PROBLEMAS ATÍPICOS, SOLUÇÕES COMPLEXAS: PROJETOS DE LEI COMO RESPOSTA À JUDICIALIZAÇÃO DO TRATAMENTO DO AUTISMO

ATYPICAL PROBLEMS, COMPLEX SOLUTIONS: LAW PROJECTS AS ANSWER TO THE JUDICIALIZATION OF AUTISM’S TREATMENT

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8150672


Natália Maria Silva Luz1


RESUMO

O Transtorno do Espectro Autista possui diversas faces, e consequentemente, diversos são os tipos de terapias que podem ser utilizadas para auxiliar o desenvolvimento e bem-estar dessas pessoas, entretanto muitas vezes o acesso aos tratamentos só é possível por meio de demandas judiciais. Esse artigo tem como objetivo debater as tentativas de resolver a questão da judicialização por meio de projetos de lei, tendo como justificativa o fato que projetos que delimitem ou especifiquem os tratamentos a serem cobertos podem não ser suficientes para resolver o problema da necessidade de buscar o Judiciário, visto que cada pessoa demanda atendimento específico. A pesquisa usa como base teórica autores como Danielli, Heringer e Querino, Do Val, Wilkenfend e McCarthy, entre outros, além de analisar o conteúdo de leis, projetos de lei e jurisprudência. O primeiro tópico buscou discorrer sobre a diversidade de estratégias empregadas no acompanhamento multidisciplinar personalizado do TEA, enquanto o segundo discutiu a judicialização como alternativa de acesso a esse acompanhamento na rede pública e privada. Por fim, o terceiro tópico comentou o PL 1917/21 e como ele pode afetar a situação da judicialização. O estudo conclui que o projeto de lei apresenta diversos pontos que podem ter impacto positivo na redução das demandas, mas não seria capaz de resolver completamente o problema.

Palavras chave: Transtorno do espectro autista. Direito à saúde. Judicialização.

ABSTRACT

The Autism Spectrum Disorder has many faces and, consequently, many are the kinds of therapy that can be used to help in the development and welfare of these people, however many times the access to these treatments are only possible through lawsuits. This paper has as objective to debate the attempts to solve the problem of judicialization through law projects, having as justification the fact that many projects that limit or specify the treatments to be covered can be unsufficient to solve the problem of needing to search the Judiciary, seeing that each person needs specific services. The research uses as theoric basis authors such as Danielli, Heringer and Querino, Do Val, Wilkenfend and McCarth, among others, besides analyzing the contente of laws,law projects and jurisprudence. The first topic sought to discourse about the diversity of strategies employed in the personalized multidisciplinar treatment of ASD, while the second discussed the judicialization as alternative to access these treatments in the public and private network. Lastly, the third topic commented on the PL 1917/21 and how it can affect the problem of judicialization. This study concludes that the law Project presentes many points that can have positive impact in the reduction of demands, but that it wouldn’t be able to completely solve the problem.

Keywords: Autism Spectrum Disorder. Health rights. Judicialization.

INTRODUÇÃO

A tentativa de assegurar o cumprimento de direitos básicos através do Poder Judiciário é uma situação corriqueira no Brasil. Na chamada judicialização da saúde, pessoas buscam por vagas em hospitais, acesso a tratamentos de valor elevado, ou mesmo simplesmente garantir que um procedimento ocorra em tempo hábil. Essa prática é direcionada tanto à rede pública, onde a demanda por leitos e pelo custeio de medicamentos é comum, quanto à rede privada, através de litigância sobre quais procedimentos os planos de saúde devem pagar.

Nesse meio, destaca-se a situação de pessoas que buscam o custeio de terapias voltadas para o bem-estar e desenvolvimento social de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Caracterizado por déficits persistentes na habilidade de iniciar e manter interações sociais recíprocas e comunicação social, e por comportamentos ou interesses repetitivos ou inflexíveis, pode se manifestar tanto nos estágios iniciais do desenvolvimento, como mais tarde, quando as demandas sociais ultrapassarem as habilidades do indivíduo.

Entretanto, a característica mais marcante, e exemplificada na própria denominação, é de que se trata de um espectro de comportamentos. Enquanto alguns indivíduos apresentam severas limitações na sua comunicação ou habilidades cognitivas, outros vivem anos, décadas, sem que haja necessidade de nenhuma intervenção especializada, ou mesmo um diagnóstico. Essa variedade de maneiras que o TEA se manifesta faz com que as intervenções médicas sejam necessariamente multidisciplinares e altamente personalizadas, e isso traz custos elevados.

Numa tentativa de resolver o problema da dificuldade de acesso ao acompanhamento necessário e consequente judicialização, diversos são os projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional que buscam regulamentar o assunto de alguma maneira. Alguns são direcionados ao Sistema Único de Saúde, outros aos planos de saúde privados; uns buscam assegurar o custeio de tratamentos experimentais, enquanto outros ainda preveem a adoção apenas de tratamentos comprovados cientificamente. A proposta mais recente, o projeto de lei 1917/2021, que busca obrigar planos e seguros de saúde a fornecer atendimento multiprofissional, é um exemplo desse fenômeno.

