REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7087829
Autores:
Ana Carolina Benassi Perozim1
João Antônio das Chagas Silva2
Resumo
O presente artigo tem por tema a polícia ostensiva e a violação de direitos humanos. Inicialmente foram traçadas considerações a respeito dos direitos humanos, buscando a identificação de seu substrato jusfilosófico. Foram traçadas linhas conceituais e explicitadoras dos direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição Federal de 1988 e reconhecida a segurança pública como verdadeiro direito social do cidadão. A organização das forças de segurança, conforme realizada pela Constituição também foi analisada, oportunidade em que foram destacadas as principais forças de segurança e traçadas as linhas que distinguem a polícia judiciária da polícia ostensiva. Em seguida, foram feitas as considerações relativas aos tópicos mais marcantes acerca da violência e das violações de direitos humanos, buscando a interpretação integrada à luz da não concretização efetiva dos direitos sociais em comunidades marginalizadas. Foi salientada, ainda, a necessidade da reconstrução e do resgate da cultura de direitos humanos, que passa necessariamente pela correta compreensão de seu conteúdo.
Palavras-chave: Direito Constitucional. Segurança Pública. Polícia ostensiva.
Abstract
The present work has the theme of ostensive police and the violation of human rights. Initially, human rights considerations were drawn, seeking to identify its jusphilosophical substratum. Conceptual and expressive lines of social rights foreseen in article 6 of the Federal Constitution of 1988 were drawn up and public safety recognized as a true social (and therefore humanitarian) right of the citizen. The organization of the security forces, as carried out by the Constitution was also analyzed, where the main security forces were highlighted and the lines that distinguish the judicial police from the ostensive police were drawn. Next, considerations were made on the most striking topics about violence and human rights violations, seeking integrated interpretation in light of the failure to effectively realize social rights in marginalized communities. It was also stressed the need for the reconstruction and rescue of the culture of human rights, which necessarily passes through the correct understanding of its content.
Keywords: Constitutional Law. Public security. Ostensible police.
Introdução
O presente trabalho tem por objetivo realizar análise tendente a identificar o contexto de violação dos direitos humanos eventualmente realizados pelas forças policiais repressivas, notadamente aquelas incumbidas da segurança ostensiva.
Como se terá a oportunidade de mencionar adiante, segundo a divisão de atribuições realizada pela Constituição Federal de 1988, a polícia de segurança se encontra dividida entre duas forças: a polícia judiciária e a polícia ostensiva (ou preventiva). Esta última, tem a incumbência de atuar para prevenir a ocorrência de infrações de natureza criminal, seja através da realização de rondas periódicas, com grande marca para a presença física em espaços urbanos.
Com o avanço dos casos de resultados letais e denúncias envolvendo a atividade policial desempenhada pela polícia ostensiva (realizada, em âmbito estadual, pelas polícias militares), torna-se imperiosa a realização de análise tendente a avaliar as eventuais violações de direitos humanos.
De início, é possível apontar (como será evidenciado ao longo do trabalho), a ocorrência de um enfraquecimento no debate que permeia as discussões relativas à segurança pública. Os processos de generalização acerca do âmbito protetivo dos direitos humanos, fomentaram opiniões tendentes, inclusive, a afastar a aplicação destes princípios supraestatais da atividade policial, sob a ótima de máximas infames como “bandido bom é bandido morto” ou “direitos humanos para humanos direitos”.
À luz de tal problemática, torna-se imperioso o estabelecimento debate tendente a cravar, de maneira precisa (ou resgatar) o conteúdo e o substrato jus filosófico dos direitos humanos, e aplicá-lo também no âmbito das atividades policiais realizadas pela polícia ostensiva.
Neste sentido, busca-se criar todas as condições necessárias para a plena compreensão do tema. Inicialmente, foram fixadas as bases filosóficas acerca dos direitos humanos, tanto em seu viés supraestatal, como em sua dimensão fundamental (aquele conjunto de direitos eleitos pelo Estado brasileiro como indissociáveis do modelo político que em 1988 elegeu).
Deste modo, a busca por este substrato jus filosófico é capaz de contribuir para a compreensão mesma acerca da cultura humanitária, sempre visando deixar clara a sua característica de universalidade.
Culmina-se, assim, na análise da segurança pública enquanto direito social, atrelada à organização das forças policiais, segundo a roupagem entregue pelo texto constitucional.
Por fim, foram traçadas considerações a respeito da atuação da polícia ostensiva os processos de violação evidenciados, especialmente através da lavratura de autos de resistência.
O ponto relativo à falsa compreensão social (e de determinados membros das forças policiais) a respeito dos direitos humanos também foi abordado, atrelando os direitos sociais (que também são humanos) enquanto conteúdo pendente de plena concretização, aos processos de criminalização, aqui compreendida como o avanço da violência em regiões periféricas. Intentou-se demonstrar, como o fim dos processos de marginalização é que serão capazes de dar fim ou minorar a necessidade de intervenção policial, muito mais que quaisquer ações policiais duras e ineficientes.
