sociais e sanitárias adotadas foram tão diversas conforme as diferenças entre as pessoas e os países.

Houve de fato, um protagonismo da Organização Mundial de Saúde (OMS), mas, insuficiente para que tragédias não ocorressem; em decorrência das diversas atitudes e comportamentos dos indivíduos e dos países.

Os impactos da transmissão do coronavírus e a doença (COVID-19) levaram a uma tragédia sanitária de proporções inusitadas. Diferentes medidas tomadas pelos diferentes países, com raras exceções, não foram suficientes para atenuar o que realmente aconteceu. E isso se deu pela velocidade de mutação do vírus, a dificuldade do isolamento social em determinadas classes sociais, os graus de gravidade da doença e, sobretudo, o não acesso a programas efetivos de vacinação. Nesse caminho surgiram as dificuldades na educação, na economia e principalmente na saúde das pessoas. É preciso apreciar de forma mais profunda o que levou aos diferentes comportamentos das pessoas e as atitudes das instituições e dos países.

De fato, é relevante a influência cultural e social (moral) nos valores individuais (ética) na tomada de decisão e inserção na globalização. Instituições como a Organização das Nações Unidas (ONU) e, em particular a Organização Mundial da Saúde (OMS), deveriam, durante a pandemia, estar orientadas por uma ética independente de todo e qualquer poder, bem como qualquer outra força: política, econômica ou religiosa. A pergunta que surge é: quais os valores morais que deveriam ser considerados para o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus?

Cohen e Gobbetti propõem uma bioética da vida cotidiana, cujo alvo é a reflexão ética de conflitos do dia-a-dia das pessoas. Os dilemas éticos emergem das relações psicossociais e estão presentes no cotidiano de todos, já que o ser humano é um ser em relação. Conflitos são intrínsecos à humanidade, podendo ser a bioética considerada como a ética das relações humanas.2 Assim, a bioética da vida cotidiana vai além das reflexões sobre os impactos das novas tecnologias para avançar nas mudanças sociais das relações humanas.

Todas novas situações sociais trazem questões que implicam em mudanças de valores. Não há exemplo mais explícito do que o momento vivido frente à pandemia.

A área de Bioética do Departamento de Medicina Legal, Bioética, Medicina do Trabalho e Medicina Física e Reabilitação da Faculdade de Medicina da USP tem desenvolvido pesquisas bioéticas diante dos conflitos do mundo moderno. E a pandemia do novo coronavírus (COVID-19) trouxe vários conflitos, talvez, os mais importantes das últimas décadas.

O objetivo desse trabalho foi relacionar algumas áreas do cotidiano das pessoas afetadas pelo vírus, além da morbidade e mortalidade, com conceitos de bioética. Escolhemos tratar dos seguintes assuntos: autonomia e desigualdade social, isolamento social e violência intrafamiliar e morte e luto.

Autonomia e desigualdade social

Princípio fundamental avocado, na pandemia, é o da autonomia. Ressalte-se, inicialmente, que os princípios da bioética principialista não obedecem a qualquer disposição hierárquica e são válidos prima facie. Vale dizer que não são absolutos e, em caso de conflito entre esses princípios, a prevalência de um em detrimento de outro deverá ser determinada pelas circunstâncias do caso concreto.

No caso da pandemia, embora admissível como um consenso de que a autonomia é um direito inerente à espécie humana; um direito intimamente relacionado com a liberdade; um direito natural, fundamental, constitucional; no início e durante os primeiros meses da pandemia da COVID-19, este princípio foi o mais questionado.

Questões éticas frente ao conflito gerado entre o respeito à autonomia do indivíduo e a responsabilidade social foram inúmeras. Como exemplo, o direito de ir e vir ficou cerceado; as pessoas passaram a ficar aprisionadas dentro da própria casa. Aprisionadas não só por um ditame social, mas pelo medo da contaminação, medo das consequências da doença em si próprio e nos entes queridos.

Enquanto alguns tomaram o isolamento social como um dever, outros não tiveram o “direito” de ficar isolados. Sejam por condições socioeconômicas precárias que impediram as pessoas de ficar em casa, por questões de sobrevivência, sejam por exigências da função exercida pelas pessoas, no caso, os profissionais de saúde que tinham que focar na sobrevivência social.