Surge então o questionamento de qual o papel dessas propostas na solução da judicialização das terapias relacionadas ao TEA, em especial o PL 1502. Dessa forma, o artigo tem como objetivo debater as tentativas de resolver a questão da judicialização por meio de PL, tendo como justificativa o fato que projetos que delimitem ou especifiquem os tratamentos a serem cobertos podem não ser suficientes para resolver o problema da necessidade de buscar o Judiciário, visto que cada pessoa demanda atendimento específico.

O primeiro tópico buscará discorrer sobre a diversidade de estratégias empregadas no acompanhamento multidisciplinar personalizado do TEA, enquanto o segundo irá discutir a judicialização como alternativa de acesso a esse acompanhamento na rede pública e privada. Por fim, o terceiro tópico irá comentar o PL 1917/21 e como ele pode afetar a situação da judicialização.

Quanto à metodologia, foi escolhida a pesquisa bibliográfica doutrinária e legislativa, com foco na análise do projeto de lei mencionado. O recorte territorial escolhido foi o nacional, enquanto 2021 foi selecionado como recorte temporal. Apesar de haverem outros projetos em tramitação que tratam sobre o tema, inclusive propostos em 2021, foi escolhido para análise apenas o mais recente como forma de ilustrar a forma como o tema está sendo discutido atualmente no Congresso, em razão dos limites de extensão do texto.

1 AS INÚMERAS FACES DO TEA E A PROTEÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

Segundo a mais recente publicação da Classificação Internacional de Doenças (CID-11) de 2019, o TEA reúne diversos diagnósticos anteriormente categorizados como parte dos Transtornos Globais do Desenvolvimento. Esse movimento segue a tendência estabelecida anos antes pelo Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), como uma forma de facilitar a identificação precoce das características marcantes e possibilitar o acompanhamento desde a primeira infância.

Enquanto classificações anteriores recomendavam o diagnóstico a partir dos cinco anos, atualmente o consenso é que quanto mais cedo forem detectados os sinais, melhor o prognóstico para o desenvolvimento da pessoa.

Há também evidência de que, a partir dos 12 meses de idade, as crianças que mais tarde recebem o diagnóstico de TEA distinguem-se claramente daquelas que continuam a desenvolver-se tipicamente em relação à frequência de gestos comunicativos (apontar) e da resposta ao nome. Outros sinais já aparentes aos 12 meses de idade incluem o manuseio atípico de objetos (enfileirar ou girar os brinquedos) e/ou sua exploração visual. (SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA, 2019, p. 2)

O diagnóstico é um procedimento clínico, realizado através da observação direta do comportamento pelo profissional de saúde e pelos relatos de pais ou responsáveis (SANT’ANA, SANTOS, 2015, p. 101), ou, no caso de pacientes adultos, relatos próprios quando possível. A constatação de alterações sensoriais, de comunicação, cognição e socialização deve ser realizada em conjunto.

Pela forma como se manifesta, é comum na comunidade autista o dizer que “se você conhece uma pessoa com autismo, você conhece uma pessoa com autismo” (WILKENFELD, MCCARTHY, 2020, p. 33), no sentido que nenhuma é igual, ou tem as mesmas necessidades de qualquer outra. Levando em conta que o TEA afeta os mais variados campos do desenvolvimento, desde a comunicação, habilidades motoras, até a seletividade alimentar, as terapias empregadas com a finalidade de potencializar a qualidade de vida do indivíduo são também diversas.

A busca por tratamentos com embasamento científico, com resultados visíveis, é um desafio comum à qualidade de vida da pessoa com TEA. O uso de intervenções sem adequada fundamentação teórica, além de ocasionar gastos desnecessários, adiam o real enfrentamento das dificuldades, atrapalhando o tratamento precoce atualmente recomendado (SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA, 2019, p. 16). Dentre os protocolos de intervenção mais discutidos, tanto no meio científico quanto entre familiares, está a Análise de Comportamento Aplicada (Applied Behavior Analysis – ABA).

Esta metodologia trata-se de um processo que busca modificar os comportamentos através do direcionamento, através da aplicação de princípios de aprendizagem operantes, para outros mais viáveis (HERINGER, QUERINO , 2019, p. 346). Existem estudos que apontam o maior sucesso dessa corrente em proporcionar à pessoa com TEA habilidades necessárias para o convívio social, com repercussão até a vida adulta quando utilizado de forma continuada (DILLENBURGER, MCKERR, JORDAN, 2014, p. 136)

Entretanto, essa metodologia sofre críticas duras quanto à possibilidade de violação da autonomia tanto da pessoa com TEA quanto dos familiares, quando imposta. Segundo Wilkenfeld e McCarthy (2020, p. 43), o ABA ataca manifestações de certas preferências, paixões, interesses ou desejos de crianças pequenas, e busca “corrigir” estes comportamentos, mesmo que estes não sejam prejudiciais. Os resultados que o ABA promete seriam nada mais do que a supressão da individualidade, e a promoção de comportamentos ditos típicos sem que haja uma real mudança cognitiva. Não um tratamento, mas um treinamento.

