PROCEDIMENTOS AMBULATORIAIS REALIZADOS NAS UNIDADES DE SAÚDE DA RESIDÊNCIA EM MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE EM CAMPO GRANDE/MS ENTRE 2021 E 2022

OUTPATIENT PROCEDURES CARRIED OUT IN BRASIC HEALTH UNITS OF THE FAMILY AND COMMUNITY MEDICINE RESIDENCE IN CAMPO GRANDE/MS BETWEEN 2021 AND 2022

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10613966


Fernanda Friedrich; Samuel Lucas Calmon Rodrigues; Lanna Paulla Andrade Melo; Lorhenn Bryanda Lemes Maia


RESUMO

Com os atributos de integralidade, longitudinalidade e coordenação do cuidado, que contribuem para uma resolutividade de até 80% das demandas da população, a realização de uma Atenção Primária a Saúde (APS) de qualidade exige treinamento médico em diversas áreas. Uma das competências necessárias é a realização de procedimentos ambulatoriais. Assim, foi realizada uma avaliação quantitativa dos procedimentos realizados nas Unidades de Saúde da Família (USF) de Campo Grande/MS que participam do programa de residência em Medicina de Família e Comunidade da Secretaria Municipal de Saúde/Fundação Oswaldo Cruz-MS, no período entre janeiro de 2021 e dezembro de 2022. O trabalho objetivou descrever os procedimentos realizados nessas unidades, e, desse modo, explicitar os principais, comparar dados das diferentes unidades incluídas, avaliar a ampliação da oferta de procedimentos e fomentar o aperfeiçoamento de médicos de família e comunidade. Observa-se que, enquanto o fornecimento desse serviço está de acordo com o observado em outras regiões do Brasil, é necessário que haja estímulo regular e contínuo para permitir a formação técnica adequada dos especialistas, e uniformizar a capacidade de resolutividade das unidades.

PALAVRAS-CHAVE: Procedimentos cirúrgicos ambulatoriais. Atenção primária à saúde. Medicina de família e comunidade. Educação médica.

Abstract

With the attributes of integrity, longitudinality and coordination of care, which contribute to a resolvability of up to 80% of the demands of the population, a qualified primary health care provision requires medical training in various fields. One of the necessary competences is to perform ambulatory surgeries and procedures. Thus, a quantitative evaluation of the procedures carried out in the family basic health units  of campo grande/ms that compose the residence program in family and community medicine of the municipal health secretariat/oswaldo cruz foundation, was carried on in the period between january 2021 and december 2022. The objective of this work is to describe the procedures carried out in these units, highlighting the most common ones, to compare data from the different units included, to evaluate the expansion of the offer of procedures and to encourage the improvement of family and community doctors. While the pattern of provision of this service was consistent with what is observed in other regions of brazil, there is a need for regular and continuous incentive to allow for the appropriate technical training of specialists, and to uniformize the capacity of resolvability of the units.

KEYWORDS: Ambulatory surgical procedures. Primary health care. Family practice. Education, medical.

INTRODUÇÃO

A Estratégia de Saúde da Família (ESF) é o modelo de assistência da Atenção Primária à Saúde no Brasil e, desde a sua gênese, alicerça-se em atributos que visam garantir a qualidade dos serviços de saúde, de modo a assegurar a expansão e consolidação da Atenção Básica nacional. Esses atributos se relacionam diretamente com os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), todos estabelecidos pela Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), de 2006 e persistem atualmente mesmo após atualizações da Política1. A Portaria destaca a importância de uma atenção integral à saúde do indivíduo que respeite a pessoa em sua singularidade e realidade sociocultural e que conheça os múltiplos determinantes e condicionantes de saúde em uma comunidade.

Quando bem estabelecida e adequadamente resolutiva, a APS é capaz de solucionar de 80 a 90% das demandas atendidas1. Isso favorece a coordenação do cuidado mais eficiente, uma vez que é responsável pelo fluxo na Rede de Atenção à Saúde (RAS), evitando-se iatrogenias, como encaminhamentos desnecessários a especialistas, polifarmácia e sobrediagnósticos, e priorizando a equidade na gestão de listas de espera para os demais níveis de atenção à saúde. Uma APS resolutiva também é capaz de fornecer proteção à saúde da população, prevenção e o controle de riscos, agravos e doenças, bem como para a promoção da saúde através da longitudinalidade do cuidado2.