De acordo com os resultados da pesquisa Condições de Trabalho dos Profissionais de Saúde no Contexto da COVID-193, realizada pela Fiocruz em todo o território nacional, a pandemia alterou de modo significativo a vida de 95% dos trabalhadores da área da saúde. Os dados revelaram que quase 50% dos profissionais admitiram excesso de trabalho ao longo desta crise mundial de saúde, com jornadas para além das 40 horas semanais, e 45% deles necessita de mais de um emprego para sobreviver.

Por outro lado, os pacientes e familiares também sofriam pela incerteza e total falta de autonomia; existia concretamente a dificuldade dos familiares em ter acesso aos doentes e com eles decidirem as condutas. Nesta fase inicial do enfrentamento à pandemia, será que havia com alguma preocupação com o consentimento, livre, do doente e de sua família? Será que para os procedimentos ocorridos durante a internação foram levados em consideração a vontade e o desejo dos doentes e seus familiares?

É certo que a autonomia do indivíduo pode trazer angústia: a liberdade em poder decidir por sua própria vida contrasta com uma ética paternalista que promovia ações nas Unidades de Terapia Intensiva, supostamente em benefício dos doentes, e que, portanto, a pessoa doente não participava das decisões frente à própria vida.

Do espaço privado ao espaço público, os doentes, recuperados, eram filmados e aplaudidos quando da alta hospitalar por profissionais de saúde e familiares, pois naquele estavam livre da doença. Por vezes essas pessoas, envolvidas com os fatos, portavam pequenos cartazes com dizeres: “eu venci a COVID”.

Essas manifestações ocorreram no país inteiro e traduziam, seguramente, a euforia das pessoas recuperadas diante da doença que diariamente matava centenas de pessoas.

Nesse sentido é importante compreendermos o que são fatos da vida cotidiana com interesse para a bioética.

O termo cotidiano define aquilo que é habitual ao ser humano, ou seja, que está presente na vivência do dia a dia. Sendo o ser humano um ser sociável, portanto um ser que deve relacionar-se, pois está sujeito à cultura e à moral, a bioética sempre será uma bioética das relações.

Dentro desta perspectiva, a autonomia do indivíduo só pode ser apreendida na relação, ou seja, nenhum indivíduo é totalmente autônomo, pois o limite de sua liberdade se dará no contexto das relações com os mundos que lhe são: o externo e o interno.

Não obstante, a Declaração Universal dos Direitos do Homem explicita, em seu primeiro artigo, que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”; trazendo esta nova percepção ética das relações humanas. É o reconhecimento da dignidade inerente a todos os indivíduos.

É neste caminho que se entende a autonomia como passível de influência de diversas variáveis, que irão justamente determinar o “grau” de autonomia que ele terá ou poderá alcançar, no plano da dignidade.,4,5

Justamente o conceito de graus de autonomia despertou inúmeros conflitos éticos. O Ministério da Saúde adotou, nas fases iniciais da pandemia, regras rígidas de isolamento dos doentes internados por infecções da COVID-196, entre elas a recomendação de evitar visitas e acompanhantes a pacientes, especialmente, em unidade de terapia intensiva (UTI), o risco era o da contaminação e, consequentemente, a expansão dos casos de doença. Era o princípio de justiça se sobrepondo à autonomia do indivíduo. De acordo com a Bioética das Relações, a forma ética de lidar com os conflitos das relações humanas dar-se-á com um acordo entre a autonomia individual e a responsabilidade social7.

De aceitação, num primeiro momento, essas normas desencadearam uma série de manifestações contrárias sempre com a alegação de que o uso de medidas protetivas adotadas por aqueles que visitavam poderia superar, de maneira satisfatória, os conflitos entre riscos e benefícios. Num primeiro momento, em respeito ao princípio ético primordial da dignidade humana, o acesso a informações adequadas sobre estado de saúde dos doentes foi fundamental na superação da angústia gerada, especialmente entre familiares, pelo extremo isolamento adotado. Mas, não suficiente! A quebra da rigidez da norma aconteceu quando se percebeu que a presença de um familiar, junto ao doente, seja por um breve tempo ou quando de um acompanhamento mais longo, trazia benefícios para a recuperação deles e conforto para o familiar. Protocolos rígidos de segurança, uso adequado dos recursos de telemedicina foram introduzidos ao longo da pandemia, independentes da manutenção das normas estabelecidas, agregando benefício e o respeito à vontade dos doentes e familiares.