Além da intervenção comportamental, destacam-se também a necessidade pontual de acompanhamento fonoaudiólogo quando há dificuldades na vocalização, nutricional quando há seletividade alimentar ou sensibilidade sensorial que afete o paladar, entre outros. Mesmo o cuidado odontológico necessita uma atenção especial, visto que a experiência é por vezes suficiente para causar superestimulação e crises.

O direito à saúde de pessoas com TEA, em especial ao acesso a ações com vistas à atenção integral às suas necessidades, está previsto atualmente na lei nº 12.764 de 27 de setembro de 2012, conhecida como lei Berenice Piana. Esse documento institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, estabelecendo como critérios para caracterização:

I – deficiência persistente e clinicamente significativa da comunicação e da interação sociais, manifestada por deficiência marcada de comunicação verbal e não verbal usada para interação social; ausência de reciprocidade social; falência em desenvolver e manter relações apropriadas ao seu nível de desenvolvimento;

II – padrões restritivos e repetitivos de comportamentos, interesses e atividades, manifestados por comportamentos motores ou verbais estereotipados ou por comportamentos sensoriais incomuns; excessiva aderência a rotinas e padrões de comportamento ritualizados; interesses restritos e fixos. (BRASIL, 2012)

A pessoa com TEA passa a ser considerada, para todos os efeitos legais, como pessoa com deficiência. Segundo Huguenin e Zonzin, (2016, p. 16) esse dispositivo abre possibilidades antes inacessíveis a essas pessoas, como inúmeras ações de proteção e tratamento. Acomodações no sistema educacional e de saúde, no mercado de trabalho, com o objetivo de permitir a integração eram algumas das maiores reivindicações de ativistas, e a partir de então garantidas por lei.

São assegurados, além daqueles inerentes a todos e específicos à pessoa com deficiência, a vida digna, a integridade física e moral, o livre desenvolvimento da personalidade, a segurança e o lazer. Esses direitos “se apresentam como garantias que propiciam atingir esse estado de bem-estar, obtido pela harmonia dos fatores sociais que juntos proporcionam a sua qualidade de vida.” (OLIVEIRA, 2020, p. 140)

Essa lei é considerada uma conquista no campo de políticas públicas inclusivas voltadas para o TEA, por trazer previsões essenciais como aquelas relacionadas às necessidades especiais quanto à educação e saúde. Dentre estes, enumera, medidas em consonância com o recomendado por organizações de saúde, como diagnóstico precoce, ainda que não definitivo, o atendimento multiprofissional, a nutrição adequada e a terapia nutricional, os medicamentos e informações que auxiliem no diagnóstico e no tratamento.

É vedado qualquer forma de tratamento desumano ou degradante, a privação da liberdade ou convívio familiar, e a discriminação motivada pela deficiência, como reflexo dos resultados da luta antimanicomial. Essas medidas, segundo Feldman (2020, p. 97) que buscam combater as formas de exclusão, defendendo a tolerância e o respeito pela diferença, influenciaram o texto legal, que busca a integração da pessoa com TEA à sociedade, de maneira que a sua retirada desse meio pela internação só deve ocorrer em último caso. Por fim, essa lei proíbe planos de saúde privados de impedir o acesso da pessoa com TEA aos seus serviços em razão da deficiência

O decreto nº 8.368, de 2 de dezembro de 2014, que regulamenta a lei Berenice Piana, por sua vez, garante o atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), delegando ao Ministério da Saúde diversas competências relacionadas ao atendimento dessas pessoas. Em seguida, o decreto preconiza o cuidado integral no âmbito da atenção básica, especializada e hospitalar, a qualificação da rede de saúde de maneira que o atendimento a pessoas com TEA “envolva diagnóstico diferencial, estimulação precoce, habilitação, reabilitação e outros procedimentos definidos pelo projeto terapêutico singular” (BRASIL, 2014).

O fomento à pesquisa científica, enumerado pela lei Berenice Piana, é atribuído pelo decreto também ao Ministério da Saúde, com previsão da possibilidade de parcerias com entes privados. O próprio processo de ativismo envolvido na luta pelo reconhecimento desses direitos, segundo Hughenin e Zonzin (2016, p. 18) faz com que muitas vezes essas organizações tenham mais conhecimento prático das necessidades das pessoas com TEA que os entes públicos. As parcerias seriam então, indispensáveis à implementação de políticas eficazes.