As demandas cirúrgicas fazem parte da rotina do Médico de Família e Comunidade (MFC), profissional especialista no serviço médico com base dos princípios da APS 3. Embora alguns procedimentos sejam geralmente realizados em consultório, outros, como tratamento cirúrgico de cistos, lipomas, abscessos, unhas encravadas ou tratamento de pequenas feridas são muitas vezes encaminhados aos ambulatórios de pequenos procedimentos e cirurgiões. Não há razão para tal prática, pois a complexidade desses procedimentos, a necessidade de conhecimentos e habilidades do especialista ou os aspectos legais não excedem a competência e o apoio técnico e logístico do MFC3. Para que isso ocorra, é importante que os profissionais que trabalham na APS sejam adequadamente treinados quanto aos componentes da carteira de serviços e, no caso do MFC, suas atribuições específicas4, assim como incentivados a oferecer uma gama mais ampla de serviços médicos no seu trabalho diário, incluindo os cirúrgicos.

A fim de garantir que os princípios e diretrizes da APS sejam cumpridos e com a finalidade de otimizar o aperfeiçoamento de novos especialistas, o Programa de Residência em Medicina de Família e Comunidade da Secretaria de Saúde de Campo Grande (SESAU)/Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) – MS foi criado em 2017 e atualmente está presente em 12 unidades de saúde do município de Campo Grande. A expansão foi assegurada pelo projeto Territórios Integrados de Atenção à Saúde (TEIAS), que busca propiciar e estimular a inovação em atenção, ensino e pesquisa no contexto da ESF.

Pequeno procedimento ou cirurgia ambulatorial pode ser descrito como qualquer procedimento de fácil execução, de curta duração, geralmente não associado a complicações pós-operatórias significativas e que envolve estruturas superficiais ou de fácil acesso, realizada com anestesia local5. A maior parte das competências técnicas exigidas de um médico de família enquadra-se nesta categoria.

A análise de procedimentos do contexto da APS ainda é um tema que ainda carece de estudos e publicações, e gera controvérsias em relação às avaliações da custo-efetividade dos procedimentos sensíveis a APS6. Trazer à tona a discussão sobre a apropriação de procedimentos pela APS, além de fortalecer a Saúde da Família como estratégia na expansão e consolidação da Atenção Básica no Brasil, permitirá a avaliação da satisfação do usuário e dos profissionais envolvidos, de desafios e inseguranças, e a formulação de planos para melhorar os serviços prestados.

Desse modo, e considerando a pouca quantidade de estudos com esse perfil no cenário nacional, este trabalho objetiva apresentar uma avaliação descritiva dos procedimentos ambulatoriais e pequenas cirurgias realizadas em unidades de saúde com residência de Medicina de Família e Comunidade do TEIAS.

MÉTODOS

Realizou-se um estudo observacional, quantitativo, descritivo, transversal conduzido nas 12 Unidades de Saúde da Família nos Territórios Integrados de Atenção à Saúde (TEIAS) de Campo Grande, Mato Grosso do Sul: USF Alfredo Neder Coophavilla II (Coophavila); USF Dr. Helio Martins Coelho Batistão (Batistão); USF Edson Quintino Mendes (Itamaracá); USF Dr. Claudio Luiz Fontanillas Fragelli (Noroeste); USF Dr. Nasri Siufi (Jardim Presidente); USF Benedito Martins Gonçalves (Oliveira); USF Paulo Coelho Machado (Paulo Coelho); USF Dr Judson Tadeu Ribas (Moreninha); USF Jeferson Rodrigues de Sauza (Santa Emilia); USF Dr. Sumie Ikeda Rodrigues (Serradinho); USF Dr. Antonio Pereira (Tiradentes); USF Aquino Bezerra (Vida Nova).

Foram prospectados dados secundários do Prontuário Eletrônico do Cidadão (PEC) referentes aos registros médicos de procedimentos ambulatoriais e pequenas cirurgias executadas em cada USF entre janeiro de 2021 e dezembro de 2022. Todos os procedimentos realizados por médicos e registrados no sistema foram incluídos no estudo. Os critérios de exclusão foram os procedimentos ambulatoriais não registrados no PEC e-SUS no período avaliado.

