UNIDROIT PRINCIPLES AND CISG: STRENGTHENING PREDICTABILITY AND SECURITY IN INTERNATIONAL TRADE
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202505071717
Luiza Bezerra e Mariana Marcondes1
Resumo
O presente trabalho analisa a atuação conjunta da Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG) e dos Princípios UNIDROIT na harmonização do direito contratual internacional. O estudo explora como os Princípios UNIDROT complementam a CISG, atuando como instrumento interpretativo e supletivo na solução de lacunas normativas, com especial atenção aos temas da boa-fé objetiva, hardship e equilíbrio contratual. A pesquisa adota uma abordagem doutrinária e jurisprudencial, examinando casos relevantes de aplicação arbitral e comparando a interação desses instrumentos com o direito brasileiro. A metodologia baseia-se em análise qualitativa e comparativa, utilizando referências bibliográficas especializadas e decisões arbitrais internacionais. Os resultados indicam que a aplicação articulada da CISG e dos Princípios UNIDROIT proporciona maior previsibilidade, segurança jurídica e flexibilidade às transações comerciais internacionais, reforçando a autonomia da vontade das partes e promovendo maior uniformidade interpretativa. Contudo, o trabalho ressalta a necessidade de aplicação criteriosa dos Princípios UNIDROIT, a fim de evitar desvios dos objetivos centrais da CISG. Conclui-se que a integração dos dois instrumentos é fundamental para o fortalecimento da prática contratual internacional, oferecendo soluções eficazes para os desafios impostos pela dinâmica do comércio globalizado.
Palavras-chave: CISG. Princípios UNIDROIT. Direito Contratual Internacional. Hardship. Boa-fé objetiva.
Abstract
This paper analyzes the joint action of the United Nations Convention on Contracts for the International Sale of Goods (CISG) and the UNIDROIT Principles in the harmonization of international contract law. The study explores how the UNIDROIT Principles complement the CISG, acting as an interpretative and supplementary instrument in the solution of normative gaps, with special attention to the themes of objective good faith, hardship and contractual equilibrium. The research adopts a doctrinal and jurisprudential approach, examining relevant cases of arbitration and comparing the interaction of these instruments with Brazilian law. The methodology is based on qualitative and comparative analysis, using specialized bibliographical references and international arbitration decisions. The results indicate that the articulated application of the CISG and the UNIDROIT Principles provides greater predictability, legal certainty and flexibility to international commercial transactions, reinforcing the autonomy of the will of the parties and promoting greater interpretative uniformity. However, the paper emphasizes the need for careful application of the UNIDROIT Principles in order to avoid deviations from the central objectives of the CISG. The conclusion is that the integration of the two instruments is fundamental to strengthening international contractual practice, offering effective solutions to the challenges posed by the dynamics of globalized trade.
Keywords: CISG. UNIDROIT Principles. International contract law. Hardship. Objective good faith.
1. INTRODUÇÃO
Juntamente com toda a globalização e a ideia do “mundo sem fronteiras” que está constantemente sendo introduzida à sociedade atual, especialmente no âmbito das relações comerciais, é impulsionada a necessidade de sistemas jurídicos que ofereçam segurança, previsibilidade e uniformidade nas transações internacionais, e, apesar de não haver um modelo universal de contratação e dos tipos de contrato, diversas medidas são abordadas para estreitar as diferenças.
Dentro desse contexto, a Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG), adotada em 1980, e os Princípios UNIDROIT sobre Contratos Comerciais Internacionais, elaborados pelo Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (UNIDROIT), surgem como dois pilares essenciais para a regulação das transações comerciais entre partes de diferentes jurisdições. Ambos os instrumentos buscam garantir marco normativo coeso e eficiente, minimizando os conflitos decorrentes das diferenças legais entre países.
A CISG tem por objetivo criar regras uniformes para contratos de compra e venda internacional, oferecendo uma base que assegura o cumprimento dos acordos e minimiza os riscos legais. No entanto, mesmo com toda a imensidão e amplitude que a CISG apresenta, ainda não é possível abordar todas as complicações que podem surgir no processo de criação e execução de contratos internacionais. É nesse momento, então, que os Princípios de UNIDROIT entram no cenário como um recurso complementar, não vinculativo, amplamente utilizado por tribunais e árbitros para preencher as lacunas da CISG e oferecer soluções em situações não previstas diretamente por ela.
O presente trabalho estuda a atuação particular e conjunta de ambos, analisando como os Princípios de UNIDROIT podem ser utilizados como instrumentos interpretativos da CISG, explorando a forma como essas duas fontes jurídicas interagem para proporcionar um quadro normativo mais uniforme e eficaz no comércio internacional. Entender como a aplicação conjunta desses dois instrumentos jurídicos pode fortalecer a segurança jurídica e a previsibilidade das transações comerciais globais, é o ponto central desse trabalho, especialmente em relação a temas complexos como a boa-fé objetiva, hardship e o equilíbrio contratual.
Com o crescimento do número de transações comerciais internacionais, destaca-se a relevância desse estudo, apresentando que é necessário que as soluções jurídicas se tornem mais flexíveis e adaptáveis às novas realidades do comércio global. O uso dos Princípios UNIDROIT como base para a interpretação da CISG apenas facilita a aplicação dos contratos, bem como contribui para o avanço do direito contratual internacional, promovendo maior harmonia entre os sistemas jurídicos e mais confiança nas relações comerciais transnacionais.
A tese central do trabalho é que os Princípios de UNIDROIT, ao serem conectados à interpretação da CISG, podem fornecer uma base sólida para a resolução de lacunas e ambiguidades, tornando o comércio internacional mais seguro e eficiente. Assim, defende-se que ao utilizar esses princípios, é possível alcançar um equilíbrio entre a flexibilidade necessária para lidar com as especificidades de cada caso e a uniformidade desejada nas transações comerciais internacionais.
Por fim, este trabalho visa demonstrar que a incorporação dos Princípios UNIDROIT na interpretação da CISG não apenas reforça a autonomia das partes e a boa-fé objetiva, mas também contribui significativamente para a evolução do direito contratual internacional, oferecendo soluções mais eficazes para os desafios impostos pelo comércio globalizado.
2. A CISG E SUA FINALIDADE UNIFORMIZADORA
2.1 Origens e Contexto da Convenção de Viena de 1980
A CISG, foi adotada em 1980, na cidade de Viena, sob os prognósticos da UNCITRAL (United Nations Commission on International Trade Law)2, buscando unificar as normas que regem contratos internacionais de compra e venda. Desde que entrou em vigor, em 1988, tem sido adotada por países com diferentes tradições jurídicas de forma ampla, contribuindo para sua importância global.