A pesquisa se valeu do levantamento bibliográfico de autores como Alexy, Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Juliano Taveira Bernardes, Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira, Canotilho e tantos outros.
Argumentação
Antes que se possa dar passos mais amplos acerca do tema que ora se pretende desenvolver, torna-se imperioso o prévio conhecimento acerca do que a atividade policial, à luz do atual ordenamento constitucional, efetivamente representa. Tal análise passa não apenas pela distribuição pura e simples das tarefas relacionadas à atividade, como previstas na Constituição, mas caminha pelo reconhecimento segundo o qual, segurança pública, segundo a nova ordem jurídica implementada pela Constituição Federal de 1988, representa verdadeiro direito fundamental.
Partindo desta afirmação, é possível seguir rumo à conclusão que daí releva: a atividade policial – instrumento de realização da segurança pública – não se destina à proteção do Estado ou da coisa pública, ao menos isoladamente. A existência de um aparato físico-organizacional voltado para assegurar o cumprimento da Lei da ordem tem como fundamento de existência a promoção da paz social, é dizer: visa proteger a sociedade dos efeitos nocivos que o descumprimento da Lei acarretam.
Embora as afirmações pareçam, ao menos em análise superficial, por demais óbvias e até aparentemente inúteis, não é a conclusão a que se chega ao verificar, no seio das comunidades periféricas brasileiras (especialmente), que as polícias são vistas não como um instrumento de garantia da Lei e da ordem em benefício da população, mas como mecanismo de controle de massas em benefício das classes mais favorecidas.
Daí brotam abusos, sejam eles manifestados na forma do dispersamento de manifestações populares sem a utilização das melhores técnicas, ou da atividade daqueles que, sob o pretexto de fazer cumprir a Lei, em verdade a defraudam, protegidos sob o manto do corporativismo ou do protecionismo Executivo. Fala-se de torturas, fraude processual realizadas através do plantio de provas, ameaças e tantas outras ferramentas importadas da atividade assumidamente criminosa.
O desafio da polícia moderna, em especial a brasileira, é encontrar o caminho de fazer cumprir a Lei sem violá-la, de estar ao serviço da comunidade não para servir às pretensões políticas do governante, mas para, de fato, instaurar o ambiente adequado para o desenvolvimento das potencialidades locais.
Como já restou anotado, a Constituição Federal alçou a segurança ao nível de verdadeiro direito fundamental da pessoa humana. A previsão, expressa, encontra-se insculpida no artigo 6º da Carta Magna, sob o capítulo denominado “Dos Direitos Sociais”. Anota-se:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Antes de ser direito social, entretanto, a segurança é, segundo classificação convencionada pela doutrina constitucionalista e incorporada pelo texto constitucional pátrio, um direito fundamental, os quais, por sua vez, representam direitos humanos. Não se cuida de classificação harmoniosa na doutrina constitucionalista. Entretanto, as linhas conceituais acerca de cada instituto devem ser comentadas.
Os comentários, entretanto, não se fazem necessários apenas para a compreensão sistemática do assunto que ora se pretende desenvolver, mas por trazerem, em suas tentativas conceituais, importante carga valorativa.
O tema relativo à atividade policial e seus abusos (a luz das normas que regulamentam a relação entre o Estado o indivíduo) apenas pode ser compreendido quando se tem clara a ideia de que, extrapolando os limites da norma em sua atuação, caminha-se para a violação de direitos: sociais, fundamentais e humanos.
Acerca dos primeiros (os direitos humanos), não foram poucas as tentativas jusfilosóficas tendentes a localizar seu fundamento de validade. Penoso é localizar na doutrina autor que tenha se aproximado, de maneira satisfatória, do fundamento validade daquilo que se convencionou chamar de direitos humanos.
Nesta senda, é de indagar: seria a norma a base que fundamenta a existência de um conjunto de direitos invioláveis, intrínsecos à qualidade de ser humano? Partindo desta premissa, da noção juspositivista segundo a qual o fundamento de validade do direito é a norma, poder-se-ia afirmar, assim, que a própria noção de dignidade da pessoa humana (ou seu conceito) é variável a depender da realidade normativa que se apresenta.
É certo, por outro lado, que o atual estágio de racionalização dos direitos humanos propiciou a afirmação da existência de um conjunto de normas reunidoras, em nível internacional, que buscaram catalisar e positivar determinadas noções que seriam caras à toda Humanidade. Exemplo clássico, é a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, cujo preâmbulo tem texto como segue:
A Assembléia Geral das Nações Unidas proclama a presente Declaração Universal dos Direitos do Homem como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.
Como se nota, a Declaração escrita ao cabo da Segunda Grande Guerra, período de notórias violações, parece agregar em seu conteúdo a noção de que capta algo aparentemente acima da pura noção de direitos restritos ao quanto consta em uma carta escrita. Parece flertar com a ideia segundo a qual existem valores acima do direito positivo. Melhor: aparenta traduzir a noção de que existem valores anteriores ao próprio direito positivo.
Os textos normativos, assim, aparentam entregar verdadeiros diplomas de reconhecimento a certos grupos de direitos, conforme o pensamento universal avança em seu longo e às vezes lento caminho de evolução social.