O atendimento, assegurado tanto na rede pública quanto na rede privada, também foi regulamentado posteriormente. Na rede pública

assim como para todos os outros usuários do SUS, tem na Atenção Básica (AB) a sua porta principal de entrada. Na AB ocorrem as ações de acolhimento e de acompanhamento, do pré-natal ao desenvolvimento infantil. Esse ponto da RAPS é importante na identificação precoce dos sinais do TEA e no encaminhamento aos serviços especializados, como o diagnóstico, prevenção de agravos e serviços de reabilitação, através dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), que são componentes da AB. (ARAÚJO, VERAS, VARELLA, 2019, p. 93)

Alterando o Estatuto da Criança e do Adolescente, a lei nº 13.438, de 26 de abril de 2017, torna obrigatória “a aplicação a todas as crianças, nos seus primeiros dezoito meses de vida, de protocolo ou outro instrumento construído com a finalidade de facilitar a detecção, em consulta pediátrica de acompanhamento da criança, de risco para o seu desenvolvimento psíquico.” Essa medida coincide com as orientações de detecção e intervenção precoces como principal ferramenta para um melhor prognóstico e menor sofrimento mental possível no futuro.

Nos planos de saúde privados, além da previsão de não discriminação na participação e cobertura, foram implementadas modificações recentes visando ampliar os atendimentos. A resolução normativa da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) nº 469, de 09 de julho de 2021, implementou cobertura obrigatória de sessões ilimitadas com fonoaudiólogos, psicólogos e terapeutas ocupacionais para pacientes com TEA.

Percebe-se que nos últimos anos foram diversos os esforços no sentido de regulamentar, de enumerar e expandir de maneira específica os direitos dessas pessoas. A previsão legal do atendimento à saúde diversificado e personalizado existe, entretanto, a quantidade de demandas judiciais que buscam exatamente o acesso a esse direito já garantido mostra uma realidade diferente.

2 O DILEMA DA JUDICIALIZAÇÃO

O fenômeno da judicialização dos direitos sociais no Brasil é multifacetado. Por um lado, ele representa a inoperância do Poder Público em realizar conteúdos previstos a décadas na CF/88; ao mesmo tempo, demandas com alto grau de especialização que fogem ao que pode ser considerada prestação básica e com altos custos tornam-se corriqueiras no Judiciário. Uma das principais críticas é a invasão das competências do Executivo e Legislativo, e a falta de consideração dos magistrados pelo impacto econômico de suas decisões.

Apesar de a exigência do cumprimento de direitos pela via judiciária, em especial direitos políticos e civis, ser comum, esse critério econômico é rotineiramente levantado quando essa via é utilizada para reclamar direitos sociais.

Enquanto os direitos civis e políticos são tradicionalmente identificados como direitos negativos, não onerosos, facilmente exigíveis e, ademais, de fácil proteção, os direitos sociais são habitualmente apontados como direitos positivos, onerosos, vagos, indeterminados e de eficácia mediata, condicionados, na sua concretização, por critérios de razoabilidade ou de disponibilidade, à reserva do possível, ou seja, a contingências, sobretudo a contingências econômico-financeiras, em um claro contexto de disputas alocativas. (SCHWARZ, 2016, p. 269)

Essas demandas ocorrem tanto contra o Estado, na prestação pública por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), quanto aos planos privados de saúde suplementar. Segundo Danielli (20XX, p. 65), a criação e estruturação do SUS “não esgotam os esforços em prol da concretização desse direito fundamental”.

Apesar de se destacarem os pedidos por tratamentos experimentais, e de custo muito elevado[2], o SUS é também alvo de demandas mais corriqueiras como leitos hospitalares, “capacitação dos profissionais, a adequação de instalações físicas, a alteração na metodologia de tratamento e o aumento do efetivo” (NUNES, ORTEGA, 2016). Os planos de saúde, por sua vez, são comumente demandados por negação à cobertura de tratamentos e limitação do número de sessões (HERINGUER, QUERINO, 2019, p. 348).

2Essas demandas se popularizaram na década de 1990, através de pedidos pelo custeio do tratamento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), tanto individuais como coletivas. Os repetidos pedidos levaram à edição da lei nº9.313, de 13 de novembro de 1996, garantindo a cobertura completa da medicação pelo SUS. (DANIELLI, 2016)

A resposta dos tribunais superiores a essas demandas é variada. Em 2020 o Supremo Tribunal Federal julgou, com repercussão geral, a não obrigatoriedade do Estado pelo fornecimento de medicamentos experimentais. Essa tese inclusive afirma que, em regra, a ausência de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) impede a concessão pela via judicial, estabelecendo, entretanto, exceções.

