PRECONCEITO E BULLYING: FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO E CULTURA

Prejudice and Bullying: formation of the individual and culture

Prejuicio y Bullying: formación del individuo y la cultura

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.12774076


Ana Jakellyne Pecori Viana[1]
José Leon Crochik [2]


Resumo

Procuramos distinguir e relacionar os conceitos de bullying e preconceito, tendo como base a configuração social e sua relação com a estruturação individual. O preconceito vem sendo entendido como um problema psicológico desde o início do século passado, a partir de movimentos, especialmente de negros pelos direitos iguais, pois até o final do século XIX se entendia que outras raças eram inferiores. De acordo com as literaturas em geral, bullying se refere à intimidação, porém não é a única tradução literária, mas é definido como uma relação hierárquica de alguém que é mais forte, sozinho ou em grupo, contra alguém que não consegue resistir suficientemente a essa violência. Assim, considera-se que a temática preconceito e bullying que são remetidas ao indivíduo, devem ser necessariamente associados à totalidade, a ideia da sociedade e da cultura. Desta forma, é impossível pensar a violência e violência escolar sem pensarmos a violência social.

Palavras-chave: Movimentos. Relação. Violência escolar. 

Abstract

We seek to distinguish and relate the concepts of bullying and prejudice, based on the social configuration and its relationship with individual structure. Prejudice has been understood as a psychological problem since the beginning of the last century, based on movements, especially by black people for equal rights, as until the end of the 19th century it was understood that other races were inferior. According to literature in general, bullying refers to intimidation, however it is not the only literary translation, but is defined as a hierarchical relationship between someone who is stronger, alone or in a group, against someone who cannot sufficiently resist this. violence. Thus, it is considered that the themes of prejudice and bullying that are directed at the individual must necessarily be associated with the whole, the idea of ​​society and culture. In this way, it is impossible to think about violence and school violence without thinking about social violence.

Keywords: Movements. Relationship. School violence.

Resumen 

Buscamos distinguir y relacionar los conceptos de bullying y prejuicio, a partir de la configuración social y su relación con la estructura individual. El prejuicio ha sido entendido como un problema psicológico desde principios del siglo pasado, a partir de movimientos, especialmente de personas negras, por la igualdad de derechos, ya que hasta finales del siglo XIX se entendía que las otras razas eran inferiores. Según la literatura en general, el bullying se refiere a la intimidación, sin embargo no es la única traducción literaria, sino que se define como una relación jerárquica entre alguien que es más fuerte, solo o en grupo, contra alguien que no puede resistir lo suficiente a esta violencia. Así, se considera que los temas de prejuicio y bullying que se dirigen al individuo deben necesariamente estar asociados al todo, a la idea de sociedad y de cultura. De esta manera, es imposible pensar en la violencia y la violencia escolar sin pensar en la violencia social.

Palabras clave: Movimientos. Relación. La violencia escolar.

Introdução

O objetivo deste texto é distinguir e relacionar os conceitos de bullying e preconceito, tendo como base a configuração social e sua relação com a estruturação individual.

O preconceito vem sendo entendido como um problema psicológico desde o início do século passado, a partir de movimentos, especialmente de negros pelos direitos iguais, pois até o final do século XIX se entendia que outras raças eram inferiores. A partir do início do século XX passou-se a mudar a visão e surgiu o seguinte questionamento: Por que as pessoas julgam a existência de raças distintas? E desde então começaram os estudos, como sendo um fenômeno psicológico (CROCHIK, 2019).

Quando se fala em fenômeno psicológico, não se deve considerar que esteja restrito ao indivíduo, mas que tem de ser entendido também como um elemento da cultura e da sociedade, uma vez que fomos formados por essa cultura. Então, não é possível entender o preconceito, sem  pensar como é que a sociedade se estrutura e como é que ela permite a nossa formação como indivíduo (CROCHIK, 2006).