Assim, no caso das internações com isolamento dos doentes e a proibição de visitas por familiares, a discussão ética sobre a beneficência, a autonomia e a dignidade, permitiu superar conflitos mesmo quando existiam barreiras no campo da norma.

Não obstante o profundo impacto da pandemia da COVID-19 sobre as pessoas, há um aspecto que não pode deixar de ser considerado: o escancaramento da desigualdade social.

A desigualdade social é o principal tema da bioética contemporânea. É uma questão de justiça social, relacionada com a alocação de recursos escassos.

Ao assumirmos esta responsabilidade moral, da alocação dos recursos em saúde, estamos levando em consideração dois fundamentos éticos: o da dignidade humana e o da participação: o princípio da dignidade humana, na exigência de igual respeito por todos os homens, e o princípio da participação, na exigência do esforço de cada um em prol da comunidade (do conjunto).

A partir dos pressupostos acima, a alocação dos recursos na saúde passa a ser considerada numa dimensão maior de justiça social, isto é, de realização do bem comum por meio da responsabilidade específica de cada um dos intervenientes (atores), e domínio próprio do cumprimento do “DIREITO À SAÚDE”.

O processo de reflexão bioética atual observa que a realidade das condições de vida e de saúde no nosso meio, refletida em indicadores sociais, econômicos e epidemiológicos, aponta a existência de uma exclusão social, especialmente entre os indivíduos vulneráveis e marginalizados, do acesso a condições dignas de vida humana8.

Esta situação demanda da bioética e dos que a ela se dedicam refletir sobre a aplicação do princípio da justiça – na dimensão do princípio da equidade, na alocação dos recursos em saúde.

Na defesa de um sistema baseado na equidade, é preciso que se entenda que para implementação deste princípio deve ocorrer um processo de controle social com a efetiva participação, outro princípio fundamental, dos cidadãos.

A equidade é, então, a base ética que deve guiar o processo decisório da alocação de recursos. É somente através deste princípio, associado aos princípios da responsabilidade (individual e pública) e da justiça, que conseguiremos fazer valer o valor do direito à saúde. A equidade, ou seja, o reconhecimento de necessidades diferentes, de sujeitos também diferentes, para atingir direitos iguais, é o caminho da ética prática em face da realização dos direitos humanos universais, entre eles o do direito à vida representado, neste debate, pela possibilidade de acesso à saúde. A equidade é o princípio que permite resolver parte razoável das distorções na distribuição da saúde, ao aumentar as possibilidades de vida de importantes parcelas da população.9

Isolamento social e violência intrafamiliar

Para além das questões sociais, de saúde e econômicas que promovem diferentemente a possibilidade de isolamento social como uma medida necessária de contenção à pandemia da COVID-19, várias questões éticas sobressaem frente ao isolamento das pessoas em seus núcleos familiares, promovendo reflexões no campo da bioética.

A violência doméstica, principalmente a violência contra crianças e adolescentes, é um fenômeno global e é consumada, na maioria das vezes, dentro do próprio ambiente familiar.

Marques et al. realizaram breve revisão sobre o assunto nas mídias sociais e internet, demonstrando que o aumento da violência contra a mulher e contra a criança e ao adolescente durante o período de distanciamento social tem sido observado em diferentes países, tais como China, Reino Unido, Estados Unidos, França e Brasil10.

Segundo os autores, instituições que fazem parte da rede de proteção a mulheres, crianças e adolescentes no Brasil mostram o aumento do número de casos. A recomendação de se permanecer em casa aumenta o tempo de convivência entre os membros do núcleo familiar e as tensões nas relações interpessoais, aumentadas pelo crítico contexto socioeconômico gerado pela pandemia, podem ter estimulado episódios de violência. Também consequência da pandemia, o fechamento ou o reduzido funcionamento de serviços de proteção, tais como delegacia de mulheres e conselhos tutelares, agravam a situação.

No Brasil, enquanto as estatísticas demonstram o aumento de denúncias de violência contra a mulher, as denúncias de violência contra crianças e adolescentes têm demonstrado uma queda.

Estudo realizado no Estado de Santa Catarina mostrou uma diminuição de 55,3% das denúncias de violência contra crianças e adolescentes no período de isolamento, listando-se possíveis dificuldades encontradas para a procura de instituições de proteção e assistência11.