É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);(ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. (STF, 2020)

A cobertura de tratamentos similares pelos planos de saúde privados tem visão mais fragmentária. Pedidos relacionados a tratamentos não incluídos no rol de cobertura obrigatória previstos na resolução normativa nº 465 da ANS e por isso rotineiramente recusados pelos planos, são alvo de divergência no posicionamento das diferentes Turmas do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Em acórdão publicado em 2017, a 3ª Turma afirmou que o rol de procedimentos tem caráter meramente exemplificativo, e a ausência de previsão de determinado procedimento não enseja a sua não cobertura pelo plano de saúde (STJ, 2017, p. 1-2). Esse posicionamento não foi uma inovação nos julgamentos dessa Turma, que já vinha adotando a visão de que a lista de procedimentos da ANS tinha caráter de cobertura mínima, mas que os planos poderiam ser demandados por outros não listados mesmo assim.

Entretanto, esse posicionamento encontra divergência dentro do próprio STJ. A 4ªa Turma, em 2019, adotou postura contrária, afirmando que tal entendimento seria inviável. Nomeando como paradoxal considerar o rol ao mesmo tempo exemplificativo, mínimo e ilimitado, a Turma reitera que tal posição teria como consequência “encarecer e efetivamente padronizar os planos de saúde, obrigando-lhes, tacitamente, a fornecer qualquer tratamento prescrito, restringindo a livre concorrência” (2019, p.2).

O entendimento adotado pela 4ª Turma, além de contrariar aquele pelo qual a 3ª Turma optou repetidamente, também contraria súmulas estaduais. A exemplo, o Tribunal de Justiça de São Paulo afirma, na súmula 102, ser abusiva a negação de custeio por plano de tratamento sob a justificativa de não haver previsão no rol da ANS, desde que haja expressa indicação médica. Em julgamento de 2020, a 3ª Turma novamente afirmou seu posicionamento.

3. Em que pese a existência de precedente da eg. Quarta Turma de que seria legítima a recusa de cobertura com base no rol de procedimentos mínimos da ANS, esta eg. Terceira Turma, no julgamento do AgInt no REsp nº 1.829.583/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, julgado aos 22/6/2020, reafirmou sua jurisprudência no sentido do caráter exemplificativo do referido rol de procedimentos. (STJ, 2020, p. 1-2)

Mesmo com a imprevisibilidade das decisões judiciais, para as pessoas com TEA esse é às vezes o único caminho viável para buscar o custeio de tratamentos, seja junto ao SUS ou aos planos privados. Segundo Nunes e Ortega (2016), os altos valores, que podem chegar a quase dez mil reais por mês, dividem os indivíduos entre aqueles cujas famílias tem condições de arcar com os tratamentos, e aqueles que vão depender da rede pública de saúde mental disponível nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs), descrita como insuficiente e inadequada.

Na seara privada, a judicialização confronta o posicionamento dos planos de saúde e quais tratamentos devem ser custeados. A lei Berenice Piana garante a participação dessas pessoas nos planos privados, no entanto, estes se apoiam no entendimento jurisprudencial que afirma a não obrigatoriedade de cobertura de tratamentos não previstos no rol da ANS, o que prejudica o real acesso à saúde (HERINGER, QUERINO, 2019, p. 348).

Além da busca individual, também são encontradas demandas coletivas sobre o tema. Em Ação Civil Pública, o Ministério Público Federal pleiteou, ainda em 2019, pelo fim da limitação ao número de sessões no então rol de procedimentos mínimos da ANS, além da inclusão do ABA entre esses. Apesar de não obter sucesso nesse pleito, a demanda é um exemplo da diversidade de casos que o Judiciário recebe sobre o acompanhamento do TEA.

Ao final, a resolução nº 465 da ANS de 2019 acabou por estabelecer número ilimitado de sessões com fonoaudiólogos, psicólogos e terapeutas ocupacionais como mínimo, em resposta ao que figurava como um dos maiores causadores de demandas judiciais sobre planos de saúde relacionadas ao acompanhamento do TEA. Entretanto, essas alterações não são por si suficientes. As especificidades de cada acompanhamento são definidas pelo médico atendente de acordo com as necessidades de cada pessoa, e demandam tempo. A proibição da limitação das sessões atinge o segundo, mas no momento em que se restringe a apenas duas especialidades, não resolve o primeiro.

Algumas demandas buscam o custeio de tratamentos, enquanto outras lutam pela expansão da carga horária. O que cada pedido judicial irá buscar depende das características da pessoa com TEA cujas necessidades o fundamentam. Essa variedade de tratamentos é assegurada pela lei Berenice Piana, mas, ao menos no caso dos planos de saúde, encontra resistência na listagem de opções presentes no rol da ANS (DO VAL, 2021, p. 179).

A exemplo ainda mais direto de quão específicas essas necessidades, e por consequência as demandas judiciais, podem ser de acordo com o caso, tem-se uma decisão do Tribunal de Justiça do Paraná, concedendo, além da cobertura do acompanhamento multidisciplinar, a manutenção do tratamento com os mesmos profissionais aos quais a criança com TEA já era acostumada.