Paulo Gustavo Bonet Branco (2012, sp) ilustra o caminho filosófico aqui tratado à luz das teorias que tentam explicar as bases fundamentais dos direitos humanos:
Assim, para os jusnaturalistas, os direitos do homem são imperativos do direito natural, anteriores e superiores à vontade do Estado. Já para os positivistas, os direitos do homem são faculdades outorgadas pela lei e reguladas por ela. Para os idealistas, os direitos humanos são ideias, princípios abstratos que a realidade vai acolhendo ao longo do tempo, ao passo que, para os realistas, seriam o resultado direto de lutas sociais e políticas. (BRANCO, 2012, sp)
Diversas são as teorias que buscam explicar o fundamento de validade ou o substrato filosófico dos direitos humanos.
Para alguns, que adotam a corrente jusnaturalista, são noções intrínsecas à qualidade de homem. Se todo homem vivente nasce com coração, todo homem nasce, igualmente, com um conjunto de direitos que lhe são tão próprios quanto olhos em sua face ou dedos em suas mãos.
Para outros, os adeptos da corrente juspositivista, os direitos humanos são carentes de reconhecimento estatal para que possam ganhar semelhante definição. O que, para nós, esbarra na esdrúxula afirmação segundo a qual o grau de merecimento à dignidade do indivíduo passa pela vontade estatal. Em outras palavras, afirmando o Estado que determinada classe de pessoas merece se ver afastada dos favores e serviços públicos, que assim seja. Com a humildade necessária, afirmamos não parecer a solução mais adequada.
Por outro lado, também é correta a afirmação que os direitos humanos representam ideias ou princípios abstratos que a realidade vai reconhecendo ao longo do tempo. A vida humana no século XXI não vale mais que a vida humana no século XII. O que se deu foi o mero reconhecimento de que a vida é um bem por demais precioso. Cuida-se, portanto, de um processo de reconhecimento de direitos que já existem. O direito à igualdade, por exemplo, sempre existiu, enquanto conceito abstrato, direito corrente desde os primórdios, reconhecido pelas sociedades com a evolução do pensamento humano.
Daí que pode concluir terem os realistas igual razão ao afirmarem que os direitos humanos também são frutos das lutas sociais, sejam elas travadas no calor das ruas, na agitação da vida acadêmica ou em litígios nos tribunais. Nem todo direito humano atualmente reconhecido é fruto de luta social, mas é inegável o papel das revoluções, sejam elas retóricas ou nas ruas, como catalizador neste processo contínuo de reconhecimento.
Fato é, que “o catálogo dos direitos fundamentais vem-se avolumando, conforme as exigências específicas de cada momento histórico” (BRANCO, 2012, sp). Cada passo que se dá na direção do reconhecimento de um direito, representa o aperfeiçoamento do que atualmente se consagra como dignidade da pessoa humana.
Não foi diferente a conclusão a que chegou Ingo Sarlet, quando afirmou que “os direitos fundamentais, ao menos de forma geral, podem ser considerados concretizações das exigências do princípio da dignidade da pessoa humana”. Compreendem, assim, um conjunto de status que, somados, são capazes de revelar um estado de dignidade.
O princípio da dignidade da pessoa humana, é bom que se aponte, guarda profunda relação com o tema dos direitos fundamentais. Afinal, se os direitos humanos contribuem para a consagração da dignidade como ideia-princípio:
os direitos fundamentais são o conjunto de direitos estabelecidos por determinada comunidade política organizada, com o objetivo de satisfazer ideais ligados à dignidade da pessoa humana, sobretudo a liberdade, a igualdade e a fraternidade. (BERNARDES, et al, 2017, p. 31)
Pietro Sanches parece trilhar por semelhante caminho quanto tenta traçar critério objetivo para que possa determinar a quais direitos poder-se-ia entregar a qualidade de fundamentais. Afirma:
Historicamente os direitos humanos têm a ver com a vida, a dignidade, a liberdade, a igualdade e a participação política e, por conseguinte, somente estaremos em presença de um direito fundamental quando se possa razoavelmente sustentar que o direito ou instituição serve a algum desses valores. (SANCHES, 1994, p. 88)
Por sua vez, Norberto Bobbio, em interessante digressão a respeito da dificuldade encontrada para encontrar o fundamento filosófico dos direitos fundamentais, acaba tecendo críticas a semelhante esforço. Segundo o notável constitucionalista, como os direitos humanos representam fruto da evolução do pensamento humano, não se revela coerente buscar um fundamento de validade noutro lugar que não seja no momento histórico e na situação social em que ele haverá de operar.
A razão de ser da afirmação repousa no fato de que, não em poucas situações, ocorre efetiva colisão de direitos igualmente tidos como humanos e reconhecidos por uma dada comunidade política organizada como fundamentais. Deste modo, caberia a conclusão de que o grau de fundamentalidade de determinado direito será dado não pelo seu reconhecimento propriamente dito, seja ele à luz do direito natural ou positivo, mas das circunstâncias que margeiam o caso em concreto.