Segundo Schlechtriem e Schwenzer (2016, p. 1), a CISG representa um esforço significativo para a superação das barreiras jurídicas nas transações internacionais, substituindo o sistema de escolha de leis nacionais por um corpo normativo próprio, aplicável diretamente aos contratos elegíveis3.
2.2 Estrutura Normativa e Princípios Fundamentais da CISG.
A CISGC é estruturada em quatro partes principais, que englobam as questões essenciais relacionadas aos contratos internacionais de compra e venda de mercadorias. Essa divisão facilita a compreensão e aplicação da Convenção, proporcionando um quadro jurídico claro para as partes envolvidas em transações comerciais internacionais.
A primeira parte, que compreende os artigos 1º a 13º, contém as disposições iniciais da CISG, tratando das questões de aplicação da Convenção, abrangendo o escopo de sua aplicabilidade (jurisdições e tipos de contratos cobertos), bem como os princípios que orientam a sua interpretação e a relação com outros acordos internacionais. A segunda parte, presente nos artigos 14º a 24º, aborda os aspectos relativos à formação do contrato de compra e venda internacional, incluindo questões como oferta, aceitação, o momento da conclusão do contrato, e as condições necessárias para sua validade. A terceira parte, dispostos nos artigos 25º a 88º, trata das obrigações de ambas as partes do contrato (comprador e vendedor), especificando os direitos e deveres relativos à entrega das mercadorias, pagamento do preço, transferência de risco, e os recursos disponíveis em caso de inadimplemento. E, por último, a quarta parte, consignada nos artigos 89º a 101º, versa sobre as disposições finais e da relação da CISG com outras convenções e legislações nacionais, incluindo questões como a ratificação e a adesão à Convenção, e as modificações ou adições à mesma por meio de reservas de Estados signatários4.
Ao longo da estrutura da CISG e de seus artigos, encontram-se diversos princípios fundamentais que orientam como a Convenção será interpretada e aplicada. Os quais são essenciais para garantir a uniformidade, previsibilidade e segurança jurídica nas transações internacionais de forma que será assegurado às partes que os contratos de compra e venda sejam executados de acordo com as suas expectativas legítimas.
Dentre todos os princípios que regem a CISG, destaca-se, em primeiro lugar, a autonomia da vontade (art. 6º), que assegura às partes a liberdade para adaptar as disposições da Convenção às suas necessidades, desde que respeitados os limites da lei. Assim, as partes podem escolher, de comum acordo, deixar de aplicar certos dispositivos, permitindo maior flexibilidade na negociação e execução dos contratos internacionais. Outro princípio fundamental é o da boa-fé na interpretação (artigo 7.1), que impõe às partes o dever de agir com honestidade e transparência, tanto na celebração quanto na execução do contrato, promovendo a confiança mútua entre os envolvidos no acordo. Ainda no mesmo artigo, há um dos principais objetivos da CISG, que busca garantir a uniformidade na interpretação e aplicação das suas disposições em diferentes países, respeitando seu caráter internacional e promovendo uma abordagem harmonizada, evitando decisões conflitantes e desiguais em casos semelhantes. Por fim, há o princípio da consideração das práticas e usos estabelecidos entre as partes (artigos 8º e 9º), que valoriza os costumes e práticas comerciais estabelecidas entre as partes, permitindo que essas práticas sejam consideradas na interpretação do contrato, desde que estas não contrariem os princípios da Convenção. Essa diretriz visa promover um entendimento mais flexível e pragmático da legislação, levando em conta as realidades do comércio internacional.
Assim, a Convenção busca criar um ambiente onde as partes possam confiar nas regras estabelecidas, estimulando o comércio transnacional e a cooperação internacional.
2.3 Aplicabilidade da CISG
De acordo com o artigo 1.1 da CISG, suas normas são aplicadas automaticamente aos contratos de compra e venda de mercadorias entre partes com domicílio em países signatários ou, ainda, quando as normas de direito internacional privado levarem à aplicação da lei de um Estado contratante.
Todavia, conforme afirma o artigo 6º da CISG, a aplicação pode ser excluída pelas partes, o que reforça o princípio da autonomia privada. Ainda assim, como observa Ferrari (2008, p.12), muitos operadores do direito desconhecem a aplicação automática da CISG, o que pode gerar insegurança jurídica nos contratos5.
2.4 Limites da CISG: Lacunas e Necessidade de Interpretação
Apesar de sua ampla aplicação, a CISG não abrange todos os aspectos das relações contratuais. A própria Convenção delimita seu escopo no artigo 4º, ao estabelecer que não regula questões relativas à validade do contrato ou de suas cláusulas, tampouco trata da responsabilidade do vendedor por danos pessoais causados ao comprador, conforme indicado no artigo 5º. Dessa forma, certos elementos continuam sendo regidos pelo direito interno dos Estados contratantes, ou por outras normas internacionais aplicáveis.
Ademais, mesmo dentro do campo que lhe é reservado, muitas das disposições da CISG são redigidas de maneira deliberadamente aberta e flexível, com o intuito de permitir sua adaptação a diferentes sistemas jurídicos. Essa característica impõe a necessidade de um esforço interpretativo que preserve os objetivos centrais da Convenção. O artigo 7º da CISG estabelece expressamente os critérios para essa interpretação, determinando que suas normas devem ser interpretadas à luz de três vetores fundamentais: (i) o caráter internacional da Convenção; (ii) a necessidade de promover a uniformidade de sua aplicação; e (iii) a observância da boa-fé nas relações comerciais internacionais.
Nesse contexto interpretativo, destacam-se instrumentos auxiliares como os Princípios do UNIDROIT sobre Contratos Comerciais Internacionais, que, embora não vinculantes, são frequentemente utilizados por tribunais e árbitros como fonte de orientação hermenêutica e como mecanismo para o preenchimento de lacunas da CISG. Conforme Bonell (2005, p. 96), os Princípios UNIDROIT constituem uma das principais ferramentas auxiliares para assegurar a interpretação autônoma e uniforme exigida pelo artigo 7º da CISG, contribuindo para a efetividade da Convenção no cenário comercial internacional.6
Portanto, a utilização dos Princípios UNIDROIT na interpretação da CISG representa uma resposta prática à necessidade de assegurar coerência e previsibilidade na aplicação do direito contratual internacional, fortalecendo a efetividade da Convenção diante das complexidades do comércio globalizado.