Sendo assim, destaca-se que o indivíduo é formado socialmente, culturalmente; não há nenhum indivíduo dado pronto pela natureza, pois ele se desenvolve, uma vez que a nossa diferenciação não ocorre quando a gente nasce, mas ao longo da vida. Neste contexto, Freud (2011) refere:

se olharmos a relação entre o processo cultural da humanidade e o processo de desenvolvimento ou educação do indivíduo, sem muito hesitar decidiremos que ambos são de natureza muito parecida, se não forem o mesmo processo realizado em objetos diferentes (p.73).

Com isso, aquele que é preconceituoso é pouco diferençado em relação a esse desenvolvimento que é possibilitado pela incorporação da cultura, vale considerar que quanto mais rica for uma cultura, mais podemos nos diferençar. Diante disso, nós incorporamos a linguagem, o pensamento, as expressões da cultura e então podemos expressar também o que nós sentimos, pensamos e desejamos. Quanto mais incorporamos a cultura e quanto mais a cultura for rica, mais podemos nos diferençar, porque conseguimos expressar em palavras, gestos, aquilo que a gente receia e deseja.

Entende-se que o preconceito não é bem uma ação, é uma tendência para ação, e como tendência para ação, ele tem três componentes. O primeiro componente do preconceito é cognitivo, e em geral é expresso por estereótipos, e esses estereótipos são dados pela cultura e servem para que nós justifiquemos nosso preconceito em relação aos alvos, e então vemos a relação, entre a cultura e os indivíduos (CROCHIK, 2006).

Tratando-se dos agressores, os estudos de Crochik (2012, 2015) apontam que a aparição desse tipo de violência pode ser considerada como expressão de afetos negativos, os quais os mesmos não são conscientes. O agressor se encontra numa situação em que vivencia inúmeros sentimentos, porém não consegue nomeá-los, nem ocorre a tomada de consciência e menos ainda, age de forma não violenta sobre os sujeitos compreendidos dentro desses sentimentos.

Para o preconceituoso é como se algo que foi desenvolvido historicamente fosse algo da natureza do alvo do preconceito. O texto “Elementos do Antissemitismo: limites do Esclarecimento”, de Horkheimer e Adorno (2006), por exemplo, apresenta a relação que o antissemita estabelece entre o povo Judeu e o lidar com o dinheiro, obtendo o estereótipo que os Judeus “gostam” de dinheiro. Mas, quando na verdade, o que ocorreu é que historicamente até o segundo XIX, ao Judeu não era permitido ingressar na universidade, nas forças armadas, poder ter seu negócio numa indústria, o que restou ao judeu foi basicamente, poder lidar com a circulação das mercadorias no comércio e emprestar dinheiro a juros. Nota-se que porque ele foi obrigado durante alguns séculos a se envolver nessa esfera da circulação da mercadora, comércio e empréstimo de dinheiro, para o preconceituoso ele é considerado como sendo desde o nascimento, alguém vinculado ao comércio (ADORNO e HORKHEIMER, 2006).

Então, algo que é histórico para o preconceituoso, no caso antissemita, se torna algo natural. Considera-se que, o preconceituoso reduz algo histórico a algo natural, entende-se essa natureza como se fosse uma essência. Junto a essa questão da natureza tornar-se histórico natural, o preconceito por vezes tem como base a alucinação, e por vezes também é uma ilusão. Na ilusão, o indivíduo percebe algo diferente daquilo que é apresentado. Na alucinação, o indivídiuo cria do inexistente, na ilusão ele deforma. No caso do preconceito quanto ao Judeu, são alucinações porque não há nenhuma diferença entre ele e as pessoas de outras religiões ou sem religião, e se alguém nota que há uma diferença, está alucinando, ele indica algo que não existe.

Quem tem preconceito em relação a um tipo de alvo, tende a ter preconceito em relação a vários alvos. O preconceito não depende do alvo, ele depende do preconceituoso, portanto, não cabe nunca julgar que o objeto do preconceito é responsável pela hostilidade e violência que recai sobre ele. É preciso entender o que acontece com o preconceituoso e não com seu alvo. Por outro lado, como de fato há distinções, alguma distinção entre o preconceito contra os alvos existe algo do próprio alvo que suscita no preconceituoso algo distinto (CROCHIK, 2006).