Numa análise da estrutura normativa da Constituição Federal de 1988, verifica-se que o legislador-mor dedica o título II da Carta Magna para a tratativa dos Direitos e Garantias Fundamentais. Como nos lembra Pedro Lenza, o texto normativo divide tais direitos em cinco grandes e importantes grupos: os direitos e deveres individuais e coletivos, os direitos sociais, os direitos de nacionalidade, os direitos políticos e os direitos relacionados aos partidos políticos ( 2012, p. 957).
Localizada a situação espacial de tais direitos no corpo da Constituição, é de se delimitar sua natureza jurídica. A esse respeito, importante lição pode ser extraída do sempre citado Alexandre de Moraes. Segundo são as linhas escritas pelo eminente doutrinador, os Direitos e Garantias Fundamentais – dentre dos quais se inserem os direitos sociais – possuem aplicabilidade, via de regra, imediata.
Como já se teve a oportunidade de destacar, os direitos sociais surgem num segundo momento do processo evolutivo dos direitos e garantias fundamentais. Deixa-se de cobrar do Estado postura meramente abstencionista, passando a exigir atitudes proativas no sentido de consolidar o bem-estar do meio social.
É de se mencionar, no entanto, que a doutrina reconhece que os direitos sociais impõem ao Estado uma obrigação dúplice: positiva e negativa.
É positiva no sentido de que deve ser o grande provedor na realização de tais direitos. É negativa quando se verifica que o Estado deve abster-se de praticar atos lesivos a terceiros, tendentes a evitar a efetivação dos institutos em comento. Correta se mostra a afirmação de que as ações estatais positivas ganham superior relevo nesta seara. É a opinião de Pedro Lenza, que também sintetiza, de maneira acertada, o espírito que cerca o tema dos direitos sociais:
os direitos sociais, direitos de segunda dimensão, apresentam-se como prestações positivas a serem implementadas pelo Estado (Social de Direito) e tendem a concretizar a perspectiva de uma isonomia substancial e social na busca de melhores e adequadas condições de vida, estando, ainda, consagrados como fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1.º, IV, da CF/88). (2012, p. 1076)
Verifica-se, assim, que a grande função dos direitos sociais é, de fato, a efetivação das garantias individuais capituladas no caput do artigo 5º. Funcionariam como instrumentos de efetivação de tais garantias. Nota-se, que o enunciado contido no mencionado dispositivo se apresenta como meramente declarativo de uma realidade social que se implementa a partir da Carta Política. É, entretanto, por intermédio das políticas positivas do Estado, obrigado em razão da positivação constitucional dos direitos sociais, que tais garantias individuais se realizam.
Não é outro o entendimento esboçado por José Afonso da Silva quando afirma que tais direitos:
valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade. (SILVA, 2005 p. 287)
Os direitos sociais no sistema normativo constitucional do Brasil, encontram previsão no caput do artigo 6º da Constituição Federal. São eles: direito à educação, saúde, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. Enquanto direitos fundamentais, menciona Pedro Lenza, possuem aplicação e eficácia imediata, de sorte que a não efetivação constitui causa legitimadora do mandado de injunção ou da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (LENZA, 2012, p. 1076).
Prevista expressamente no rol do artigo 6º da Constituição, a segurança pública representa verdadeiro direito social do cidadão. Entretanto, é necessário estabelecer uma diferenciação entre as duas linhas de significação que podem ser extraídas do texto constitucional.
Assim como a doutrina e a jurisprudência evoluíram para enxergar na vedação de pena perpétua a proibição para todo os tipos de pena, não apenas para aquelas de caráter criminal, em verdadeiro processo de mutação constitucional, o sentido de segurança encontrado na Constituição não se restringe à segurança pública.
É certo que o objetivo deste artigo é esmiuçar e detalhar as nuances da segurança enquanto conjunto de ações voltadas para proteger o cidadão dos efeitos de práticas ilegais (e de caráter criminal), mas a nova roupagem do conceito de segurança trazido pelo artigo 6º mostra-se diferente daquela constante no caput do artigo 5º.
De início, esta é a informação principal que deve ser salientada: tanto o artigo 5º quanto o artigo 6º da Constituição Federal apontam a segurança como direito fundamental. Direito individual no primeiro caso e direito social (conteúdo programático) no segundo caso.
O constituinte originário não lança palavras vazias no texto constitucional. Logo, torna-se improvável poder-se afirmar que houve redundância ou dupla previsão. Como bem aponta Pedro Lenza (2015, p. 1079), a noção de segurança apontada no artigo 5º se aproxima da ideia de garantia individual, ou seja, de norma que cerca o cidadão das possibilidades nocivas do Estado. A compreensão passa pela ciência da objetividade de cada geração (ou dimensão) de direitos já trazido em linhas passadas: aqui há obrigação negativa do Estado no sentido de não promover ações capazes de trazer insegurança ao cidadão, seja à sua vida, bens, insegurança jurídica, dentre outros.