3. OS PRINCÍPIOS UNIDROIT E SUA NATUREZA SUPLETIVA E INTERPRETATIVA
3.1 Histórico e Estrutura dos Princípios UNIDROIT
Os Princípios do UNIDROIT sobre Contratos Comerciais Internacionais foram elaborados pelo Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (UNIDROIT), organização intergovernamental com sede em Roma, cuja missão é modernizar, harmonizar e coordenar o direito privado entre os Estados. A primeira edição dos Princípios foi publicada em 1994, sendo posteriormente revisada e ampliada nos anos de 2004, 2010 e 2016, refletindo sua constante adaptação às transformações do comércio internacional e às necessidades dos operadores jurídicos globais.
Embora não possuam força normativa vinculante por si sós, os Princípios UNIDROIT configuram uma codificação moderna da chamada lex mercatoria, consolidando as melhores práticas contratuais internacionais. São frequentemente utilizados como modelo por legisladores nacionais, como parâmetro interpretativo por tribunais e árbitros, ou ainda como norma aplicável nos contratos, quando expressamente escolhidos pelas partes.
Segundo Bonell (2005, p. 10), os Princípios UNIDROIT foram concebidos como normas gerais de direito contratual internacional, baseadas em distintas tradições jurídicas, destinadas a funcionar tanto como referência para reformas legislativas nacionais, quanto como instrumento auxiliar para a interpretação de legislações já existentes.7
A estrutura dos Princípios abrange todas as etapas do ciclo contratual, distribuídas em capítulos que tratam da formação, interpretação e execução dos contratos, incluindo aspectos como inadimplemento, compensação, restituição, prescrição, bem como temas de maior complexidade, como as cláusulas de hardship e força maior. Essa abrangência e flexibilidade tornam os Princípios UNIDROIT uma valiosa fonte de orientação em contextos nos quais a diversidade de sistemas jurídicos poderia comprometer a segurança jurídica e a equidade nas relações contratuais internacionais.
3.2 Função Supletiva dos Princípios UNIDROIT
Uma das principais aplicações práticas dos Princípios UNIDROIT consiste em sua utilização como norma supletiva nos contratos internacionais. Nesse contexto, as partes podem convencionar expressamente que os Princípios regerão integralmente o contrato, exercendo, assim, sua autonomia da vontade. Tal escolha é especialmente relevante em operações transnacionais, nas quais se busca afastar a submissão a um ordenamento jurídico estatal específico.A jurisprudência arbitral tem desempenhado um papel de vanguarda na aplicação dos Princípios UNIDROIT como normas reguladoras do mérito da controvérsia, sobretudo em casos em que as partes optam pela lex mercatoria como direito aplicável. Segundo Garro (2005, p. 182), essa prática é motivada pela natureza neutra e transnacional dos Princípios, que evita o favorecimento de uma das jurisdições nacionais envolvida, garantindo segurança e previsibilidade às partes.8
Essa neutralidade, aliada à abrangência e à modernidade de suas disposições, torna os Princípios particularmente atrativos para arbitragens internacionais e contratos envolvendo partes de diferentes tradições jurídicas.
3.3 Função Interpretativa dos Princípios UNIDROIT na Aplicação da CISG
Em paralelo ao seu papel de norma supletiva, os Princípios UNIDROIT desempenham uma função essencial como instrumento interpretativo no âmbito da CISG. O artigo 7(2) da Convenção, indica que na ausência de disposições específicas, as lacunas devem ser supridas com base nos princípios gerais que a informam, e não mediante a simples aplicação do direito interno de um dos Estados contratantes. É assim que a utilização dos Princípios UNIDROIT encontra justificativa.
Por sua vez, Schlechtriem (2005, p. 285) argumenta que os Princípios UNIDROIT são os candidatos naturais para desempenhar essa função interpretativa da CISG, na medida em que foram construídos sobre fundamentos semelhantes, tais como a boa-fé objetiva, a equidade, o equilíbrio contratual e a uniformidade internacional. Segundo o autor, a harmonia entre os princípios que norteiam ambos os instrumentos justificam a utilização dos Princípios UNDROIT como meio adequado para a interpretação normativa da Convenção.9
A prática arbitral reforça essa tendência. Casos emblemáticos, como o ICC Award No. 8873/1997 e a decisão do Tribunal Arbitral da Câmara de Comércio de Zurique de 2004, ilustram a aceitação consolidada dos Princípios UNIDROIT como fontes auxiliares legítimas para a interpretação e a integração da CISG. Essa prática contribui para promover a uniformidade na aplicação da Convenção e reforça a previsibilidade e a segurança jurídica nas relações contratuais internacionais.10
3.4 Limites da Aplicação dos Princípios UNIDROIT na Interpretação da CISG
Embora os Princípios UNIDROIT sejam amplamente utilizados como ferramenta interpretativa da CISG, é necessário reconhecer certos limites à sua aplicação. Primeiramente, a utilização dos Princípios não pode contrariar as disposições expressas da CISG, tampouco modificar o seu escopo normativo. A interpretação deve sempre respeitar a estrutura e os objetivos delineados pela própria Convenção.
Sobre isso, Schwenzer (2016) adverte que, ainda que os Princípios UNIDROIT compartilhem valores fundamentais com a CISG, eles não possuem status de direito vinculativo dentro do sistema da Convenção; de modo que devem ser utilizados com moderação, limitados às situações em que seus conteúdos efetivamente reflitam os princípios gerais que fundamentam a Convenção. Os Princípios UNIDROIT não podem suplantar a vontade expressa das partes nem se sobrepor às disposições específicas estabelecidas pela CISG. Assim, seu papel interpretativo deve ser exercido de maneira parcimoniosa, garantindo que a integridade e a uniformidade do regime jurídico da CISG sejam preservadas.11
Além disso, a aplicação dos Princípios deve ser sensível ao fato de que a CISG busca um equilíbrio entre diferentes tradições jurídicas, sendo fruto de compromisso político entre sistemas de common law e civil law. Assim, a escolha acrítica dos Princípios UNIDROIT pode, em alguns casos, perturbar esse equilíbrio, enfatizando que servem como fonte interpretativa subsidiária dentro da metodologia hermenêutica prevista no artigo 7 da CISG.