Em geral o preconceito está direcionado às chamadas minorias. O preconceito não se volta necessariamente contra o indivíduo, mas contra um indivíduo que representa um grupo que tem determinadas características atribuídas a ele pela cultura. Podemos pensar duas formas de minorias: minoria social e espontânea; a primeira é alvo de hostilidades e seus membros se unem para enfrentá-las; as últimas se constituem por vontade própria dos indivíduos, seriam a propícias a existir em uma sociedade livre.

Ainda, destaca-se que o livro ‘A Personalidade Autoritária’ enfatiza, em seus resultados, que o destaque em características psicológicas não implica, necessariamente a compreensão do preconceito como uma ocorrência apenas psicológico. Portanto, Adorno (1950) explicita:

It seems obvious therefore that the modification of the potentially fascist structure cannot be achieved by psychological means alone. The task is comparable to that of eliminating neurosis, or delinquency, or nationalism from the world (p. 975).

 Em estudo realizado por Crochick (2019), objetivando distinguir formas de violência escolar, o bullying e o preconceito, e relacioná-las com tipos de personalidade, foi possível identificar que as duas formas de violência estão associadas, porém são distintas. Ainda, o estudo aponta que o preconceito é correferido ao autoritarismo e ao narcisismo, e a prática e base ao bullying numa proporção maior ao narcisismo do que ao sadomasoquismo. Percebe-se que o sujeito que sofre o bullying não se distingue de quem não o sofre considerando ser narcisista, autoritário ou preconceituoso. Por fim, o sujeito que pratica o bullying pode estar propenso a ser, em outras oportunidades, adepto, espectador e alvo.

A formação do indivíduo depende de como a sociedade e a cultura estão estruturadas, ou seja, ao longo da história, o indivíduo pode ser estruturado de maneira distinta de acordo como a sociedade está estruturada. Destaca-se que tanto no Brasil, quanto em outros países, vivenciamos uma tendência reacionária, na tentativa de reaver estágios passados da civilização e negar aquilo que pudemos obter ao longo do tempo, sobretudo um ataque à democracia, que significa um ataque à possibilidade de dialogarmos, conversarmos e construirmos conjuntamente a sociedade, e para isso levando em conta todas as diferenças, de gênero, raça, ideologia, religião, entre outras (CROCHIK, 2019).

Sabe-se que o indivíduo se modifica à medida que a sociedade também se transforma. Em meados do século XIX, Walter Benjamin faz uma análise da poesia de Charles Baudelaine, que indicava já uma mudança na tradição da formação do indivíduo, que até então, era baseada na experiência que se define na relação entre os indivíduos nas diversas gerações, e então observamos a importância desta tradição (GATTI, 2008).

Ainda, vale considerar que a tradição também é contraditória. Se nós abrirmos mão da tradição, abrimos mão da própria história. Se a gente só age em termos da tradição, estamos abrindo mão do nosso futuro. Então, é necessário saber do passado, que por vezes se expressa pelos rituais da tradição para seguirmos adiante. Por isso, é relevante marcarmos a importância do passado e do que foi a construção das representações do mundo.

Gatti (2008) evidencia que segundo Baudelaine, e a análise de Benjamin, a experiência tendo em vista as mudanças na formação social com o capitalismo crescendo com a situação das mercadorias precisando de novos modos de circulação, fez com que uma cidade como Paris considerada a época, como capital do mundo, no século XIX, pôde ter em relação às mudanças das avenidas, os próprios prédios, e com isso fez com que as marcas individuais deixassem de existir, necessitando de vestígios para serem localizados.

Ainda, deve ser considerada a relação entre questões psíquicas e sociais na constituição do preconceito. A este respeito Adorno (1995) refere que o preconceito não é inato, ele é atravessado durante o percurso de desenvolvimento a partir das relações entre conflitos psíquicos e a estereotipia do pensamento, indicando que existem elementos próprios da cultura influenciando. Torna-se imprescindível trabalhar as tendências para que elas não se manifestem.