No âmbito do artigo 6º, enquanto direito social e, portanto, de conteúdo programático, tem-se verdadeira ordem positiva ao Estado. Aqui, o que se tem é o dever entregue ao poder estatal de efetivamente prestar serviços capazes de garantir segurança ao cidadão, notadamente segurança pública. É o dever de proteger o indivíduo, seu patrimônio, a paz e a ordem pública. É neste contexto que a segurança surge como função estatal. Nítido comando que gera crédito em favor do cidadão.
A Constituição Federal de 1988 estrutura a segurança pública a partir do artigo 144, quando estabelece tratar-se de dever do Estado, direito e responsabilidade de todos. Tem por objetivos a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, operacionalizando-se por órgãos como: a polícia federal, a polícia rodoviária federal, a polícia ferroviária federal, as polícias civis, as polícias militares e os corpos de bombeiros militares e, por fim, as polícias penais federais, estaduais e distritais.
São, como mencionados, os braços do estado capazes de garantir o direito social à segurança esboçado no artigo 6º da Constituição Federal, que a estabeleceu como direito social.
O Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.182, relatado pelo Ministro Eros Grau, julgado aos 24 de novembro de 2005, fixou entendimento segundo o qual o rol estabelecido no artigo 144 da Constituição Federal representa cláusula fechada. Deste modo, aniquilada está a possibilidade de outros entes da Federação, como Municípios, Estados e DF, criarem outros órgãos de segurança pública, em que pese a possibilidade de os Municípios organizarem a guarda com vistas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.
No que pertine à Polícia Federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:
1 – apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; II – prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência; III – exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; IV – exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.
A nota relativa às atribuições da polícia federal (é tecnicamente equivocada a utilização da nomenclatura “competência”, esta exclusiva aos exercentes da atividade jurisdicional, afinal, competência é a medida da jurisdição) fica por conta da exclusão das infrações praticadas em desfavor de sociedades de economia mista da competência da polícia federal, cabendo, portanto, à polícia civil.
A Polícia Ferroviária Federal destina-se ao patrulhamento ostensivo das ferrovias federais.
No âmbito estadual, tem-se as polícias civis, a quem compete a polícia judiciária e a apuração de infrações penais da competência da justiça comum estadual e distrital, exceto as infrações militares e ressalvada a competência da União. Há, ainda, as polícias militares, com atribuição de polícia ostensiva e preservação da ordem pública. Os corpos de bombeiros militares têm por incumbência a execução de atividades da defesa civil, além de outras atividades a serem definidas em lei. A segurança viária, no âmbito estadual, tem como incumbência a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do seu patrimônio nas vias públicas.
Insta destacar, que em que pese tais órgãos de segurança em nível estadual estejam subordinados aos respectivos governos estaduais, a própria Constituição, em seu artigo 144, §6º, c/c art. 22, XI abriu a possibilidade de mobilização pela União, como “forças auxiliares e reserva do Exército”.
Como bem apontam Juliano T. Bernardes e Olavo A. V. Alves Ferreira, a doutrina consagrou o termo “polícia de segurança” como gênero, abrangendo tanto a polícia ostensiva quanto a polícia judiciária.
Quanto à polícia judiciária, os mencionados autores, citando Tourinho Filho, informam:
A polícia judiciária (…) é a que possui por objetivo “investigar as infrações penais e apurar a respectiva autoria, a fim de que o titular da ação penal disponha de elementos para ingressar em juízo”. Fazem parte da polícia judiciária a) as polícias civis dos Estados e do Distrito Federal; b) a Polícia Federal; e, c) excepcionalmente, com relação à apuração de infrações penais da competência da Justiça Militar, das polícias militares dos Estados e do DF, além das polícias da Forças Armadas. (2017, p. 715))
Todos os órgãos de segurança componentes da polícia judiciária, em que pese a nomenclatura, fazem parte do Poder Executivo. As funções de polícia judiciária da União são exercidas, com exclusividade, pela Polícia Federal.
Por outro lado, a polícia ostensiva atua como verdadeiro mecanismo de prevenção de delitos, seja através da tomada de ações ostensivas, como a realização de bloqueios e inspeções, como através de sua presença física, como a realização de rondas, exemplificativamente. Seguem Bernardo e Ferreira:
A polícia ostensiva, também chamada de polícia de segurança em sentido estrito, tem por finalidade a execução de medidas preventivas que visem a preservar a ordem pública, evitando danos às pessoas e ao patrimônio. Por isso, via de regra, atua independentemente de autorização judicial. Exemplos: as polícias militares, polícias rodoviária e ferroviária federais. (2017, p. 714)
A polícia militar, como visto, atua de maneira ostensiva. Busca prevenir crimes através de sua presença física manifestada através de rondas, abordagens e auxílio em situações de perigo. Cuida-se de polícia armada e, como tal, carente de treinamento para de fato auxiliar na proteção dos direitos do cidadão.
Entretanto, seja pela falta de treinamento ou por motivos de outra natureza, a polícia ostensiva não raramente é alvo de queixas da população pela truculência e falta de preparo para a atuação em determinadas situações.