4. CONEXÕES MATERIAIS ENTRE A CISG E OS PRINCÍPIOS UNIDROIT
4.1 Afinidades Estruturais e Ideológicas
A CISG e os Princípios do UNIDROIT sobre Contratos Comerciais Internacionais compartilham um centro filosófico comum buscando a promoção da boa-fé, da cooperação entre as partes e da uniformidade nas práticas contratuais. Surgem no cenário comercial internacional como respostas às dificuldades enfrentadas pelo comércio internacional diante da diversidade dos sistemas jurídicos nacionais, buscando harmonizar conceitos fundamentais para a celebração, interpretação e execução de contratos.
A CISG adota uma metodologia e perspectiva bastante prática, na qual concilia elementos das tradições civil law e common law12, oferecendo um conjunto de normas neutras a serem utilizadas para reger os contratos internacionais. Os Princípios UNIDROIT, por sua vez, possuem uma característica mais abrangente e detalhada, destinados tanto à aplicação direta quanto à interpretação de instrumentos internacionais, inclusive como a própria CISG.
Essa afinidade estrutural e de objetivos justifica a crescente utilização dos Princípios UNIDROIT como ferramenta auxiliar na aplicação da CISG, promovendo coerência e previsibilidade nas relações comerciais transnacionais (BONELL, 2005).13
4.2 Conceitos Comuns e Interpretações
A convergência entre a CISG e os Princípios UNIDROIT se evidencia no modo em que são tratados certos conceitos essenciais do direito contratual. A boa-fé, por exemplo, é um princípio expressamente previsto na CISG (art. 7(1)) e desenvolvido de maneira ampla pelos Princípios UNIDROIT (arts. 1.7 e 1.8)14. Ambos os instrumentos exigem que as partes se comportem de maneira leal e razoável, não apenas na execução do contrato, mas também em sua formação e interpretação.
Outro conceito compartilhado é o dever de mitigar danos decorrentes do inadimplemento, presente no artigo 77 da CISG e no artigo 7.4.8 dos Princípios UNIDROIT, essa obrigação reforça a lógica de cooperação e lealdade, exigindo que a parte lesada adote medidas razoáveis para limitar o prejuízo.A noção de incumprimento fundamental (fundamental breach), essencial para definir quando a parte prejudicada pode resolver o contrato, é tratada de maneira similar. Enquanto o artigo 25 da CISG estabelece o conceito, os Princípios UNIDROIT o complementam nos artigos 7.3.1 e 7.3.4, detalhando seus efeitos e condições.
Além disso, temas complexos como o hardship15, são desenvolvidos com mais profundidade pelos Princípios UNIDROIT, em seus artigos 6.2.2 e 6.2.3, suprindo uma lacuna relevante da CISG, que não regula expressamente essa questão.
Essa correspondência conceitual facilita o uso dos Princípios UNIDROIT como critério interpretativo ou supletivo na aplicação da CISG, especialmente quando se busca uma solução que respeite seus princípios subjacentes de boa-fé, equidade e equilíbrio contratual.
4.3 Preenchimento de Lacunas e o Hardship
Embora a CISG tenha sido elaborada para ser um instrumento abrangente, ela deliberadamente exclui algumas matérias, como a validade do contrato e as consequências de eventos extraordinários que dificultem o cumprimento das obrigações. Nessas situações, o artigo 7(2), da Convenção autoriza que lacunas sejam preenchidas com base nos princípios gerais que esta informa. Com isso, surgem os Princípios UNIDROIT como a fonte mais apropriada para integração normativa.
Um exemplo controverso é o tratamento do hardship, conceito que se refere a alterações imprevisíveis e substanciais das circunstâncias, tornando a execução contratual excessivamente onerosa para uma das partes. Situações em que o cumprimento do contrato se torna excessivamente oneroso devido a eventos imprevisíveis não encontram solução explícita na CISG, a doutrina e a jurisprudência arbitral reconhecem que, diante de situações excepcionais, pode haver espaço para sua aplicação através da interpretação conforme o artigo 79 da Convenção, que trata da exoneração de responsabilidade em casos de força maior e impedimentos incontroláveis.
No entanto, a estrutura da CISG é mais restritiva. Isso porque, o artigo 79 exige que o impedimento seja absoluto, o que torna difícil enquadrar situações de hardship (em que a execução não é impossível, mas extremamente onerosa). Assim, os Princípios UNIDROIT surgem como referência natural, fornecendo um modelo claro e detalhado sobre o tema nos artigos 6.2.1 a 6.2.3. Estes artigos estabelecem: (i) o conceito de Hardship; (ii) o dever de renegociação; (iii) a possibilidade de resolução judicial ou arbitral do contrato, adaptando-o ou extinguindo-o, caso a renegociação fracasse.
A adoção desses dispositivos na aplicação da CISG respeita seu espírito de promover a equidade e o equilíbrio contratual. A prática arbitral tem confirmado essa abordagem, reconhecendo a utilização dos Princípios UNIDROIT para suprir lacunas e garantir uma solução justa e funcional para disputas envolvendo mudanças extraordinárias nas circunstâncias contratuais.
4.4 A Consolidação da Convergência na Prática Arbitral
A aceitação dos Princípios UNIDROIT como instrumento auxiliar na aplicação da CISG tem se consolidado progressivamente na prática arbitral internacional. Tribunais arbitrais administrados pela Câmara de Comércio Internacional (ICC), pela Corte de Arbitragem de Zurique e por outras instituições vêm reiteradamente recorrendo aos Princípios como base para decisões que envolvem contratos regidos pela CISG.
Essa prática reflete a busca por soluções neutras e adaptadas à realidade do comércio internacional, afastando a influência de sistemas jurídicos domésticos e reforçando a uniformidade da aplicação da CISG. Além disso, evidencia o reconhecimento da legitimidade dos Princípios UNIDROIT como expressão moderna da lex mercatoria.
A consolidação dessa convergência demonstra que a utilização dos Princípios UNIDROIT na interpretação e integração da CISG não apenas atende a uma necessidade prática do comércio internacional, mas também fortalece os valores fundamentais que ambos os instrumentos buscam proteger: previsibilidade, boa-fé, equilíbrio e segurança jurídica.
5. A APLICAÇÃO CONJUNTA DA CISG E DOS PRINCÍPIOS UNIDROIT NA PRÁTICA
5.1 Parâmetros para a Utilização dos Princípios UNIDROIT
A aplicação dos Princípios UNIDROIT na interpretação e integração da CISG exige cautela e obediência a critérios bem definidos. Ressalta-se que é essencial respeitar a autonomia da vontade das partes, prevista no artigo 6 da CISG, de modo que os Princípios não podem suplantar cláusulas expressamente acordadas.