No pedido, a família alegou que a mudança poderia causar danos ao desenvolvimento, visto que uma das características da menina era a dificuldade em criar novos vínculos. Na decisão, concedida por unanimidade, o relator afirmou ainda que “vê-se que o pedido para que sejam mantidos os médicos com os quais a paciente já vinha sendo atendida não se trata de preciosismo ou privilégio, mas de uma necessidade médica devidamente comprovada e inerente à condição da criança”[3].

Além disso, cada vez mais são buscados tratamentos fora das listas tradicionais, em especial o ABA. Com alto volume de atividades interventivas, essa técnica parece extremamente atrativa aos familiares, pautados em um senso de urgência por resultados. Segundo Rios e Camargo Junior (2019), é comum a expectativa de que o desenvolvimento de habilidades sociais por meio de técnicas como essa possam resultar numa saída do espectro, ou um deslocamento de um diagnóstico mais grave para um mais leve.

Se, nos anos 1950/1960, as terapias de autismo seguem o ritmo lento da autodescoberta, estendendo-se por longos períodos de espera paciente, nas contemporâneas há um senso de urgência, um ritmo acelerado por atividades mais curtas e estruturadas, nas quais cada avanço, não importa quão pequeno, passa a ser observado e mensurado. (RIOS, CAMARGO JUNIOR, 2019)

Para familiares que buscam atendimento com a esperança de resultados benéficos visíveis, a judicialização, apesar de se apresentar como último recurso, é tão insegura quanto a dependência dos programas do SUS ou da liberação de sessões pelos planos. A variedade de entendimentos apresentada faz com que o resultado da demanda dependa da sorte no momento da distribuição do processo.

Mudanças legislativas, como a alteração do rol de procedimentos da ANS, são uma alternativa à insegurança jurídica da judicialização. Diversas propostas diferentes estão em tramitação no Congresso Nacional contendo termos que buscam melhorar o acesso aos tratamentos, ainda que às vezes com textos contraditórios. A mais recente delas, o PL 1917, apresentado à Câmara dos Deputados em 24 de maio de 2021, que busca obrigar planos de saúde a fornecerem todos os tratamentos indicados pelo profissional de saúde, dá grande ênfase ao custeio de terapias baseadas no ABA. A diversidade de necessidades pleiteadas judicialmente, entretanto, faz com que se questione quais os possíveis impactos da aprovação de um projeto como esse.

3Mais informações disponíveis em: https://www.tjpr.jus.br/destaques/-/asset_publisher/1lKI/content/justica-determina-que-o-estado-custeie-o-tratamento-de-uma-crianca-autista/18319?inheritRedirect=false

3 O PL 1917/21: PROPOSTAS LEGISTATIVAS COMO POSSÍVEL SOLUÇÃO

A quantidade de tentativas de reduzir a insegurança jurídica que a busca judicial por tratamentos para o TEA através de projetos de lei é um indicativo da situação de urgência vivenciada por muitas famílias. Apenas no primeiro semestre de 2021, três diferentes propostas já foram apresentadas para apreciação pelo Congresso Nacional, cada uma buscando de uma maneira diferente resolver parte do problema.

O PL 630, de 1º de março de 2021, propõe alterar a lei Berenice Piana, incluindo a previsão de fomento pelo Poder Público a projetos e programas específicos de atenção à saúde e educação especializada para pessoas com TEA. Já o PL 1502, de 22 de abril de 2021, busca também alterar essa lei, com a previsão de que os protocolos utilizados tanto na rede pública quanto privada de atenção devem ter comprovação científica. Esse PL prevê especificamente a disponibilização do ABA pelo SUS, e a vedação a tratamento desumano ou degradante sem comprovação científica.

O PL 1917, mais recente até a produção desse artigo, entretanto, não busca alterar a legislação já existente, mas a criação de um novo dispositivo. Apresentado em 24 de maio de 2021, essa proposta tem como alvo a atenção fornecida pelos planos de saúde, com o objetivo de assegurar o atendimento multiprofissional previsto na lei Berenice Piana.

Uma peculiaridade do texto apresentado é que ele não restringe o acesso a esse atendimento às pessoas com diagnósticos fechados, mas sim o estendendo a qualquer um que apresente “atrasos no seu desenvolvimento que indiquem risco de TEA”. Essa orientação busca assegurar o acompanhamento multidisciplinar precoce, conforme recomendado inclusive pela Sociedade Brasileira de Pediatria.