Neste contexto, a análise acurada das políticas fixadas para a área de segurança é de primeira importância, mormente quando se nota a existência de milhares de denúncias de violação de direitos humanos praticadas por agentes da polícia ostensiva. Os abusos incluem tortura, fraude processual, formação de grupos de extermínio, invasão de residências, dentre outras situações.
De largada, é bom informar que o termo “auto de resistência” não encontra previsão em qualquer norma de natureza criminal existente na dilatada normatização penal brasileira.
Cuida-se, como bem aponta Ignácio Cano, membro do Laboratório de análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de janeiro, em entrevista concedida à Luiza Bandeira em novembro de 2017, expressão herdada da ditadura militar. Cuidava-se, naqueles tempos de pouca expressão do princípio democrático, de verdadeiro salvo-conduto para o extermínio: ao assinalar a causa de lesões corporais e mortes em autos de resistência, alijava-se a detenção em flagrante pelo ilícito penal praticado. Noutra palavras, tinha-se como presumida a excludente de ilicitude, para além de qualquer outra análise fática mais apurada por parte da autoridade policial investigante.
Ao cabo do período ditatorial, a expressão continuou a ser utilizada, especialmente no âmbito de atuação do policiamento ostensivo.
Em suma, representam a presunção absoluta de veracidade do agente de segurança diante do resultado lesivo, seja ele a morte ou a lesão. A expressão “auto de resistência” foi abolida após resolução conjunta do Conselho Superior de Polícia e do Conselho Nacional dos Chefes da Polícia Civil e, ainda, após determinação de eliminar imediatamente a prática de registrar as mortes perpetradas pela polícia como “autos de resistência”, proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos na sentença que condenou o Brasil, em 2017, no Sistema Interamericano no caso conhecido como “Favela Nova Brasilia”3. Entretanto, como não é completamente difícil prever, a supressão da utilização terminológica não foi suficiente para solucionar o problema.
Os autos de resistência converteram-se em “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial” ou “homicídio decorrente de oposição à ação policial”. Embora tenha havido o câmbio do nomen utilizado, o salvo conduto representado pela presunção de veracidade segue idêntico.
Michel Misse (2011, p. 37) em relatório final de pesquisa intitulada “Autos de Resistência: uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do Rio de Janeiro”, elabora interessante descrição acerca da instauração de inquéritos policias em se tratando de situações envolvendo autos de resistência:
Estes homicídios resultam prontamente na instauração de um Inquérito Policial, em cuja capa, geralmente, é escrito que se trata não apenas de um homicídio – artigo 121 do CP – como também de um “auto de resistência”, partindo-se, desde seu início, da presunção de legalidade dessas mortes. No dia-a-dia do trabalho policial, dentre os casos registrados na delegacia, os únicos registros de ocorrência (ROs) que necessariamente viram inquéritos (sem serem suspensos antes disso)16, mesmo que não haja nenhum indício de autoria, referem-se às mortes não-naturais. Todos os casos de homicídios, sejam eles dolosos ou culposos, transformam-se em inquérito, devido à sua inegável materialidade, representada pelo corpo. Assim que toma conhecimento de ocorrências de morte não-natural, o delegado – seja ele adjunto, assistente ou titular – instaura este procedimento (geralmente no fim do plantão em que foi feito o RO) 17, através de um Despacho e de uma Portaria, na qual resume a ocorrência, com base nas informações contidas no RO, e enumera as diligências a serem realizadas para a apuração dos fatos. Nos casos de “auto de resistência”, logo na Portaria, os delegados costumam narrar os fatos como praticados em legítima defesa, baseando-se na presunção de legalidade da ação dos policiais.
No procedimento ultimado pela autoridade policial como praxe, segundo a análise realizada por Misse, dois fatores ganham relevo como causa primeira da impunidade capaz de multiplicar o número de autos de resistência, o que representa, por consequência, a elevação no número de mortes provocadas por agentes de segurança: a presunção de legalidade da ação policial e a qualidade da iniciativa da autoridade policial ao dar início à apuração criminal.
De fato, a doutrina administrativista entrega ao agente público a presunção de que, no desempenho de suas funções, age com legalidade. A fixação tem razão de ser na medida em que viabiliza maior desenvoltura na prática da atividade funcional, especialmente administrativa. Entretanto, a atividade policial difere (e muito) da atividade realizada por agentes alfandegários (igualmente detentores de presunção de legalidade de suas ações).
Ao presumir que a reação letal se deu dentro dos exatos limites da codificação penal, com a soma dos avolumados casos a serem investigados por uma mesma autoridade policial, Misse constata clara inclinação, quando da instauração do inquérito, na condução de investigação não tendente a apurar o que de fato ocorreu, mas tendente a reunir elementos capazes de respaldar as afirmações realizadas pelo agente de segurança.