Além disso, a utilização dos Princípios deve ser compatível com os valores centrais da CISG, como a boa-fé objetiva, o equilíbrio contratual e a uniformidade internacional, todos expressamente reconhecidos nos artigos 7 e 8 da mesma. A função subsidiária dos Princípios UNIDROIT, portanto, emerge apenas na ausência de disposição expressa na Convenção ou quando se busca interpretar seus dispositivos à luz de princípios gerais.
Este entendimento tem sido respaldado na prática arbitral internacional, como no ICC Award No. 7110/1995, em que o tribunal enfatizou que os Princípios poderiam ser utilizados para integrar a CISG, desde que respeitassem o espírito e os objetivos da Convenção.16
5.2 Exemplos de Aplicações Conjunta
A prática internacional oferece uma série de casos arbitrais que ilustram a utilização articulada da CISG e dos Princípios UNIDROIT. Esses exemplos mostram como os tribunais têm recorridos a ambos os instrumentos para solucionar questões complexas que surgem nas transações internacionais. Abaixo, são apresentados três casos emblemáticos que demonstram o papel dos Princípios UNIDROIT como complemento da CISG.
5.2.1 ICC Award No. 8873/199717
Este caso envolveu uma disputa contratual entre partes de diferentes jurisdições, em que uma das partes alegou que a execução do contrato se tornara impossível devido a uma mudança substancial nas circunstâncias (hardship). O tribunal recorreu à cláusula de hardship presente nos Princípios UNIDROIT, já que a CISG não fornecia uma solução detalhada para situações de alteração imprevisível das condições do contrato.
O tribunal decidiu que, dado o silêncio da CISG sobre a questão do hardship, deveria aplicar os Princípios UNIDROIT para preencher essa lacuna, reconhecendo o direito à renegociação das condições contratuais. A decisão considerou que o conceito de boa-fé, presente tanto na CISG quanto nos Princípios UNIDROIT, justificava a revisão do contrato para restaurar o equilíbrio das prestações.
5.2.2 Tribunal Arbitral de Zurique (2004).18
O caso em questão tratava de uma disputa em que o cumprimento do contrato se tornou impossível devido a uma barreira legal imprevista. A parte afetada procurou se eximir da responsabilidade de cumprimento com base no artigo 79 da CISG, que trata da impossibilidade de cumprimento. No entanto, havia dúvidas sobre a extensão de sua aplicação diante de novas circunstâncias não previstas na Convenção.
O tribunal decidiu integrar os Princípios UNIDROIT para interpretar a CISG, especialmente no que se referia à extensão da impossibilidade de cumprimento. O tribunal argumentou que a aplicação da impossibilidade de cumprimento prevista no artigo 79 da Convenção não era suficientemente clara para abranger todos os cenários que as partes estavam enfrentando. Assim, a decisão incluiu a análise de práticas e usos comerciais internacionais, conforme previsto nos Princípios UNIDROIT.
5.2.3 ICC Award No. 12368/200219
Este caso envolveu a execução específica de um contrato complexo entre empresas de diferentes países. A parte que não cumpriu com suas obrigações alegou que a execução do contrato deveria ser considerada impossível ou impraticável, devido às circunstâncias do mercado e ao seu impacto nas obrigações contratuais. A CISG não tratava especificamente da execução forçada de contratos em sua totalidade, o que gerou uma lacuna.
Diante da falta de regulamentação clara na CISG sobre a execução específica em contratos complexos, o tribunal decidiu aplicar os Princípios UNIDROIT para reforçar o direito ao cumprimento forçado. A decisão citou os artigos 46 e 62 da CISG, que permitem a execução forçada, e os combinou com os princípios de boa-fé e de cumprimento do contrato dos Princípios UNIDROIT, que asseguram a estabilidade contratual e incentivam a confiança mútua entre as partes.
Esses exemplos mostram que a CISG e os Princípios UNIDROIT não apenas se complementam, mas também permitem uma flexibilidade na solução de controvérsias que a aplicação estrita de um único conjunto normativo não poderia oferecer. Eles oferecem aos árbitros e tribunais internacionais uma base para equilibrar a previsibilidade contratual com as necessidades de adaptação ao contexto dinâmico do comércio global.
5.3 Benefícios e Limitações da Aplicação Conjunta
A combinação da CISG com os Princípios UNIDROIT oferece uma série de benefícios que aprimoram a eficácia e a flexibilidade do direito contratual internacional, com impactos significativos para o comércio globalizado. No que diz respeito a previsibilidade e segurança jurídica, a aplicação consistente de princípios comuns, como a boa-fé objetiva e o equilíbrio contratual, reduz o risco de decisões contraditórias e incertezas nas relações comerciais internacionais, proporcionando maior confiança para as partes envolvidas em contratos internacionais, permitindo que operem com maior previsibilidade. Quanto a adaptabilidade às mudanças econômicas, instrumentos como a cláusula de hardship, presentes tanto na CISG quanto nos Princípios UNIDROIT, fortalecem a resiliência dos contratos diante de eventos extraordinários e imprevistos. Isso facilita a adaptação das partes às condições mutáveis do mercado global, evitando a rigidez excessiva e permitindo que os contratos permaneçam viáveis mesmo em situações inesperadas. Outro benefício relevante é a neutralidade cultural e jurídica, uma vez que, a combinação da CISG com os Princípios UNIDROIT oferece uma solução jurídica que transcende barreiras culturais e sistêmicas entre países de civil law e common law. Isso facilita a resolução de disputas contratuais entre partes de diferentes tradições jurídicas, promovendo uma abordagem mais equilibrada e universal.
No entanto, essa prática também apresenta diversos desafios e limitações que devem ser cuidadosamente considerados. Um dos principais obstáculos é a natureza não vinculativa dos Princípios, visto que, como instrumento de soft law, eles não possuem força obrigatória intrínseca. Ou seja, sua aplicação depende da aceitação explícita das partes ou da fundamentação adequada por parte dos tribunais e árbitros, a fim de evitar qualquer interpretação equivocada ou arbitrária. Além disso, há o risco de afastamento do texto da CISG, pois a utilização indiscriminada dos Princípios UNIDROIT pode distorcer o espírito da Convenção e levar à superação indevida de disposições expressamente previstas, comprometendo a uniformidade, coesão e estabilidade normativa buscada pela CISG. Assim, a integração desses instrumentos exige uma abordagem criteriosa e respeitosa em relação à sua função complementar e interpretativa.