Os procedimentos ambulatoriais foram registrados conforme o código Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM do SUS (SIGTAP) no PEC e-SUS. Para o estudo, foram coletados os códigos SIGTAP dos procedimentos realizados nas unidades e disponíveis pelo PEC, conforme o disposto a seguir:

04.01.01.006-6 – excisão e/ou sutura simples de pequenas lesões / ferimentos de pele / anexos e mucosa

02.01.01.002-0 – biópsia / punção de tumor superficial da pele;

03.01.04.014-1 – inserção do dispositivo intra-uterino (DIU);

03.01.04.015-0 – retirada do dispositivo intra-uterino (DIU);

04.01.02.017-7 – cirurgia de unha (cantoplastia);

03.09.05.002-2 – sessão de acupuntura com inserção de agulhas;

04.01.01.003-1 – drenagem de abscesso;

04.01.01.011-2 – retirada de corpo estranho subcutâneo;

04.04.01.030-0 – retirada de corpo estranho da cavidade auditiva e nasal;

03.03.09.003-0 – infiltração em cavidade sinovial;

03.03.08.001-9 – cauterização química de pequenas lesões;

02.14.01.004-0 – teste rápido para detecção de HIV na gestante ou pai/parceiro;

02.14.01.005-8 – teste rápido para detecção de infecção pelo HIV;

02.14.01.006-6 – teste rápido de gravidez;

02.14.01.007-4 – teste rápido para sífilis;

02.14.01.008-2 – teste rápido para sífilis na gestante ou pai/parceiro;

02.14.01.009-0 – teste rápido para detecção de hepatite C;

02.14.01.010-4 – teste rápido para detecção de infecção pelo HBV;

02.14.01.015-5 – teste rápido de proteinúria;

04.01.01.010-4 – incisão e drenagem de abscesso;

04.15.04.004-3 – debridamento de úlcera / necrose;

04.01.01.001-5 – curativo grau II c/ u s/ debridamento;

04.01.01.002-3 – curativo grau I c/ ou s/ debridamento;

03.03.08.002-7 – desbastamento de calosidade e/ou mal perfurante (desbastamento);

03.01.10.005-5 – cateterismo vesical de demora;

03.01.10.004-7 – cateterismo vesical de alívio;

03.01.10.015-2 – retirada de pontos de cirurgias básicas (por paciente);

03.01.04.009-5 – exame do pé diabético;

02.01.02.003-3 – coleta de material para exame citopatológico de colo uterino.

Todos os dados foram obtidos pelos pesquisadores e digitados em planilha eletrônica (Microsoft Excel® 2022 versão 2306). A partir deles, as análises foram realizadas e os gráficos foram gerados com uso do software IDE R Studio ®.

O projeto foi submetido à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e aprovado sob o parecer número 6.511.491, CAEE 75540023.6.0000.0021.  Desse modo, garantiu-se respeito aos preceitos éticos no que se refere a veracidade das informações, sigilo, originalidade e privacidade delas, foram considerados em todos os âmbitos deste trabalho e, quando necessário, tornar os resultados da pesquisa públicos.

RESULTADOS

A residência médica de Medicina de Família e Comunidade da SESAU/FIOCRUZ-MS está incluída no processo de trabalho de 12 Unidades de Saúde da Família (USF) do município de Campo Grande-MS, a saber: USF Alfredo Neder Coophavilla II (Coophavila); USF Dr. Helio Martins Coelho Batistão (Batistão); USF Edson Quintino Mendes (Itamaracá); USF Dr. Claudio Luiz Fontanillas Fragelli (Noroeste); USF Dr. Nasri Siufi (Jardim Presidente); USF Benedito Martins Gonçalves (Oliveira); USF Paulo Coelho Machado (Paulo Coelho); USF Dr Judson Tadeu Ribas (Moreninha); USF Jeferson Rodrigues de Sauza (Santa Emilia); USF Dr. Sumie Ikeda Rodrigues (Serradinho); USF Dr. Antonio Pereira (Tiradentes); USF Aquino Bezerra (Vida Nova). Anualmente, são ofertadas 40 vagas para o programa de residência, que dura 2 anos. Os residentes têm previsto em sua semana padrão um turno de 5 horas para o agendamento e realização de procedimentos ambulatoriais.

Este trabalho avaliou o período de 1º de janeiro de 2021 a 31 de dezembro de 2022, quando foram realizados 13.138 procedimentos médicos nas unidades TEIAS. Observa-se, durante este intervalo temporal, uma tendência de aumento no número total de registros, como apresentando no gráfico a seguir (Gráfico 1), que mostra um incremento de 115% ao comparar o primeiro (719 registros) e o último (1552 registros) bimestres avaliados. Quanto aos procedimentos exclusivamente médicos, encontrou-se um aumento de 113% ao comparar o primeiro (69) e o último (154) bimestres – houve, ainda, um pico de 338 procedimentos médicos realizados no penúltimo bimestre de 2022.