O preconceito é uma atitude, não é uma ação, atitude é prévia a ação, é uma tendência para a ação. A ação derivada do preconceito é a discriminação (CROCHIK, et al, 2013). Ademais, os mesmos autores referem que o preconceito apresenta três características básicas: parte cognitiva, pela qual se tenta justificar o preconceito, a parte cognitiva do preconceito é basicamente o estereótipo. A pessoa tenta justificar a hostilidade dirigida ao alvo do preconceito. O estereótipo é formado socialmente, pela cultura, e o preconceituoso se vale disso, que a cultura atribui como estereotipo pra manifestar a sua hostilidade. Para entender o preconceito não basta só entender o indivíduo tem que entender a cultura também. É a cultura que  marca quais são os alvos que devem ser perseguidos.

Há um dado afetivo/emocional no preconceito, e que pode se manifestar de três formas, a mais conhecida é a hostilidade em relação ao alvo. O outro que paradoxalmente é ao contrário desse, mas que se utiliza de um mecanismo de defesa chamado formação reativa, que é poder operar com sentimento oposto, exagera o afeto em relação aquele que não gosta. E a terceira forma que é a indiferença, tentar negar o próprio sentimento em relação ao alvo do preconceito, ou seja, o próprio preconceituoso se nega. (CROCHIK, 2019).

A este respeito, considera-se dois conceitos importantes da psicanálise pra compreender o preconceituoso, sendo a projeção, que ocorre quando o indivíduo não consegue admitir nele próprio alguns medos, desejos, e então ele passa a projetar no outro, de tal forma que não é ele que tem esses medos e desejos, mas é o outro. E porque esse outro expressa desejo e medos que ele tem que negar ele, este passa a atacá-lo, ao atacá-lo está atacando também ou reprimindo mais ainda aquilo que ele desejaria. Ou seja, projetamos sobre o alvo, algo que a gente deseja, ou algo que a gente tenha receio em nós próprios. É necessário um objeto externo para o qual eu possa projetar o que eu nego em mim mesmo.

O outro conceito importante é a identificação. Para construirmos um eu, para nós nos formarmos é necessário a gente se identificar com os outros. A gente se identifica com pessoas que gostaríamos de ser, assim como podemos nos identificar com aquele que gostaríamos de ter para nós como objeto de amor.

A identificação é mediada pela forma com que a gente percebe o adulto, não é que nós somos tal como os adultos que nós identificamos, mas nós somos tal como podemos percebê-los por meio do nosso desejo, nossos receios. Mas, é por meio dessas identificações que nos tornamos o eu, o que indica que com quanto mais pessoas pudermos nos identificar, mais rico será o nosso eu. O preconceituoso é aquele que nega a identificação.

Adorno (1995), em “Educação após Auschwitz”, expõe que o aspecto psicológico mais importante no nazismo foi a ausência da identificação, se fosse possível aquele que agride se identificar com o alvo agredido, provavelmente não haveria nem agredido, nem agressor. É essa a identificação a qual a gente é formado, que é fundamental poder marcar. A identificação se contrapõe aquilo que a nossa cultura estabelece com a frase: ‘sejam vocês mesmos’, quando na verdade a gente é a medida em que pode se desenvolver. Uma vida aberta à experiência permite que o indivíduo possa se modificar, sem abandonar as identificações anteriores. Sempre é possível mudar algo sem abrir mão de si próprio, formação individual, ou tradição individual. Aquilo que nós fomos ao longo da vida, deve se manter na própria experiência, que permite a gente poder ir tanto além daquilo que a tradição nos proporcionou sem abandoná-lo.

A formação nos dias de hoje não é uma formação que permita esse eu que acompanha as representações ao longo da nossa vida, porque a gente mal aprende algo e tem que descartar pra poder aprender outra coisa, tudo passa a se tornar descartável, as pessoas também são descartáveis e a nossa própria formação deve nos adaptar para cada momento, mas seja uma formação com um acúmulo de experiência, um acúmulo de identificação, que permita a gente construir um eu.