Dessa forma, é crucial que os tribunais e árbitros adotem uma abordagem criteriosa ao aplicar os Princípios UNIDROIT em conjunto com a CISG. A utilização desses instrumentos deve sempre complementar e fortalecer a interpretação da Convenção, respeitando seus princípios fundamentais, a fim de assegurar que a prática internacional seja coesa e eficaz, sem desvirtuar o propósito original da CISG.
5.4 Tendências Recentes e Perspectivas Futuras
Observa-se um aumento progressivo na aceitação da aplicação conjunta da CISG e dos Princípios UNIDROIT, tanto em arbitragens quanto em decisões judiciais nacionais. Com o fortalecimento de projetos de harmonização jurídica transnacional, como o “Global Sales Law Project“20 liderado por Schwenzer, e a promoção contínua dos Princípios UNIDROIT em fóruns internacionais, a tendência é que a prática de integração entre esses instrumentos se torne ainda mais consolidada.
No futuro, há a expectativa é que cláusulas contratuais específicas se referindo expressamente à aplicação dos Princípios UNIDROIT, como fonte interpretativa ou normativa supletiva, se tornem mais comuns, contribuindo para a construção de uma ordem jurídica contratual internacional mais estável, eficiente e previsível.
6. OS PRINCÍPIOS UNIDROIT, A CISG E O DIREITO BRASILEIRO
6.1 Autonomia da Vontade e Liberdade Contratual
A autonomia da vontade é um princípio fundamental tanto nos Princípios UNIDROIT quanto na CISG. Ambos os instrumentos reconhecem a liberdade das partes em determinar as condições do contrato, desde que essas condições respeitem os princípios gerais do direito contratual.
No direito brasileiro, a autonomia da vontade é consagrada no Código Civil de 2002 (art. 421), que reforça a liberdade das partes para pactuar cláusulas conforme suas necessidades, mas sempre respeitando os limites da função social do contrato (art. 421-A). A diferença reside no fato de que o direito brasileiro exige maior conformidade com normas de ordem pública, como aquelas relacionadas à boa-fé e à função social.21
Por outro lado, os Princípios UNIDROIT e a CISG apresentam um grau maior de flexibilidade, permitindo que as partes tenham maior liberdade para definir seus direitos e obrigações, desde que respeitem os princípios gerais de boa-fé e equilíbrio.
6.2 Boa-fé Objetiva e Equidade.
A boa-fé objetiva é um princípio central tanto na CISG (art. 7) quanto nos Princípios UNIDROIT (art. 1.7), sendo fundamental para a interpretação e execução dos contratos. A boa-fé busca garantir que as partes atuem de maneira leal, honesta e cooperativa durante a formação, execução e até mesmo a resolução do contrato.
No direito brasileiro, a boa-fé também é um princípio consagrado (arts. 113 e 422 do Código Civil), mas com um foco mais rígido na transparência e honestidade das partes durante a execução do contrato. Em comparação com a abordagem mais flexível e internacional dos Princípios UNIDROIT e da CISG, o direito brasileiro pode ser considerado mais restritivo em sua aplicação, especialmente quando envolve cláusulas de comportamento desleal ou comportamento contraditório das partes.
6.3 Hardship e Modificação do Contrato.
O conceito de hardship (dificuldades imprevistas) é amplamente abordado nos Princípios UNIDROIT (art. 6.2.2) e na CISG (arts. 79 e 6.2). Esses instrumentos permitem a renegociação ou rescisão do contrato em situações de alteração substancial nas circunstâncias.Sobre isso, salienta Lauro Gama Junior (2006, p. 365), o conceito de hardship, conforme delineado no artigo 6.2.2 dos Princípios UNIDROIT, compreende, em termos gerais, a ocorrência de eventos supervenientes que causem uma alteração fundamental no equilíbrio das obrigações contratuais. Adicionalmente, exige-se que esses eventos (a) ocorram ou se tornem conhecidos após a celebração do contrato, (b) não pudessem ser razoavelmente previstos pela parte afetada no momento da celebração, (c) estejam fora do controle da parte prejudicada e (d) não representem um risco previamente assumido por esta última.22
No direito brasileiro, a cláusula de hardship não é expressamente prevista no Código Civil, mas pode ser adaptada à figura da onerosidade excessiva (art. 478 e seguintes), que exige uma prova clara de que as condições do contrato se tornaram impossíveis de cumprir ou extremamente desequilibradas. O direito brasileiro tende a ser mais rígido, exigindo mais formalidades e evidências para a revisão de contratos do que os Princípios UNIDROIT e a CISG, que aplicam um conceito mais amplo de dificuldade imprevista e são mais flexíveis.
6.4 Cláusulas de Exoneração de Responsabilidade e Limitação de Danos
Ambos os instrumentos internacionais, Princípios UNIDROIT e CISG, preveem a possibilidade de limitação de responsabilidade e exoneração de danos em determinadas circunstâncias (art. 7.4.2 da CISG e art. 7.1 dos Princípios UNIDROIT). Isso permite que as partes definam previamente as condições para o não cumprimento ou para a limitação dos efeitos de certos danos.
No direito brasileiro, as cláusulas de exoneração ou limitação de responsabilidade são reconhecidas, mas não podem ser utilizadas para excluir a responsabilidade por dano moral ou para fraudar direitos básicos do consumidor, como previsto no Código de Defesa do Consumidor (arts. 6 e 51).23 Isso limita o uso de tais cláusulas em algumas circunstâncias, especialmente em relações que envolvem consumidores.
6.5 Função Social do Contrato e Equilíbrio Contratual
A função social do contrato é um princípio essencial do direito brasileiro (art. 421-A do Código Civil), que implica que os contratos devem observar não apenas os interesses das partes, mas também os interesses da sociedade em geral. Isso inclui a proteção do meio ambiente, do consumidor e de outros bens coletivos.
Por sua vez, os Princípios UNIDROIT e a CISG abordam a equidade e o equilíbrio contratual, mas de uma forma mais voltada para o comércio internacional, buscando equilibrar os interesses das partes sem uma ênfase explícita na função social do contrato. A diferença reside na maior flexibilidade e adaptabilidade das normas internacionais, que podem ser mais fáceis de aplicar em transações comerciais internacionais, enquanto o direito brasileiro pode ser mais restritivo devido às suas normas de proteção social.