Nesse sentido, é o excerto da sentença proferida pela Corte IDH no caso “Favela Nova Brasília”4:
“194. De igual manera, el perito Caetano Lagrasta indicó que los “autos de resistencia” son clasificados desde el primer momento como la ocurrencia de un enfrentamiento que tuvo como resultado la muerte de una persona; es decir, se parte del supuesto de que el policía respondió proporcionalmente a una amenaza o agresión por parte de la víctima que murió. Cuando una muerte es clasificada con estos “autos de resistencia”, rara vez es investigada con diligencia; por el contrario, las investigaciones acostumbran criminalizar a la víctima, pues muchas veces las investigaciones se llevan a cabo con el propósito de determinar el crimen que supuestamente habría cometido la persona que murió. A pesar de que pueda haber indicios de ejecuciones sumarias, estos suelen ser ignorados por las autoridades. Diversos especialistas brasileños e internacionales, organizaciones de derechos humanos y organismos internacionales de protección de derechos humanos se han referido a ese fenómeno, lo que la Corte destacó en los párrafos 104 a 112 supra”.
Quando configurado um “auto de resistência”, viciada resta, portanto, toda o restante da investigação, se é que ocorrente.
Na mesma pesquisa, Misse aponta fatores escusos acerca de outros procedimentos não realizados em casos como os ora analisados:
Apesar de se conhecer a autoria do crime, não há indiciamento nem prisão em flagrante do autor, pois parte-se do princípio de que ele atuou legalmente, evitando-se, assim, possíveis sanções disciplinares. Promotores explicaram que a opção pelo registro do caso como “auto de resistência”, em vez de apenas homicídio doloso, é uma saída prática para evitar o indiciamento do policial que se declare autor do fato. Isso porque o indiciamento o impediria de obter promoções em sua carreira durante o andamento do inquérito, que pode se arrastar por até mais de cinco anos, além de constar como um registro em sua Folha de Antecedentes Criminais (FAC). (MISSE, 2011, p. 40)
Como se nota, ao menos pelo que expõe Misse em seu estudo, diversos são os fatores que colaboram para a reafirmação da impunidade nos casos de crimes praticados por agentes de segurança em serviço.
Com o acirramento do debate político nos últimos quatro anos, intensificado nas eleições gerais de 2018 e nas eleições que se realização nos próximos dias, a desinformação (que já não era desprezível) acerca do conteúdo dos direitos humanos tornou-se ainda mais severa.
Frases como “direitos humanos para humanos direitos” tornaram-se extremamente populares no debate político, muito mais pautados pela objetividade eleitoral do que pela técnica que deveria permear qualquer debate político.
Assuntos de primeira importância (e em especial a segurança pública) exigem atitudes concretas, tomadas após prévios estudos nos mais diversos níveis. Nenhuma situação será alterada quando o fundamento da mudança são bravatas e frases de efeito. Afinal, em que pese aparentemente interessantes do ponto de vista eleitoral, jamais poderão encontrar lugar no mundo dos fatos, na realidade social brasileira, tão heterogênea e diversa, demandando soluções igualmente diversificadas.
Com isto, o que se pretende afirmar (como introdução ao assunto próprio deste tópico), é que nenhuma política pública de segurança poderá vingar quando o caminho mais aparentemente fácil for tomado de forma homogênea, sem o prévio conhecimento das diversas realidades sociais já citadas. H. L. Mencken (1917, sp), afirmou que “para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”.
A máxima pode ser facilmente transportada para o âmbito da segurança pública. Uma rígida atuação policial não bastará, enquanto fatores outros não comungarem para fazer cessar a necessidade da atuação policial. É dizer: é o problema social relativo à violência policial não minguará enquanto não minguarem as causas que movem a atividade criminosa, capazes de dar ensejo à atuação policial.
Com isto não se está a afirmar serem aqueles entregues às atividades criminosas verdadeiras e genuínas vítimas da sociedade ou do universo capitalista. Entretanto, goste-se ou não, é inegável a afirmação segundo a qual os elevados níveis marginalização alavancam os índices de violência em determinada comunidade.
Estas ações prévias (e aqui se inicia apenas o degrau inaugural desta análise) também se encontram no necessário rol dos direitos humanos já iniciados nas linhas primeiras deste trabalho.
O encerramento dos processos de marginalização apenas se dará quando a atuação governamental se voltar, de maneira efetiva, para a concretização daqueles direitos sociais que são também humanos: moradia, alimentação, lazer, segurança, dentre outros. A concretização absoluta dos direitos humanos, mesmo nesta dimensão basilar (e que também é estrutural) é imperiosa para a redução da criminalidade, já que capaz de ser influenciada pela finalização dos processos de marginalização.
Ainda aqui é de se afirmar: haveria mais humanos direitos, se houvesse mais direitos humanos. Trabalho, moradia, lazer, transporte, alimentação e tantos outros, direitos constitucionalmente assegurados para uma nação extremamente tributada, mas que naufragam no navio de demagogos.
Aí reside o primeiro equívoco na compreensão acerca do conteúdo humanitário.
O debate político brasileiro transformou-se em verdadeiro monólogo digital. Uma tragédia desinteressante, em que dois indivíduos bradam “verdades” em voz alta, incapazes de ouvir e considerar o outro. O monopólio da verdade é requisitado por ambos, e o campo da dúvida, do questionamento e da consideração pelo argumento do outro (donde brotam e brotaram as mais brilhantes soluções sociais) segue infértil.