Os profissionais de saúde preocupam-se com estas repercussões do isolamento; em referência a isto, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) publicou a Cartilha “Saúde mental e atenção psicossocial na pandemia COVID-19: violência doméstica e familiar na COVID-19”. 12

O local no qual as crianças mais vivenciam violência é dentro de casa. Evidências mostram que a violência e a vulnerabilidade das crianças aumentam durante os períodos de encerramento escolar associados a emergências complexas, as quais aproximam-se das características da pandemia da COVID-19. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, enquanto o aumento da violência contra mulher tem sido detectado por pesquisas no 190, registros de feminicídio e análise no Twitter, o mesmo não tem ocorrido no caso da violência contra crianças, onde percebe-se uma diminuição significativa das denúncias de abuso ou negligência. Tais dados podem indicar uma diminuição das oportunidades de detecção e denúncia e não a diminuição de incidência da violência. O fechamento de escolas e outras organizações comunitárias têm limitado a capacidade dos principais parceiros das comunidades em detectar e denunciar abusos.

As violências contra crianças e adolescentes, que são praticadas, em sua maioria, dentro da própria família, são agravadas pela impossibilidade de apoio dentro do núcleo social que teria a função de protegê-las.

Como indicado no último relatório completo (referente ao ano de 2019) do Disque 100, canal aberto para denúncias de violações de direitos humanos, no qual predominam as denúncias em relação a crianças, apontou que o principal suspeito das violações é a mãe (em 40% dos casos), seguida do pai (18%) e do padrasto (5%).13

Assim, a privação do ambiente escolar em tempos de pandemia extrapola a discussão sobre os impactos no nível de aprendizagem dos alunos; sendo o principal espaço de socialização para crianças e adolescentes, a escola é um local privilegiado para a detecção de suspeitas de abusos, maus-tratos e negligências contra crianças e adolescentes.

O fechamento das escolas e de outros espaços que possibilitam a construção de vínculos de confiança entre crianças e adolescentes com adultos de fora da família aumentaram a vulnerabilidade dos primeiros no âmbito da violência doméstica.

A violência sexual intrafamiliar, no caso da pandemia, considerada uma violência “silenciosa”, por geralmente não deixar marcas físicas visíveis, além de ser envolvida por uma ambivalência de sentimentos, “democratiza” a vulnerabilidade de crianças e adolescentes, já que é presente em todas as camadas sócioeconômicas e culturais.

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o Instituto Sou da Paz e o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) realizaram um estudo em conjunto sobre os possíveis impactos do isolamento social na ocorrência e na notificação da violência sexual no estado de São Paulo, no qual foram analisadas as ocorrências de estupro de vulnerável registradas pela Polícia Civil do Estado de São Paulo entre janeiro de 2016 e junho de 2020. Foi constatada uma redução significativa das denúncias no ano de 2020, em especial no segundo trimestre de 2020, início da pandemia da COVID-19. O relatório produzido pelo estudo contém o alerta de que a redução dos registros deste tipo de crime, que ocorre majoritariamente em ambiente doméstico, evidencia a dificuldade de denunciar no contexto de isolamento social e não a sua efetiva diminuição14.

O conceito da família como “sagrada” ainda faz parte do imaginário social, motivo pelo qual causa tanta aversão e repulsa a divulgação de crimes contra crianças cometidos por adultos, principalmente quando estes estão na condição de pais e mães.

A sociedade outorga aos pais ou representantes uma autonomia ampla em relação aos menores de idade, esperando que os adultos responsáveis ajam sempre com benevolência em relação aos últimos. Mas, diferentemente do apregoado popular “cuidado com os estranhos”, a violência contra crianças e adolescentes é normalmente praticada por pessoas com as quais existem vínculos emocionais e se espera existir também vínculos de confiança.

A relação assimétrica entre pais ou representantes adultos e crianças e adolescentes é muitas vezes pervertida em sua função; uma relação que deveria ser de responsabilidade é transformada em uma relação de poder. Entendemos que o poder é a forma antiética de lidar com a responsabilidade e que esta perversão de funções é a base das relações abusivas.

Face ao exposto, uma medida necessária de contenção à pandemia, que foi o isolamento social, a despeito de todos os prejuízos muito abordados no âmbito da saúde mental, trouxe ainda outros “efeitos colaterais”, como uma potencial ameaça à integridade biopsicossocial de crianças e adolescentes.