Gráfico 1 – Total de procedimentos realizados pelas unidades TEIAS entre Janeiro/2021 e Dezembro/2022

Fonte: autoria própria

Considerando a quantidade por USF, a USF Batistão foi responsável por 43% de todos os procedimentos, enquanto as unidades Moreninhas e Tiradentes ocuparam o segundo lugar, cada uma com 10% do total. A distribuição geral entre todas as unidades pode ser observada no Gráfico 2.

Gráfico 2 – Percentual por unidade de saúde da família TEIAS

Fonte: autoria própria

Já no Gráfico 3, pode-se observar a distribuição total por procedimento. Destaca-se que os mais frequentes foram: Exame Citopatológico (10,5%) e Exame do Pé Diabético (7,9%), Testes Rápidos para ISTs (somando-se os testes realizados em gestantes e não gestantes, 15,3% para HIV, 15,3% para sífilis, 13,1% para hepatite B e 12% para hepatite C) e para gravidez (2,3%) e Inserção e Retirada de DIU (14,3% e 3,9% respectivamente).

A respeito dos procedimentos mais procurados, a USF Batistão se destaca no registro de testes rápidos para infecções sexualmente transmissíveis e exame citopatológico de colo de útero, e a USF Noroeste no registro de exame do pé diabético.

Gráfico 3 – Distribuição Total de Procedimentos

Fonte: autoria própria

Excluindo-se acupuntura, cateterismo, coleta de citopatológico, exame de pé diabético, retirada de pontos, testes rápidos, curativos, e focando nos procedimentos que tem como principal profissional realizador o médico, identifica-se que a USF Batistão permanece como a principal, com 328 procedimentos realizados, de um total de 2213 (14,8%). Ela é seguida pelas USF Coophavilla e USF Oliveira com 301 (13,6%) e 297 (13,4%) procedimentos registrados, respectivamente. Desses, os mais comuns foram retirada de cerume, inserção de DIU e exérese de tumores superficiais, com 552 (24,9%), 550 (24,8%) e 207 (9,3%) realizações respectivamente. Os dados foram representados no gráfico 4.

Gráfico 4 – Distribuição de procedimentos por unidade de saúde

Fonte: autoria própria

Adiciona-se que os procedimentos menos realizados em todas as unidades de saúde avaliadas foram cateterismo vesical de alívio (0,76%), debridamento de úlcera/necrose (0,53%) e desbastamento (0,22%).

Deve-se apontar, ainda, que as USF Santa Emília e Jardim Presidente foram inauguradas mais recentemente que as demais, de modo que o início da contagem de seus dados se dá a partir de março e setembro de 2022, respectivamente.

DISCUSSÃO

A residência médica em Medicina de Família e Comunidade da SESAU/FIOCRUZ-MS está incluída no processo de trabalho de 12 Unidades de Saúde da Família (USF) do município de Campo Grande-MS e, dentre os serviços ofertados à população, está a disponibilidade para realizar procedimentos ambulatoriais de urgência e eletivos. Há algumas divergências entre as propostas do Currículo Baseado em Competências da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade5 em relação ao Caderno de Atenção Primária do Ministério da Saúde8. No entanto, todos eles ajudam a guiar a prática do MFC e do médico residente da especialização. A partir desses documentos norteadores, estabelece-se que o MFC deve ser capaz de realizar ao menos drenagem de abscesso, sutura, cantoplastia, biópsia por shave, punch ou excisional, crioterapia, eletrocauterização, manejo de calos, retirada de cistos, lipomas e lesões suspeitas com margem.

Durante o período de 1º de janeiro de 2021 e 31 de dezembro de 2023 foram realizados 13.138 procedimentos médicos nas unidades dos Territórios Integrados de Atenção à Saúde (TEIAS). A tendência de aumento observada com a inserção da residência médica nas unidades, tanto no número geral de procedimentos, como no quantitativo apenas daqueles que são exclusivamente médicos, vai ao encontro de estudos realizados em outros municípios brasileiros, como o Rio de Janeiro7.