[…] apesar do diagnóstico de TEA poder ser confiavelmente detectado até os 2 anos, a média no nosso país tem sido por volta dos 6 anos e este atraso de pelo menos 36 meses tem trazido maior morbidade e pior uso da plasticidade neuronal nos primeiros anos de vida, essenciais para intervenção precoce no autista. (SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA, 2019, p. 8)

A oportunidade de usufruir da cobertura dos planos de saúde mesmo sem um diagnóstico definitivo do TEA é uma medida que tem o possível condão de apresentar um impacto positivo quanto à necessidade de buscar o Judiciário para assegurar o atendimento nessas hipóteses. O texto acompanha o conhecimento científico atual de que as terapias podem ser benéficas mesmo que o diagnóstico não seja do TEA, ao trabalhar sobre as necessidades específicas da criança num momento em que há uma maior capacidade de resposta.

Em seguida, o PL lista o que considera como atendimento multidisciplinar. Segundo a proposta, essa atenção envolve serviços como fonoaudiologia, psicologia, terapia ocupacional, psicopedagogia, psicomotricidade, musicoterapia, educação física e outras terapias baseadas na ABA. Essa lista é mais completa do que aquela que prevê o rol da ANS, que se restringe a fonoaudiologia, psicologia e terapia ocupacional. A primeira versão desse PL, apresentado em 12 de novembro de 2020 sob a numeração 5158, não trazia a previsão da psicomotricidade, musicoterapia e educação física.

Essas alterações, com destaque para a presença de musicoterapia, e o enfoque nas terapias da ABA no PL demonstram uma sintonia entre o legislador e o que é buscado no Judiciário. A musicoterapia figura como uma das intervenções mais negadas por planos de saúde pela sua característica de se tratar de um método ainda não convencional, apesar de já ser indicada por apresentar melhoras no desenvolvimento de habilidades sociais através de um meio lúdico (DO VAL, 2021, p. 170). A ela juntam-se as terapias baseadas na ABA, que são também muito demandadas pela possibilidade de resultados práticos que a tornam atrativas para familiares, mesmo com as controvérsias sobre o seu uso.

O elevado custo dos tratamentos, também utilizado como justificativa pelos planos para recusar ou limitar procedimentos recomendados pelos médicos responsáveis, é lembrado pelo legislador nesse projeto. Para a utilização das terapias da ABA, o PL aponta o uso do modelo supervisor e assistente terapêutico, onde o primeiro é responsável pela avaliação periódica, elaboração do plano de intervenção e orientação, enquanto o segundo seria responsável por trabalhar diretamente com a pessoa com TEA.

A diferença entre esses profissionais é estabelecida na formação: o supervisor como um profissional com ao menos especialização lato sensu, enquanto ao assistente não seria exigido um grau tão elevado de formação. Conforme a justificativa do PL,

um mesmo especialista passa a poder acompanhar dezenas de casos simultaneamente, inclusive em localidades distantes, mitigando a falta de especialistas da área e reduzindo o custo. Por fim, em razão de o assistente terapêutico ser um profissional com menor experiência e formação inferior, o preço da sua hora de atendimento também é menor. (BRASIL, 2021, p. 3)

A busca por um equilíbrio econômico, uma alternativa que permita reduzir custos ao mesmo tempo em que permite o acesso das pessoas com TEA às intervenções que elas precisam é importante, visto que esse conflito é o gerador de várias demandas judiciais. Além disso, esse sistema permitiria a supervisão do tratamento por um profissional mais qualificado mesmo em locais onde estes não estejam disponíveis pessoalmente. O PL reconhece a “intensidade exigida e da escassez de profissionais que forneçam o tratamento”, e procura apresentar soluções.

Numa corrente similar à das alterações realizadas em 2021 no rol de procedimentos da ANS, o PL também trata da carga horária mínima que deve ser custeada pelos planos. O texto propõe que o plano deve cobrir as horas mínimas conforme indicado pelo médico ou psicólogo responsável pelo acompanhamento do segurado. Segundo Heringer e Querino (2019, p. 349), a decisão de qual terapia se adequa melhor às condições do paciente deve ser do médico, não do plano, de maneira que a reiteração de que a carga horária necessária também deve ser respeitada, seguindo-se as recomendações do profissional de saúde, é um ponto positivo.

Como carga horária mínima semanal, o PL prevê que os planos devem autorizar ao menos 15 (quinze) horas, independentemente do número de sessões. Esse texto, juntamente com o novo posicionamento da ANS que estabelece número ilimitado de sessões para algumas especialidades ligadas ao TEA, estão de acordo com as necessidades de terapias relacionadas ao desenvolvimento de habilidades, que demandam um tempo longo.

Metodologias baseadas na ABA requerem uma alta carga horária semanal, por vezes 25 (vinte e cinco) a 40 (quarenta) horas (WILKENFELD, MCCARTHY, 2020, p. 38), e a limitação a uma ou duas sessões semanais efetivamente impede a sua utilização. Tentativas dos planos de autorizar apenas uma ou duas sessões por semana prejudicam qualquer chance de melhora que a pessoa teria. Nas palavras de Gadia (2019) “para uma criança com autismo, uma hora por semana de terapia é o mesmo que nenhuma terapia. Não existe método algum de abordagem para o TEA que dê resultado neste tempo”.