Morte e luto

A expectativa de vida expressa a longevidade da população. Representa uma medida sintética da mortalidade, não estando afetada pelos efeitos da estrutura etária da população, como acontece com a taxa bruta de mortalidade. O aumento da esperança de vida ao nascer indica melhoria das condições de vida e saúde da população. Esse dado é muito importante, visto que é um dos critérios utilizados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) para se calcular o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de um determinado lugar15.

Estudo conduzido por pesquisadores de Harvard, Princeton, Universidade do Sul da Califórnia e Universidade Federal de Minas Gerais sobre o impacto direto das mortes por Covid-19 na demografia brasileira demonstrou que a pandemia de COVID-19 roubou, sozinha, quase dois anos de expectativa de vida no Brasil16. O índice crescia sem parar desde 1945 – em média, a expectativa de vida aumentava cinco meses a cada ano. Era um sinal da melhoria nas condições básicas de vida, que aumentavam a longevidade da população. Mas esse quadro se reverteu em 2020, ano em que 195 mil brasileiros morreram por COVID-19. No dia 10 de dezembro de 2021, o número acumulado de mortes por COVID19 no mundo chegou a 5.305.991 pessoas. No Brasil: 617.095 pessoas morreram, esses números têm um impacto na redução da expectativa de vida no país, que era 76,6 anos para 74,617.

Durante a pandemia do novo coronavírus, os números relacionados à morte são tão expressivos que nos impactam de maneira assustadora e intimidadora. Ficamos sem saber como reagir frente a esses números. A COVID-19, doença resultante da infecção por Sars-Cov-2, levou a 2,8 milhões o número de mortes em todo o mundo até o final de março de 2021, e afetou países de maneiras diferentes.18

Na maioria das vezes, as pessoas morreram em Unidades de Terapia Intensiva longe de familiares e de amigos. A separação e a impotência definem um campo de frustrações de todos nós.

Para Claude Bernard (1878), “vida é morte. É necessário, e com o decorrer do tempo suficiente, viver para morrer”19.

Shakespeare em Hamlet (a. V, cena 1) dizia: “Alexandre morreu. Alexandre foi sepultado. Alexandre voltou ao pó. O pó é terra e com a terra se faz argila; por que a argila em que ele se transformou não poderia vir a ser a tampa de um barril de cerveja” 20.

Na fala de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói, a morte aparece como:

Para ele, tudo aconteceu num só instante, e o significado daquele instante não mudaria mais, Para os presentes, porém, sua agonia durou mais duas horas. Em seu peito, algo borbulhava; seu corpo extenuado estremecia. Depois foi ficando cada vez mais raro o borbulhamento e o estertor. – Acabou! – disse alguém acima dele.21

Por vezes transformadas em tragédias pessoais e familiares, as questões relacionadas com a morte ultrapassam as citações literárias no sentido de um sentimento que invade a pessoa em sua intimidade e privacidade. Naturalmente, decorre que ao conceituarmos a vida é preciso levar em consideração a integridade do indivíduo que permite com que ele se relacione com o seu meio, dando qualidade a sua vida. Esse estado de higidez pode ser quebrado na doença e, definitivamente, na morte.  Com a morte o Ser deixa de ser.

A ação em saúde, seja do médico ou de outro profissional, se baseia na percepção da ruptura dessa integridade e qualidade da vida, afetada por uma doença. Essa ruptura é muito traumática, particularmente, quando essa doença é aguda, de evolução rápida e, no caso da COVID-19, desconhecida.

Para o médico o Código de Ética Médica expressa: “O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício do qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional”22.

Portanto, a ação do médico tem como objetivo o benefício do doente. O benefício é a expressão do princípio da beneficência da Bioética. O princípio é positivo: requer que profissionais tenham a obrigação moral de agir em benefício e no interesse dos doentes. De igual importância é o princípio da não maleficência que estabelece que os profissionais de saúde não prejudiquem intencionalmente seus doentes. Este princípio codifica o antigo pilar hipocrático médico primum non nocere: “acima de tudo, não causar danos”. O princípio da não maleficência tem sido requerido, por exemplo, para determinar que o tratamento cesse quando se tornasse fútil.

Devemos entender que tanto o benefício quanto o não malefício é para o paciente e não para o medico23.

Num primeiro, e angustiante momento, na pandemia os doentes acometidos pelo novo coronavírus (Sars-COVID-2) eram internados de imediato, em unidades de terapia intensiva dos hospitais, com quadros de insuficiência respiratória grave.