Considerando a quantidade por USF, a USF Batistão foi responsável por 43% de todos os procedimentos realizados, enquanto as unidades Moreninhas e Tiradentes ocuparam o segundo lugar, cada uma com 10%. A USF Batistão permanece como a principal unidade mesmo ao se excluir procedimentos comuns a outros núcleos de conhecimento e enfocar procedimentos exclusivamente médicos. Isso pode indicar uma organização e disponibilidade em especial da equipe da unidade para o fornecimento desse serviço à população.

Percebe-se em especial a expressividade dos procedimentos comuns à equipe médica e à de enfermagem, como exame citopatológico (10,5%), de pé diabético (7,9%), testes rápidos para HIV, sífilis, hepatite B e C (15,3%, 15,3%, 13,1%, 12% e 2,3% respectivamente), inserção e retirada de DIU (14,3% e 3,9% respectivamente).

Em um estudo realizado em Residências de Medicina de Família licenciadas nos Estados Unidos da América (EUA), mais de 20% dos médicos relataram que a sua formação em residência não os preparou adequadamente para o implante ou inserção do DIU, e apenas 40% relataram a prestação destes serviços no cotidiano9. Esse estudo também apontou que médicos treinados com contato a atendimento ao Medicaid (programa governamental americano que fornece assistência à saúde apenas para pessoas de baixa renda) e médicas mulheres são mais propensos a fornecer esse tipo de procedimento e contracepção. Já no Brasil, estudo da Universidade Federal da Paraíba mostra que até 40% dos residentes em MFC demonstra dificuldade com a técnica de inserção de DIU10.

Outro trabalho estadunidense, realizado em 2008, encontrou que apenas 39% dos médicos de família relatam fornecer ou recomendar o DIU, em comparação com 89% dos ginecologistas-obstetras11. Além disso, em investigação recente, apenas cerca de 25% dos médicos de família inquiridos tinham inserido um DIU no ano anterior e que era pouco provável que a maioria recomendasse seu uso em situações comuns de pacientes em que não há contraindicação segundo as diretrizes atuais12. Além disso, aprender a inserir o DIU na residência está correlacionado com o aumento da probabilidade de inseri-lo rotineiramente na prática após a formação13.

Houve, ademais, realização expressiva de exérese de tumores superficiais (1,5% do total, 13,1% dos procedimentos exclusivamente médicos), realização de suturas simples (1,2%; 10%), drenagem de abscessos (0,06%; 5,6%) e cantoplastias (1,3%; 11,4%). Sua disponibilização gera resolutividade e é capaz de reduzir custos e referenciamento a serviços de atenção secundária e terciária14. Tal fato destaca a importância do treinamento adequado em técnicas cirúrgicas por parte dos residentes em Medicina de Família e Comunidade. Sua frequência e regularidade na realização permite que os futuros especialistas possam corrigir deficiências elementares e refinar as habilidades práticas4. Esses dados também são importantes quando comparados com estudos realizados em outros municípios, como o Rio de Janeiro, que mostrou que boa parte dos médicos responsáveis pelas equipes de saúde da família não se sentiam capacitados a realizar procedimentos como cantoplastia ou excisão de lesões de pele7.

Ressalta-se que esse também é um aspecto valorizado em países que tem seu serviço de saúde organizado com base na APS, e que já são bem consolidados, como o Reino Unido, onde foi mostrado que o treinamento em práticas cirúrgicas é valioso na prática clínica do médico da APS e, no contexto de residência médica, beneficia tanto o residente quanto o preceptor15. Do mesmo módulo, uma meta-análise apresenta que médicos da APS adequadamente treinados tem resultados equivalentes a cirurgiões gerais em diversas operações, em especial lesões de pele16.

A respeito dos procedimentos mais procurados, observa-se que a USF Batistão se destaca principalmente no registro de testes rápidos para infecções sexualmente transmissíveis e citopatológicos de colo de útero, enquanto a USF Noroeste se destaca no registro de exame do pé diabético. Os testes rápidos são procedimentos que ganharam grande destaque no contexto da APS desde que implementada a Portaria 77 de 2012, quando sua oferta passou a ser descentralizada, efetivada e estimulada, visto que reduz de maneira importante as complicações pelas IST17. Enquanto isso, o exame do pé diabético é recomendado regularmente como rastreio de complicações relacionadas ao diabetes mellitus pela Sociedade Brasileira de Diabetes18. Ambos tomam ainda mais relevância ao se considerar que estão incluídos nos indicadores de saúde do Previne Brasil19 ou seja, interferem diretamente no financiamento local da atenção primária.