A questão do preconceito é calcada na necessidade de haver um objeto  para o qual a gente possa projetar nossos medos, nossas culpas, desejos e é contrário a identificação, é contrário a experiência, mas esse objeto é necessário. As pessoas que são moralistas, que criticam diversos comportamentos dos outros, que chamam de perversos, quando na verdade, eles mesmos tem aqueles desejos que enquadram como sendo pervertidos Crochik (2005).

Mas nesse sentido, o preconceito acaba sendo conservador, ele tenta negar nos outros aquilo que ele poderia ser e nega pra si, então ele tenta conservar aquilo que ele mesmo é, o preconceituoso em geral, é um moralista, é um autoritário que pretende preservar o que existe e atacar tudo aquilo que possa negar o existente. O preconceituoso é basicamente conservador, mesmo que inconscientemente ele gostaria de poder destruir aquele que ele conserva. Nesta perspectiva, na Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer (1985, p. 83/87) expõem “há os fracos e os fortes, há classes, raças e nações que dominam e há as que se deixam vencer. A dominação sobrevive como um fim em si mesmo, sob a forma de poder”.

Perante o exposto, se o preconceito passa a ser ensinado como um problema, social e psicológico desde o início do século passado, o bullying passa a ser estudado mais recentemente, o que não implica que antes ele não existia, como a própria literatura mostra, sobretudo as literaturas que falam das escolas, no séxulo XIX e XX. Mas, o bullying passou a ser estudado como objeto de pesquisa nas últimas décadas do século passado, pelo Psicólogo Dan Olweus, que fez estudos na Noruega, Suécia, porque partiu da notícia de que alguns jovens tinham se suicidado porque haviam sofrido intimidações, humilhações de colegas. Este fato chamou atenção e diversos autores passaram a estudar este fenômeno de maneira sistemática.

Claro que nem todos que sofrem bullying irão se suicidar, mas pelo exagero, podemos perceber o que acontece no dia a dia. À vista disso, algo desta humilhação, e intimidação que a criança ou o adolescente sofreu e que mais a frente o bullying se transforma em assédio, e vão continuar sofrendo em outros contextos como trabalho, relações sociais que deixam marcas.

E então, tais marcas ficam naquele que está sendo agredido, e que tem outra possibilidade, como apontam as literaturas, que por vezes se transforma naquele que sofre em agressor, e a partir daí invade as escolas que ele vivenciou e finda assassinando pessoas, ou se suicida, mas que no dia a dia, quando não há esses casos extremos, sempre deixam marcas e são marcas de sofrimento, que levam a tristes lembranças e recordações ao longo da vida.

Se o preconceito pode até conservar o objeto, embora gostaria de poder destruí-lo, no bullying o que está presente é unicamente a vontade da destruição. Em geral, o bullying começa com ofensas, humilhações em relação a dados simbólicos. Então, o indivíduo passa a xingar o outro, passa a humilhá-lo simbolicamente, uma vez que o outro está bastante diminuido, passando a atacá-lo fisicamente. O que está presente na base do bullying é o desejo de poder dominar e destuir o outro, sendo algo cruel, no sentido de aniquilar o outro. No preconceito, se conserva o objeto, quando na verdade se quer negá-lo, se quer destruí-lo, no caso do bullying a questão da destruição é imediata.

O preconceito, nesse sentido, é conservador pois não quer nenhuma questão, que venha minorias mudar as regras estabelecidas, então o preconceito conserva a sociedade, conserva o poder, o que também pode ser entendido como narcisismo das pequenas diferenças, como sendo: “a ideia de que são exatamente as pequenas diferenças entre os povos que, sob qualquer outro aspecto, são iguais, que formam a base dos sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles” (BLOK, p. 273, 2016).