As críticas que esse tipo de terapia recebe não alteram o fato de que ela é uma das principais demandas relacionadas ao TEA. A legislação do PL a traz em destaque, em reconhecimento a essa busca por familiares, mas acerta também ao apresentá-la apenas como mais uma entre uma extensa lista a ser posta à disposição da pessoa com TEA, da família e dos profissionais responsáveis.

Por fim, o PL trata da hipótese de o plano não dispor em sua rede credenciada de estrutura ou clínica especializada que oferte as terapias necessárias. Nesse caso, o texto prevê o reembolso obrigatório das despesas com os profissionais recomendados pelo médico responsável, desde que estejam entre os previstos nos artigos anteriores. Os altos custos das terapias, associados à pouca cobertura dos planos faz com que segurados tenham que procurar assistência fora do serviço que já pagam.

O PL menciona em sua justificativa motivos como a prevalência do TEA conforme pesquisas em outros países, a importância do diagnóstico e intervenção precoces, a escassez de profissionais qualificados e os altos custos das terapias, e tenta conciliar soluções que beneficiem as pessoas com TEA sem prejudicar o equilíbrio econômico dos planos de saúde. Os tópicos tratados no curto texto da proposta legislativa são, de fato, comuns àqueles que justificam grande parte dos pedidos de judiciais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Qualquer discussão sobre o TEA é, em regra, complexa. Como o próprio nome, o espectro de características marcadoras, de necessidades e peculiaridades, abrange uma variedade de pessoas que ainda é difícil de determinar. Essa complexidade se reflete com clareza nas demandas judiciais que buscam assegurar a essas pessoas o direito à saúde que lhes é devido, e também nas tentativas de solucionar, ou ao menos minimizar, o problema.

As propostas legislativas como alternativa à judicialização têm o mérito de proporcionar segurança jurídica, através da estabilização e padronização dos direitos e obrigações. Conforme demonstrado, a dependência do entendimento de cada órgão julgador faz com que pessoas em situações similares tenham tratamentos diferentes de acordo com critérios como a mera distribuição de processos. Essa prática em nada ajuda a proteger os direitos de pessoas que já são estigmatizadas simplesmente por não se encaixarem no que é considerado típico.

O PL analisado traz uma proposta sólida, em consonância com as principais demandas atuais. Tanto o texto legal quanto a justificativa deixam claro que é um projeto que tem por objetivo a busca por um equilíbrio entre a proteção e o desenvolvimento saudável das pessoas com TEA, e as constantes queixas de sobrecarga orçamentária dos planos de saúde. Com um rol de atividades multidisciplinares mais amplo e diversificado que o já contemplado em lei, e a previsão de uma alta carga horária mínima semanal que deve ser cumprida, ele também demonstra uma tentativa de acompanhar as constantes mudanças trazidas pelo avanço do conhecimento científico.

Alguns comentários a respeito do seu possível impacto sobre as demandas judiciais, caso o PL venha a ser aprovado e transformado em lei, são oportunos. Ao passo que o projeto traz uma lista fechada de procedimentos a serem cobertos, e principalmente vincula o reembolso de valores gastos à presença do procedimento entre os previstos, ele deixa descoberto tanto terapias menos comuns já utilizadas, como a fisioterapia, quanto outras que possam vir a ser aplicadas. Essas intervenções, da maneira como se encontra a redação do dispositivo, continuariam descobertas e passíveis de recusas, e consequentemente demandas judiciais.

Outro ponto passível de discussão, comum não apenas a essa lei, mas também a grande parte da literatura, é o grande foco na criança com TEA, em detrimento do adulto. Como resultado das décadas de luta antimanicomial, e avanços médico-científicos no estudo das neurodivergências, a presença de adultos com TEA em sociedade é algo que não pode ser ignorado em favor do tratamento durante a infância que busca principalmente adequar o indivíduo ao mundo. Uma maneira de descobrir quais as demandas dessas pessoas seria ouvir grupos compostos por pessoas com TEA adultas, além dos grupos de pais e familiares que comumente encabeçam as discussões.

Mesurar o impacto de uma lei com conteúdo assim de maneira completamente precisa não é possível, mas ao mesmo tempo percebe-se que a regulamentação dos temas mais judicializados poderia contribuir para a redução da necessidade de demandas ao Judiciário. Não o seu fim, pois a exemplo da família que pedia a manutenção dos mesmos profissionais, é inviável tentar fixar todas as hipóteses em textos legais, mas uma redução significativa. De qualquer forma, a mera existência de projetos como este, que trazem o TEA para o centro das discussões, já é uma vitória para uma identidade historicamente tão suprimido.

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1Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza. Pós-graduada em Direito Penal e Processual Penal pelo Instituto de Educação Superior Raimundo Sá. Graduada em Direito pelo Instituto de Educação Superior Raimundo Sá.