As soluções para a segurança são sepultadas em generalizações que afirmam ser necessário “acabar com os direitos humanos”. Quando a própria liberdade para bradar contra a liberdade, já é um direito humano.
Tudo para afirmar a existência de uma noção geral equivocada acerca da cultura humanitária, cultura esta que acabou por contaminar, também, a atividade policial. Cuida-se, aqui, do segundo degrau da análise que se pretende desenvolver acerca do assunto.
Parte do processo de generalização e esvaziamento do debate de políticas públicas passa pela errática noção de que os direitos humanos serviriam exclusivamente para “defender bandidos”.
Como vimos, toda pessoa é dotada de uma série de elementos inatos, que estão além da noção do Estado. São direitos inalienáveis, que não podem ser afastados sequer por próprio desejo, já que também.
É para defender estes direitos (inclusive) que a cultura humanitária há de se fazer forte.
Além da mera solidariedade, empatia e compaixão que devem permear qualquer ação humana (ai incluída a atividade policial) é necessária a noção de que defender o direito do outro também é defender o direito próprio. O que hoje viola um direito humano, pode ter amanhã o seu direito violado. Em momentos assim, a noção do indivíduo acerca do assunto tende a se alterar.
Daí que se deve sempre formular a mental conclusão: a tortura do outro é a tortura de todos. Quando o direito de um é violado, viola-se o direito de toda a coletividade, que treme nas mãos da insegurança jurídica.
Noutra dimensão de argumentação, o respeito aos direitos humanos pode representar verdadeiro exercício protetivo daquele que nada deve.
Não se afirma e nem se pretende afirmar, que o que se busca é a atuação passiva das forças de segurança, mas que a lei seja cumprida. Nesta noção se inserem: o uso moderado da necessária força, o emprego da força policial nos limites do treinamento recebido. Não permitir que a aparente desumanização do próximo represente a própria desumanização.
Conclusão
Ante todas as informações que puderam ser reunidas ao longo do presente trabalho monográfico, resta consubstanciada a necessidade de uma verdadeira guinada para a construção de uma cultura de direitos humanos junto às forças de atuação policial voltadas para a segurança pública.
A afirmação passa, necessariamente, pela correta compreensão, tanto de agentes quanto da sociedade, de que não se cuidam de um conjunto de direitos criados exclusivamente para a defesa de um grupo social marcado pela violação da legislação criminal. Cuidam-se de direitos tendentes à proteção universal do homem em relação à ação estatal (eficácia vertical) quanto da atuação corrente entre os próprios membros da sociedade (eficácia horizontal).
Esta noção compreende o entendimento de que a própria atividade de segurança que é prestada por estes agentes representa verdadeiro direito social, também categorizável como direito humano ou direito fundamental de terceira geração.
A afirmação não se apresenta como meramente teórica, mas de previsão expressa e categórica conforme previsto no artigo 6º da Constituição Federal de 1988, ao lado de outros direitos sociais de idêntica humanitária natureza.
A conclusão dos estudos realizados também conduz à afirmação segundo a qual a diminuição da atuação policial (e dos consequentes embates marcados pelas violações) poderá ser reduzido mediante o desenvolvimento de políticas públicas voltadas para a cessação dos processos de marginalização social verificados. Não por outra razão, as denúncias de violação acabam ganhando espaço em regiões periféricas, reforçando a geral e falsa convicção de que, no olhar policial, a vida de pobre, negros e favelados é inferior tem menos quilate que a de brancos dos grandes centros.
Conclui-se, ainda, que é imperiosa a retomada de um verdadeiro debate acerca das políticas públicas de segurança a serem desenvolvidos. Não há notícia de empreitada exitosa noutros pontos do mundo que não tenham levado em consideração a análise das realidades sociais à luz de verdadeiros estudos capazes de fundamentar a tomada de ações.
É dizer: em nenhum lugar do mundo soluções apresentadas com base em frases de efeito de geral repetição obtiveram êxito. A violência nas periferias não cessará com atuação mais firme por parte dos agentes de segurança, muitas vezes representados pelas aqui criticadas violações de direitos humanos.
Toda violação de direitos humanos representa não mais que outra violação de direitos humanos em sequência, em um ciclo desvirtuoso sem fim, gerador de insegurança social capaz de minar o motivo próprio de existência das forças policiais.
Quando os agentes de segurança se tornam parte dos processos de violência, transformam-se verdadeira e igualmente partes do problema, como um veículo inútil patinando na lama da ausência de real estratégia, que deve ser social e nunca militar.
3 A sentença, na íntegra, pode ser acessada no endereço eletrônico <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_333_esp.pdf>. Acesso em 13 de set. de 2022.
4 A sentença, na íntegra, pode ser acessada no endereço eletrônico <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_333_esp.pdf>. Acesso em 13 de set. de 2022.
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1Pós-graduada em Direito Público, pela Universidade Anhanguera – Uniderp e em Ministério Público – Estado Democrático de Direito, pela FEMPAR – Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná.
2Pós-graduado em Direito Público, pela Universidade Cândido Mendes.