Lin e colaboradores (2020) ressaltam que “de imediato as ações foram traduzidas em cuidados de saúde que se constituíram em pilares para o enfrentamento da pandemia e acrescenta que os princípios da beneficência e de não maleficência nortearam a indicação de medicação e os cuidados aos doentes”24.

No início de 2020, o Ministério da Saúde publicou um manual contendo orientações sobre recomendação de velórios e funerais de pessoas confirmadas/suspeitas da COVID-19. Diz a norma: “Manter a urna funerária fechada durante todo o velório e funeral, evitando qualquer contato (toque/beijo) com o corpo do falecido em qualquer momento post-mortem”. E mais “Recomenda-se que o enterro ocorra com no máximo 10 pessoas, não pelo risco biológico do corpo, mas sim pela contraindicação de aglomerações”25.

Essas recomendações, como no caso do isolamento dos pacientes nas Unidades de Terapia Intensiva, geraram controvérsias, especialmente, no caso da “supressão” de um momento importante na evolução do luto: o velório e o sepultamento. O luto, esse “sentimento de tristeza profunda causado pela morte de alguém”26 deixa de ser um fato importante no processo de aceitação da morte.

Os sepultamentos rápidos evitando contatos e a urna funerária fechada deixam um vazio entre os familiares e amigos da vítima da COVID-19.

Essas situações descritas e vivenciadas por milhares de famílias caracterizam e trazem uma marca profunda na autonomia como princípio das relações entre pessoas. Neste texto já tratamos a autonomia como passível de influência de diversas variáveis, que irão justamente determinar o “grau” de autonomia que ele terá ou poderá alcançar, no plano da dignidade.

E não podemos deixar de considerar Kant quando advoga que cada ser humano é dotado de dignidade (Wurde) em virtude de sua natureza racional.19

Morin27 expressa que a um ente querido na situação de isolamento impedindo a cerimônia fúnebre, com enterros apressados deixam um vazio e completa: “a falta de cerimônia consoladora levou as pessoas, inclusive laicas como eu, a sentir a necessidade de rituais que façam a pessoa morta reviver intensamente em nosso espírito e atenuem a dor numa espécie de eucaristia”

Considerações finais

O objetivo desse trabalho foi relacionar algumas áreas do cotidiano das pessoas em um mundo “afetado pelo vírus” com a bioética. Notou-se que os conflitos do cotidiano foram muito além da contaminação pelo vírus, houve um transbordamento de efeitos colaterais da pandemia.

A autonomia, princípio bioético mais questionado da pandemia, demonstrou objetivamente só poder ser pensado dentro de uma bioética das relações. O ser humano com as suas características intrínsecas, de dependência do outro e necessidade de individualidade, só poderá exercer sua autonomia de forma ética através de um acordo entre esta e sua responsabilidade social7.

As desigualdades sociais presentes no mundo globalizado foram escancaradas com a pandemia, traduzindo-se na desigualdade de recursos de tratamento e mesmo nas condições de sobrevivência numa situação de isolamento social.

O isolamento social, necessário para conter o vírus, espalhou uma condição presente em todas as classes socioeconômicas: a violência sexual contra crianças e adolescentes.

Diante da dura realidade vivenciada, só ficaram as fantasias, principalmente a de “quando tudo vai voltar ao normal?”. Não existe normal, mas o desejo de voltar para o conhecido. O ser humano não voltará a ser o que era antes, com certeza será transformado por esta experiência global.

O que se espera é que o sofrimento vivenciado possa ser transformado em aprendizado e que Morin esteja certo:

Sei que, na aventura do cosmos, a humanidade é, de maneira nova, sujeito e objeto da relação inextricável entre, de um lado, o que nos une (Eros) e, de outro, o que opõe (Pólemos) e o que destrói (Tãnatos). O partido de Eros é inerto, pois pode cegar-se e demanda inteligência, mais inteligência, assim como amor, mais amor. A aventura é mais que nunca incerta, mais que nunca aterrorizante, mais que nunca exaltante. Estamos sendo carregados nessa aventura e devemos nos alistar no partido de Eros28.

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1https://orcid.org/0000-0001-6861-9481
2https://orcid.org/0000-0001-5215-5424
3https://orcid.org/0000-0001-8377-2193