Neste viés, a formação do preconceito se apresenta como efeito do processo de formação do indivíduo e cultura. Desta forma, a educação, como uma das bases formadoras da sociedade, ocupa um papel significativo na luta contra o preconceito (MOREIRA, 2005). Nesta medida, destacam-se as contribuições da Teoria Crítica da Sociedade à compreensão e à reflexão da violência sob a forma de preconceito, em suas dimensões social e histórica em suas diversas manifestações sociais. Como bem apresentado por Adorno (1973): “liberdade não é poder escolher entre preto e branco, mas sim abominar este tipo de propostas de escolha.

            E então, vale o questionamento, a indústria cultural que consumimos dá forma ao que somos? Adorno e Horkheimer (1973) criticam a indústria cultural, e apresentam o indivíduo e a cultura como uma relação complexa. O conceito de Indústria Cultural como crítica da sociedade contemporânea em Adorno e Horkheimer, é percebido por alguns pontos, sendo a mútua determinação entre indivíduo e cultura, somos o que a cultura faz de nós, mas nós também fazemos a cultura, logo a cultura tem primazia nessa determinação. Para efeitos da indústria cultural, considera-se como instrumentos de dominação e padronização na cultura contemporânea, especialmente a partir do século XX.     

Ainda sobre o texto Mal-estar na civilização, Freud aponta questões essenciais sobre a busca da felicidade e do prazer permeados pela busca da satisfação. Vale reforçar que o texto mencionado, solidifica as origens da infelicidade, expondo conflitos relacionados ao indivíduo, sociedade e cultura com suas diversas nuances. Ainda, vale a compreensão de que para Freud, civilização e cultura não são conceitos distintos, o autor ainda aponta que o ser humano apresenta sofrimentos intrínsecos. Portanto, sejam quais forem as suas dores, elas sempre resultam do corpo, relacionamento e mundo externo.

Desta maneira, podemos considerar que o bullying é proveniente de um estado de regressão do sujeito em destruir o outro e a vontade deste, usando-se de ataque pessoal. Denota-se que a vítima do preconceito pode sofrer ações do bullying, podendo estar presente ou não no preconceito. No caso do bullying, o alvo é escolhido porque não consegue reagir, nem resistir, acarretando em desproporção de forças.

De acordo com as literaturas em geral, bullying se refere a intimidação, porém não é a única tradução literária, mas é definido como uma relação hierarquica de alguém que é mais forte, sozinho ou em grupo, contra alguém que não consegue resistir suficientemente a essa violência. E quando efetivamente ele mais tenta reagir, e essa reação é impotente, mais suscita a vontade de agressão do autor do bullying. Aquilo que chama atenção do autor do bullying é a fragilidade do outro, porque ele quer efetivamente poder destruir mais ainda. Tal como o preconceito é uma projeção sobre o objeto, que ele tenta negar em si mesmo, essa destruição do objeto do bullying pode ser vista como a negação da própria fragilidade em relação ao outro (CROCHIK, 2019).

Para Olweus (2013), o bullying pode ser compreendido como um acontecimento que ocorre sem uma causa clara, quando um sujeito se comporta com atitudes agressiva contra outro sujeito, gerando-lhe dor e angústia, de forma rotineira e proposital, abrangendo uma situação de contraponto relacional de controle. De acordo com Terroso et al (2016), esse modo de agressão pode se constituir de forma física, verbal, relacional ou social e também por meio eletrônico.

Um dos aspectos da definição do bullying é efetivamente essa ideia de uma hierarquia, o mais forte sobre o mais fraco, alguém mais forte, ou mais esperto ou uma ação em grupo, mas que tem que ser voltada ao mesmo indivíduo durante certo tempo. Por exemplo, a briga de dois colegas, não é considerada bullying, xingar um colega ou outro também não é bullying. Agora, pode se tornar bullying quando se volta a alguém que não consegue resistir suficientemente e tem certa frequência e dura um certo tempo.

De acordo com Cavalcante et al (2019), a relação entre bullying e preconceito passou-se a ser ainda mais evidenciada na literatura, indicando a relevância de estudos aprofundados sobre a temática, considerando discussões que perpassam relações interpessoais, passando a problematiza-las na esfera das relações intergrupais.