6.6 Interpretação e Aplicação de Normas Ambíguas
A interpretação das normas ambíguas é um ponto crucial para a aplicação da CISG e dos Princípios UNIDROIT, já que ambos oferecem diretrizes sobre como preencher lacunas e interpretar cláusulas com base em princípios gerais, como a boa-fé e a equidade. O artigo 7 da CISG e os artigos 1.7 e 1.8 dos Princípios UNIDROIT fornecem orientação sobre como proceder nessas situações.
No direito brasileiro, as lacunas jurídicas também são resolvidas de forma interpretativa, com forte base nos princípios da boa-fé, equilíbrio e função social do contrato. Contudo, o Código Civil brasileiro possui uma abordagem mais detalhada e normativa para preencher lacunas, o que pode ser visto como mais rígido do que a abordagem dos Princípios UNIDROIT e da CISG, que oferecem uma margem maior para a adaptação ao contexto da relação contratual.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho teve como objetivo analisar a aplicação conjunta dos Princípios UNIDROIT e da CISG, explorando seu impacto na interpretação e aplicação das normas do direito contratual internacional, especialmente nas relações comerciais transnacionais. Através de uma análise detalhada das principais disposições desses instrumentos e de sua interação, foi possível identificar os benefícios, as limitações e a eficácia de sua utilização na harmonização do comércio global.
A CISG, como instrumento internacional que busca uniformizar as regras aplicáveis aos contratos de compra e venda internacionais, estabelece a base para uma interpretação flexível e adaptada às realidades do comércio global. No entanto, como demonstrado, ela não é isenta de lacunas, especialmente no que diz respeito a questões como a modificação do contrato devido a mudanças imprevistas nas circunstâncias, a responsabilidade pelas perdas e danos, e a necessidade de renegociação. Nesse contexto, os Princípios UNIDROIT surgem como uma ferramenta complementar e eficaz, oferecendo diretrizes que preenchem essas lacunas e auxiliam na interpretação das normas da CISG de forma coesa e consistente.
A utilização conjunta desses dois instrumentos proporciona previsibilidade, segurança jurídica e flexibilidade às partes envolvidas em transações comerciais internacionais. A autonomia da vontade e a boa-fé objetiva, princípios comuns entre a CISG, os Princípios UNIDROIT e o direito brasileiro, demonstram que a negociação e a execução dos contratos devem ser pautadas pela transparência, pela confiança mútua e pelo equilíbrio contratual. No entanto, a comparação com o direito brasileiro revelou que o sistema jurídico nacional, embora compartilhe muitos dos princípios fundamentais da CISG e dos Princípios UNIDROIT, apresenta uma abordagem mais rígida e normatizada, especialmente em relação à função social do contrato e à proteção de interesses sociais e individuais.
Como destaca Bonell (2005 p. 10), os Princípios UNIDROIT foram concebidos para “oferecer um conjunto de normas neutras, que superam barreiras culturais e jurídicas”24, possibilitando uma integração harmoniosa entre os diversos sistemas jurídicos. Essa característica dos Princípios é fundamental para a superação de conflitos de normas e para garantir soluções mais equitativas em disputas internacionais.
Em termos de prática arbitral, a aplicação dos Princípios UNIDROIT como instrumento auxiliar na interpretação da CISG tem sido consolidada, como demonstrado pelos exemplos de decisões arbitrais analisadas ao longo do trabalho. Casos como o ICC Award No. 8873/199725 e o Tribunal Arbitral de Zurique (2004)26 confirmam que os árbitros têm utilizado os Princípios UNIDROIT de maneira eficaz para suprir as lacunas da CISG e garantir soluções justas e equilibradas para as partes.
Contudo, é importante destacar que a utilização dos Princípios UNIDROIT deve ser feita com cautela, uma vez que sua natureza não vinculante exige que sua aplicação seja sempre fundamentada com base nos princípios gerais da CISG, evitando que se sobreponham ao texto da Convenção ou à vontade expressa das partes.
Em conclusão, a integração dos Princípios UNIDROIT na interpretação da CISG fortalece a autonomia das partes, a boa-fé objetiva e a harmonização das normas internacionais de comércio, promovendo uma abordagem mais adaptável e resiliente para enfrentar os desafios de um comércio globalizado. A combinação desses instrumentos representa um avanço significativo na busca por um sistema jurídico internacional mais equitativo, transparente e eficiente.
2Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional, órgão das Nações Unidas, que tem o objetivo de promover a harmonização e a unificação do direito comercial internacional, trabalhando para facilitar o comércio global, oferecendo padrões e orientações jurídicas que contribuem para o desenvolvimento de um ambiente de negócios mais seguro e eficiente.
3SCHWENZER, Ingeborg. Commentary on the UN Convention on the International Sale of Goods (CISG). 3. ed. New York: Springer, 2016.
4BRASIL. Decreto nº 8.327, de 16 de outubro de 2014. Promulga a Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias, firmada pela República Federativa do Brasil, em Viena, em 11 de abril de 1980. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 17 out. 2014. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/decreto/d8327.htm. Acesso em: 29 abr. 2025.
5FERRARI, Franco (Ed.). The CISG and its Impact on National Legal Systems. Munich: Sellier european law publishers, 2008. 497 p. ISBN 9781282274730.
6BONELL, Michael Joachim. An International Restatement of Contract Law: The UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts. 3. ed. The Hague: Kluwer Law International, 2005.
7BONELL, Michael Joachim. An International Restatement of Contract Law: The UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts. 3. ed. The Hague: Kluwer Law International, 2005.
8GARRO, Alejandro. The UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts: A Modern Approach to International Contract Law. 2. ed. Kluwer Law International, 2005.
9SCHLECHTRIEM, Peter. Uniform Sales Law – The UN Convention on Contracts for the International Sale of Goods. 2. ed. The Hague: Kluwer Law International, 2005.
10INTERNATIONAL CHAMBER OF COMMERCE (ICC). Award No. 8873/1997. ICC Dispute Resolution Bulletin, Paris, 1997. Decisão arbitral sobre hardship, na qual os Princípios UNIDROIT foram utilizados para fundamentar a renegociação de um contrato diante de mudanças imprevistas nas circunstâncias.
11SCHWENZER, Ingeborg. Commentary on the UN Convention on the International Sale of Goods (CISG). 3. ed. New York: Springer, 2016.