Por outro lado, procedimentos como debridamentos de úlcera e necrose (0,5%), desbastamentos (0,2%) e infiltração em cavidade sinovial (1,2%) foram menos realizados. Enquanto os primeiros são de grande relevância no contexto do cuidado longitudinal aos pacientes, em especial ao considerar aqueles domiciliados e com mobilidade limitada20, as infiltrações aparecem em outros estudos dentre os procedimentos mais comuns7,21. Materiais insuficientes para realização dos procedimentos, ausência de período específico e tempo hábil, desinformação da população e pouco variabilidade no treinamento profissional são fatores que podem interferir na oferta desse serviço22.

Em um estudo realizado com residentes de Medicina de Família no Reino da Arábia Saudita, as três barreiras mais comumente relatadas foram pouco treinamento (59,9%), falta de preceptores (49,5%) e habilidades/experiência/confiança insuficientes (42,7%). As três barreiras menos relatadas foram pouco de interesse (58,9%), não ter sido autorizado a realizar o procedimento por um preceptor ou supervisor (52,6%) e recusa do paciente (48,4%)23.

Nesse estudo, também houve resultados sobre as formas mais eficazes de melhorar o desempenho dos residentes de MFC, como intensificar as atividades educacionais durante o programa de formação de residência (55,2% dos residentes) e realização de atividades extras (oficinas, simpósios e cursos) (34,4%)23.

Outro estudo, realizado na Croácia, avaliou o número de procedimentos (tratamento de cistos e abscessos, ressecções de unhas encravadas e manejo de pequenas feridas) realizados antes a após oferta de curso específico de prática cirúrgica. Houve diferença significativa no incremento de pequenos procedimentos cirúrgicos após o término curso4.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Deve-se considerar, em relação ao apresentado, uma possível discrepância entre os registros realizados nas unidades de saúde e a realidade, que poderiam ser atribuídas a registro inadequado em prontuário. Em especial, destaca-se que que os dados adquiridos via Prontuário Eletrônico não permitem distinção mais refinada entre procedimentos, e agrupam, por exemplo, excisão de lipoma, nevos, e cistos, dentre outros, dentro de um único grupo, o de exérese de tumores superficiais. Do mesmo modo, não há código específico disponível para eletrocauterização. Isso pode influenciar na aparente pouca quantidade, ou subnotificação, de procedimentos importantes, devido a inespecificidade de seu registro. Além disso, os dados adquiridos a partir do prontuário não permitiram a análise da frequência de cada procedimento comparada com outros determinantes, como idade e sexo, ou diferenciação da produção por profissional.

A educação continuada (EC), permanente e acessível é uma das medidas longitudinais que podem ajudar a otimizar toda a cartilha de serviços proposta pelas unidades da APS. A EC estimula a interdisciplinaridade por meio da interação da equipe de saúde, além de qualificar a assistência ao paciente. Ela deve ser uma ferramenta para promover o desenvolvimento das pessoas e assegurar a qualidade do atendimento aos clientes, devendo, também, ser voltada para a realidade institucional e necessidades do público24. O processo de residência em MFC envolve esse tipo de ensino, porém é variável pois depende das características de cada unidade de saúde, região e da população adscrita25.

A própria equipe de saúde pode atuar na resolução de limitações citadas acima. Um exemplo, que engloba a EC, é criação de cartilha física e digital para divulgação entre os agentes comunitários de saúde e a população adscrita, já que esses profissionais são o elo dentre a ESF e a comunidade, e demais profissionais da equipe.

Desse modo, pode-se propor, como ação adotada para estimular a realização dos procedimentos e o conhecimento da população sobre eles, a criação de uma cartilha para ser divulgada em meios digitais e impressa. Assim, estimular-se-ia o fortalecimento e resolubilidade na APS. Em associação, a oferta de oficinas específicas sobre procedimentos na APS também apresentam evidência de benefício na literatura26,27.

Além disso, esse estudo pode servir como estímulo e referência para o aprofundamento da compreensão do impacto do programa de especialização médica na disponibilização dos procedimentos ambulatoriais. Futuros trabalhos podem abordar os dados das unidades das unidades TEIAS em comparação às unidades sem residência, assim como detalhar o padrão de oferta desses serviços antes e depois da implantação do projeto da Fiocruz/Sesau.

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