No tocante, Antunes e Zuin (2008), retratam o tema apresentando algumas indagações sobre o que tem sido chamado de bullying, que nada mais é, que uma maneira de assédio demasiada antiga e situada na estrutura social, denominando-se preconceito. Conquanto, os autores referem no presente estudo, que o bullying é absorvido como um fenômeno multifacetado, tendo como potencial ocorrer a manifestação através do preconceito. “O saber compartilhado pelos atores sociais ancorou o bullying como uma forma de expressão do preconceito e de intolerância às diferenças, sendo por vezes reconhecida como sinônimo de brincadeira, realidade que pode mascarar a enfrentamento do problema” (CAVALCANTE et al, p. 110).

Mas, vale a pena pensar numa distinção importante entre os dois fenômenos. Alguém que é alvo do preconceito pode ser também alvo do bullying, mas o que diferencia no bullying e preconceito é que a agressão satisfaz desejos diferentes. No caso do bullying o que está presente é o desejo da destruição do outro, no caso do preconceito também é esse desejo mas que é negado pela tentativa de poder de alguma maneira conservar aquilo que ele gostaria de poder destruir.

Comumente, tanto no preconceito quanto no bullying, o sujeito que realiza não se identifica com o outro. Todavia, existem algumas características específicas que determinam os comportamentos e os contornos de violência de cada um, e mesmo que ambos estejam presentes nos diversos espaços, são fenômenos distintos. Assim explica Crochik (2015, p. 54),

O bullying parece ser uma forma de violência mais indiferenciada do que a presente no preconceito mais arraigado, que tem alvos definidos e justificativa para sua existência, e corresponder a uma maior fragilidade do indivíduo que o pratica; nesse sentido, o preconceito menos delineado pode ser a atitude que pode levar à ação do bullying; esse também parece expressar melhor uma cultura homogênea, que, pela (falsa) formação, constitui indivíduos frios, insensíveis e com dificuldades de formular seus desejos e os reconhecer, o que pode direcioná-los a uma forma de violência difusa, ao contrário do preconceito que se fixa em necessidades mais bem delimitadas.

Como destacado anteriormente, sobre o preconceito, este possui alvos mais definidos, já o bullying, demonstrada de modo diretivo a violência estrutural presente na sociedade. Nesse sentido, Crochick (2019, p. 3) defende que

[…] no preconceito há um alvo delimitado, no qual expectativas, medos e desejos que o indivíduo não pode admitir em si são projetados; em contrapartida, o autor do bullying precisa de um alvo, qualquer que seja, que possa submeter à sua vontade de dominação e destruição da vontade alheia.

No caso do preconceito, há um objeto delimitado que provem da cultura (Judeus, Negros, Pessoas com deficiência, LGBTQIA+, Mulheres) e formas de minorias. No caso do bullying é quem está a disposição, não há um objeto preciso designado pela cultura para o bullying, pode ser qualquer um, desde que não resista. Se o preconceito diz respeito a um objeto melhor delimitado, o bullying não tem essa delimitação, e então vale a questão da identificação, que diz respeito à possibilidade de ter o outro em dado momento, como referência para nós, no preconceito ela é negada, mas permite pelo menos um objeto que mantém essa negação, no caso do bullying, nem isso.

Horkheimer e Adorno (1973) ressaltam que a civilização, nesta época, tem elaborado diversos fenômenos de massa e por essa razão, na sociedade atual, a técnica alcançou uma configuração e disposição característica, excessivamente associadas às exigências dos poderes instituídos homens. Os autores se preocuparam em mostrar que a cultura, nesta dimensão, por vezes apresentou um sentido de cultura espiritual, e a civilização, uma acepção de avanço material. Conquanto, esclarecem que os dois posicionamentos, são intrínsecos entre si e não devem ser compreendidos de modo independente. Portanto, civilização não é adversa à cultura do espírito para representar-se como cultura material, esta de antemão, qualifica o contexto geral da humanidade.