12As tradições do civil law e common law representam os dois principais sistemas jurídicos do mundo contemporâneo, cada um com características próprias que influenciam a maneira como normas e princípios são formulados, interpretados e aplicados.
13BONELL, Michael Joachim. An International Restatement of Contract Law: The UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts. 3. ed. The Hague: Kluwer Law International, 2005.
14UNIDROIT. Princípios UNIDROIT relativos aos Contratos Comerciais Internacionais 2016. Roma: UNIDROIT, 2016. Disponível em: https://www.unidroit.org/wp-content/uploads/2021/06/Unidroit-Principles-2016-Portuguese-bl.pdf. Acesso em: 29 abr. 2025.
15A cláusula de hardship prevê que, caso ocorram eventos imprevisíveis e extraordinários que tornem excessivamente onerosa para uma das partes a execução do contrato, as partes devem renegociar seus termos para restabelecer o equilíbrio contratual. Se a renegociação falhar, pode-se recorrer a uma solução judicial ou arbitral. Nos Princípios UNIDROIT (artigos 6.2.1 a 6.2.3), o hardship não extingue automaticamente o contrato, mas autoriza a sua revisão ou adaptação, visando preservar a continuidade da relação obrigacional.
16INTERNATIONAL CHAMBER OF COMMERCE (ICC). Award No. 7110/1995. Tribunal Arbitral, 1995. Decisão parcial emitida em junho de 1995 que aplicou os Princípios UNIDROIT como componente central dos princípios gerais e regras que gozam de amplo consenso internacional para interpretar e integrar a CISG. ICC International Court of Arbitration Bulletin, Paris, v. 10, n. 2, p. 39-54, 1999.
17ICC Award No. 8873/1997 International Chamber of Commerce (ICC), Award No. 8873/1997. Este caso foi uma decisão arbitral sobre hardship, na qual os Princípios UNIDROIT foram utilizados para fundamentar a renegociação de um contrato diante de mudanças imprevistas nas circunstâncias. Acessível em: ICC Dispute Resolution Bulletin ou outros repositórios especializados em jurisprudência arbitral.
18Tribunal Arbitral de Zurique (2004) Este caso envolveu a interpretação do artigo 79 da CISG sobre impossibilidade de cumprimento devido à superveniência de barreiras legais. O tribunal utilizou os Princípios UNIDROIT para interpretar a extensão do conceito de impossibilidade de cumprimento. Acessível em: CEDR (Center for Effective Dispute Resolution) ou repositórios de decisões arbitrais internacionais.
19ICC Award No. 12368/2002 International Chamber of Commerce (ICC), Award No. 12368/2002. A decisão arbitral sobre a execução específica de um contrato complexo, onde a CISG foi combinada com os Princípios UNIDROIT para reforçar a aplicação do cumprimento forçado, apesar da falta de uma norma expressa sobre execução específica. Acessível em: ICC Dispute Resolution Bulletin ou em bancos de dados de decisões arbitrais como a Kluwer Arbitration.
20O Global Sales Law Project, liderado pela professora Ingeborg Schwenzer, é uma iniciativa internacional de pesquisa focada no estudo comparativo das leis de venda no comércio global. O projeto investiga a aplicação da CISG (Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias) em diversas jurisdições, além de analisar a interação dessa Convenção com outras fontes do direito internacional, como os Princípios UNIDROIT. O objetivo é identificar lacunas na regulamentação vigente e propor soluções para melhorar a segurança jurídica nas transações comerciais internacionais, promovendo a uniformidade e a harmonização do direito comercial global.
21BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 29 abr. 2025.
22GAMA JUNIOR, Lauro. Contratos internacionais à luz dos princípios do UNIDROIT 2004: soft law, arbitragem e jurisdição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 365.
23BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 12 set. 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm. Acesso em: 29 abr. 2025.
24BONELL, Michael Joachim. An International Restatement of Contract Law: The UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts. 3. ed. The Hague: Kluwer Law International, 2005.
25INTERNATIONAL CHAMBER OF COMMERCE (ICC). Award No. 8873/1997. ICC Dispute Resolution Bulletin, Paris, 1997. Decisão arbitral sobre hardship, na qual os Princípios UNIDROIT foram utilizados para fundamentar a renegociação de um contrato diante de mudanças imprevistas nas circunstâncias.
26TRIBUNAL ARBITRAL DE ZURIQUE. Caso de 2004. Decisão sobre a interpretação do artigo 79 da CISG, utilizando os Princípios UNIDROIT para ampliar o conceito de impossibilidade de cumprimento devido a barreiras legais imprevistas. Acessível em: Center for Effective Dispute Resolution (CEDR) ou repositórios de decisões arbitrais internacionais.
REFERÊNCIAS
BONELL, Michael Joachim. An International Restatement of Contract Law: The UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts. 3. ed. The Hague: Kluwer Law International, 2005.
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 12 set. 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm. Acesso em: 29 abr. 2025.
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INTERNATIONAL CHAMBER OF COMMERCE (ICC). Award No. 8873/1997. ICC Dispute Resolution Bulletin, Paris, 1997. Decisão arbitral sobre hardship, na qual os Princípios UNIDROIT foram utilizados para fundamentar a renegociação de um contrato diante de mudanças imprevistas nas circunstâncias.
INTERNATIONAL CHAMBER OF COMMERCE (ICC). Award No. 12368/2002. Decisão arbitral sobre a execução específica de um contrato complexo, utilizando a CISG e os Princípios UNIDROIT para reforçar a aplicação do cumprimento forçado, apesar da falta de uma norma expressa sobre execução específica. Acessível em: ICC Dispute Resolution Bulletin ou em bancos de dados de decisões arbitrais como Kluwer Arbitration.
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TRIBUNAL ARBITRAL DE ZURIQUE. Caso de 2004. Decisão sobre a interpretação do artigo 79 da CISG, utilizando os Princípios UNIDROIT para ampliar o conceito de impossibilidade de cumprimento devido a barreiras legais imprevistas. Acessível em: Center for Effective Dispute Resolution (CEDR) ou repositórios de decisões arbitrais internacionais.
UNIDROIT. Princípios UNIDROIT relativos aos Contratos Comerciais Internacionais 2016. Roma: UNIDROIT, 2016. Disponível em: https://www.unidroit.org/wp-content/uploads/2021/06/Unidroit-Principles-2016-Portuguese-bl.pdf. Acesso em: 29 abr. 2025
1Discentes do Curso Superior de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie Campus Higienópolis e-mail: marimarcondes225@gmail.com