Portanto, o bullying responde a necessidades psíquicas mais primitivas, mais precárias do que o preconceito. E então podermos pensar, que nos dias de hoje tenhamos mais atenção para o bullying do que para o preconceito, porque a nossa formação individual é cada vez mais regredida, ela se quer precisa de um objeto pra poder se valer.

Considerações Finais

Considera-se que o bullying e o preconceito, são expressados como comportamentos que emergem a uma conduta social. Ou seja, isso significa que ocorrem entre os sujeitos da sociedade e tem relação com inúmeras características do sujeito em relação a si e à comunidade, projetando de uma forma singular o fenômeno geral da violência social.

Vale considerar o texto “Mal Estar na civilização”, em que Freud (2011) vai falar sobre tendências a destruição que a nossa civilização carrega consigo e cada um de nós também. Uma delas é aquela que está na base do narcisismo das pequenas diferenças, que diz respeito a ideia de um grupo só poder existir e renunciar a violência do indivíduo contra os outros membros, se houver um objeto externo sobre o qual ele possa projetar a sua hostilidade. Amplia-se as diferenças com o outro grupo justificar o nosso preconceito. Freud vai dizer: por isso que os Judeus passaram a ser um grupo importante para o restante da humanidade poder existir.

Por fim, poder ter clareza dos conceitos é de extrema importância e urgência. De acordo com Antunes e Zuin (2008), o bullying pode ocorrer de três formas, sendo estas direto e físico, direto e verbal e indireto. Desta forma, o preconceito corresponde a um objeto mais delimitado que o bullying, sendo um desejo mais consciente.

Galuch et al (2020), destacam que

Nesse sentido, do ponto de vista social, o bullying e o preconceito representam um modo como a violência se faz presente cotidianamente em diferentes níveis e espaços. Podemos destacar como exemplos dessa violência os conflitos entre grupos sociais e morais e códigos de conduta que pregam que as pessoas devem se virar sozinhas contra o mundo, que devem fazer justiça com as próprias mãos, que devem ser fortes e autônomas a qualquer custo. O que isso significa? Significa que, muitas vezes, não temos clareza do tipo de relações que estabelecemos na sociedade fundamentada em relações de poder e de dominação. Portanto, o bullying, por exemplo, surge em contextos de convivência como uma forma de destinação de desafetos, de estado de insegurança e de pouca clareza. (p. 14).

Antunes e Zuin (2008), trazem uma hipótese interessante em relação à comparação dos dois fenômenos. Destaca-se que através da crítica à razão instrumental apontada por Adorno e Horkheimer, entende-se que a relação entre preconceito e bullying, estão associadas de modo que podemos considerar que o preconceito é a base do bullying (ANTUNES E ZUIN, 2008). Isto posto, discutem que o bullying apresenta um significado constituído pela razão instrumental, apresentada anteriormente, e o preconceito vale-se do mesmo fenômeno, e que “pertence a uma ciência pragmática que atende à manutenção da ordem vigente ao invés de colaborar para a emancipação dos indivíduos” (p. 33). Vale considerar que esta posição é diversa daquela que procura distinguir os dois fenômenos.

Assim, considera-se que a temática preconceito e bullying que são remetidas ao indivíduo, devem ser necessariamente associados a totalidade, a ideia da sociedade e da cultura. Desta forma, é impossível pensar a violência e violência escolar sem pensarmos a violência social.

Referências

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[1] Psicóloga (2014), graduada pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), Mestre (2020) em Ciência pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências da Saúde da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6900-0779.E-mail: anajakellyne@hotmail.com

[2] Psicólogo (1979), Mestre em Psicologia Social (1985), Doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano (1990) e Livre-docente em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP (1999). Professor Sênior do Instituto de Psicologia da USP; Professor credenciado do Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Professor Titular Aposentado do Instituto de Psicologia da USP (2006).  ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2767-3091.E-mail:jlchna@usp.br